Ideas

Chamado e trabalho são coisas diferentes

Frequentemente confundimos nossa vocação com o propósito de Deus para nossa vida. Isso é bíblico?

A small woman pushing a briefcase with papers and paperclips flying out of it.
Christianity Today November 20, 2024
Illustration by Simone Noronha

Quando os cristãos falam sobre trabalho, grande parte da conversa gira em torno de discernir o plano de Deus para a sua vida. Como alguém que se formou em uma universidade cristã, percebo que escolas confessionais e igrejas frequentemente pedem que os jovens reflitam sobre questões como: “qual é a vontade de Deus para a sua carreira?”

Sim, essa é uma questão importante — discernir o chamado de alguém para um caminho vocacional específico e segui-lo de todo o coração pode levar a um senso de realização e de sentido no trabalho. Presumivelmente, também faz parte do processo de fazer boas obras, as quais Deus de antemão preparou para nós as praticarmos (Efésios 2.10). Mas, muitas vezes, quando discernimos um chamado vocacional, presumimos que tudo o que precisamos para cumpri-lo é decifrar o plano de Deus e encontrar um emprego que se encaixe nisso.

Essa suposição é enganosa, na melhor das hipóteses, e talvez até prejudicial. Por quê? A seguir aponto alguns problemas comuns relativos a ela que encontrei em minha pesquisa.

Uma jovem universitária vê a música como sua vocação. Depois de anos tocando em bares pequenos, sem perspectiva de ter um emprego sustentável de longo prazo, ela desiste. E consegue um emprego estável como gerente de um restaurante. Mas, para ela, o trabalho parece algo aquém de suas expectativas, como se fosse um desperdício dos talentos que Deus lhe deu. Supostamente, sua grande chance na música deveria ter sido o primeiro passo para a carreira certa.

Outro jovem se sente chamado para trabalhar com jovens problemáticos, mas seus pais insistem para que ele arrume um emprego estável, a fim de pagar seus estudos. A cada manhã, quando vai para o escritório, ele sente que está se vendendo, em vez de fazer o que Deus claramente lhe disse para fazer.

Ou pense em uma família de dedicados missionários. Depois de passar por uma série de problemas que estão fora de seu controle com o pedido de visto, eles retornam ao seu país de origem, sentindo que falharam com Deus e com a missão que receberam.

Ou pode ser que você já tenha sentido algumas das primeiras alegrias de ir atrás do seu chamado, com todo o seu coração, e talvez até encontrado um emprego que se encaixasse perfeitamente nele. Mas, às vezes, um chamado — especialmente quando não se realiza — de alguma forma gera sentimentos de esgotamento, estresse, fracasso e insatisfação.

Se o chamado vocacional é algo tão bom e tão nobre de se buscar, por que às vezes — ou até mesmo muitas vezes — ele leva a tantos questionamentos e dores de cabeça?

Acredito que nossa compreensão do chamado vocacional precisa passar por uma atualização — que o desvincule das visões modernas de sucesso profissional e amplie a compreensão que temos de trabalho e de tempo. Se fizermos isso, pode ser que encontremos uma abordagem mais saudável para discernir e ir atrás do nosso chamado.

Em meus estudos de PhD na área de psicologia vocacional, tive contato com décadas de pesquisa sobre a noção de chamado e seus efeitos positivos. Grande parte desses estudos aponta para uma correlação entre um senso de chamado e sentimentos de satisfação, eficácia e senso de sentido. O chamado pode melhorar até o desempenho profissional.

Mas nem sempre o cenário é tão otimista. A pesquisa acadêmica começou a destacar um “lado ruim” de se ir atrás de um chamado.

Quando não falamos com precisão do chamado vocacional, tendemos a fazer falsas inferências, particularmente no que se refere à necessidade e ao controle sobre os resultados alcançados. Em geral, presumimos que devemos identificar o chamado vocacional ou que, uma vez que o identificamos, devemos encontrar um emprego que realize esse chamado.

E isso nem sempre é verdade. Todo cristão pode glorificar a Deus e ouvir seu chamado em outros aspectos de sua vida, mesmo sem ter identificado um chamado vocacional específico.

Nós não deveríamos dizer uns aos outros que discernir um chamado — e muito menos cumpri-lo — é requisito para ser um cristão piedoso. Em vez disso, podemos enfatizar que esse discernimento é uma meta desejável e valiosa, que depende das circunstâncias certas. É mais como ter uma casa (algo bom de se ter) do que exercer hospitalidade (uma virtude cristã).

Mesmo que alguém tenha identificado alguma vocação, pode ser que simplesmente não haja oportunidades de emprego suficientes na área desejada, ou que outra força externa possa impedir essa pessoa de entrar ou de permanecer naquele campo, independentemente de quanto ela se empenhe para isso. Isso pode levar a pessoa a sentir uma pressão avassaladora, que parte de expectativas irracionais para construir uma carreira.

Muitas pessoas sentem arrependimento, estresse ou decepção quando reconhecem uma vocação que não se realiza. Em um estudo com 378 membros do corpo docente de faculdades americanas, aqueles que sentiam que sua vocação não se realizava por meio de seu trabalho atual relataram piores resultados em áreas como vida, trabalho e saúde do que aqueles que não sentiam ter vocação alguma. Os pesquisadores concluíram que “ter uma vocação é algo benéfico apenas se esta se realizar, mas pode ser prejudicial quando não se realizar, se comparado a não ter vocação alguma”.

Outro estudo entrevistou 450 músicos, ao longo de 11 anos, e descobriu que aqueles que sentiam fortemente uma vocação para a música eram mais propensos a seguir a carreira musical profissionalmente. Isso a despeito de, ironicamente, “um padrão intrigante, segundo o qual a experiência vocacional inicialmente mais forte levava a uma percepção maior da habilidade que não se refletia em maior habilidade concreta”. Em outras palavras, o senso de vocação dos participantes da pesquisa não se alinhava com seu nível de talento.

Enquanto tentam entrar no campo em que acreditam que deveriam estar, as pessoas podem se deparar, como alguns pesquisadores colocam, com “estados desagradáveis ​​de arrependimento por não terem insistido em sua vocação, e estresse devido a dificuldades de ir atrás de sua vocação não realizada”.

Além disso, mesmo quando as pessoas encontram empregos que atendem à sua vocação, elas geralmente ficam suscetíveis a comportamentos laborais que levam a burnout e a um equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional.

Um dos primeiros relatos desse lado obscuro do chamado vocacional veio de um estudo de 2009 focado em cuidadores de animais de zoológicos, nos EUA. Os pesquisadores descobriram que os trabalhadores que tinham um forte senso de chamado se beneficiavam de um senso mais amplo de sentido e importância de seu trabalho, mas também sofriam por abrir mão de salários justos, tempo e conforto. Em seu estudo de 2023 sobre educadores luteranos, Krista E. Hughes, professora do Newberry College, chamou isso de “imposto da paixão” que se tornou “assustadoramente alto”.

Permitir que nosso senso de chamado supere outras necessidades reais parece ser um caminho particularmente escorregadio, quando alguém tem um chamado voltado para ocupações de baixa renda, alta carga de trabalho e alto nível de estresse com poucos limites entre trabalho e vida pessoal, como, por exemplo, o trabalho pastoral. Não é incomum ouvir falar de pastores que trabalham por muitas horas, voluntariamente, nunca pedem um aumento justo de salário e, acabam  se esgotando e deixando o ministério.

Quero encorajar a todos, jovens e velhos, a pensarem com cuidado sobre o que acreditam que Deus os chamou a fazer. Podemos orar: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas” (Salmos 25.4). Podemos pedir a Deus: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração alcance sabedoria” e “consolida a obra de nossas mãos” (Salmos 90.12, 17). Sabemos que Deus nos convida a participar da sua vontade na terra e no seu reino, e pedimos que nos capacite de maneiras que nos permitam realizar essa vontade (Hebreus 13.20-21).

Meus colegas e eu publicamos um artigo de pesquisa, no ano passado, que defende uma nova conceituação de chamado. Acredito que esse material seja especialmente importante para os cristãos.

O primeiro passo para isso pode ser desvencilhar nossa compreensão de chamado das visões modernas de sucesso na carreira. Quando dizemos que determinado trabalho é nosso chamado, parece que colocamos sobre ele a expectativa adicional de que devemos “ter sucesso” naquele trabalho. Talvez não uma expectativa financeira — especialmente se for um chamado para o ministério —, mas ao menos expectativas de outros tipos, e muitas vezes olhamos para maneiras de medir o sucesso como uma forma de validar que estamos de fato cumprindo o nosso chamado. Quer seja uma promoção, influência cultural ou o crescimento da igreja, vemos isso como evidência de que estamos fazendo a vontade de Deus com eficácia, e esperamos ver resultados, se de fato estivermos em uma função para a qual fomos chamados.

Só para esclarecer, os sinais de sucesso por si só não são ruins. Mas eles podem ser facilmente transformados em ídolos, que, por sua vez, transformam objetivos nobres em orgulho e expectativas irracionais. Além disso, muitas vezes eles colocam nosso foco no mundo, e não em Deus. John Piper escreve em seu livro A Hunger for God [Fome de Deus]: “O maior adversário do amor a Deus não são os inimigos de Deus, mas os seus dons…Pois quando estes [dons] substituem nosso apetite pelo próprio Deus, a idolatria torna-se algo difícil de reconhecer e quase incurável.”

A jornada de cada um para discernir e ir atrás de seu chamado é diferente e tem resultados diferentes. Perceber isso nos liberta de viver segundo um padrão do que seja um “chamado cumprido” e nos permite explorar, pela fé, o que Deus tem reservado para cada um de nós.

A partir disso, precisamos ampliar nossa compreensão do trabalho e do chamado. O “trabalho” pode abranger muito mais do que apenas um emprego remunerado. O escopo do nosso chamado pode ser cumprido não por meio de um único emprego estritamente definido, mas por um amplo espectro de atividades, as quais podem ou não pertencer ao domínio do emprego remunerado.

Talvez você seja chamado para ser um escritor. Isso não significa que você precisa ser um escritor profissional, cuja única fonte de renda venha de lançar livros que façam sucesso. Seu chamado pode ser cumprido por meio dos contos que você escreve para os recursos educacionais da sua igreja ou dos livros que você lança de vez em quando para abençoar a vida de alguns leitores.

Sua ocupação principal e seu chamado podem ser buscados simultaneamente, quando não coincidirem. Veja Paulo, que foi chamado diretamente por Deus, na estrada para Damasco, com o intuito de servir como um catalisador para o crescimento da igreja primitiva (Atos 9). Ele também parece ter continuado com seu trabalho diário como fabricante de tendas, uma função que ele usava para se sustentar e promover o reino de Deus por meio de suas atividades (Atos 18.2-3; 1Tessalonicenses 2.9).

Também precisamos ampliar nossa compreensão do período de tempo de um chamado. Quando começamos a buscar a vontade de Deus para a nossa vida por meio de um chamado, parecemos presumir que é uma busca imediata. Na realidade, porém, o chamado pode levar um tempo para se concretizar. Em outras palavras, podemos discernir o chamado de Deus bem cedo na vida, mas o caminho que ele estabeleceu para nós pode nos levar por uma série de reviravoltas, durante muitos anos, antes de encontrarmos uma ocupação por meio da qual possamos cumprir nosso chamado.

Esse tempo não deve ser considerado um desvio de rota ou um tempo perdido. Ele é um importante trampolim que Deus está usando para nos moldar e formar, preparando-nos para o futuro. Tomemos, por exemplo, os sonhos de José sobre seu futuro, relatados pela primeira vez em Gênesis 37. Eles só se realizaram anos depois — após inúmeras provações e adversidades.

Da mesma forma, depois de encontrar um trabalho que cumpra nosso chamado, precisamos lembrar que ele não dura para sempre. Alguns chamados podem durar apenas alguns anos, enquanto outros podem durar a vida inteira. Quando seu trabalho muda, devido a fatores como uma demissão, as necessidades de sua família ou o surgimento de uma nova tecnologia, isso não significa que você perdeu seu chamado. Talvez você tenha cumprido esse chamado vocacional, e Deus esteja lhe apontando na direção de um novo chamado ou de uma pausa temporária.

O campo do aconselhamento de carreira já está mudando sua abordagem quanto a ideia de chamado. Antes, alguns conselheiros relutavam em ajudar estudantes a discernirem um chamado, acreditando que essa iniciativa poderia sair pela culatra, se as circunstâncias do estudante estivessem levando a um emprego que ficasse fora da sua percepção de chamado. Então, um estudo de 2020 sugeriu que os conselheiros de carreira podem ajudar os jovens a discernirem uma vocação sem ter a preocupação de que suas vidas serão afetadas negativamente se não a seguirem.

Os benefícios de tentar identificar o chamado de um jovem ficaram especialmente claros quando os conselheiros encorajaram os indivíduos a serem flexíveis em relação ao que seu chamado e sua ocupação podem se parecer na vida real. Isso também pode mitigar efeitos adversos, como burnout, equilíbrio ruim entre vida pessoal e profissional e estresse prejudicial à saúde.

Mas ainda há motivos para cautela. Um estudo com músicos amadores apontou uma preocupação digna de nota: aqueles com um senso mais forte de chamado tendiam a ser mais dispostos a ignorar conselhos relacionados à carreira dados por um mentor confiável, se tais conselhos estivessem em desacordo com a percepção que tinham de seu chamado profissional.

Tomados em conjunto, esses fatores me levam a concluir que devemos investir em mais estudos e recursos voltados para aconselhamento de carreira.

Os cristãos precisam discernir e ir atrás de seus chamados vocacionais. No entanto, fazer isso com foco no propósito mais amplo de servir no reino de Deus pode mudar a forma como percebemos o chamado, e aumentar nosso deleite a respeito das variadas formas e aspectos do chamado de Deus para a nossa vida — algo que vai muito além de um emprego. Talvez, possamos trocar as perguntas que fazemos por perguntas melhores como estas:

Será que só posso cumprir meu chamado por meio de um trabalho específico de tempo integral?

Um trabalho que se alinha com meu chamado está disponível para mim agora, ou terei que esperar mais?

Estou pressupondo que meu chamado durará por todos os meus anos de trabalho, ou ele pode mudar com o tempo?

Para todos que buscam a melhor forma de usar os dons que Deus lhes deu, eu digo: Orem ativamente e busquem conselhos sábios, sabendo que sua carreira e seu chamado não são a mesma coisa. Podemos encontrar realização nos lugares mais improváveis.

Steven Zhou tem um PhD em psicologia organizacional pela George Mason University, onde agora leciona como membro adjunto do corpo docente; ele também atua como diretor de operações de sua igreja.

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