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A tecnologia é o fruto proibido do século 21? 

Se o Deus verdadeiro assumiu limitações humanas, precisamos nos perguntar se devemos superá-las com tecnologias, em uma busca de nos tornarmos deuses.

The silhouette of a middle-aged woman, with a drawing of a kind of cyborg inside her.
Christianity Today July 11, 2025
Illustration by Robert Carter

Muito antes da nossa época, o humanista renascentista Giovanni Pico della Mirandola foi um dos primeiros defensores do transumanismo [movimento filosófico e intelectual que visa, através da tecnologia, aprimorar e até mesmo superar a condição humana atual, incluindo a morte]. Em sua obra Discurso sobre a Dignidade do Homem, de 1486, ele faz o Criador dizer as seguintes palavras a Adão, o primeiro ser humano:

Nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal te criamos, a fim de que possas, como um livre e extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua própria forma tal como a preferires. Poderás degenerar-te nas formas inferiores, que são animalescas; poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te nas formas superiores, que são divinas.

Pico della Mirandola é o ídolo dos transumanistas, pois levou a plasticidade humana ao limite. Ele acreditava que as formas humanas superiores vão além da humanidade: elas são divinas.

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Hoje, em pleno século 21, o filósofo Nick Bostrom define um pós-humano como um indivíduo para quem ao menos uma capacidade central geral — como expectativa de saúde, cognição ou emoção — “excede em muito o máximo atingível por qualquer ser humano atual, sem recorrer a novos meios tecnológicos”.

A empresa de neurotecnologia Neuralink foi pioneira em interfaces cérebro-computador para pessoas com paralisia, ajudando-as a se comunicar e a controlar dispositivos remotamente. Neil Harbisson, que nasceu daltônico, recebeu um implante craniano, em 2004, na forma de uma antena que lhe permite “ver” cores como vibrações sonoras. Um cineasta chamado Rob Spence substituiu seu olho direito por uma câmera de vídeo sem fio e se autodenomina um “eyeborg”. Elizabeth Parrish, CEO de uma empresa de biotecnologia, submeteu-se a uma terapia genética experimental, em 2015, e afirmou ter retardado com sucesso o processo de envelhecimento.

Outros avanços são puramente cosméticos, superficiais. “Se você pudesse remodelar seu pé e transformá-lo em um salto plataforma, você faria isso?”, pergunta um artigo sobre modificações corporais no mundo da moda. “Ou que tal uma peça marcante com chifres turquesa sutis em cada ombro?”

Basta ler o grande filósofo pessimista Arthur Schopenhauer — que escreveu que “a vida oscila como um pêndulo, para frente e para trás, entre a dor e o tédio” — para se sentir tentado a aderir ao projeto transumanista. Se vale a pena essa busca para transcender a nossa humanidade vai depender se cremos ou não na ideia de que ser meramente humano é algo que deva ser superado.

Eu, por exemplo, acredito que, assim como há beleza e bondade no ser de uma águia ou de um golfinho, há beleza e bondade no fato de se ser apenas humano, e nada mais. O ponto central da fé cristã, afinal, é que o Verbo divino se fez carne humana. Ao habitar entre nós, o Verbo santificou a humanidade em sua finitude e fragilidade. Ao mesmo tempo, as melhorias — e aqui me refiro ao nosso desenvolvimento e ao uso de ferramentas, mesmo aquelas que são integradas ao nosso corpo — não estão excluídas.

Há alguns anos, ministrei um curso na Universidade de Yale sobre fé e globalização, com o primeiro-ministro britânico Tony Blair e um colega secularista. Em certo momento da aula, meu colega ergueu um comprimido e o mostrou aos alunos. Quando pessoas religiosas estão doentes, disse ele, elas oram, acreditando que Deus realizará um milagre. Mas as pessoas seculares confiam nas maravilhas da medicina moderna, como este pequeno comprimido que regula a pressão alta quase instantaneamente. Ele concluiu, obviamente, que a medicina moderna funciona melhor do que Deus.

Quando ele terminou, virei-me para ele e disse: “Você e eu estamos de acordo em algo fundamental: nós dois negamos o mesmo deus!”. Ele me olhou, perplexo.

“O deus que você nega é incompatível com a inventividade e o trabalho humanos — com todos os seus processos mundanos”, eu disse. “Eu também nego esse deus. Em contrapartida, o Deus em quem acredito torna possível a totalidade da realidade do mundo em toda a sua complexidade dinâmica, aí incluindo a inventividade e o trabalho humanos.”

As primeiras páginas da Bíblia falam de Deus trabalhando com essas realidades do mundo. No Jardim do Éden, Deus não jogou comida do céu direto na boca de Adão e de Eva, nem pressionou suas mandíbulas, fazendo-os mastigá-la. Em vez disso, eles trabalharam para ter comida, cultivando e cuidando do jardim; e através do trabalho deles, Deus também estava trabalhando.

Quando se trata dos dilemas éticos que encontramos no transumanismo, devemos exercer extrema cautela. No entanto, é um erro pensar que o trabalho divino e o trabalho humano, incluindo aqui os avanços tecnológicos, sejam coisas mutuamente excludentes.

Os seres humanos vieram a acreditar em Deus quando ainda nem tinham conhecimento científico sobre a estrutura básica da realidade, quando o melhor antisséptico era a lavanda e quando o meio de transporte predominante eram seus próprios pés descalços e calejados.

Embora nossa compreensão do mundo — e, portanto, da relação de Deus com o mundo — tenha mudado, nós, indivíduos modernos, que estamos explorando as propriedades astrofísicas e quânticas dos buracos negros, editando o genoma para prevenir doenças e melhorar as capacidades humanas, e viajando em carros autônomos, ainda podemos acreditar nesse mesmo Deus — e podemos acreditar nele sem abandonar a razão.

Quanto mais poder temos, mais importante é escolher com sabedoria a direção básica da nossa vida. Quanto mais inteligentes e poderosas são as ferramentas que criamos, mais claros devemos ser sobre os propósitos humanos aos quais essas ferramentas servirão. E a única maneira de discernir quais propósitos são dignos da nossa humanidade é saber em quem devemos confiar, a quem devemos amar acima de todas as coisas, bem como que tipo de ser humano esperamos ser.

Ser humano — criado à imago Dei — é viver a visão dessa vida boa. Essa visão esboça um retrato do tipo de ser humano que devemos ser e fornece os critérios orientadores para o que devemos desejar e para como devemos viver. Todos nós vivemos por meio de alguma visão desse tipo, quer a adotemos conscientemente, quer ela permaneça incipiente e oculta à nossa vista, entrelaçada à trama de nossas crenças e práticas.

Como as visões da vida boa são, por definição, de caráter normativo, a ciência não pode formulá-las. O conhecimento sobre o que foi, o que é e o que provavelmente será, por mais preciso e detalhado que seja, jamais pode prescrever o que deveria ser.

Imagine que tenhamos decidido abrir mão da privacidade e permitir que todos os dados disponíveis sobre nós sejam coletados — todas as nossas conversas e mensagens, nossa saúde, nossos hábitos e nossas compras. Um algoritmo altamente inteligente poderia gerar [com esses dados] um registro excepcionalmente preciso do nosso comportamento e, portanto, provavelmente seria capaz de prever o que faríamos em muitas situações. Ele poderia nos dizer o que desejamos e o que achamos desejável, até mesmo o que pensamos sobre quem deveríamos ser e o que deveríamos fazer. E poderia até nos conhecer melhor do que nós mesmos, um cenário com o qual Yuval Noah Harari encerra seu livro Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã.

Mas a única coisa que um algoritmo tão inteligente assim não seria capaz de nos dizer é quem deveríamos ser — o que deveríamos fazer e em que direção deveríamos nos esforçar, quem realmente deveríamos ser e o que deveríamos desejar. A ciência e os avanços tecnológicos não podem nos dar essa visão da vida verdadeira e boa. A razão não pode trazer à luz o que deve ser mais importante para nós — ela não pode responder à pergunta sobre como nós, enquanto indivíduos e enquanto comunidade humana, devemos viver. Para encontrar essas respostas, nós, crentes, nos voltamos para Jesus Cristo.

Jesus é a medida da nossa humanidade. Buscamos crescer, ascender, alcançar, com a ajuda da tecnologia, um estado de conhecimento, poder e bem-aventurança comparável ao de Deus — para nos tornarmos deuses. Mas temos uma imagem unilateral e, portanto, falsa de Deus. Em Jesus, o Deus verdadeiro assumiu nossas limitações e veio para servir aos mais humildes, não considerando

que a sua igualdade com Deus era algo que deveria ser usado como vantagem; antes, esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo, tornando‑se semelhante aos homens. Sendo encontrado em figura humana, humilhou‑se e foi obediente até a morte, e morte de cruz! (Filipenses 2.6-8, NVI).

A vinda de Cristo mudou radicalmente a forma como devemos pensar não apenas sobre Deus, mas também sobre nós mesmos. Se “a própria essência de Deus é amar e servir”, como escreveu Max Scheler, então, o que mais se assemelha a Deus é o amor descentralizado: o amor em humildade, que considera os outros como mais importantes do que nós mesmos e olha para os interesses dos outros, e não [apenas] para os nossos (v. 3-4).

Isso não quer dizer que os avanços tecnológicos não sejam importantes ou que devamos apenas temê-los. Mas o ponto central para nós é este: quando se trata de alinhar nossa vida com a história de Jesus Cristo, esses avanços nos ajudam ou nos atrapalham? O que mais devemos temer é um futuro desprovido da fé em Cristo e da bondade cristã.

Quando estivermos perto do final do século 21, cercados por uma tecnologia espetacular, pode vir a acontecer, como Aldous Huxley imaginou em Brave New World [Admirável Mundo Novo], que a maioria de nós estará tão condicionada que não seremos capazes de “deixar de nos comportar como [deveríamos] nos comportar”. E se, mesmo assim, algo não sair como o esperado, pode ser que alguma droga milagrosa nos faça tirar “umas férias dos fatos”.

Para Huxley, essa era uma visão distópica. Mas a persistência com que buscamos eliminar o sofrimento e multiplicar os prazeres individualizados sugere que esse é o tipo de futuro que desejamos. Com a ajuda da ciência e da tecnologia, podemos muito bem vir a nos encontrar em um mundo assim.

Mas, assim como os porcos do ensinamento de Jesus, que pisotearam as pérolas (Mateus 7.6), teremos, então, nos afastado do que mais importa e desperdiçado o que há de melhor em nossa humanidade. A pergunta crucial para o futuro é, portanto, a mesma que Jesus fez aos seus discípulos, há dois mil anos: “Quando o Filho do homem vier, encontrará fé na terra?” (Lucas 18.8).

Miroslav Volf é professor da cátedra Henry B. Wright de Teologia, na Universidade de Yale, diretor-fundador do Centro de Fé e Cultura de Yale e autor de The Cost of Ambition: How Striving to Be Better Than Others Makes Us Worse [O custo da ambição: como a busca de ser melhor do que os outros nos torna piores; Brazos Press, 2025].

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