A Quaresma expõe nossa relação disfuncional com o tempo

O jejum se opõe às expectativas de nossa sociedade sobre eficiência e gratificação instantânea.

Christianity Today March 8, 2023
Illustration by Rick Szuecs

Vários dias depois daquele jantar, eu ainda estava pensando no disco de salame perfeito que queria comer — e não comi. Enquanto escrevo este texto, vários dias depois, ainda é Quaresma e eu ainda penso na carne que deixei de comer [por causa do jejum] nesses 40 dias.

Quando a Quarta-feira de cinzas chegou, algumas semanas atrás, eu estava com disposição para a renúncia. A abstinência me parecia uma coisa boa e certa. O tempo, no entanto, malhou a força de vontade da minha resistência espiritual. Nunca o livro de Números — que estava providencialmente previsto em meu plano de leitura da Bíblia para a Quaresma — falou com tanta força: “Ah, se tivéssemos carne para comer!” (Números 11.4).

O jejum da quaresma é difícil, embora não pelas razões que eu esperava. Não foi só meu apetite descontrolado por comida que foi dominado nesses 40 dias, ainda que eu continue a desejar aquela fatia de salame. Talvez, o que seja ainda mais importante é o fato de que minha relação disfuncional com o tempo foi exposta. Eu quero a solução rápida da transformação. Não quero a chama lenta de 40 dias de oração, de persistência e de dependência da graça.

Em seu livro Fasting [Jejum], Scot McKnight nos lembra que o jejum não é instrumental. Não é uma época em que abrimos mão de comida para obter a bênção de Deus. Existem muitas razões pelas quais os cristãos, ao longo dos séculos, comprometeram-se com a prática do jejum.

Agostinho via benefício em negarmos a nós mesmos prazeres “lícitos”, com o intuito de aumentar nossa capacidade de negarmos também os prazeres “ilícitos”. Na Idade Média, Gregório Magno acreditava que o jejum poderia controlar nosso costume de comer com “muita sofistição, com muita suntuosidade, com muita pressa, com muita avidez, e em excesso”. Mesmo pensadores cristãos mais contemporâneos, como o falecido Dallas Willard, enfatizaram a conexão entre nossa experiência na carne e nossos desejos de renovação espiritual. “Vivemos a partir de nossos corpos”, escreveu Willard.

De acordo com McKnight, o jejum é uma das sete práticas antigas que os cristãos herdaram do judaísmo. Orar em horário fixo, guardar o sábado, seguir um calendário litúrgico e fazer peregrinações são práticas que governam o modo que vivemos no tempo, escreve McKnight. As outras três práticas — jejuar, dar o dízimo e participar da eucaristia — informam como vivemos em nossos corpos e no espaço.

Meu próprio jejum durante o período da Quaresma me concedeu uma pausa, no entanto, para considerar que essa prática (e todas as outras mencionadas por McKnight) confronta não apenas como eu vivo em meu corpo, mas também como meu corpo se move ao longo do tempo. Rebecca DeYoung, autora de Glittering Vices [Vícios brilhantes], notou algo semelhante, quando seu jejum durante o período da Quaresma reduziu sua produtividade: “Senhor, eu te dei minha comida. Eu não te dei o controle da minha agenda e de todos os meus planos para o que precisa ser feito.”

A “ineficiência” derivada de um jejum durante a Quaresma pode ser um de seus maiores benefícios. Na América do século 21, uma sociedade governada pelo punho de ferro do relógio, o controle do tempo é algo que está inevitavelmente no centro do projeto de discipulado. De quem é o tempo que vamos contar? O jejum me lembra que vivo o tempo do reino, um tempo que é medido pelo lento crescer do fermento, pelo lento crescer das árvores. Ler a Bíblia como um registro da contagem do tempo por Deus é perceber que Deus não se apressa.

A forma de pensar a produtividade tornou-se a principal estrutura para analisar a organização do tempo hoje, nos Estados Unidos e em outros países. Um bom dia é aquele em que você consegue fazer as coisas, aquele dia em que chega ao fim da sua lista de tarefas. Segundo este olhar econômico, tempo é sempre dinheiro. Deve ser administrado e multiplicado, investido e bem gasto.

De forma assustadora, o tempo torna-se cada vez mais escasso. Segundo Hartmut Rosa, teórico social alemão, neste mundo tecnológico, o tempo está se movendo mais rápido. Embora o rádio tenha demorado 38 anos para alcançar 50 milhões de ouvintes, a televisão demorou apenas 13 anos para chegar a 50 milhões de espectadores e a internet levou apenas 4 anos para atingir 50 milhões de conexões. De acordo com Andrew Root, que explorou o trabalho de Rosa em The Congregation in a Secular Age [A congregação em uma era secular], o “agora” do agora mesmo está ficando cada vez mais breve. Hoje, as pessoas dormem menos, comem mais rápido e andam mais rápido do que nas gerações anteriores.

Passei a me perguntar se o pecado, como se manifesta hoje, não é de alguma forma uma expressão da intemperança do tempo. Vivemos com medo de que o tempo se esgote e, por isso, somos indisciplinados no hábito de esperar. A obra de Rebecca DeYoung, Glittering Vices, explora os sete pecados capitais e observa como cada um deles pode estar relacionado ao tempo.

Passei a me perguntar se o pecado, como se manifesta hoje, não é de alguma forma uma expressão da intemperança do tempo.

A soberba, por exemplo, privilegia os atalhos. Em vez de cultivar a virtude real, ela se contentará com a imagem. A inveja não é simplesmente cobiçar os sucessos de outra pessoa; é se recusar a desenvolver — lenta e gradualmente — as suas próprias capacidades vocacionais.

A acídia, ou preguiça, é uma resistência às exigências do amor, especialmente à diligência diária necessária para amar a Deus e amar o próximo. A avareza acumula não só dinheiro, mas também o tempo que é dinheiro. A ira encurta o longo arco da justiça de Deus; é impaciente por natureza. A gula não é apenas comer demais; pode ser também, retomando as palavras de Gregório Magno, o hábito de comer “com muita pressa”. E, finalmente, a luxúria procura gratificar os prazeres de alguém fora dos limites temporais do compromisso conjugal duradouro e do seu “sim” vitalício.

Visto sob esta luz, o jejum praticado durante a Quaresma não consiste simplesmente em abrir mão da sobremesa, do café, do açúcar ou da carne. Tem a ver com abandonar o impulso de obter o bem espiritual em tempo recorde. Tem a ver com perceber quão breve pode ser a duração de um estado de espírito e, então, voltar ao ritmo de adágio da graça de Deus. Tem a ver com cultivar a virtude da perseverança, da qual o povo de Deus sempre precisou para manter a prática constante da esperança neste mundo caído e fragmentado.

Como o escritor de Hebreus lembra a seus leitores: “Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus, recebam o que ele prometeu; pois em breve, Aquele que vem virá, e não demorará” (Hebreus 10.36-37).

O jejum praticado durante a Quaresma é uma prática para viver uma estação consagrada que conta um tipo diferente de história sobre o tempo. Os cristãos ensaiam uma obra acabada e também futura: Jesus Cristo absorveu as dívidas do pecado, incluindo tudo aquilo que eu, como ser humano limitado, inevitavelmente deixarei inacabado. Ele está voltando para colocar o mundo em ordem. Durante a Quaresma, eu me lembro que não preciso correr para ganhar meu patrimônio existencial. O que quer que Deus tenha para que eu faça e me torne, a pressa não pode estar envolvida.

De acordo com Salmos 1, aqueles que pertencem a Deus dão fruto no tempo certo e suas folhas não murcham (Sl 1.3). Seu discipulado é diário: eles meditam na lei de Deus “dia e noite” (v. 2). E, assim, acabamos percebendo que a vida profundamente enraizada [em Deus] não é sequer um projeto de 40 dias. É tarefa para uma vida inteira.

Jen Pollock Michel é escritora, apresentadora de podcast, palestrante, e mora em Toronto. Ela é autora de quatro livros e acabou de lançar seu quinto livro: In Good Time: 8 Habits for Reimagining Productivity, Resisting Rush, and Practicing Peace (Baker Books, 2022).

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