Em um país onde mais de 80% das pessoas se declaram cristãs, a Quaresma passa despercebida. Não fosse pelo Carnaval — maior festa cultural brasileira cujo fim, na Quarta-feira de Cinzas, marca o início da Quaresma —, grande parte não saberia da sua existência.
A Quaresma foi estabelecida no ano de 325, no Primeiro Concílio de Niceia. Quando os portugueses desembarcaram em terras brasileiras, em 1500, essa tradição já estava consolidada. Apesar da influência histórica, no Brasil, o crescimento exponencial dos evangélicos — especialmente de pentecostais e neopentecostais — colocou em xeque a observância do período. Isso porque, ao contrário do que acontece com a Páscoa, a Quaresma recebe pouca atenção dos protestantes ou por entenderem que é um período litúrgico de menor importância ou por quererem se afastar das tradições católicas.
A CT perguntou a seis líderes, pastores e pastoras brasileiros de diferentes denominações se os evangélicos deveriam seguir a tradição da Quaresma.
Esequias Soares, Pastor da Assembleia de Deus de Jundiaí-SP e presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)
As Assembleias de Deus brasileiras não celebram a Quaresma porque não seguem o calendário litúrgico cristão como as tradições católica e reformada. Todavia, celebramos festas cristãs tradicionais como o Natal, a Páscoa, e, em alguns lugares, começa-se a dar espaço para o Pentecoste.
A preocupação dos nossos pioneiros era deixar claro para a sociedade a distinção em face do catolicismo romano e das igrejas provenientes da Reforma do século 16. Na Assembleia Geral da nossa Convenção, em 1937, por exemplo, foi debatido o uso da cruz na fachada dos templos. Apesar do seu uso em templos evangélicos em outros países, a decisão foi pelo não uso deste símbolo, por causa da “cultura idolátrica brasileira, carregada de fetiches, simbologias, ídolos e ícones”. É provável que sejam essas algumas das razões pelas quais não seguimos o calendário litúrgico.
Vanessa Belmonte, pesquisadora e palestrante na área de formação espiritual, colaboradora no L’Abri Brasil
Penso que os evangélicos não deveriam seguir essa tradição como um dever ou uma obrigação. Mas poderiam segui-la como um recurso em nossa formação espiritual. Porém, não sugiro apenas a estação da Quaresma isoladamente, mas sim a adoção do Calendário Cristão completo, pois cada estação destaca um tema diferente da narrativa da redenção.
Gostamos da estação da Páscoa e da celebração da ressurreição. Contudo, não haveria Páscoa sem Quaresma, pois, não há ressurreição sem cruz. A Quaresma pode ser muito enriquecedora, ao trazer à memória nossa fragilidade, a vulnerabilidade humana e nossa dependência de Deus. Somos incentivados a refletir sobre o sacrifício de Jesus por nós e a abrir um espaço na rotina para o autoexame, o jejum e a oração. A Quaresma é um tempo de exercitar autonegação e autodoação em amor. É uma preparação importante para que possamos celebrar a Páscoa com entendimento.
Tiago de Melo Novais, editor assistente na ABC² e professor convidado no Seminário Teológico Batista de Campinas
Diferentemente de outros períodos do Calendário Cristão, como o Natal e a Páscoa, nós, evangélicos, não estamos familiarizados com a tradição da Quaresma — mas deveríamos! Este período que antecede a Páscoa é um tempo especialmente importante, pois nele separamos 40 dias para um exercício contínuo de autoavaliação e arrependimento diante de Deus, que nos prepara para revivermos o ápice da nossa história: a morte e a ressurreição do Salvador.
Mas não só isso. Em tempos como o nosso, em que o ritmo acelerado e a demanda pela produtividade nos arrancam o controle dos dias e nos forçam a entrar na lógica insaciável do consumo e do lucro, temos a oportunidade de experimentar um tempo alternativo, marcado por pausas, jejuns e orações. Um tempo em que jejuar é ter saciada a fome de nossas almas, permitindo-nos refletir profundamente sobre a Cruz e a Ressurreição. Quando os evangélicos praticam a Quaresma, isso é sinal de um coração contrito e pronto para fazer a vontade de Deus.
Daniel Vieira, diretor do projeto Lecionário
A Quaresma, como toda tradição litúrgica, orienta a nossa imaginação para o reino. Os cristãos que seguem todo o Calendário cristão reconhecem que ele nos ajuda a seguir Jesus semana após semana, desde o início de sua missão do reino, na Galileia, percorrendo território gentílico e acompanhando o mestre em viagem à Judeia.
A Quaresma é uma temporada que nos prepara para revivermos a história do Messias, que entra em Jerusalém montado em um jumento, encena sobre o juízo no templo, é preso, julgado, sentenciado, e morre numa cruz romana, assegurando a vitória do reino de Deus.
Lorrayne Muniz, psicóloga, pedagoga e Reverenda da Igreja Anglicana Trindade em Vitória
Na tentativa de demarcar um distanciamento estético e teológico de Roma, os evangélicos muitas vezes fecham portas que nos conectam com a história da igreja e trazem profundidade à nossa fé. A Quaresma é apenas mais uma dessas portas que são fechadas. Isso acarreta uma minimização daquele que é um dos pontos altos da nossa fé: a celebração da Páscoa, a morte e a ressurreição do nosso Salvador.
A Quaresma é um convite para vivenciar essa data com toda a força e intensidade que ela merece. Em um movimento de conversão, imersão e crescimento, somos inseridos na narrativa da vida do Cristo e experimentamos um misto de expectativa e angústia, ao compreendermos o valor e o custo da cruz. Há uma riqueza nessa vivência da qual todos os evangélicos deveriam participar.
Gutierres Fernandes Siqueira, autor e jornalista
A importância da Quaresma está no cultivo de um tempo de contrição. Nós, evangélicos, temos uma tendência ao triunfalismo e a enxergarmos a fé sempre como entretenimento e festividades; mas é necessário cultivar também tempos de memória, lamentação e silêncio e a Quaresma cumpre esse papel.
Contribuição para a reportagem: Marisa Lopes
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