Theology

Esta talvez seja a maior ameaça ao cristianismo evangélico atual

Editor in Chief

É preciso discernimento para perceber e agir diante dessa mudança de uma cultura literária e escrita para uma cultura de oralidade digital

A person holding a phone with emojis
Christianity Today September 11, 2025
Illustration by Christianity Today / Source Images: Unsplash

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Qualquer organização — seja ela uma empresa, um ministério, uma escola — normalmente se pergunta quais são as maiores ameaças à sua missão. A premissa que está por trás dessa pergunta é que os obstáculos mais perigosos são aqueles cuja aproximação sequer percebemos.

Considere, apenas por um momento, que a maior ameaça ao cristianismo evangélico pode não ser aqueles perigos sobre os quais tanto discutimos e para os quais até criamos estratégias — não é a secularização, não são os debates sobre sexualidade, não é a prisão política, nem o colapso institucional, nem os perpétuos escândalos, nem mesmo a fragmentação e a polarização.

E se todas essas coisas forem meros sintomas da ameaça mais perigosa para a igreja, desde os tempos da Reforma? E se essa ameaça estiver literalmente bem diante dos nossos olhos?

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Em seu livro The Future in the Rearview Mirror [O futuro digital visto pelo retrovisor], Andrey Mir baseia-se no trabalho de estudiosos da mídia, como Marshall McLuhan, Walter Ong e Eric Havelock, para argumentar que os avanços tecnológicos de nossa época estão causando uma mudança muito maior do que a provocada pela Revolução Industrial.

Mir afirma que o que está acontecendo ao nosso redor é semelhante ao que aconteceu na Era Axial, descrita pelo filósofo Karl Jaspers — quando houve uma mudança fundamental na consciência humana, que está ligada ao surgimento de mudanças na linguagem humana, aproximadamente entre 800 e 200 a.C. A Era Axial levou ao surgimento tanto das principais tradições religiosas que conhecemos hoje quanto da ciência, da agricultura, da indústria e da cultura.

A despeito das diferenças existentes entre os estudiosos com quem Mir interage, todos eles concordam que a principal mudança da Era Axial foi na questão da mídia — a transição da mídia oral para a mídia escrita. E isso vai além da mera forma que a informação assume.

As culturas de oralidade são “espirituais” no sentido de o ser humano estar constantemente inserido em um ambiente — e ter todos os seus sentidos ativos e em alerta ao mesmo tempo. Em uma cultura oral, as histórias são transmitidas por meio da repetição, geralmente por meio de cantos ou de contação de histórias, e frequentemente são histórias épicas e heroicas de glórias ou de tragédias do passado. Isso requer uma espécie de conexão totêmica [relação mística com um objeto ou ser espiritual que serve como emblema e símbolo de identidade e ancestralidade] com a natureza e um apego coletivo à tribo. Geralmente, também requer algum tipo de xamã, que é o guardião dessas histórias.

A cultura escrita não muda apenas a maneira como o pensamento é transmitido, segundo Mir, mas reestrutura o pensamento por completo. Exige que a pessoa se desligue momentaneamente dos outros sentidos para se concentrar em apenas um: a visão, o que permite uma introspecção. Isso cria o espaço psicológico para a pessoa ser um indivíduo, sintetizar particularidades em categorias e contrastar sua vida interior com a história geral da tribo.

Somente com essa introspecção é que um indivíduo pode se distanciar da consciência coletiva, mesmo que momentaneamente, e vivenciar uma transformação pessoal. E consegue ter o potencial para um relacionamento pessoal com Deus que transcende a religião tribal e totêmica.

Não foi por acaso, segundo observa Mir, que a mudança da oralidade para a escrita tornou possível o que ele chama de “as grandes tradições religiosas introspectivas”, como o judaísmo, o cristianismo, o budismo e o islamismo — todas elas com seus respectivos textos sagrados.

Mir acredita que a aceleração da tecnologia nos dias de hoje significa que o que enfrentamos agora é uma Década Axial, na qual, em poucos anos, toda a estrutura da vida humana será novamente transformada.

As transformações midiáticas da internet, dos smartphones, das mídias sociais e da inteligência artificial estão, de muitas maneiras, desfazendo a mudança feita na Era Axial [da oralidade para a escrita], em direção ao que Mir chama de “oralidade digital”.

A escrita exigia atenção focada e reflexão interna. Mas isso agora foi substituído por algo que, apesar de requerer alguns aspectos da escrita — como um alfabeto, por exemplo —, se assemelha mais à oralidade. A vida digital tem menos a ver com a leitura de um texto e mais a ver com o ato de juntar-se a um canto tribal. Ela recompensa a reverberação da identidade tribal em detrimento de qualquer tipo de busca pela verdade objetiva.

Estamos acostumados a debates sobre se a verdade é descoberta ou revelada. Em uma estrutura de oralidade digital, nenhuma dessas duas coisas acontece. Em vez disso, a verdade é encenada.

E verdades encenadas devem ser emotivas, coletivas e compartilháveis. Na cultura das mídias sociais, como argumenta Mir, agora “elegemos a verdade com nossos cliques”, da mesma forma que as aldeias de outrora aplaudiam o bardo [poeta-cantor que transmitia oralmente mitos, lendas e histórias de seu povo, acompanhado por música]. Em vez de perguntar “o que é verdade?”, sem sequer perceber, nós estamos perguntando: “ A verdade de quem merece os nossos aplausos?”.

Dentro da igreja, frequentemente nós nos pegamos batendo boca por causa do último acontecimento ruim do momento — daí a crítica implacável ao individualismo. Contudo, Mir argumenta que, com o surgimento da oralidade digital, o que enfrentamos agora não é o individualismo, mas sim a substituição dos indivíduos pelo que ele chama de “divíduos” [ou seja, Mir retira o “in” da palavra como forma de dizer que agora são seres incapazes de introspecção, de reflexão interna].

Algoritmos customizam tudo para nós, não com base em quem somos pessoalmente, mas por categorias mediante as quais possamos ser comercializados. Isso coincide, segundo ele argumenta, com as políticas identitárias que hoje caracterizam tanto a direita quanto a esquerda na sociedade ocidental. Nós nos vemos definidos por características de marcadores identitários que afundam e absorvem nosso “eu” no aspecto político ou na tribo consumidora.

Isso, como argumenta Mir, leva a uma “retribalização digital” de identidades compartilháveis, para a qual a lealdade tribal parece ser, novamente, uma questão de vida ou morte. Um subproduto dessa retribalização é a incapacidade de assumir o tipo de distanciamento que, por exemplo, colocaria verdades e princípios acima da mera definição de quem são nossos amigos ou inimigos, daqueles que são “um de nós” e daqueles que não são.

Além disso, em uma estrutura digital, a pessoa tende a se fundir não apenas com a tribo, mas também com o próprio ambiente imersivo. Observe como o seu span de atenção diminui, mesmo que você esteja tentando ler a Bíblia, quando está constantemente ligado nas notificações, alertas e estímulos para acompanhar na internet outra discussão de ideias, para conversar com outra pessoa.

A Bíblia descreve as correntes cruzadas de consciência que hoje enfrentamos. Observe, após o êxodo do Egito, o contraste entre Moisés — que ficou a sós com Deus no Sinai e recebeu dele um texto escrito, os dez mandamentos inscritos em pedra — e o povo que ficou lá embaixo do monte.

O povo queria uma experiência religiosa característica da oralidade primária. Queriam fundir-se com a natureza, com o poder e a fertilidade do bezerro feito com ouro. Queriam um totem, não uma Torá. E pediram que Arão fosse um xamã, e não um profeta — que ele criasse uma verdade religiosa conforme o que eles exigiam, ou seja, uma experiência religiosa sensorial, comunitária e imediata.

Mas o caminho do Deus de Abraão, Isaque e Jacó era bem diferente disso, pois não exigia um mero assentimento tribal, mas uma obediência pessoal e consciente (Dt 30.11-20).

Seja lá qual forem as outras coisas que o cristianismo evangélico traz para o restante do corpo de Cristo, há duas coisas que são preponderantes: uma ênfase na necessidade de transformação pessoal e interna e uma ênfase na autoridade do texto das Escrituras e que está acima da lealdade ou da identidade a tribos ou a instituições.

A transformação pessoal é fácil de caricaturar, com o revirar de olhos em apresentações evangelísticas que perguntam “você tem um relacionamento pessoal com Jesus?”, embora ela preserve uma verdade essencial do evangelho. Se todo o Israel seguir Acabe na adoração a Baal, ainda assim haverá um Elias.

O rei e os profetas da corte podem até concordar a respeito de qual verdade conta como lealdade, mas isso ignora como Jeremias pode ser, de fato, aquele que carrega uma palavra de Deus. Alguém pode deixar pai e mãe — como Pedro, Tiago e João fizeram — ou pode deixar a sua identidade como cobrador de impostos, como Mateus fez, e responder ao chamado de Jesus: “siga-me”. Esse chamado não se aplica apenas a categorias ou a instituições, mas sim a pessoas.

O evangelho é mais do que “Eu e Jesus”, sem dúvida; mas ai de nós se ele for menos do que isso. Para ser ouvida, uma pessoa precisa ouvir mais do que apenas a “verdade” coletiva da tribo. Precisa ouvir, acima de tudo, a voz que pergunta: “Mas e vocês? […] Quem vocês dizem que eu sou?” (Mateus 16.15, ênfase acrescentada).

A ênfase evangélica na Bíblia, na autoridade do texto das Escrituras, é igualmente de importância crucial. Ela pode levar a algum tipo de “biblicismo” que se proponha a ignorar a história da igreja e a sabedoria dos séculos? Claro que pode. Poderia a ênfase na memorização e na meditação pessoal dos textos da Bíblia levar pessoas a, erroneamente, concluir que a leitura coletiva das Escrituras não é importante, ou a fazer uma leitura seletiva da Bíblia de forma que ela se alinhe a preconceitos preexistentes? Sim, poderia.

Mas, sem esse encontro pessoal com as Escrituras, o que nos resta é o tipo de lealdade tribal que Jesus diz que pode fazer com que ele tire da igreja o candelabro da sua presença. Cada geração deve atentar para estas palavras: “Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Apocalipse 3.22).

A doutrina da inerrância bíblica tem sido usada, às vezes, por pessoas mal-intencionadas que buscaram sustentar sua própria autoridade; porém, isso não significa que essa doutrina não seja verdadeira. Por trás do conceito de inerrância há uma afirmação que visa, a longo prazo, frustrar as pretensões dos xamãs e dos bardos.

Deus falou — e falou em verdade — ao seu povo mediante um Verbo/uma Palavra que se estende para além deles; um Verbo/uma Palavra que convida esse povo a ouvir e a ser transformado. A ênfase evangélica na Bíblia nos lembra que a questão principal não é se “Esta verdade é conveniente?”. Nem é se “Esta verdade me levará a ser exilado da minha comunidade?”. E menos ainda se “Esta verdade vai encontrar um público expressivo?”. Antes, a questão principal é esta: “Assim diz o Senhor”.

O evangelho não é uma ferramenta para sustentar o individualismo, ainda que sem um certo tipo de individualismo não possamos ouvir o evangelho. Assim como os efésios fizeram em relação ao templo de Ártemis, nós só podemos ouvir a afirmação da verdade que sustenta a glória do grupo (Atos 19.27). E, também como no caso de Ártemis, essa afirmação da verdade geralmente é sustentada por quem lucra com ela (v. 25), bem como por qualquer multidão que seja incitada a se enfurecer contra qualquer coisa que ameace essa verdade (v. 28).

A oralidade digital não é um obstáculo definitivo para o evangelho nem para a Bíblia — nada o é. Mas se não reconhecermos a maneira como essa oralidade está nos remodelando, não seremos capazes de discordar das maneiras como ela pode nos anestesiar e nos impedir de ouvir o evangelho e de refletir com profundidade sobre a narrativa das Escrituras. Se o que estiver em jogo for a cultura escrita, os custos são altos — democracia, ciência, Estado de Direito —, mas nenhum desses custos é eterno.

O que realmente está em jogo é muito mais do que tudo isso. Se não enxergarmos e identificarmos essa atração irresistível pela oralidade digital, nos conformaremos a ela. Trocaremos, então, a característica distintiva do testemunho evangélico, como o apelo ao arrependimento pessoal e à fé, como povo do Livro, por algo que é ainda pior do que o deísmo terapêutico moral: o totemismo da oralidade digital.

Isso deixará para um futuro Josias a tarefa de convocar o povo a perceber o que se perdeu: a Palavra do Senhor, que está tão oculta que dela as pessoas nem ao menos sentem falta, e os ossos do profeta esquecido, que alertou sobre o que acontece quando a lealdade tribal substitui a Palavra (2Reis 22.9–23.20).

Não podemos impedir que o meio seja a mensagem, como McLuhan alerta. Não podemos deter mudanças, sejam elas axiais ou não, visto que são muito maiores do que qualquer um de nós.

Mas podemos decidir preservar a nossa atenção. Cada um de nós pode se determinar a cultivar um foco na Palavra escrita de Deus e na solitude interior da oração. Podemos manter vivo aquilo que ainda se pode ouvir e, portanto, que ainda se pode dizer: “Vocês precisam nascer de novo”.

Russell Moore é editor-chefe da Christianity Today e lidera o departamento de Teologia Pública.

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