Culture

Minha infância foi um pesadelo, mas sou grata por estar viva

A perspectiva de uma infância difícil, mesmo que seja tão problemática quanto a minha, nunca deve ser “remediada” pelo aborto.

A photo of a baby and child cut out with the eye of a woman peeking through the child's silhouette
Christianity Today March 14, 2025
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash

É meia-noite e meu celular está tocando. Piscando para afastar o sono, eu me viro e vejo o nome da minha irmã mais velha piscando na tela.

“Alô?”

A princípio, ela permanece calada. Está chorando. Esse som me desperta bruscamente.

“Você está bem?”, pergunto.

Finalmente, ela fala: “Eu matei meu bebê”.

O choque se aloja em minha garganta. A dor da minha irmã está de repente no meu peito, esmagando meu coração contra as minhas costelas. Desço depressa a escada do beliche, meus pés escorregando pelos degraus, e passo na ponta dos pés pela minha colega de quarto, que dorme. “Só um segundo”, sussurro, mantendo minha mão em concha sobre o alto-falante do telefone, até sair do quarto.

“Ele me obrigou a fazer isso”, ela disse, soluçando. “Eu não achei que teria tanta importância.” O pavimento do prédio range sob meus pés descalços. “Eu matei a minha filha. Eu vou para o inferno.”

Por fim entendi o que havia acontecido. Minha irmã estava grávida. E, então, com 12 semanas de gravidez, ela fez um aborto. Ela foi pressionada pelo namorado, que disse que não tinha condições de cuidar de mais um filho — ele já tinha outros filhos com outras mulheres.

Eu não estava preprada para aquilo. Não tinha uma só palavra para lhe dizer.

Aperto o celular contra o ouvido e fico ali, em pé, em meio àquela tempestade, escutando. 

Quando éramos jovens, minha irmã e eu tínhamos longas conversas até tarde da noite sobre nossa determinação de sermos melhores pais para nossos futuros filhos do que nossos pais foram para nós. O abuso que enfrentamos na infância, nos anos antes de sermos adotadas, é quase pesado demais para ser expresso em palavras e horrível demais para que palavras possam justificar.

Nossos pais eram viciados em drogas. Eles nos deixavam ensanguentadas e machucadas; admiravam as marcas que seus cintos deixavam em nossa pele e apagavam seus cigarros em nossos cotovelos e joelhos. Até os oito anos, eu me alimentei apenas de papinha de bebê industrializada.

Minha irmã e eu sobrevivemos juntas. E, no entanto, à medida que crescemos, minha irmã começou a me afastar [dela]. Ela saiu de casa de repente, sem deixar nenhum contato; começou um relacionamento com um homem abusivo. Depois de um tempo, parei de lutar para manter alguma conexão com ela. A porta entre nós permanecia fechada e parei de bater para que ela abrisse — até que se abriu, naquela noite fria de primavera.

Este telefonema desesperado foi há mais de cinco anos, mas as palavras da minha irmã ainda ecoam em meus ouvidos. Ela pensou que estava fazendo a coisa certa. O pai da criança era abusivo e o dinheiro era pouco. Mas a dor que ela sentia foi uma confirmação: toda vida humana tem valor intrínseco, não importa a pobreza, a crueldade ou o caos em que essa vida nasça. Minha irmã havia descoberto isso da maneira mais difícil, da mesma maneira que aprendera a maioria de suas lições na vida.

“Toda criança uma criança desejada”. O lema de 1923 da Planned Parenthood tem um subtexto horrível; se uma mulher acredita que não está preparada para ser mãe, ou que seu parceiro não está preparado para ser pai, ou que seu lar será infeliz, então, o aborto é incentivado. Nesse contexto, o aborto não é apenas uma opção, ele é uma solução. É algo responsável. É a coisa certa a fazer.

Os defensores do aborto há muito sugerem que o acesso [seguro] ao procedimento melhora os resultados futuros para mulheres e crianças. Em junho de 1978, a Liga Nacional de Ação pelo Direito ao Aborto publicou o Aborto Legal: Notas de um Orador e Debatedor. Entre outros pontos, o documento afirmava que “uma política que torne a contracepção e o aborto livremente disponíveis reduzirá muito o número de crianças indesejadas e, assim, reduzirá o trágico aumento do abuso infantil em nosso maravilhoso país”.

Esses argumentos persistiram no século 21. Em 2002, um artigo na American Economic Review afirmava que “crianças indesejadas podem estar mais sujeitas a abuso e negligência infantil, por parte de seus pais ou cuidadores, do que crianças que foram desejadas. […] O acesso ao aborto pode reduzir o número de crianças indesejadas […] levando a taxas mais baixas de abuso e de negligência infantil”.

“Há muito a ser dito, quando estamos falando sobre impedir o nascimento de bebês indesejados que, consequentemente, terão uma infância comprometida”, argumentou um colunista do Guardian, em 2016. “Há alguns anos, as estimativas de crimes em Nova York ficaram surpreendentemente muito mais baixas do que antes, e pesquisadores ligaram esse fato ao alto número de abortos feitos no ano em que os potenciais criminosos teriam nascido”.

Crianças “indesejadas” têm menos chances de sucesso na vida acadêmica e financeira, escreveu um trio de professores de psicologia, na época do vazamento [do voto de um dos juízes, antes do julgamento] do caso Dobbs: “Estamos focados na prevenção da transmissão de fatores de risco que causam a piora do bem-estar econômico, social, físico e mental, tanto dos pais quanto dos filhos”.

“Toda criança uma criança desejada”. Pela maneira como esta afirmação foi formulada, a dignidade de uma criança é determinada não pelo fato de sua existência, mas pelo quanto é desejada por seus pais e por sua probabilidade de “sucesso” no futuro. A personalidade de uma criança é contingente. Seria melhor para crianças que sofrem, crianças como eu e a minha irmã, nunca terem nascido do que terem de enfrentar aquelas queimaduras de cigarro e terem de sobreviver à base de papinha de bebê.

Mas a perspectiva de uma infância difícil, e até mesmo uma infância traumática como a minha, nunca deveria ser remediada retirando da criança a possibilidade de viver. O aborto descarta o poder redentor de Deus — e o “desejo” [de Deus] inerente à nossa criação.

Gênesis nos diz que somos santificados, separados, criados à imagem de Deus (Gênesis 1.26-27). O salmo 139 elucida o valor intrínseco que Deus atribui a cada pessoa, valor que vem exclusivamente do Pai, e não de nenhum pai ou mãe terreno. Somos feitos “de modo assombroso e admirável”, tecidos, com todos os nossos dias determinados.

Marcos 8.36 mostra que uma única alma humana tem mais valor do que um mundo inteiro de bens materiais: “Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida?”. Mesmo nas circunstâncias mais terríveis — mesmo que uma criança nasça com alguma deformidade, mesmo que uma criança passe fome, mesmo que uma criança sofra — a despeito de tudo isso, Deus atribui um valor ilimitado à sua vida. Minha irmã deveria ter optado pela filha, apesar do namorado, e mesmo diante de sua própria instabilidade e do seu passado. Apesar de toda dor que vivi, hoje estou contente por nossos pais terem permitido que vivêssemos.

A mão de Deus é evidente em minha vida, especialmente depois que fui adotada por um casal maravilhoso. Fui a primeira pessoa da minha família a se formar em uma faculdade, e com as maiores honras. Deus me concedeu dons nas áreas da escrita e da música. Hoje, lidero o louvor para os ministérios de adolescentes e de jovens adultos na minha igreja. Minha participação no ministério de jovens é uma maneira de garantir que todas as crianças recebam amor.

“Toda criança uma criança desejada” implica dizer que tudo de bom que tenho na vida hoje não faz o meu “mau começo” valer a pena. Mas eu sei que isso não é verdade.

April, minha irmã, agora é mãe. Ela tem dois lindos filhos, Edward e Justin. April descobriu que estava grávida de Edward apenas um mês depois de perder a filha. “Quando engravidei novamente, um mês depois”, ela disse, “foi quase como se Deus estivesse me falando: ‘Você achou que eu não sabia o que eu estava fazendo?’”

Randi Bianchi é escritora e administradora de uma igreja.

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