Theology

O Pai Nosso e a polarização nossa de cada dia 

Na Oração do Senhor, Jesus chama seguidores divididos a buscarem a unidade como família de Deus.

Christianity Today February 17, 2025
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons

A igreja hoje encontra-se dividida, polarizada, por causa das muitas facções sociais e políticas que competem por nossa atenção e lealdade.

Nos EUA, por exemplo, estamos saindo de um período eleitoral contencioso, no qual muitos eleitores cristãos se sentiam fortemente convictos de sua escolha (seja votando em um candidato específico, seja abstendo-se completamente de votar) e expressaram consternação por outros cristãos terem feito escolhas diferente deles.

Diante da perspectiva de nos reunirmos com crentes que pensam muito diferente de nós — sejam eles irmãos da nossa igreja, nossos amigos ou mesmo familiares —, como podemos ter como objetivo ser agentes de reconciliação, e não de polarização?

Talvez essa tarefa comece com oração; mais especificamente, da maneira que Jesus nos ensinou a orar.

O Pai Nosso ou a Oração do Senhor é conhecida por muitos, mas a tenho olhado com novos olhos recentemente. Ela não só reorienta e reforma radicalmente a comunidade dos santos como povo de Deus, mas também mina algumas das maneiras persistentemente problemáticas como transitamos pela vida. A oração de Jesus mira em nosso egocentrismo — que inclui nosso individualismo grosseiro, nossa ambição egoísta e nossas tentativas de nos justificar —, e o substitui por um convite ousado para pertencer a uma comunidade contracultural.

Permita-me mostrar o que quero dizer com isso.

Você já notou os pronomes usados no Pai Nosso? Em vez de “eu”, “mim” e “meu”, a Oração do Senhor nos ensina a orar com pronomes coletivos: “nós”, “nos” e “nosso”. “Pai nosso” é aquele a quem oramos (Mateus 6.9, ênfases acrescentadas ao longo de todo o texto). Deus não é o meu gênio da lâmpada particular, pronto para conceder meus desejos. Ele é o pai divino em cuja família cada seguidor de Jesus encontra um lar.

Orar a Deus como Pai nosso reconhece, simultaneamente, que você é minha irmã ou meu irmão. Em vez de pensar apenas em mim, devo pensar imediatamente nos outros.

Vale a pena destacar que, no mundo do primeiro século, o relacionamento entre irmãos era algo de importância primária, e exercia uma lealdade potente — maior até do que a força de um casamento. Irmãos e irmãs eram profundamente comprometidos uns com os outros. Jesus redefine os limites do compromisso leal, quando fala da comunidade de crentes como uma família.

Um de seus ensinamentos mais surpreendentes foi aquele em que ele subordinou as preocupações de sua família biológica à família da fé: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? […] quem faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” (Mateus 12.48, 50). Se você e eu somos irmãos nesta família recém-formada, então, temos uma profunda responsabilidade um para com o outro.

Esta mesma mensagem é enfatizada no restante do Pai Nosso.

“Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia” (Mateus 6.11). Não oro para que sejam atendidas apenas as minhas necessidades, mas sim as nossas. Jesus ora pela provisão diária, pelo pão de cada dia. Deus não garante um portfólio financeiro de sucesso a ninguém. Ele oferece provisão para hoje. Esta provisão diária começa no deserto do Sinai, onde Deus deu maná aos israelitas — o suficiente para cada boca, o suficiente para cada dia.

Qualquer dose a mais de maná que fosse guardada estragaria, porque o alimento não era dado para ser acumulado. A intenção era garantir que todos tivessem o suficiente. Isso sugere que, se eu tiver mais comida do que preciso, devo participar partilhando-a, para atender às necessidades dos outros. A Oração do Pai Nosso reconhece a urgência do alimento diário e nos torna conscientes e sensíveis às necessidades dos outros.

“Perdoa as nossas ofensas” (v. 12). A oração não apenas nos torna irmãos que reconhecem nossas necessidades comuns, mas também agrupa nossas respectivas responsabilidades. Em outras palavras, as suas ofensas ou dívidas são nossas ofensas ou dívidas. O que eu devo é o que nós devemos. Compartilhamos de uma responsabilidade coletiva pelo mal que causamos aos outros ou pelo bem que prometemos, mas não fazemos. O perdão pelo qual Jesus nos ensina a orar não é uma saída fácil; é um perdão que nos faz confrontar as consequências de nossas falhas comunitárias, e nos pede para fazermos isso juntos.

“Como também temos perdoado aqueles que nos ofendem” (v. 12). Juntos, somos chamados a perdoar aqueles que nos prejudicaram ou que nos fizeram esperar por algo que nos é devido. Há uma relação de reciprocidade entre o perdão que estendemos e a responsabilidade que temos de cumprir os compromissos que assumimos com os outros.

A Oração do Senhor enfraquece nosso egocentrismo ao nos redefinir. Se Deus é Pai nosso, se o pão é nosso e se estas ofensas/dívidas são nossas, então, devemos resolver todas essas coisas juntos. Sua vizinhança é a minha, e eu sou seu próximo independentemente do quão distantes possamos morar. Estamos, em certo sentido, devidamente enredados.

Essa oração nos descentraliza de outras maneiras também. “Santificado seja o teu nome […] Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.” Jesus não nos convida a nos aproximar de Deus com nossos planos, em busca do seu selo de aprovação. Ele afirma que a vontade de Deus é a que deve ocupar nosso coração e na qual devemos concentrar nossas energias. O nome de Deus é o único que devemos procurar honrar.

Honrar o nome de Deus aniquila nossas fantasias e nossos desejos de palcos, de púlpitos e de cargos políticos, através dos quais podemos construir nossos próprios reinos. O reino de Deus é aquele por cuja existência oramos. Senhor, que a tua realeza continue a exercer influência. Que a tua vontade seja colocada em prática em nosso meio.

Não há espaço para buscarmos poder pessoal ou para defendermos nossas próprias vontades. Tudo isso se submete, em nossa busca pelo reino de Deus, pela vontade de Deus, pela glória de Deus e pelo nome de Deus. O reino de Deus perdurará mais do que qualquer outro, e é o único ao qual devemos nossa lealdade. Em outras palavras, submetemos a nossa vontade para que possamos aceitar a vontade de Deus.

Sendo bem franca, como um amigo apontou, toda vez que fazemos esta oração do Pai Nosso, estamos, em última análise, orando pelo fim de todos os Estados-nações da face da Terra — porque, quando a missão de Deus for finalmente cumprida, assim na Terra como no céu, somente Cristo governará sobre toda a criação. Todas as formas de governo humano serão dissolvidas, e nos curvaremos aos pés de Jesus. Que lembrete poderoso!

Para Jesus, essa oração não era simplesmente algo que fazia da boca para fora. No Jardim do Getsêmani, quando ele orou “não seja feita a minha vontade, mas a tua”, isso lhe custou tudo mesmo (Lucas 22.42). E pode custar tudo para nós também. A oração de Jesus é um poderoso chamado para repensarmos nossas prioridades e começarmos a trabalhar naquilo que importa para Deus.

Quando Jesus orou “Santificado seja o teu nome” (Mateus 6.9), ele certamente entendia que a reputação de Deus está ligada às pessoas que carregam seu nome. Ao longo do Antigo Testamento, lemos sobre gerações de infidelidade à aliança que comprometeram seriamente a missão que o povo de Israel tinha: a missão de ser representante de Deus em meio às nações.

Em sua oração, Jesus demonstra estar comprometido com uma vida de santidade e de retidão — em viver fielmente, segundo os mandamentos de Deus — e ele é um modelo de como cumprir nossa vocação. Para que o nome de Deus seja reverenciado, o povo de Deus tem de levar a sério sua missão de carregar bem o nome de Deus (veja Ezequiel 36). Como podemos santificar o nome de Deus? Vivendo de acordo com os mandamentos de Deus.

A oração do Pai Nosso termina com uma súplica fervorosa para que “não nos deixe cair em tentação”. Todos nós dependemos de Deus para nos proteger em tempos de provação. Nós nunca devemos ser aqueles que dizem: “Pode mandar provações! Eu cuido disso!”. Oferecendo um antídoto para a nossa mentalidade de autossuficiência, a oração de Jesus reconhece nossa vulnerabilidade humana e clama a Deus por proteção.

Ele ora ainda para que Deus “nos livre do mal” (Mt 6.13). Esta palavra também pode ser traduzida como “o Maligno”, isto é, o diabo — aquele que o próprio Jesus enfrentou durante sua tentação no deserto. Mas, mesmo na leitura mais genérica, “nos livre do mal”, o estudioso Daniel Block sugere que devemos ler a palavra “mal” com as lentes de Deuteronômio, onde a punição de YHWH viria “por conta da maldade de suas ações, porque vocês me abandonaram” (Dt 28.20, NRSV).

O Antigo Testamento repetidamente testifica que nossa maior ameaça vem não de fora, mas de dentro. Em essência, Jesus orou para que Deus nos resgatasse do mal da apostasia, especialmente dado o impacto [disso] na reputação de Deus, quando seu povo é infiel. É isso que deve motivar nossa oração por proteção.

Estamos vivendo um dos tempos mais segmentados e polarizados da história moderna. Não é preciso muito para começar uma briga nas redes sociais, e está se tornando cada vez mais difícil até mesmo manter uma conversa civilizada sobre nossas divergências. Agora, a única coisa que está dando certo na política é a cultura do cancelamento, e ela está acontecendo em ambos os lados dessa polarização. Os níveis de angústia e de medo são alarmantes.

Neste ambiente hostil, pode tornar-se fácil para nós esquecermos nosso propósito como cristãos. Nós carregamos o nome de Deus e a nossa missão é representar Deus para as nações. Não podemos fazer isso se estivermos ocupados cavando trincheiras e estocando armas para usar contra quem está lá “do outro lado”. Temos que estar dispostos a atravessar a rua, apertar a mão de alguém e ouvir sua história.

A oração extraordinária de Jesus tem poder para curar nações que estão divididas. O Pai Nosso começa tirando do centro as minhas necessidades e as minhas vontades, formando, em vez disso, uma comunidade amorosa, na qual nós reconhecemos necessidades e responsabilidades compartilhadas. A Oração do Senhor também redefine nossas prioridades, direcionando-nos para o reino de Deus e o nome de Deus.

Em vez de apontar as falhas dos outros, essa oração cultiva uma dependência honesta de Deus, reconhecendo nossas vulnerabilidades coletivas diante de tentações universais.

A Oração do Senhor é tão familiar que, muitas vezes, ficamos no piloto automático quando a oramos e, portanto, não atentamos para as suas sérias implicações. Mas, se desacelerarmos e realmente pensarmos no que as palavras de Jesus significam, e o que elas exigem de nós, algo verdadeiramente transformador pode começar a criar raízes.

Que tal se os cristãos de todos os lados do espectro político se ajoelhassem, juntos, e orassem para que o reino de Deus, a glória de Deus e o nome de Deus fossem exaltados em nossa nação?

Carmen Joy Imes é professora associada de Antigo Testamento na Talbot School of Theology [Escola de Teologia Talbot] e autora de Bearing God’s Name: Why Sinai Still Matters [Levando o nome de Deus: Por que o Sinai ainda importa].

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