Gustavo Gutiérrez Merino, o pai da teologia da libertação e teólogo católico que foi um dos primeiros a defender uma “opção preferencial pelos pobres”, morreu no dia 22 de outubro, aos 96 anos.
O ministério do sacerdote peruano foi fortemente influenciado pelas injustiças que ele observou em seu país. Durante anos, sob o sistema das haciendas [de grandes latifúndios pertencentes à elite hispânica], apenas 2% dos peruanos controlavam 90% das terras, enquanto agricultores meeiros ganhavam centavos cultivando-as e camponeses trabalhavam nos campos em condições análogas à escravidão.
Em 1968, um golpe tentou acabar com essa ordem de coisas e empoderar os trabalhadores camponeses. Mas as muitas pessoas que foram deixadas para trás por essas reformas logo deixaram as fazendas, mudando-se para assentamentos empobrecidos fora de Lima [capital do Peru].
Comovido por esse sofrimento, Gutiérrez, sacerdote da ordem dominicana, publicou seu livro mais influente, A Theology of Liberation: History, Politics, Salvation [Uma Teologia da Libertação: História, Política, Salvação], em 1971, argumentando que a libertação genuína se desdobra em três dimensões essenciais. Primeiro, a libertação política e social aborda e elimina as causas imediatas da pobreza e da injustiça. Segundo, os pobres, marginalizados e oprimidos são libertados de condições que limitam sua capacidade de autodesenvolvimento digno. Terceiro, essas comunidades são libertadas do egoísmo e do pecado e, agora, podem restaurar relacionamentos rompidos com Deus e com os outros.
Quando os padres começaram a abraçar a teologia da libertação em toda a América Latina, o Vaticano reagiu, criticando-a por sua influência supostamente marxista e pela redução do status de Jesus de Salvador divino para libertador social. No entanto, ao contrário de outros defensores da teologia da libertação, Gutiérrez nunca sofreu sanções da hierarquia católica.
Embora a América Latina ainda fosse predominantemente católica nos primeiros dias do ministério de Gutiérrez, muitos dos primeiros líderes evangélicos da região foram amadurecendo ao lutar com questões semelhantes. Essas ideias levaram o equatoriano René Padilla e outros peruanos, como Samuel Escobar e Pedro Arana, a desenvolver a teologia da “misión integral” ou missão integral, que buscava equilibrar a responsabilidade cristã de compartilhar sobre a obra redentora de Cristo com o dever de responder às desigualdades sociais.
A CT pediu a evangélicos familiarizados com a vida e a obra de Gustavo Gutiérrez que compartilhassem sobre como a teologia da libertação impactou a teologia, a prática e o crescimento dos evangélicos latino-americanos. As respostas foram editadas para maior clareza e concisão.
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JUAN FONSECA
Pesquisador da história do movimento evangélico na Universidad del Pacífico, Lima, Peru
Samuel Escobar e Gustavo Gutiérrez foram dois teólogos peruanos que, de diferentes maneiras, influenciaram o cristianismo evangélico e católico, respectivamente, encorajando essas duas vertentes a integrarem seu trabalho missionário ao contexto de sofrimento da América Latina.
Em 1969, no Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE I), o teólogo evangélico Samuel Escobar desafiou os evangélicos latino-americanos a “encontrar uma maneira de encarnar sua fé na realidade latino-americana”. Por exemplo, ele os instou a desenvolver uma hermenêutica nativa, original, em resposta a questões decorrentes dos cinturões de pobreza das grandes cidades ou das culturas autóctones do continente.
Dois anos depois, o Padre Gustavo Gutiérrez publicou a sua Teologia da Libertação, um dos textos fundamentais da teologia da libertação. Ele impactou significativamente o cristianismo global com sua insistência em colocar os pobres no centro da missão cristã, uma convicção que transcendeu fronteiras denominacionais e renovou profundamente a teologia cristã.
No entanto, naqueles mesmos anos, nos bairros mais pobres das cidades latino-americanas, pregadores pentecostais estavam mobilizando uma espiritualidade frugal da pobreza. Apesar da falta de uma teologia formal e de estarem equipadas com poucos recursos materiais, as igrejas pentecostais tornaram-se a alternativa religiosa ao catolicismo para os empobrecidos do continente.
Parafraseando o teólogo americano Millard Richard Shaull, a teologia da libertação escolheu os pobres, mas os pobres escolheram o pentecostalismo na América Latina, uma observação cujo teor de verdade já foi reconhecido por outros teólogos da libertação. No entanto, com base na minha observação pessoal do cenário religioso no Peru, em vez de colocar a teologia da libertação e o pentecostalismo como coisas que estão em oposição uma a outra, é mais apropriado ver o ministério de Gutiérrez e o pentecostalismo como movimentos convergentes. No âmbito de suas respectivas espiritualidades, tanto a teologia da libertação quanto o pentecostalismo fazem dos pobres um ponto focal comum de suas respectivas hermenêuticas, os sujeitos privilegiados de suas reflexões e missões, e a face de Cristo.
O teólogo britânico John A. Mackay se perguntou, em um artigo da CT de 1969, se o futuro do cristianismo pertenceria a “um catolicismo reformado e a um pentecostalismo amadurecido”. Gustavo Gutiérrez e a teologia da libertação já fizeram a sua parte no processo de reforma do catolicismo. Resta aos pentecostais continuar amadurecendo em sua fé no Cristo dos pobres.
David Kirkpatrick
Autor do livro A Gospel for the Poor: Global Social Christianity and the Latin American Evangelical Left [Um Evangelho para os pobres: Cristianismo social global e a esquerda evangélica na América Latina], Estados Unidos
Gustavo Gutiérrez deu voz a uma geração inteira de teólogos latino-americanos que lutavam com questões de violência, injustiça e desigualdade, no contexto da Guerra Fria. Sua insistência em um reexame crítico das abordagens tradicionais às Escrituras e seu chamado para amplificar as vozes dos pobres tiveram um impacto imenso sobre os teólogos latino-americanos da sua geração, na qual se incluem muitas figuras católicas e protestantes proeminentes, como o Papa Francisco e o teólogo metodista José Míguez Bonino.
Em 1973, René Padilla escreveu o primeiro artigo dedicado à teologia da libertação que foi publicado pela Christianity Today. Padilla, assim como muitos evangélicos, discordava da abordagem de Gutiérrez — que Padilla chamava de “camisa de força” para a Bíblia. “Não se faz nenhuma tentativa para mostrar por que essa práxis específica (em lugar de qualquer outra) é escolhida como objeto de reflexão, ou para mostrar o que torna essa reflexão especificamente cristã”, escreveu Padilla. Mas ele também se recusou a permitir que as críticas à teologia da libertação silenciassem os apelos proféticos por justiça. Muitos evangélicos protestantes latino-americanos concordaram que o contexto injusto do pós-guerra exigia novas abordagens à fé e à prática.
Em resposta à versão em inglês da obra A Theology of Liberation [Uma Teologia da Libertação], lançada em 1973, Padilla argumentou: “A necessidade de uma libertação da teologia é, então, tão real em nosso caso quanto é no no caso da teologia da libertação”. Em vez de juntar-se ao crescente movimento da teologia da libertação, a resposta de Padilla foi a missão integral, uma abordagem holística à missão cristã que sintetiza a busca pela justiça e a oferta de salvação.
Mas Padilla concluiu seu artigo para a CT fazendo uma pergunta que definiria sua vida e obra: “Onde está a teologia evangélica que proporá uma solução com a mesma eloquência [de Gutiérrez], mas também com uma base mais firme na Palavra de Deus?”. Gutiérrez inspirou uma geração inteira de teólogos evangélicos protestantes latino-americanos a continuar sua busca e a construção teológica de uma teologia verdadeiramente latino-americana de justiça e de missão.
Valdir Steuernagel
Pastor e teólogo, Brasil
Nunca tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Gustavo Gutiérrez, embora eu tenha ouvido falar do seu nome desde a década de 1970. Quando soube que ele morreu, peguei na minha biblioteca o seu livro We Drink from Our Own Wells: The Spiritual Journey of a People [Bebemos do Nosso Próprio Poço: A Jornada Espiritual de um Povo]. Ao abri-lo, as primeiras palavras me tocaram profundamente: “Seguir a Jesus é o que define o cristão”. Sorri, porque é exatamente isso que eu gostaria de dizer também.
Venho de outra escola teológica, mas compartilho do reconhecimento de Gutiérrez de que o contexto é importante no processo de fazer teologia, e o nosso contexto era a América Latina. O fato de ele ser peruano afetou o modo que ele pensava e vivia sua fé, que sempre esteve enraizada em seu ambiente confessional. Da mesma forma, eu sou brasileiro, e foi nesta terra que encontrei o evangelho e que tive o privilégio de viver minha vocação.
Minha identidade também foi moldada por uma confessionalidade evangélica, a qual foi nutrida dentro dos círculos da Fraternidade Teológica Latino-Americana. Mas fomos inspirados pela convicção de Gutiérrez de que a teologia tinha de sair das “bibliotecas” para as “comunidades”. Nossa fé tinha de alcançar as pessoas mais vulneráveis em nossas sociedades. Com Gutiérrez, somos desafiados a olhar para o “reverso da história”, para as comunidades tão frequentemente ocultadas pelas narrativas “vitoriosas” da história ou que se tornaram o “reverso” precisamente por causa desses vencedores.
Ainda posso ouvir alguns dos debates e discussões [entre seguidores católicos da teologia da libertação e defensores evangélicos da missão integral] que apontavam para as diferenças em nossas respectivas teologias. E também vejo o compromisso de Gutiérrez com o chamado que Deus lhe deu e seu longo e profundo senso de pertencimento [dentro da igreja católica], no qual os pobres e os mais vulneráveis tinham um lugar especial, um lugar onde eram acolhidos por um Deus de amor e de justiça.
Ruth Padilla DeBorst
Professora na Comunidad de Estudios Teológicos Interdisciplinarios e no Western Theological Seminary, Colômbia/Estados Unidos
É impossível conceber o trabalho teológico na efervescente América Latina de meados do século 20 e começo do século 21 sem reconhecer a generosa contribuição de Gustavo Gutiérrez. Embora este sacerdote peruano e a maioria de seus companheiros da teologia da libertação estivessem desenvolvendo sua teologia principalmente para a igreja católica e dentro dela, essa teologia influenciou o pensamento evangélico.
O movimento da missão integral se desenvolveu ao mesmo tempo, nos movimentos estudantis evangélicos e na Fraternidade Teológica Latino-Americana. Em 1972, René Padilla e Samuel Escobar se encontraram com vários teólogos da libertação, interagiram diligentemente com seus escritos, e, mais tarde, falaram sobre como essa experiência desafiou de forma preciosa sua hermenêutica e como eles entendiam a práxis ética da fé cristã. Aqueles que se identificam como evangélicos hoje fariam bem em olhar com apreço para o legado deste gigante da teologia, não apenas na América Latina, mas no mundo todo.
Harold Segura
Pastor e diretor de Fé e Desenvolvimento da World Vision Latin America, Colômbia/Costa Rica
A teologia da libertação surgiu na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970, com teólogos como Gustavo Gutiérrez (de quem nos despedimos com gratidão e admiração). Ele apresentou a ideia de um cristianismo comprometido com os mais vulneráveis e excluídos. Essa teologia colocou a realidade da pobreza e da injustiça no centro da reflexão cristã, afirmando que o evangelho deveria levar não só à salvação espiritual, mas também à transformação social.
Para muitos evangélicos, essa abordagem foi um desafio. A maioria das igrejas evangélicas havia focado sua mensagem na salvação pessoal, priorizando a conversão e a vida espiritual. A teologia da libertação, com sua ênfase em justiça social e seu diálogo com as ciências sociais, era vista com ceticismo. Muitos a consideravam uma distorção política que ameaçava a pureza do evangelho.
No entanto, nem todos a rejeitaram. Alguns movimentos evangélicos começaram a refletir sobre seu próprio papel na sociedade e assumiram uma postura mais ativa diante da injustiça. Essa teologia teve uma influência inegável sobre algo que, mais ou menos na mesma época, começou a ficar conhecido como missão integral — uma visão do evangelho que busca não apenas a salvação da alma, mas também o bem-estar do corpo e a justiça na sociedade. A missão integral não foi um resultado direto da teologia da libertação, mas a teologia da libertação desencadeou o diálogo e a reflexão que permitiram que a missão integral brotasse do solo evangélico.
Em algumas comunidades evangélicas, esse despertar para o social não mudou a crença de que os esforços de crescimento da igreja devem se concentrar na conversão pessoal e na evangelização. Na verdade — em parte como reação ao ativismo político da teologia da libertação —, os movimentos evangélicos experimentaram um crescimento considerável, especialmente em alguns setores evangélicos tradicionais, onde uma fé mais conservadora e não politizada era enfatizada.
Hoje, muitas igrejas evangélicas latino-americanas continuam a transitar entre a espiritualidade e o engajamento social, buscando maneiras de serem fiéis ao evangelho enquanto respondem às necessidades de um mundo injusto.