Em 1º de novembro, dia de Todos os Santos, minha esposa e eu costumamos contar histórias sobre os santos que mais nos marcaram. Este ano, compartilhei com minha família a história da conversão de C. S. Lewis.
Por algum tempo, ele andou oscilando à beira do precipício da fé, incapaz de resolver suas dificuldades intelectuais com o cristianismo. Em uma caminhada noturna por Oxford, acompanhado de seus amigos Hugo Dyson e J. R. R. Tolkien, ele expressou sua objeção essencial.
Tudo o que importa, disse Lewis, pertence ao domínio do mito.
Lewis tinha grande afeição pela mitologia nórdica, algo que remontava à sua juventude na Irlanda do Norte. Para ele, no entanto, mito tinha a ver com criação de significado, ao passo que a história tratava de fatos não passíveis de serem repetidos, coletados e analisados de forma empírica. A grande tragédia da existência humana era que mito e história não se cruzavam e nunca poderiam fazê-lo.
Lewis — assim como o pensador alemão G. E. Lessing antes dele — descreveu a “feia lacuna"” que há entre a história e a teologia. Independentemente de quão radiante tenha sido sua vida, um homem chamado Jesus, que viveu 2.000 anos atrás, nunca poderia ser nada mais do que uma figura inspiradora.
As respostas de Dyson e de Tolkien foram eletrizantes: Nesse caso, disseram eles, o mito havia se tornado fato. Tudo o que era eterno e místico — a profunda magia do mundo — era real e estava encarnado na pessoa de Cristo. Ele não foi simplesmente uma figura histórica, mas sim o Deus Criador que havia encarnado para salvar os seres humanos que criara.
Com essa resposta, Lewis subitamente conseguiu juntar as peças. Como ele escreveu mais tarde para seu amigo Arthur Greeves, “a história de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro: um mito que atua em nós da mesma forma que os outros [mitos], mas com a tremenda diferença de que realmente aconteceu”.
Por meio do Filho de Deus, houve um verdadeiro casamento entre o céu e a Terra. Deus abraçou a matéria na pessoa de Jesus. A Encarnação aconteceu em um só lugar, mas foi “difundida” e “comunicada” em todos os lugares, como escreveu Henri de Lubac, padre e estudioso jesuíta.
Em sua “infinitude reduzida à infante”, como disse Gerard Manley Hopkins, a descida de Deus ao mundo em carne humana não foi simplesmente para nos dignificar ou para estar conosco em nossas alegrias e tristezas. O céu desceu à Terra para que as coisas da Terra pudessem ascender ao céu.
A ideia de uma união entre céu e Terra repercute muito em mim, por ser surpreendentemente não individualista. Ela envolve uma compreensão intensa da pessoa humana. Como ocidentais modernos, muitos de nós andamos por aí com uma compreensão distorcida da pessoa humana como “indivíduo autônomo, autodirigido e terapeuticamente orientado”, nas palavras do sociólogo Christian Smith.
Mas se simplesmente seguirmos o insight de Lewis, seremos capazes de ver de imediato o quanto essa visão [distorcida] fica aquém. Lewis parece dizer que somos os mitos que nos criaram. Somos as histórias que herdamos — que dão forma às nossas esperanças e definem nossa visão de vida boa. A ideia de o mito se tornar um fato é uma ideia inerentemente de afirmação cultural, porque os mitos surgem apenas dentro de culturas.
Uma pessoa é, portanto, algo infinitamente maior e mais sagrado do que um indivíduo intercambiável. Cada um está envolvido em teias relacionais, narrativas, geográficas e institucionais que são essenciais para a identidade pessoal e o florescimento. A Encarnação demonstra que essas formas culturais não são um mero acidente da história, nem são simplesmente fruto da pecaminosidade humana. A intenção de Deus é reformular, sutil e gentilmente, essas formas culturais distorcidas, até que elas expressem a forma de integridade que Ele projetou para elas.
Lewis reconhecia tudo isso. Mas preciso reconhecer que Lewis foi um inglês de sua época, e é neste ponto que acho necessário me separar dele. Seu cristianismo tinha uma tonalidade distintamente inglesa. Mas, se ele estava certo, então a Encarnação significa que não existe uma cultura distintamente cristã. Os mitos que preparam o caminho para Cristo não são apenas mitos nórdicos ou greco-romanos. O cristianismo não é uma religião ocidental, nem branca. E não se expressa de forma adequada exclusivamente em inglês.
Sabemos disso ao estudar a igreja global. As redes de diáspora e a imigração estão impulsionando o ressurgimento do cristianismo em lugares pós-cristãos, ao passo que a migração e a miscigenação de culturas têm sido os principais motores da propagação do evangelho na história. Como Andrew Walls argumentou certa vez, o cristianismo é sempre uma encarnação — algo que se traduz para uma cultura já existente, mas que a subverte e atrai pessoas dessa cultura para Cristo. É exatamente essa “infinita capacidade de tradução”da fé cristã que a distingue de outras religiões do mundo.
Como um latino que cresceu e continua a servir em contextos predominantemente brancos e de língua inglesa, fiquei surpreso ao ver Jesus sendo honrado e glorificado por músicos pentecostais dominicanos como Lizzy Parra e Ander Bock. Fiquei impressionado ao conhecer colegas anglicanos da Nigéria que adoram Jesus com uma energia e uma intensidade que me dão esperança na obra viva e ativa do Espírito Santo. Minha fé se expandiu, depois de ter conhecido iranianos que perderam tudo, mas seguem um Jesus que fala farsi.
Em todas essas expressões culturais, vemos o cumprimento da profecia de Isaías — de que todas as nações virão a Sião (Isaías 2.2; 60.3). Cristo é o desejo de todas as nações, pois ele tem trabalhado semeando graça preparatória entre todos os povos. Como disse Lewis, o Senhor está presente nos “bons sonhos” de cada grupo de povos; são os mitos desses povos que os preparam para que recebam Jesus, quando ele vier.
A Encarnação alcança todas as áreas da existência humana. É uma parte essencial da esperança que celebramos no Natal. Não há nenhuma cultura humana na qual Jesus seja um estrangeiro. Os mitos — de todas as nações — tornaram-se fato em Jesus Cristo. É difícil negar o poder da Encarnação, quando vemos comunidades vibrantes de cristãos que, quando louvam o nome de Jesus, não se parecem nem soam como nós.
Vemos que Cristo veio salvar toda a humanidade. É disso que nos lembramos quando encontramos o Cristo na manjedoura.
Jonathan Warren Pagán é um sacerdote anglicano que vive e serve em Austin, Texas.
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