Nem dominar, nem se afastar: os cristãos devem unir o mundo

O testemunho da igreja primitiva nos ajuda a evitar tanto o triunfalismo quanto o isolamento.

Christianity Today August 14, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash

Logo no início da minha leitura e do meu estudo sobre o cristianismo primitivo, fui impactado por uma afirmação de um autor anônimo, que escreveu para um homem chamado Diogneto, no segundo século. Esse autor, em sua Carta a Diogneto, declarou que “os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo”.

O autor estava abordando um paradoxo que reside no coração de nossa fé: os cristãos vivem no mundo; contudo, nas crenças que professam e nas virtudes que buscam modelar, eles também transcendem as coisas deste mundo. Embora Cristo e os apóstolos tenham ensinado esse mesmo princípio, a analogia que a Carta a Diogneto faz com o que a alma é para o corpo é tocante. Mesmo existindo em um corpo mortal, os cristãos estão destinados à imortalidade. Assim como a alma mantém unido todo o corpo, os cristãos são chamados a manter unido todo o mundo. Sua missão é viver de maneira que tornem o mundo melhor por causa de sua presença.

Stephen O. Presley, um estudioso do cristianismo primitivo, articula essa visão de forma brilhante em Cultural Sanctification: Engaging the World like the Early Church [Santificação Cultural: envolvendo-se com o mundo como a Igreja Primitiva]. O livro explora como os primeiros cristãos viam seu lugar em um mundo que cada vez mais se assemelha ao nosso.

Em uma era secular, as posturas e a sabedoria das vozes cristãs primitivas podem nos ajudar a resgatar uma visão de como viver em uma sociedade que não tem espaço para a exclusividade religiosa e tem pouco interesse por uma lógica moral transcendental. Ao explorar e conectar temas proeminentes do testemunho público dos primeiros cristãos, Presley canaliza a analogia apresentada a Diogneto e a amplifica, através das vozes dos primeiros pensadores cristãos.

Dualismo ativo

Presley começa nos lembrando que nosso mundo não apenas olha para a igreja com desconfiança; ele vê o cristianismo como o antagonista. Conforme ele escreveu: “O cristianismo não é marginalizado [hoje] por ser religioso, mas porque suas alegações morais frequentemente contrariam as novas expressões de progresso social e de diversidade moral.”

Como argumenta Carl R. Trueman em The rise and triumph of the modern self [no Brasil, publicado como Ascensão e triunfo do self moderno], nossa era de “individualismo expressivo” não tem necessidade de alegações teológicas transcendentais e de fundamentos éticos clássicos. Assim, o testemunho cristão no século 21 deve, cada vez mais, responder à pergunta: Isso é bom e belo? Se não convencermos o mundo de hoje de que o cristianismo é atraente e desejável, teremos de lutar muito para convencê-lo de que o cristianismo é verdadeiro.

Para ilustrar isso, Presley analisa a natureza da identidade cristã primitiva. A conversão, segundo era concebida pela igreja primitiva, não era apenas um assentimento ou uma concordância mental com proposições de verdade. Através da catequese e da participação na vida litúrgica da igreja, os novos crentes tinham suas identidades purificadas e recriadas.

A catequese, ou instrução intencional na doutrina, identificava crenças falsas e buscava substituí-las por conceitos bíblicos. Mas era uma experiência profundamente espiritual. Funcionava como uma forma de exorcismo, que limpava o coração e a mente de pressupostos satânicos e abria espaço para o alimento que dá vida. A vida litúrgica da igreja, que incluía o batismo e a Ceia do Senhor, organizava a vida inteira do cristão em torno da obra de Cristo e da história da redenção divina. Como observa Presley, “essa formação litúrgica nos lembra que a igreja primitiva não estava interessada apenas em evangelizar e em pregar, mas em formar uma comunidade”.

Embora esteja sempre implícita na fé e na prática cristãs, essa ideia de “formação litúrgica” deve ser resgatada em nossos dias. Isso não é um argumento apenas a favor do culto litúrgico, mas um apelo em prol de práticas de adoração e de formação intencionais dentro do corpo da igreja. A comunidade cristã deve ir além de um relacionamento casual com aquela outra igreja ali na esquina e, em vez disso, ser vista como uma coletividade vital composta de homens e mulheres unidos e comprometidos.

Além disso, Presley destaca o cultivo da vida intelectual entre os pensadores cristãos primitivos. Temos o privilégio de ver uma recuperação desse impulso em grande parte do evangelicalismo contemporâneo. Mas os pensadores cristãos primitivos podem nos ajudar a levar isso ainda mais longe.

Ao colocar suas vidas intelectuais em diálogo com a literatura e a filosofia, esses pensadores traziam todo o conhecimento sob o domínio de Cristo. Para os pensadores cristãos primitivos, a Escritura era a bússola orientadora; na verdade, era o próprio tecido do conhecimento. Embora os evangélicos tenham (em sua maioria) mantido alta a sua atenção às Escrituras, muitas vezes perdemos a noção de como a Palavra de Deus deve moldar a maneira como nos engajamos em todas as demais formas de conhecimento.

Como Presley observa: “A igreja reconheceu a importância do engajamento intelectual e da interação com o clima filosófico do mundo ao seu redor”. Os cristãos primitivos, mesmo sob perseguição, não consideravam o isolamento uma opção. Os líderes cristãos de hoje, em uma era de confusão moral e epistemológica, precisam revigorar a igreja para um engajamento intelectual cativante e irênico na esfera pública.

É central para o argumento de Presley, portanto, um retrato de como os cristãos primitivos entendiam seu papel na vida pública. Embora ele separe sua discussão formal desse assunto em dois capítulos distintos, um sobre cidadania e outro sobre vida pública, as ideias por trás deles são semelhantes em ambos. Em um nível, os cristãos entendiam sua lealdade a Cristo e ao seu reino. Eles também procuravam demonstrar seu serviço e seu compromisso a autoridades temporais, como aquelas que Deus lhes ordenara a servir. Os cristãos não eram “anti-imperiais”, como Presley observa; eles aceitavam a ordem estabelecida e procuravam viver obedientemente dentro de seus limites.

Presley identifica essa forma de vida pública como um “dualismo político ativo”. Ela envolvia oração pelas autoridades governamentais, compromisso em pagar impostos e esforços para promover uma vida virtuosa em prol do bem comum. Isso, é claro, não garantia a aceitação por parte dos próximos que eram pagãos. Mas esse testemunho com consistência era suficientemente convincente para conquistar alguns para a comunidade de fé. Se por nada mais, pelo simples fato de demonstrar a natureza sobrenatural da comunidade cristã.

Embora o culto cristão fosse bem menos público do que o politeísmo romano, isso não significa que os cristãos viviam nas sombras. A vida e o testemunho deles estavam sintonizados com o que acontecia à sua volta. A fé cristã primitiva sempre impactou a vida pública, quer inspirando uma presença fiel e cuidando da comunidade, quer sendo um testemunho público contra violência e atrocidades, quer adotando uma postura de oração em relação às autoridades civis. Essa postura de dualismo ativo moderava as expectativas, ao mesmo tempo que lembrava os crentes de que, em última análise, eram peregrinos a caminho de uma pátria celestial.

Presença fiel

A principal alegação de Presley, em termos simples, é que os cristãos de hoje precisam reaprender e aplicar as lições desse dualismo ativo. Ele está ciente, é claro, de que resgatar vozes do cristianismo primitivo não é um exercício de idealismo seletivo. Não devemos presumir, em outras palavras, que todos os cristãos nos primeiros três séculos da igreja fizeram essa obra de santificação cultural com perfeição. (Nesse ponto, é proveitoso lembrar a recente obra de Nadya Williamssobre a presença de cristãos culturais na igreja primitiva).

Ainda assim, o modelo de presença fiel defendido pelos pensadores cristãos primitivos e atestado por observadores não cristãos continua tendo apelo. A igreja de hoje não deve operar com uma mentalidade triunfalista, mas isso não significa que deva se encolher de medo da cultura que a cerca. Como Presley afirma, “o chamado cristão à santificação cultural é um chamado para buscar santidade e conformidade à semelhança de Cristo em todo e qualquer contexto cultural”.

O modelo geral fornecido pela igreja primitiva e transmitido a nós pela obra de Presley, Cultural Sanctification[Santificação Cultural], é consistente. No entanto, pode exigir que alguns de nós lidemos com males que ameaçam infectar nossa visão da igreja, do mundo e do nosso lugar nele. Rejeitar a cultura não é a solução. Assim como substituir nossa cultura atual por uma cultura alternativa totalmente cristianizada também não é a resposta correta. A única resposta a um mundo que rejeita a igreja é uma igreja que ame o mundo com discernimento fiel e engajamento paciente, mesmo enquanto anseia pelo mundo vindouro.

Coleman M. Ford é professor assistente de humanidades no Southwestern Baptist Theological Seminary e autor de Formed in His Image: A Guide to Christian Formation [Formado à semelhança dele: um guia para a formação cristã], bem como de um livro que será lançado em breve, Ancient Wisdom for the Care of Souls: Learning the Art of Pastoral Ministry from the Church Fathers [Sabedoria primitiva para cuidar de almas: aprendendo a arte do ministério pastoral com os pais da igreja]. Ele é cofundador do Center for Ancient Christian Studies [Centro de Estudos de Cristianismo Primitivo] e atua como membro do Center for Pastor Theologians [Centro para Pastores e Teólogos].

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