Em um dia qualquer de dezembro no Brasil, uma estação de rádio com certeza está tocando a famosa “Então é Natal”, canção de Simone de 1995 que é uma versão local de “Happy Xmas (War is Over)” [Feliz Natal (A guerra acabou)], de John Lennon e Yoko Ono. A música se tornou tão onipresente que, em 1999, um colunista de jornal sugeriu que as pessoas fugiam do país no final do ano para escapar da sua incessante reprodução.
A obsessão do Brasil com canções de natal traduzidas se estende à música sacra, gênero no qual a maioria dos cristãos e das estações de rádio cristãs tocam versões em português de antigas canções de natal europeias, como “Cantai que o Salvador Chegou” e “Oh Vinde Adoremos“.
Não é que as canções de natal brasileiras não existam: há exemplos do passado, como “Boas Festas” de Assis Valente, lançada em 1933; “O Velhinho” de Otávio Babo Filho, popularizado por Carlos Galhardo em 1957; e o carnavalesco “Meninos da Mangueira” [que faz referência ao grupo de samba do Rio de Janeiro] de Ataulfo Alves Júnior (1976). Mas todas são músicas sobre o Papai Noel.
Enquanto isso, é muito difícil encontrarmos canções de natal cristãs, mesmo as católicas romanas. Entre os católicos, a maioria das celebrações é modesta. Tradições locais como a Missa do Gallo [Missa da Meia-Noite] não carregam consigo músicas específicas da época e tradições musicais locais. Além disso, os líderes da igreja frequentemente emprestam seus prédios para programas públicos de Natal que não necessariamente estão ligados aos programas da igreja.
Ao mesmo tempo, a música gospel brasileira explodiu em popularidade. De acordo com o Spotify, a audiência do gênero cresceu em média 44% anualmente entre 2015 e 2020. Este ano, somente de janeiro a março, o número de ouvintes de música gospel no Spotify cresceu mais 46%. Em outra plataforma, a Deezer, duas das músicas mais transmitidas no país em 2024 eram cristãs.
Então por que um país como o Brasil, conhecido por sua vibrante cena musical, com uma indústria fonográfica robusta e uma crescente população evangélica tem demorado tanto para produzir músicas originais de Natal?
Parte disso pode ser consequência do movimento teológico judaizante que ganhou força na década de 1990 e aconteceu de forma simultânea à explosão da população evangélica brasileira, é o que diz Renato Marinoni, fundador do Instituto de Adoração, Cultura e Arte.
Além de defender a observância de festivais judaicos, esse movimento começou a argumentar que a Bíblia não ordena a celebração do nascimento de Jesus e que a data do natal foi herdada de rituais pagãos pré-cristãos. À medida que essa ideologia se espalhou, muitas igrejas começaram a reduzir suas próprias celebrações natalinas.
“Durante minha infância, a igreja que frequentei em Poços de Caldas sempre colocava uma grande árvore de Natal no prédio, mas com o tempo essa tradição desapareceu”, disse Marinoni.
A falta de música natalina original diferencia o Brasil de seus vizinhos latino-americanos. Na América hispânica, assim como nos Estados Unidos, músicos cristãos lançam álbuns de natal regularmente. Artistas como Marcos Witt [um americano, filho de missionários que viveram no México] e o mexicano Jesús Adrián Romero compõem e lançam músicas natalinas regularmente há anos. Algumas delas, como “Emanuel, Dios con Nosotros Es” de Witt, são cantadas por congregações de língua espanhola em cultos sazonais.
O mesmo fenômeno não é visto no Brasil. “Na última década, os evangélicos brasileiros produziram muitas músicas de adoração originais, mas esse tipo de repertório [ligado às festividades cristãs] não é algo que os artistas têm como prioridade [como em outros países]”, disse Marcell Steuernagel, que cresceu em Curitiba e hoje é diretor do programa de mestrado em música sacra da Southern Methodist University [Universidade Metodista do Sul], no Texas.
Em comparação com outras partes do mundo e com as festividades que acompanham a época, os cristãos brasileiros celebram o natal de uma forma mais introspectiva e familiar, disse Fabiane Behling Luckow, professora de história da arte na Universidade Federal de Pelotas.
Muitas práticas de Natal, incluindo o canto de canções natalinas cristãs, surgiram como resultado da imigração. Migrantes protestantes e missionários que chegaram ao Brasil nos séculos 19 e 20 trouxeram os hinários de suas denominações e os traduziram, disse Luckow.
Além de seu significado teológico, celebrações como o natal conectavam os recém-chegados a uma pátria distante e a membros da família.
“Esta época do ano me deixa muito feliz porque sei que finalmente cantarei canções de hinários que me lembram da minha infância, especialmente da minha avó”, disse Luckow, cuja família migrou da Alemanha para o Brasil.
Steuernagel concorda que o natal no Brasil é marcado pela celebração de tradições. “O ‘tempo comum’ do ano litúrgico é o período no qual as pessoas se voltam para novas músicas, para novos lançamentos”, ele disse. “Durante o natal, assim como na Páscoa, as pessoas buscam um retorno aquilo que é antigo e tradicional.
Arranjos tradicionais de canções de natal são estrutural e estilisticamente diferentes das músicas populares de adoração, que tendem a “ter poucos acordes e dependem muito da repetição”, disse Anuacy Fontes, presidente do Conselho de Música da Igreja Presbiteriana do Brasil. “Funciona muito bem para o canto congregacional, mas não é o que as igrejas precisam no natal.”
A associação da música natalina com a música clássica, os corais e as orquestras pode, na verdade, “desencorajar aqueles que tem um trabalho derivado de um contexto mais popular de explorar essa área [de músicas natalinas]”, disse o cantor e compositor Jorge Camargo. Por exemplo, os líderes de adoração podem sentir que gêneros brasileiros como a Música Popular Brasileira [MPB], que incorpora o violão e a bateria do samba, criam um som “muito simples” para uma data tão especial quanto o natal.
Camargo, que atua na indústria da música cristã desde 1980, lançou um álbum com tema natalino — Natal, Piano e Voz, em 2021. Apenas 2 das 11 músicas do álbum eram originais.
O álbum de Natal, ele disse, não está entre os mais tocados em plataformas digitais, mesmo durante as férias de fim de ano. “A vantagem é que posso promovê-lo todos os anos como se fosse algo novo, porque a maioria das pessoas não conhece essas gravações.”
O desejo de adicionar complexidade e grandeza às celebrações de natal levou muitas igrejas brasileiras a confiar em cantatas, que são, inclusive, quase sempre traduzidas do inglês e do alemão, disse Marinoni.
Em geral, os cultos de natal têm mais música do que o normal. Algumas congregações encenam cenas do nascimento de Jesus. A maioria desses cultos acontece antes da semana do Natal, já que cultos mais próximos dos feriados costumam ficar vazios porque muitas famílias viajam para passar o feriado com suas famílias em outras cidades.
Apesar dessa preferência nacional por música de natal antiga, corais e orquestras, algumas vozes dissidentes têm se levantado. Desafiando a tendência, alguns músicos cristãos se dedicam a criar novas canções de Natal com foco no canto congregacional. A banda Purples, de Limeira, no estado de São Paulo, lança uma canção de Natal todo ano desde 2022.
“A Encarnação de Jesus, aquele que se fez nada, como mencionado em Filipenses 2.7, sempre me comoveu profundamente”, disse Júlio Filho, vocalista e compositor da Purples.
“Em 2022, quando meu filho Cristiano nasceu, foi quando percebi o quão indefeso e vulnerável um bebê é. Esse evento me fez entender melhor o estado de humilhação que nosso Senhor suportou quando veio ao mundo de uma forma tão profundamente humana.”
Foi assim que “Emanuel”, a primeira canção de natal da Purples, ganhou vida. Ela foi escrita para ser cantada pela pequena igreja de Júlio, mas ele ficou agradavelmente surpreso ao saber que outras igrejas haviam incorporado a canção em seus cultos. O refrão diz: “Natal, nossa esperança nasceu / Terra e céus, curvem-se ao menino Jesus.”
O ano seguinte trouxe “Isaías 9”, cuja letra é baseada em Isaías 9.2, 6. Com um arranjo mais simples do que “Emanuel”, a música foi escrita para ser acessível para os líderes de louvor, sua banda e congregação. A faixa mais recente da banda, “Glória”, lançada em 25 de novembro, inclui vocais de um coral infantil da igreja local e uma parte que traz de volta as reflexões de Júlio sobre a Encarnação: “Ele se tornou um de nós. / Ele se esvaziou. / Por graça se entregou.”
“Os cristãos brasileiros geralmente se preocupam com qualquer coisa que pareça excessivamente comercial, e essa também é uma preocupação compartilhada pelos músicos [cristãos]”, disse Filho. “Mas precisamos ser mais intencionais quando o assunto é a celebração de ocasiões como o natal e a páscoa para que não sejamos completamente inundados por músicas como ‘Então É Natal’.”