Theology

O pecado sistêmico: nossos pecados não são apenas individuais

As Escrituras estão repletas de exemplos de comunidades e instituições que são responsabilizadas pelo pecado.

Newton's Cradle with an apple about to hit the other balls
Christianity Today March 17, 2025
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek

Nos Estados Unidos, fevereiro é conhecido como o mês da História Negra, pois leva as pessoas a refletirem sobre como o passado racial da nação influencia o presente — e também a reconhecerem os efeitos duradouros da injustiça racial e a necessidade de uma reforma sistêmica, tanto na sociedade quanto na igreja.

A expressão “pecado sistêmico” refere-se à ideia de que a pecaminosidade humana não diz respeito somente a atos iníquos praticados por indivíduos; comunidades, governos, nações, culturas e outras instituições sociais também podem pecar. Em decorrência disso, o chamado ao arrependimento e à justiça se estende para além da moralidade pessoal e se aplica a sistemas mais amplos. Isso significa que não temos apenas um dever pessoal de combater o racismo; nossas sociedades também têm uma responsabilidade coletiva de combatê-lo.

Como escreve o teólogo José Ignacio González Faus: “Quando os seres humanos pecam, eles geram estruturas de pecado, que, por sua vez, fazem os seres humanos pecarem”. Uma vez que as leis, por exemplo, podem ser pecaminosas, os cristãos têm a responsabilidade de se opor a elas e de tentar criar sistemas justos. Isso não deveria ser motivo de controvérsia. No entanto, muitos dos mesmos cristãos que defendem leis que proíbam o aborto ou que protejam a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, ao mesmo tempo são contra falar sobre pecado sistêmico.

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A propósito, uma objeção que ouço com frequência é que o conceito de pecado sistêmico não é encontrado nem mencionado na Bíblia. Esses críticos dizem que a definição bíblica de pecado é uma questão estritamente individual, enraizada em escolhas e responsabilidades pessoais, não em sistemas e leis.

Alguns chegam a dizer que conceitos como pecado sistêmico e racismo institucional são antibíblicos, pois a culpabilização de sistemas, instituições ou comunidades dilui algo que historicamente tem sido mais importante na doutrina cristã do pecado: a responsabilidade pessoal. No entanto, em meus estudos, cheguei a uma conclusão oposta: não só encontramos o pecado sistêmico na Bíblia como também [diante do pecado sistêmico] podemos ser até mais culpados pelo pecado do que se fôssemos apenas pessoalmente responsáveis.

Em alguns exemplos do Antigo Testamento, comunidades inteiras, e não apenas indivíduos, estão implicadas e são responsabilizadas por sua pecaminosidade. Esses casos não exigem menos, pelo contrário, eles exigem mais do que a responsabilidade das partes culpadas envolvidas. Este conceito também é destacado por exemplos do Novo Testamento, nos quais o apóstolo Paulo delineia uma dimensão relacional na maneira como as primeiras comunidades cristãs respondiam ao pecado.

Na realidade, no pensamento hebraico, o pecado era tratado mais frequentemente como uma questão comunitária do que como questão individual. A maioria das passagens que tratam do pecado são sobre como toda a comunidade israelita pecou e como isso afetou os indivíduos dentro daquela comunidade. Como afirma Mark Boda, estudioso do Antigo Testamento: “O pecado, bem como a culpa e a punição que o acompanham são entendidos em termos de uma solidariedade corporativa”.

Os Profetas frequentemente condenavam nações inteiras por sua pecaminosidade ou faziam referência aos pecados das gerações anteriores para explicar a iniquidade dos que os ouviam. Israel é condenado como nação pela injustiça contra povos oprimidos, apesar de alguns indivíduos não participarem da injustiça. Já escrevi com profundidade sobre isso no passado, mas vejamos alguns exemplos importantes a seguir.

Primeiro, Deus condena toda a nação de Israel por adorar o bezerro de ouro, apesar da oposição dos levitas (Êxodo 32). Mais tarde, ele permite que Israel peregrine no deserto por uma geração inteira, como consequência de sua falta de confiança em Deus, apesar da resposta fiel de Calebe e de Josué (Números 14). No monte Horebe, quando Elias lamenta a iniquidade de Israel, Deus o lembra dos 7.000 que permanecem fiéis (1Reis 19.14-18). Ainda assim, Deus segue adiante com o anúncio do juízo sobre todo Israel nos próximos capítulos (20.42; 21.21-24).

Até mesmo o arrependimento por tais pecados da nação é mostrado como uma atividade comunitária, e não apenas individual: Neemias faz uma oração de arrependimento pelos pecados atuais da nação e pelos pecados da geração anterior (Neemias 1.6), e Israel responde com arrependimento nacional (Neemias 9.2). Daniel também oferece orações de arrependimento pelos pecados de Israel cometidos pela geração atual e pelas anteriores (Daniel 9.16). Em todos esses exemplos, aos olhos de Deus, a falha cometida vai além das ações transgressoras de um único indivíduo — toda a nação fez algo para ofender a Deus e, portanto, toda a nação é responsável por se arrepender e corrigir esses erros.

Isso talvez fique mais evidente no caso de Acã, que toma o despojo de Jericó, contrariando as ordens de Deus (Josué 7). Quando os israelitas sobem até Ai, descobrem que o favor do Senhor não está mais com eles. Josué clama a Deus, que lhe diz: “Israel pecou; eles violaram a minha aliança” (v. 11, ênfase acrescentada). Deus condena todo o povo de Israel pelos pecados de Acã — e a ira de Deus só diminui quando todo o povo se consagra e destrói os bens roubados por Acã e a família dele.

O que essa história nos fala sobre pecado? Por acaso ela dilui a responsabilidade de Acã por seu pecado? Eu acho que não. Acã ainda é identificado como aquele que tomou o despojo e provocou a ira de Deus — afinal, ele e sua família sofrem o peso da punição divina. A culpa deles não é diminuída pela responsabização de todo o restante do povo de Israel, por quebrarem a aliança com Deus. Em vez disso, parece que a responsabilização de Israel é acrescida à que foi dirigida a Acã e sua família.

Uma das razões para essa responsabilidade comunitária é a estrutura social e institucional da vida dos israelitas. Pelo fato de Israel, como comunidade, estar em aliança com Deus, quando uma pessoa viola essa aliança, isso afeta toda a comunidade. O pecado não é só uma questão pessoal (embora nunca seja menos do que isso). O pecado ocorre em nível comunitário, e os pecados individuais afetam a comunidade — o pecado é um problema comunitário.

Você pode pensar, então, que o pecado no Antigo Testamento era uma provação comunitária — mas isso foi naquela época. Cristo mudou a aliança, que passou de um relacionamento entre Deus e Israel para relacionamentos pessoais com Jesus, o que significa que, agora, tudo o que temos de fazer é nos concentrar em nossos próprios pecados, certo? Com certeza o conceito de pecado sistêmico está ausente no Novo Testamento, muitos devem pensar. Olha, não é bem assim.

A verdade é que as cartas de Paulo estão ainda mais focadas nas dimensões comunitárias do pecado. Quando Paulo repreende indivíduos por seus pecados, ele parece igualmente preocupado com a forma como isso afeta a retidão e a integridade de toda a comunidade.

Paulo exorta congregações inteiras por pecados que crescem de forma desenfreada na comunidade, como os maus-tratos que os cristãos judeus praticavam contra os crentes gentios. Quando as congregações demonstram parcialidade para com os de origem judaica e tratam os convertidos gentios como cidadãos de segunda classe, Paulo admoesta essas congregações, chamando-as a viverem unidas, sem parcialidade e a repararem as maneiras deformadas como se relacionam entre si (Gálatas 2).

O entendimento de Paulo sobre o pecado como problema da comunidade exige que a gente dê um passo que vá “além de nomear os culpados”, nas palavras de Esau McCaulley. McCaulley acrescenta: “É preciso que haja uma visão voltada para a correção dos erros cometidos e a restauração dos relacionamentos. O chamado para sermos pacificadores é o chamado para que a igreja entre no mundo confuso das políticas e aponte para uma maneira melhor de sermos humanos”.

Por essa razão, Paulo adverte que nós, como indivíduos, podemos nos tornar instrumentos de injustiça, de modo que mesmo aqueles indivíduos que não estão participando ativamente de um pecado específico podem ser culpados de passividade em relação a ele. Observe as palavras de Paulo em Romanos 6: Ele não diz para simplesmente nos abstermos do pecado, mas diz que não devemos permitir que o pecado reine em nosso corpo nem permitir que qualquer parte de nós mesmos seja controlada pelo pecado (v. 12-13). Isso implica em uma necessidade de resistir ativamente ao pecado, e não apenas de evitá-lo. Por exemplo, Paulo repreende diretamente Pedro, que havia sido um dos primeiros defensores da inclusão dos gentios, por permanecer em silêncio sobre esta questão (Gálatas 2.11-14). A ordem de Paulo para que as igrejas sejam santas não é um mero chamado para não pecar, mas um chamado para se opor ao pecado em seu meio. Ser passivo em relação aos pecados cometidos em nossas comunidades é ser usado pelo Inimigo para a injustiça.

Outro exemplo é quando Paulo exorta um homem que dormiu com a madrasta. Paulo repreende a igreja de Corinto, e não apenas os indivíduos envolvidos (1Coríntios 5.1-2), tornando responsabilidade de toda a congregação a questão de lidar com o pecador em seu meio.

Em Gálatas 6, Paulo aconselha a igreja a restaurar com espírito de mansidão os membros que pecaram, levando-os ao arrependimento e, ao mesmo tempo, advertindo-os contra a tentação ao longo desse processo. Ele faz uma declaração profunda: “Levem os fardos uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo” (v. 2). Da mesma forma, em Romanos 14, Paulo argumenta que a reconciliação exige que certos direitos e liberdades sejam estabelecidos por todos por causa de alguns irmãos e irmãs mais fracos.

Em ambos os casos, Paulo está claramente preocupado com o impacto coletivo dos pecados individuais, e por essa razão ele torna todos nós responsáveis por todos os nossos irmãos.

Agora, o que isso significa para a resposta cristã à injustiça racial sistêmica? Significa que sempre que virmos racismo em nossas igrejas e comunidades, ele deve ser tratado como um problema que afeta toda a comunidade, e não apenas os indivíduos envolvidos.

Afinal, foram necessárias gerações de pessoas para criar e manter em vigor sistemas legais inteiros, sistemas econômicos e mesmo uma cultura que foram construídos sobre o comércio transatlântico de escravos. Isso significa que o racismo existe, em parte, por causa de sistemas pecaminosos criados por pessoas pecaminosas. E, assim como Paulo pega um caso de imoralidade sexual e o transforma em um problema da comunidade toda, o preconceito racial precisa ser visto como algo igualmente sintomático de nossa passividade [comunitária] em relação a sistemas injustos.

Então, qual é a solução judaico-cristã para um pecado sistêmico como o racismo?

Quando os Profetas chamam Israel para prestar contas por sua falta de cuidado com os pobres, a solução é Israel voltar à observância da lei de Deus. Nesse caso específico, isso significava retornar à prática comunitária de deixar de colher nas extremidades de cada lavoura, para que os pobres e refugiados pudessem pegar alimentos que para outros seria excedente (Levítico 23.22).

Da mesma forma, quando Paulo repreende as congregações por permitirem que o pecado se espalhe por suas comunidades, sua solução é que os cristãos assumam a responsabilidade por seus irmãos mais fracos, mudando práticas em nível social para evitar que se tornem pedras de tropeço [para os mais fracos]. Em um dos casos, isso significava uma proibição comunitária de comer carne sacrificada a ídolos, para evitar que outros pecassem (1Coríntios 8.9-13). Dessa forma, Paulo prescreve uma cura coletiva para impedir a propagação do pecado.

Problemas comunitários exigem soluções comunitárias. Desafiar pecados sistêmicos como o racismo, a fim de mudar estruturas sociais e eclesiais que encorajam nossos irmãos e irmãs a persistirem no erro, é algo que vai além de lidar com preconceitos individuais.

Como McCaulley coloca: “De acordo com Isaías, a prática da verdadeira religião deve resultar em mudanças concretas, na quebra de jugos. Ele não está se referindo ao ato privado ocasional de libertação, mas sim à ‘quebra de correntes da injustiça’. O que isso poderia significar, se não uma transformação das estruturas das sociedades que mantêm as pessoas presas na desesperança?”

O fracasso em lutar adequadamente contra os pecados sistêmicos em nossas igrejas, pecados como o racismo, por exemplo, é comparável à passividade de Pedro em relação ao conflito entre judeus e gentios. Quando não enfrentamos os problemas comunitários, permitimos que eles cresçam e se transformem em problemas maiores. Tornamo-nos, para usar as palavras de Paulo, instrumentos de injustiça para o pecado (Romanos 6.13).

Finalmente, o chamado cristão para lidar com o pecado sistêmico vai além de nossas igrejas. Tanto Paulo quanto os Profetas regularmente repreendiam não apenas suas próprias comunidades tementes a Deus, mas também as comunidades pecaminosas ao seu redor. Os Profetas condenaram outras nações com base em seus maus-tratos aos pobres, e Paulo denunciou as práticas pecaminosas das culturas que cercavam as igrejas primitivas. Portanto, sempre que a igreja testemunhar a injustiça sistêmica contra pessoas negras, devemos assumir nossa voz profética e condená-la por aquilo que ela é: um pecado.

Devemos chamar nossas sociedades a se arrependerem de seu racismo e exigir mudanças naquelas estruturas que permitem que esse pecado persista. Qualquer atitude que faça menos do que isso equivale à passividade, que transforma as igrejas em instrumentos que permitem a injustiça, em vez de instrumentos de justiça. Se a igreja deve ser as mãos e os pés de Jesus, então, devemos resistir ativamente ao pecado, dentro e fora de nossas igrejas.

Mais do que isso, a igreja deve ser conhecida por praticar a justiça, por amar a misericórdia e por andar humildemente com nosso Deus (Miqueias 6.8). E, assim, convidamos o mundo a ser transformado pelo poderoso amor de Jesus, da mesma forma que ele transformou nossos próprios corações.

D. T. Everhart é professor de teologia na London School of Theology [Escola de Teologia de Londres], onde dirige o BA Theology and Liberal Arts program [Bacharelado de Teologia e Artes].

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