A decisão de cortar o pastor Douglas Wilson da programação de uma conferência evangélica no Nordeste propiciou um momento incomum de unidade entre progressistas e alguns conservadores — e também estimulou um debate sobre se o cancelamento é uma resposta política ou bíblica, no caso de cristãos.
A conferência Consciência Cristã cancelou a participação de Wilson de seu próximo evento, depois que o teólogo e ativista antirracismo Ronilso Pacheco caracterizou o pastor americano como um defensor da escravidão, em um texto publicado pelo Intercept Brasil.
O encontro, que acontecerá de 8 a 13 de fevereiro, é organizado pela Visão Nacional para a Consciência Cristã (VINACC), uma instituição conservadora liderada por várias igrejas evangélicas. Realizado durante os dias de Carnaval, em Campina Grande, na Paraíba, a Consciência Cristã apresenta proeminentes teólogos reformados brasileiros e atrai milhares de participantes.
No mês passado, os organizadores do evento justificaram o cancelamento da participação do teólogo sob a alegação de preocupações com a segurança de Wilson. Em sua resposta, Wilson escreveu um post no blog intitulado “Uma Palavra ao Bom Povo do Brasil”, dizendo que não apoia a escravidão, mas apenas se opõe às guerras travadas para tentar acabar com ela: “Meu argumento nunca foi que a escravidão era necessária, mas sim que a carnificina não era necessária.”
“Penso que o nome de Wilson sequer deveria ter sido cogitado”, disse Norma Braga, teóloga evangélica conservadora que mora no Rio de Janeiro. “O convite prejudicou a reputação da Consciência Cristã não apenas entre os não cristãos, mas também entre muitos cristãos que entenderam o problema de sua presença aqui.”
A pressão para cortar Wilson do evento veio de alguns conservadores como Norma Braga, bem como de evangélicos progressistas, sendo que os dois grupos contestaram a decisão de lhe dar um palco. (As opiniões de Wilson sobre a escravidão não são o único ponto de controvérsia; em seu canal no YouTube, o pastor batista Yago Martins falou sobre alegações “muito obscuras e dolorosas” de abuso sexual que teriam sido acobertadas na igreja de Wilson.)
Wilson, que vive em Moscou, cidade do estado de Idaho, destaca-se nos círculos reformados brasileiros; mais de duas dúzias de livros dele já foram lançados em português. Ao lado da esposa, Nancy, ele é uma figura de expressão em temas como família e criação de filhos.
“Essa combinação única faz com que seus livros sejam muito bem recebidos em vários círculos cristãos”, disse Felipe Sabino, fundador e diretor editorial da Editora Monergismo, que publica os livros de Wilson.
Assim, muitos dos seus seguidores brasileiros não só ficaram desapontados por perder a oportunidade de ouvi-lo na conferência, mas ficaram também frustrados com o que consideraram uma influência do instinto progressista ligado ao politicamente correto entre os evangélicos, e não um senso bíblico de graça e justiça.
“Isso às vezes leva à difamação injusta de irmãos crentes, negando-lhes a oportunidade de fornecer uma refutação”, disseram Sabino e Thiago McHertt, este último um pastor da Igreja Reformada em Joinville.
Ambos preferem ver os cristãos manterem um padrão mais elevado, tendo a Bíblia como referência e uma presunção de inocência estendida aos ministros do evangelho.
“Muitos crentes e líderes cristãos condenaram-no precipitadamente, embora com certeza eles próprios não gostariam de ser julgados de forma semelhante”, disseram Sabino e McHertt numa declaração à CT. “É importante notar que eles não estão apenas desconsiderando julgamentos de tribunais civis e eclesiásticos, retratações e esclarecimentos de questões passadas, mas também ignorando um ministério frutífero de mais de 40 anos de um homem cujos filhos e netos permanecem firmes no Senhor.”
Sabino disse que os seguidores de Wilson no Brasil apreciam sua forma viva e alegre de abordar a fé (“calvinismo chestertoniano”), sua visão otimista do futuro da igreja e seu compromisso com a construção de uma cultura distintamente cristã.
Os críticos de Wilson, porém, veem sua popularidade como algo decorrente da política reacionária no Brasil. Norma Braga preocupa-se com o fato de os evangélicos estarem minimizando posicionamentos que poderiam ser considerados equivocados do ponto de vista cristão, contanto que os líderes critiquem questões como o feminismo militante, a legalização do aborto e a sexualização de crianças.
“Há toda uma configuração de pecados que são deixados de fora, se a maioria dos líderes denunciar apenas questões relacionadas com o progressismo”, disse ela, “e proteger as instituições religiosas, em vez de defender e apoiar as vítimas de abusos, que são predominantemente mulheres”.
A profunda polarização política no Brasil reflete-se nas igrejas evangélicas — e nas respostas à saga em torno de Wilson.
Nos últimos anos, a discordância sobre o apoio dado ao ex-presidente Jair Bolsonaro tumultuou as igrejas evangélicas. Muitos fiéis mudaram de igreja por causa de conflitos políticos. E continuam preocupados com o que consideram ser uma devoção da igreja ao poder político e com as divisões persistentes alimentadas pela política agressiva e violenta.
Pedro Lucas Dulci, pastor presbiteriano na cidade de Goiânia, diz que muitas discussões que acontecem dentro das igrejas estão sendo moldadas por preferências ideológicas, culturais, econômicas e políticas, e não por considerações teológicas.
Ele gostaria de ver a igreja oferecer uma resposta aos desafios contemporâneos, mas sem submeter a mensagem do evangelho a preferências político-partidárias.
Na perspectiva de Dulci, a decisão de cancelar a vinda de Wilson à Consciência Cristã, longe de sugerir a unidade entre as várias correntes teológicas, faz precisamente o oposto, ao estabelecer uma cultura em que as controvérsias são silenciadas. Sem a presença do pastor, nem a sua visão nem a daqueles que se opõem a ele podem ser ouvidas. Por esta razão, Dulci defende que o cancelamento nunca deve ser uma opção, quando o objetivo é abordar diferenças teológicas e intelectuais.
“Mudanças de opinião surgem através de discussões, diálogo, oração, compreensão e até mesmo arrependimento”, disse ele, “mas nunca através do cancelamento”.
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