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Os evangélicos brasileiros estão divididos sobre o legado de Lausanne

Cristãos da América Latina desenvolveram a teologia da missão integral. Agora não sabem o que fazer com ela.

Christianity Today September 21, 2024
Ingo Roesler / Getty

Por anos, a missão integral — corrente teológica que vê o evangelismo e a justiça social como componentes indissociáveis ​​da vida cristã, ou como as “duas asas de um avião”, conforme escreveu certa vez o teólogo equatoriano René Padilla — tem sido um legado do Movimento de Lausanne no Brasil. Desenvolvido na década de 1970, por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana, esse conceito motivou os evangélicos brasileiros a combaterem a violência nas ruas do Rio, o abuso de álcool em reservas indígenas e a livrarem moradores de rua do vício em drogas, entre muitas outras conquistas.

Recentemente, no entanto, o legado da teologia da missão integral (TMI) tem sido alvo de escrutínio no Brasil, por fatores geracionais, demográficos e teológicos.

Em junho, o movimento de Lausanne realizou uma conferência em São Paulo para apresentar seu relatório da Grande Comissão, uma pesquisa exaustiva de tendências que afetam os esforços de missões em nível global. Antes do encontro, evangélicos debatiam nas mídias sociais se o evento se tornaria uma espécie de “funeral da TMI”.

A maioria dos preletores da conferência era jovem e tinha aderido ao movimento nos últimos anos. E ninguém sequer mencionou algo sobre “missão integral” no palco principal.

Essa realidade não escapou à observação dos líderes de longa data de Lausanne, cujos olhos estão voltados para o 50º aniversário da conferência inaugural. A data certamente será lembrada na conferência deste ano, que começa na próxima semana em Incheon, Coreia do Sul.

“Alguns de nós estão indo para Lausanne 4 com esta pergunta em mente: o que será da missão integral?”, disse Valdir Steuernagel, um dos nomes mais proeminentes do evangelicalismo brasileiro e consultor-executivo sênior do Movimento de Lausanne.

Embora a controvérsia sobre esse conceito possa ter se acirrado no Brasil, ela remonta a décadas.

Quando a missão integral foi inicialmente concebida, na década de 1970, tendo emergido do primeiro congresso de Lausanne, em 1974, alguns evangélicos expressaram preocupação sobre as implicações de um evangelho que abordava as necessidades materiais e espirituais das pessoas. Os evangélicos favoráveis ​​a Lausanne eram frequentemente acusados ​​de serem influenciados pelo pensamento marxista ou de estarem meramente adotando uma versão protestante da teologia da libertação.

Essas críticas se mantiveram ao longo do tempo. Em um vídeo de 2015, o reverendo Augustus Nicodemus, antigo líder de alto escalão da Igreja Presbiteriana do Brasil, descreveu a missão integral como “uma leitura corrompida ou, no mínimo, incompleta da realidade”. Com o tempo, a divisão sobre a teologia da missão integral surgiu também dentro da própria rede nacional do movimento de Lausanne.

E o crescente tribalismo dentro da política doméstica brasileira intensificou os conflitos.

Em abril de 2018, o pastor Ariovaldo Ramos compareceu a um comício político, no qual orou pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que na época estava no centro de uma crise política. Pouco depois disso, o líder de esquerda foi preso por acusações de corrupção.

No mesmo dia, Yago Martins, um YouTuber e podcaster influente na área da teologia, lamentou no Facebook a presença de Ramos nesse evento, aproveitando a situação para criticar a missão integral. Em suas palavras, essa teologia “é nada mais que missiologia marxista e esquerdismo teológico”.

Dezoito meses depois, Lula foi solto e voltou à presidência nas eleições de 2022. O impacto da presença de Ramos naquele evento de 2018, no entanto, continua a repercutir na igreja brasileira e no Movimento de Lausanne.

Ramos — ex-presidente da Visão Mundial no Brasil e fundador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, a qual se descreve como um movimento cristão que promove a justiça social e os direitos humanos — há tempos é um dos principais nomes da missão integral no Brasil. Aos olhos dos oponentes da missão integral, o apoio de Ramos a Lula foi visto como evidência de que essa teologia era um movimento político de esquerda, uma afirmação que Ramos rejeita.

“A teologia da missão integral não tinha compromisso partidário, em hipótese alguma”, disse ele. “Quando eu fui àquele evento, eu o fiz pelas minhas convicções como cidadão. E quando eu visitei o presidente Lula na cadeia, foi porque eu fui convidado para uma visita pastoral. Nenhum pastor pode negar uma visita a alguém que está preso.”

Nos anos seguintes, a polarização política piorou entre os evangélicos, exacerbada pelas contenciosas eleições presidenciais de 2018 e 2022. Críticos da direita observaram adeptos da missão integral defendendo abertamente um presidente (Lula) que estava sendo acusado de haver infringido a lei. Adeptos da esquerda perguntavam por que os evangélicos estavam apoiando um candidato (Jair Bolsonaro, eleito em 2018) que, na visão deles, fazia comentários misóginos e preconceituosos.

“Essa foi uma época muito difícil. Deixou feridas que ainda não foram curadas”, disse o líder de uma organização cristã de serviços sociais, que pediu para não ser identificado, a fim de não impedir a capacidade de seu grupo de colaborar com outros ministérios. “Pessoas excelentes, incluindo teólogos e missiologistas, deixaram de conversar uns com os outros e até trocaram acusações por causa de paixões políticas.”

Essa polarização teve consequências inacreditáveis.

 “Hoje, poucos são os pregadores que usam o termo missão integral. Podem até tratar do tema, mas não usam essas palavras para não serem cancelados, rotulados, excluídos,” disse Ramos.

Embora a força-tarefa da missão integral do movimento de Lausanne Brasil ainda exista, e a rede nacional de Lausanne não tenha sofrido nenhuma renúncia de membros de alta projeção, Ziel Machado, que participou do segundo encontro global de Lausanne, realizado em Manila, em 1989, e que atualmente atua como vice-chanceler do Seminário Servo de Cristo em São Paulo, reconhece que a situação política divisiva no Brasil minou uma comunidade que antes se caracterizava pela cooperação e pelo companheirismo.

“O nome ‘missão integral’ está manchado e agora faz parte do conflito”, disse ele. “Lausanne nos ensina a pensar em reconciliação. Mas não podemos aplicar esse princípio, se não lidamos com os nossos problemas. Precisamos entender quais são as áreas afetadas e quais são as reconciliações que precisam ser feitas.”

Cerca de um ano atrás, o diretor de Lausanne para a América Latina, Daniel Bianchi, perguntou se não era hora de aposentar o termo. “Neste momento, é necessário reconhecer que o termo ‘missão integral’ se tornou uma espécie de clichê e tem sido usado para muitas coisas, a ponto de quase perder seu significado”, escreveu Bianchi, que vive na Argentina e assumiu seu papel no movimento de Lausanne em 2017.

Fernando Costa, coordenador do comitê executivo do Lausanne Brasil e diretor-executivo do Centro Evangélico de Missões, disse que a missão integral enfraqueceu, após a morte de muitos de seus pioneiros, como Padilla e o porto-riquenho Orlando Costas. “Isso virou algo como um palavrão. Tudo o que não é muito saudável para a igreja é rotulado como missão integral”, disse Costa. “É injusto com a missão integral, mas ninguém vai meter a cara para defendê-la.”

Essas tensões em torno do conceito de missão integral e no âmbito de Lausanne ocorreram concomitantemente com o crescimento explosivo de evangélicos no país. De acordo com o censo de 1970, o Brasil tinha 4,8 milhões de evangélicos, o que representava 5,2% da população. Hoje, há 3,5 milhões de evangélicos apenas em São Paulo. No geral, 63 milhões de brasileiros, ou seja, 31% da população total, são evangélicos, de acordo com uma pesquisa do Datafolha.

A maioria deles são convertidos — apenas 7% dos evangélicos disseram ao Datafolha que frequentavam a igreja desde que nasceram. Em contraste com os evangélicos da década de 1970, esses recém-chegados estão se juntando a um movimento que desfruta de crescente influência na cultura pop e na política.

Muitos desses novos convertidos são pentecostais, os quais representam cerca de 65% dos evangélicos no país. Esses grupos foram sub-representados no Movimento de Lausanne, em parte porque não tinham seus próprios seminários ou faculdades, e, em vez disso, confiam em estruturas menos formais para treinar seus pastores e missionários ou usam para isso instituições operadas por outros grupos, como batistas, presbiterianos e luteranos. Essa carência de acadêmicos, por sua vez, significou que as posições pentecostais sobre teologia e missiologia ficaram menos visíveis.

De fato, a maior denominação evangélica do país, as Assembleias de Deus, era, até alguns anos atrás, avessa à erudição teológica e resistente a ambientes acadêmicos. Mais recentemente, muitos membros das Assembleias de Deus buscaram treinamento teológico. “Isso os aproximou de grupos como Lausanne”, disse Marcos Amado, que liderou o Movimento de Lausanne na América Latina de 2011 a 2016. Mas também criou o desafio de integrar um tipo diferente de tradição teológica em um ambiente de cooperação.

Muitos pentecostais compareceram ao evento da Grande Comissão de Lausanne, em junho. “O que eu vi foi uma galera jovem muito interessada em servir a Jesus. Querem fazer muita coisa, pôr nas redes sociais, transmitir para o maior número possível de pessoas”, disse Amado.

Costa disse que muitos líderes que estão fortemente envolvidos no trabalho missionário tinham conhecimento limitado da história de Lausanne. “Estamos trabalhando com essas pessoas que estão fazendo o movimento missionário brasileiro, para aproximá-las do conhecimento teórico-teológico da missão”, explicou. “Eles estão descobrindo o que é Lausanne no caminho.” Para fazer isso, eles contam com a orientação de um grupo de missiologistas experientes, que têm parceria com Lausanne há décadas — participantes mais velhos e experientes como Valdir Steuernagel, que compareceu ao evento global de Lausanne, em 1989, realizado em Manila.

Mas será que há alguma chance de restaurar a imagem da missão integral em Lausanne, no Brasil ou em qualquer outro lugar?

“A injúria que a teologia da missão integral sofreu só será tratada se houver arrependimento. Pode ser que venha.”, disse Ramos. “Eu acredito no poder do Espírito Santo para convencer as pessoas do pecado, da justiça e do juízo.”

Para Steuernagel, esse conflito faz parte do processo de amadurecimento do Movimento de Lausanne: “Sempre há tensão nesses encontros. Se tirar a tensão, acho que você também mata o espírito de Lausanne.”

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