Culture

A natureza-morta e o fruto do Espírito

Ser humano é ser alguém que cria beleza e administra justiça.

A still life arrangement of fruit, in various states of ripeness against a black background.

Christianity Today September 30, 2025
Illustration by Daniel Forero

Pintando sob as luzes voláteis do sul da França, o artista Paul Cézanne recorria repetidamente a uma composição simples: a uma natureza-morta em uma fruteira. O fruto, segundo ele, nunca era o mesmo — a cada momento alterava-se a cena que ele tinha diante de si. A maçã [retratada] pela manhã começava a murchar ao anoitecer. Conforme a luz do sol se movia pelo ambiente, ao longo do dia, as sombras sobre a fruteira também mudavam.

Em vez de tentar fixar um momento fugaz — capturar um fruto imaginário e incorruptível em um tempo estático —, Cézanne se empenhava em comprimir a plenitude do tempo e do espaço em uma única imagem. Suas pinturas não tratavam da aparência, mas sim da essência, uma busca pelo que está sob a superfície. É dele o fruto em fluxo e luz, em amadurecimento e em transformação, sua essência é como um eco visível de uma realidade mais profunda.

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Da mesma forma é o amor de Deus: resiste ao reducionismo. Deus é amor — um amor eterno, extravagante, infinito —, e esse amor se manifesta em nós, na medida em que permanecemos em Cristo. Somos convidados a criar com amor, em amor e por meio desse amor que cresce em nós, como um fruto de outro tipo: o fruto do Espírito.

O fruto do Espírito não é um conjunto plural de virtudes entre as quais devemos escolher algumas. O fruto — como o de Cézanne — é um todo único, multifacetado e orgânico. O Espírito cultiva em nós algo totalmente belo: uma restauração do nosso anseio de pertencer e de nos tornarmos, de sermos amados e conhecidos. De sermos administradores fiéis e de nos sentirmos satisfeitos. E, em meio a tudo isso, de sermos renovados em nossa humanidade redimida.

Como artista (eu, Makoto) e como advogada (eu, Haejin) tivemos a oportunidade de refletir sobre como o fruto do Espírito se relaciona com beleza e justiça e como essas duas coisas interagem entre si.

Natureza-morta, por Paul Cézanne, 1890

Em nosso trabalho, descobrimos que a beleza e a justiça são um transbordamento do amor de Deus — a resposta crítica da missão da igreja para anunciar a nova criação.

A beleza e a justiça nos ensinam como sermos fiéis administradores do amor de Deus em meio a terras áridas, estéreis, resgatando o significado acima da utilidade, e nos apegando à esperança em meio ao sofrimento sombrio. Ambas, beleza e justiça, são rebelião que rompe com o nosso mundo transacional e expõe as mentiras que nos cercam. Ambas proclamam que ser humano não é somente existir, mas carregar a imago Dei — a centelha sem igual de Deus em cada um de nós.

Assim como Cézanne contemplava a luz volátil sobre o fruto, somos convidados a contemplar o fruto da beleza e da justiça, o alimento essencial da humanidade.

Perguntaram a uma jovem que foi resgatada do tráfico no sul da Ásia: “Agora que você está livre, o que quer?”. Após um breve silêncio, ela respondeu: “Quero voltar a ser bonita”.

Sua resposta é ao mesmo tempo comovente e sagrada. Desde cedo, ela suportou tremenda dor e sofrimento. No entanto, essa jovem não pediu por vingança nem por um escape. Em vez disso, em seu desejo por restauração, ela mencionou o próprio cerne da justiça: um anseio pela beleza.

Esse anseio é mais profundo do que a ambição. É uma reminiscência do Éden, um anseio pelo Deus triúno que criou o mundo por amor, que nos fez à sua imagem e nos chamou a participar do florescer interdependente da criação. É uma reminiscência de ter sido chamado de tov (em hebraico, “bom e belo”) por Aquele que nos formou (Gênesis 1.31). É o anseio de nos tornarmos plenamente humanos novamente, iluminados em amor, como fomos destinados a ser.

A injustiça que aquela jovem viveu decorre, como todas as injustiças, da injustiça original — aquela que os seres humanos cometeram contra Deus, no Éden. Roubamos do jardim de Deus algo que não era nosso, mesmo quando ele já nos havia dado abundância. Nosso desejo de nos tornarmos mais poderosos, e até mesmo iguais a Deus, interrompeu nossa intimidade com o doador da vida, corrompendo aquilo que Deus havia criado como tov [bom]. Nossa pecaminosidade destruiu todos os relacionamentos que floresciam: com Deus, de uns com os outros e com a criação.

Logo depois, ocorreu a segunda grande injustiça: Caim matou seu irmão Abel. A partir daquele momento, a violência, a tirania e a traição se enraizaram na história. A humanidade mergulhou na corrupção, e nosso coração endureceu-se pelo desejo de controlar, possuir, destruir. A beleza murchou sob o calor de tal injustiça, e o sangue encharcou o solo.

Vivemos agora em uma era de aceleração, onde a sacralidade do ser humano foi soterrada por dados, algoritmos e métricas. Nossa alma, em vez de ser ricamente cultivada, é explorada em nome de produtividade e lucro. Somos úteis ou invisíveis; medidos, não contemplados. Olhamos para as outras pessoas com uma mentalidade de escassez, que gravita em torno de binários reducionistas, consideramos o “outro” como nosso inimigo e transformamos o outsider em bode expiatório. Nas ruínas destroçadas da Queda, perdemos por completo a capacidade de enxergar corretamente.

Jesus nos alertou, no Evangelho de João, que “o ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir” (10.10). Em nossos dias, o ladrão parece ter alcançado seu objetivo. Quem nos salvará desse estado miserável?

Esmagado pela santa justiça, Jesus Cristo tornou-se para nós o caminho para a misericórdia e a intimidade com Deus, e o portal para a nova criação. Ele tomou todo o peso do nosso pecado sobre seu corpo partido, derramou seu sangue sagrado e absorveu a ira que merecíamos. Suas feridas se tornaram radiantes com a beleza da graça prismática e redentora.

O antídoto para a decadência da humanidade é, portanto, unir-se espiritualmente a Jesus, aquele em quem a beleza e a justiça se encontram. É “andar no Espírito”, produzindo o fruto manifestado naqueles “que pertencem a Cristo Jesus” (Gálatas 5.16,24). É ser curado por suas feridas (1Pedro 2.24), de modo que nossas cicatrizes possam exibir a obra artística da graça de Deus.

Desde que iniciamos a Academia Kintsugi, em 2020, a arte japonesa do kintsugi [a técnica de restaurar ou remendar peças de cerâmica quebradas] se tornou onipresente na cultura cristã popular. Muitos se identificaram com a imagem do evangelho encapsulada no ato de consertar, com pó de ouro e urushi (laca), um vaso de cerâmica quebrado.

O que não se pode captar em uma oficina de arte ou em uma rápida ilustração de sermão, no entanto, é a quantidade de tempo que a arte exige. Antes de iniciar o trabalho de restauração, um mestre de kintsugi primeiro contempla os fragmentos da peça quebrada, às vezes por muitos anos, imaginando como ele poderia recuperar sua inteireza novamente. Somente após esse período inicial de imaginação é que o trabalho começa, transformando as rachaduras em um panorama de um mundo curado.

E se, como os mestres de kintsugi, a coisa mais radical que pudéssemos fazer hoje fosse desacelerar e contemplar as rachaduras do mundo? E se a justiça não fosse mera distribuição de veredictos, mas algo que se constrói — e que é feito com paciência, atenção e beleza?

Devido ao processo demorado que eu (Makoto) uso para fazer minhas pinturas, meu trabalho é chamado de arte lenta. Eu pego materiais triturados, fragmentados — conchas, minerais e metais preciosos, como platina e ouro — e os misturo manualmente com nikawa, uma cola japonesa feita a partir de couro animal, antes de aplicar as tintas personalizadas para criar camadas prismáticas.

A atenção que dedico ao meu ofício também é a minha oração. Trabalho consciente de que criar beleza é ecoar o Criador, não por meio do espetáculo vazio da atenção momentânea, mas por meio de algo que perdura e é contemplado com amor. Tal beleza repercute para além do superficial e do transacional. É uma dádiva que se expande generativamente pelo mundo.

Elaine Scarry, em On Beuty and Being Just [Sobre a Beleza e o Ser Justo], discute como a beleza nos desperta para captar os nossos erros de percepção, gerando justiça ao nos ensinar a ver corretamente. Dizer “isto é belo” é fazer uma reivindicação sobre aquilo que é digno de atenção e de cuidado. E, ao mesmo tempo, dizer “isto é justo” é insistir para que aquilo que é belo seja protegido e administrado.

A still life sculpture of a fresh banana emerging from a rotten banana peel on a black background.

Salmos 33 nos diz: “Ele [o Senhor] ama a justiça e a retidão; a terra está cheia do amor leal do Senhor” (v. 5). A visão bíblica de justiça é o trabalho amoroso de Deus na nova criação. Não é algo punitivo, mas sim restaurador. Um objeto — ou uma pessoa — com rachaduras não é algo para se jogar fora, mas sim para se restaurar. Juntas, a beleza e a justiça recuperam os fragmentos de uma vida e dizem: “Você não foi esquecido”. E sua obra não está completa até que a alma possa dizer, sem vergonha nem medo: “Sou tov [bela e boa] novamente”.

A beleza e a justiça nascem de uma imaginação santificada e são vividas enquanto caminhamos no Espírito. Elas são o solo no qual o fruto do Espírito cria raízes e cresce, corrigindo as coisas à luz da glória presente da criação e da glória futura, que ainda será revelada.

No lugar do exílio e das rachaduras, a beleza e a justiça nos capacitam a imaginar o que poderia crescer em meio à desolação, e como os cacos poderiam ficar, quando restaurados.

Eu (Haejin) vi o fruto do Espírito crescer em abundância no lugar mais improvável: um bordel abandonado na Índia. Quando um pastor local e eu nos tornamos amigos, escolhemos caminhar no Espírito, naquele local de violência geracional e vergonha.

Com o olhar imaginativo da beleza, enxergamos, para além da decadência, um futuro tecido com justiça: um lugar de segurança, alegria e novos começos para crianças nascidas em bordéis e para suas mães. Em 2018, o prédio se tornou o Centro Sahasee Embers. Ao longo dos anos, vi crianças assustadas se transformarem em jovens vibrantes. Testemunhei mães envergonhadas começarem a levantar a cabeça novamente. Experimentei o modo — assim como nas pinturas de natureza-morta de Cézanne — que o amor de Deus, atuando em cada indivíduo, resiste a qualquer reducionismo.

Em nossa recente visita ao centro, eu (Makoto) dei uma aula de arte para os estudantes do ensino fundamental. Distribuí folhas de papel pela sala e comecei a ler o conto de J. R. R. Tolkien, A Folha de Cisco. Enquanto lia, esbocei as linhas sinuosas de uma árvore desfolhada em um grande bloco de desenho. Contei como Cisco, durante sua vida, não conseguiu terminar de pintar uma árvore — e como Deus graciosamente incorporou essa única folha de Cisco, com seu “encanto próprio”, à nova criação.

Pedi a cada criança que pintasse uma única folha, no estilo que desejasse, e depois eu as convidei a colar suas folhas nos galhos da árvore que eu havia desenhado. À medida que os galhos desfolhados começavam a ficar cheios de folhas, os estudantes viam como a árvore se tornava bela, quando todos trabalhavam juntos para trazê-la de volta à vida. A colagem era um reflexo de como a beleza e a justiça estavam trazendo a cura do reino para a vida de cada um deles.

O Centro Sahasee Embers é apenas um lugar onde Deus — o único e verdadeiro Artista e Advogado — está trabalhando neste exato momento. E ele nos convida a participar de sua obra de ressurreição, uma obra que imagina, restaura e cria, onde quer que ele nos chame.

Ao caminharmos no Espírito, que tenhamos olhos para ver como Deus começou a preencher as paredes da galeria da nossa vida: aqui, ele coloca a colagem feita pelas crianças de um antigo bordel; ali, coloca as linhas douradas de um vaso restaurado. Mais adiante, coloca o retrato da jovem que voltou a ser bela novamente; e, naquela outra parede, coloca as cicatrizes do Filho de Deus, por meio de quem Deus está fazendo novas todas as coisas.

No amor de Deus, há beleza duradoura. No amor de Deus, a justiça flui para a nossa vida. E, quando contemplamos esse amor, descobrimos que a beleza e a justiça não são coisas separadas, mas sim entrelaçadas — indivisíveis, interdependentes, que cantam em harmonia na tela da criação.

Haejin Shim Fujimura é advogada da Shim & Associates, presidente da Academy Kintsugi e CEO da Embers International. Makoto Fujimura é um renomado artista contemporâneo e autor premiado. Ambos são coautores de Beauty x Justice: Creating a life of Abundance and Courage [Beleza x Justiça: Criando uma Vida de Abundância e Coragem], com lançamento previsto para abril de 2026 (pela Brazos Press).

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