Sentir-se politicamente sem-teto já é um bom começo

Em tempos de partidários fervorosos, devemos continuar peregrinos.

Christianity Today March 8, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash / Getty

“Eu me sinto politicamente sem-teto hoje em dia.”

Nas últimas seis horas, enquanto eu escrevia este texto, ouvi algo parecido com isso de duas pessoas muito diferentes: um representante eleito que é um republicano conservador, e um ativista progressista que, por acaso, é judeu. Seja devido à figura polarizadora de Donald Trump, no primeiro caso, seja por causa do aumento do antissemitismo, desde os ataques a Israel em 7 de outubro, no segundo, esses dois indivíduos se sentem em uma espécie de exílio em relação a suas respectivas facções políticas.

Muitas pessoas se sentem assim neste momento, inclusive muitos seguidores de Jesus. Descobrimos que aqueles que antes eram nosssos aliados não são mais, e que aqueles que costumavam ser nossos oponentes estão mais próximos de nós, no que tange a abordar a crise em questão. Isso é verdade especialmente quando muitos temem até mesmo falar sobre esse distanciamento, por medo de perderem seu lugar na tribo.

Muitos de nós que nos sentimos politicamente sem-teto pensamos que esse deslocamento seria algo temporário. Alguns republicanos esperavam que as coisas voltariam ao normal, depois que Donald Trump deixasse a Casa Branca. Alguns democratas achavam que, quando passasse a onda do “Defund the Police” [movimento que pede que investimentos destinados à polícia sejam realocados para outras áreas da segurança pública], a vida também voltaria a um padrão mais familiar. Mas ambos os partidos ainda não recuperaram o equilíbrio, e não parece que isso vá acontecer tão cedo.

Para os cristãos, no entanto, sentir-se politicamente sem-teto é sempre uma oportunidade única de reavaliar nossas prioridades. Por mais que pensemos que estamos em um território desconhecido neste momento, não estamos. Ao longo dos Evangelhos, Jesus é confrontado por pressões externas para se juntar a uma facção. Na verdade, as perguntas mais polêmicas que foram feitas a ele tinham a ver exatamente com isso.

Ele ficaria do lado dos fariseus, em uma revolta silenciosa contra o trono de Davi, agora ocupado por intrusos romanos? Ou ele seria solidário aos zelotes, em sua rebelião não tão silenciosa contra o Império Romano? Ele se aliaria aos coletores de impostos, que colaboravam com os romanos? Ou se aliaria aos saduceus e se acomodaria ao domínio romano?

Jesus, no entanto, recusou-se a mesclar sua identidade com qualquer dessas facções. Em vez disso, ele se afastou daqueles que queriam proclamá-lo rei (João 6.15) ou transformá-lo em um mero fornecedor de comida (6.26). E contrariando as expectativas de todos, ele se anunciou como o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14.6).

Desde a terra de Ur, do patriarca Abraão, até a ilha de Patmos, do apóstolo João, a Bíblia descreve o chamado de Deus como uma peregrinação — uma jornada que parte do que nos é familiar e nos lança no desconhecido. O livro de Hebreus elogia nossos pais e mães da Antiguidade, porque eles se viam como “estrangeiros e peregrinos na terra” (Hebreus 11.13). Esse reconhecimento verbalizado foi um sinalizador para os próximos versículos: “Os que assim falam mostram que estão buscando uma pátria. Se estivessem pensando naquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Em vez disso, esperavam eles uma pátria melhor, isto é, a pátria celestial.” (v. 14-16).

Em tempos normais, nossas filiações políticas seriam, ou pelo menos deveriam ser, uma parte mínima de nossas vidas. No entanto, em uma época de tribalismo totalizante — em que a política costuma ser um mecanismo para nos identificarmos e diferenciarmos amigos de inimigos — não é isso que acontece. Em épocas como esta em que vivemos, qualquer um que não se adaptar a esse senso de supremacia se sentirá solitário, se não acabar completamente sozinho.

Muitas vezes, porém, Deus usa circunstâncias externas, como o abalo de uma ordem cívica que antes parecia estável, para nos libertar de ídolos que por nós mesmos não teríamos abandonado. Em um tempo de idolatria política, talvez esse nosso sentimento de falta de raízes possa ser apenas uma forma de Deus nos lembrar que somos viajantes, peregrinos — inseridos no tempo e no espaço, mas criados para uma realidade muito além deles.

Talvez nós, que nos sentimos politicamente sem-teto, estejamos sendo chamados, juntamente com o mundo em geral, a nos lembrar de que há muito tempo nos contentamos com a definição errada de lar. A política de identidade partidária do momento acaba se revelando uma casa construída sobre a areia. E, ao contrário disso, estamos à procura de um tipo diferente de lar: aquele que tem muitas moradas e que nosso Pai construiu sobre a rocha sólida.

Essa verdade pode parecer estranha nestes tempos estranhos em que vivemos. No entanto, devemos nos lembrar que peregrinar é melhor do que pertencer — desde que estejamos caminhando na direção certa.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública da revista.

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