Em 6 de setembro de 2018, véspera do Dia da Independência do Brasil, uma multidão carregava Jair Bolsonaro pelas ruas de Juiz de Fora, quando um homem se aproximou e esfaqueou o então candidato presidencial no abdome.
Bolsonaro foi levado às pressas para o hospital; a facada havia lesionado o intestino delgado e uma artéria próxima, causando forte hemorragia interna. Os ferimentos o mantiveram hospitalizado por mais de três semanas, durante o auge da campanha presidencial.
“Deus agiu e desviou a faca”, disse o filho de Bolsonaro, Flávio, horas após o fato.
Embora Bolsonaro não tenha saído do ataque à sua vida dando socos no ar e com um olhar desafiador, sua recuperação da tentativa de assassinato inflamou sua base e aumentou a quantidade de apoiadores, entre os quais se encontrava um número significativo de cristãos evangélicos que o levariam à presidência alguns meses depois.
Poucas semanas antes do atentado, pesquisas mostravam que 26% dos evangélicos brasileiros, o que inclui protestantes tanto de denominações históricas quanto neopentecostais, apoiavam Bolsonaro. Após o esfaqueamento, esse número subiu para 36%. No primeiro turno das eleições, em 7 de outubro, 48% dos evangélicos votaram em Bolsonaro, número que aumentou para 69% durante seu segundo turno vitorioso, em novembro.
Antes do incidente, Bolsonaro não tinha sido tímido em suas tentativas de cortejar o voto evangélico. O jornalista Ricardo Alexandre observa em seu livro E a verdade vos libertará: reflexões sobre religião, política e bolsonarismo:
Em agosto de 2018, durante uma entrevista à GloboNews, o então candidato declarou: “Eu sou cristão” e, sugerindo uma natureza sobrenatural para seu sucesso, continuou: “Olhe o apoio popular que estou tendo. Não é inimaginável que isso esteja acontecendo? Como eu consegui isso? Quando falo sobre ‘missão de Deus’, penso no seguinte: Qual será meu lema? Qual será minha bandeira? Então fui para João 8.32: ‘E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.’”
Até o ataque, o apoio evangélico ao candidato havia sido amplamente manifestado durante a campanha e comícios — ou seja, fora da igreja. A separação entre igreja e Estado está consagrada na Constituição brasileira, e são vedadas todas as formas de propaganda política em quaisquer “bens de uso comum”, o que inclui igrejas. O apoio formal de uma igreja a um candidato pode resultar em uma multa para o candidato e para o líder religioso ou, possivelmente, até forçar um candidato a renunciar à corrida eleitoral.
No entanto, após a violência sofrida, o nome de Bolsonaro começou a ser invocado destemidamente nos púlpitos das igrejas.
“Para a maioria, era momento de trazer uma palavra de reconciliação entre os apoiadores de Bolsonaro e aqueles que se opunham a ele”, disse o sociólogo Igor Sabino, especialista em relações internacionais, que se lembrou de ouvir pastores ensinando sobre as Escrituras relacionadas ao apoio a autoridades governamentais, como Romanos 13, 1Timóteo 2 e o Salmo 72.
A Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), a maior das organizações da Assembleia de Deus do país, organizou uma campanha de oração logo após o atentado, pedindo a Deus que “nos direcione a votar em homens e mulheres que estejam comprometidos não apenas com o bem e o futuro da nação, mas, acima de tudo, comprometidos com Deus e sua Palavra”.
Na Igreja Batista Atitude, que fica no Rio de Janeiro e é frequentada pela esposa de Bolsonaro, Michelle, os líderes pararam para orar pelo candidato, durante uma conferência que estava sendo realizada no mesmo dia do esfaqueamento, e os que estavam no santuário se ajoelharam.
Silas Malafaia, que lidera a megaigreja pentecostal Assembleia de Deus Vitória em Cristo, abordou a questão das eleições durante o culto da noite, naquele 6 de setembro, citando as palavras de Paulo em 1Timóteo 2.1-2 “que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade”.
Enquanto Bolsonaro se recuperava no hospital e, nos dias que se seguiram, em que fez aparições públicas, muitos cristãos que oravam pelo candidato ferido tornaram-se mais vocais sobre seu apoio a ele.
“As orações não eram apenas pela saúde de Bolsonaro em um momento de crise — algo que é obrigação de todo cristão”, disse Paulo Won, pastor da Igreja Presbiteriana Metropolitana de Campinas. “Eram orações por sua vitória. Do espectro pentecostal até as igrejas históricas mais tradicionais, a própria liderança estabeleceu uma direção muito clara em favor da candidatura dele.”
Parte desse fenômeno se manifestou em ação. Quatro dias após o atentado, um grupo de pastores que incluía a Coalizão Pelo Evangelho (filial brasileira da The Gospel Coalition) publicou uma carta aberta que parecia fazer referência a pontos de discussão da campanha de Bolsonaro.
Um dos pontos da carta, por exemplo, pedia a Deus para “frustrar todas as tentativas de fraude ao sistema eleitoral”. (Na época, apenas a campanha de Bolsonaro estava fazendo alegações de fraude em urnas de votação eletrônicas.) O documento também recomendava “rejeitar candidatos com ênfases intervencionistas nas esferas familiar, educacional, eclesiástica e artística”, refletindo as alegações que Bolsonaro e seus aliados faziam contra o partido adversário, o Partido dos Trabalhadores.
A carta foi amplamente compartilhada nas mídias sociais, sites e boletins de igrejas reformadas.
No mesmo dia do ataque, Malafaia, conhecido por suas profecias políticas, declarou em um vídeo postado em seu canal do YouTube que a tentativa de assassinato era na verdade “um sinal de que Bolsonaro deveria ser o próximo presidente do Brasil”, ecoando as palavras de apoiadores de Bolsonaro do lado de fora da igreja.
Vendedores ambulantes vendiam camisetas com o rosto de Bolsonaro e as palavras Ele sangrou por você, lembra Sabino. Brasileiros compartilharam memes de Jesus caminhando ao lado de Bolsonaro no hospital e de pé, ao lado dos cirurgiões que o operaram.
“Sua sobrevivência trouxe elementos de batalha espiritual para a campanha, como se houvesse evidências de um plano sobrenatural para ele, de que ele seria o ungido de Deus”, disse Sabino.
Para os apoiadores evangélicos de Bolsonaro, esse “plano” era Deus levantando alguém para “salvar o Brasil das garras de um governo esquerdista e ateu”, disse Victor Fontana, pastor da Comunidade da Vila, uma igreja reformada em São Paulo.
Aqueles que buscavam uma linha condutora messiânica se apegaram a qualquer coisa que parecesse dar maior significado ao ataque. “Isso foi tolice”, disse Fontana, em retrospecto. “[O ataque] não foi um ato moral. Ele não escolheu ser esfaqueado.”
As semanas entre o ataque e a eleição se tornaram uma “união do messianismo brasileiro com o nacionalismo cristão”, de acordo com o jornalista Alexandre. “Bolsonaro se apresentava como alguém enviado por Deus, um portador da verdade e da salvação para o Brasil. E quem se levantará contra o ungido do Senhor? Por essa perspectiva, votar contra ele seria o mesmo que se opor aos planos de Deus.”
Essa mentalidade impediu muitos cristãos brasileiros de examinar criticamente Bolsonaro como candidato, inclusive de refletir sobre seus aparentes endossos à ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985 e sobre declarações que muitos consideraram misóginas e preconceituosas.
Em vez disso, depois que ele ganhou a presidência naquela eleição de 2018, os evangélicos raramente o criticaram durante seu mandato. Muitos se juntaram à invasão do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do palácio presidencial, em 8 de janeiro de 2023, apelando ao exército por um golpe militar, depois que Bolsonaro perdeu a eleição do ano anterior e a acusou de ter sido roubada. Vários manifestantes carregavam Bíblias, oraram antes de invadir o Congresso e cantaram hinos, enquanto eram presos pela polícia federal. Entre os detidos estavam pelo menos quatro pastores.
“Parece que muitos evangélicos no Brasil não entendem inteiramente como a democracia funciona, com a alternância natural de poder”, disse Won. “É como se a democracia não importasse, e o que importasse fosse a permanência do ungido de Deus.”
Seis anos após o incidente do esfaqueamento, alguns pastores agora questionam o que aconteceu. “Cometemos o erro de fechar os olhos para aqueles que se dizem cristãos, mas cujas ações estão longe de Cristo”, disse Ziel Machado, pastor metodista e vice-reitor do Seminário Servo de Cristo em São Paulo.
Líderes e fiéis evangélicos brasileiros poderiam ter defendido ideais democráticos em 2018, e nos anos seguintes, diz Daniel Guanaes, pastor da Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro. Ele acredita que incidentes como o esfaqueamento de Bolsonaro e o recente atentado a tiros contra o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, oferecem uma oportunidade para a igreja se posicionar contra a violência política, enfatizando como tais atos são antagônicos ao cristianismo e à democracia.
“Legalmente falando, são crimes; teologicamente, são pecados”, disse ele. Mas esse não foi o caminho que a igreja brasileira tomou. “Nós partidarizamos o atentado. E estávamos errados sobre isso.”
A igreja de Jesus Cristo não deve ser confundida com o movimento evangélico no Brasil (ou nos Estados Unidos ou em qualquer outro país), nem com o movimento social estudado por cientistas políticos, diz Alexandre, e misturar os dois trará repercussões negativas de peso para o crescimento da igreja.
“Essa identificação da igreja com uma facção política é o beijo da morte para o evangelicalismo brasileiro”, disse ele. “Isso ficará muito claro nas estatísticas de filiação religiosa nos próximos anos.”
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