Cerca de dez anos atrás, fui ao funeral de uma mulher de fé que minha família e eu conhecíamos há décadas. Esta amiga de longa data faleceu após lutar contra um câncer, e a despedida foi dolorosa. Ela era o tipo de pessoa cuja partida significava que o mundo havia perdido um pouco de sua ternura.
Em seu funeral, em minha cidade natal, situada na região Centro-Oeste, ouvi pessoas comentarem que “ela ficou doente por causa de sua tristeza” e que “agora ela finalmente descansaria”, e eu, por fim, entendi algo que eu fora jovem demais para compreender antes: ela havia suportado um relacionamento abusivo até o dia em que morreu.
O que fez essa amiga querida permanecer em um relacionamento tão frio e tóxico? Sua fé de que o marido um dia mudaria e sua convicção de que o divórcio poderia fazer com que ela perdesse sua salvação.
De uma forma devastadora, ela acreditava ser desejo de Deus que permanecesse fielmente casada, a despeito dos abusos cometidos pelo marido, posicionamento esse que somente foi reforçado por seus pastores. Eles a aconselhavam a continuar jejuando, orando e dando tudo de si no casamento — práticas que ela continuou seguindo até o dia de sua morte.
Exigir que alguém se submeta a um fardo conjugal de violência é uma sentença de morte lenta e sádica, cujas origens remontam a anos de pecaminoso abuso de poder. Certamente, nosso chamado para morrermos para nós mesmos todos os dias se estende aos nossos relacionamentos pessoais, pois todos eles envolvem uma dose de autossacrifício. Mas isso é completamente diferente de distorcer as Escrituras a ponto de equiparar sacrifício espiritual com violência conjugal continuada. Existe uma diferença crucial entre esses tipos de morte: a primeira está enraizada no amor perfeito, enquanto a última está enraizada no pecado destrutivo.
O fardo conjugal
Para justificar a manutenção de um fardo conjugal tão violento e letal, já ouvi muitos pastores e líderes cristãos citarem 1Pedro 3.1-2: “Do mesmo modo, mulheres, sujeitem-se a seus maridos, a fim de que, se alguns deles não obedecem à palavra, sejam ganhos sem palavras, pelo procedimento de sua mulher, observando a conduta honesta e respeitosa de vocês”.
Nesses versículos, Pedro se dirige a mulheres que creem em Deus, mas são casadas com homens descrentes, e ele está lhes explicando que elas têm a oportunidade de darem testemunho de sua fé para os maridos incrédulos. Em nenhum momento que seja Pedro está dizendo para as mulheres se submeterem a maridos violentos, muitas vezes até cristãos, para que “sejam ganhos sem palavras” pelo comportamento de suas esposas — um argumento que tenho ouvido com frequência.
Pelo contrário, a Bíblia condena essa violência, como mostra Malaquias 2.16: “‘Porque eu odeio o divórcio’, diz o Senhor, o Deus de Israel, ‘e aquele que cobre as suas vestes de violência’, diz o Senhor dos exércitos.” (NASB). Vale a pena destacar que, no mesmo versículo em que Deus diz “eu odeio o divórcio”, o Senhor também diz claramente que odeia a violência.
Portanto, um casamento fundamentado na submissão a comportamentos abusivos nada tem a ver com piedade, nem é baseado na Palavra de Deus. Não é um vínculo de amor, antes se parece mais com uma flecha que prende à parede um animal por ela morto. Quando o predador finge amor, por meio de apelos emotivos de perdão e de promessas de mudança, esses gestos não são nada mais do que borrifar perfume para mascarar a putrefação de seus pecados na presa em decomposição.
Mas como diferenciar o sofrer em um relacionamento abusivo do agir sacrificialmente em uma parceria entre duas pessoas que temem a Deus? Nesse último caso, ambos os cônjuges seguem as palavras de Jesus para que neguem a si mesmos e tomem suas cruzes. Cada um deles nega seus próprios impulsos e desejos por amor ao outro. Através desta morte de sua própria carne individual surge uma nova vida, uma ressurreição encarnada através deste casamento.
De quem é a responsabilidade?
Apesar da mensagem das Escrituras em contrário, raramente vi líderes de igreja responsabilizarem os agressores pelo estado do casamento. Alguns pastores sustentam que o divórcio é uma tragédia a ser evitada a todo custo, pois é um pecado muito grande.
Líderes de igreja podem enaltecer uma mulher que permanece em um casamento abusivo por ela agir como uma “boa esposa”, e por perseverar em uma situação difícil. Como os cristãos acreditam que Deus muda as pessoas, alguns pensam que a esposa é responsável por mudar o marido e que sua persistência será compensada mais tarde, quando ele finalmente mudar — algo que para eles parece muito mais virtuoso do que “simplesmente se divorciar”.
Com extrema frequência, os cristãos acreditam que uma esposa precisa encarar essa situação como uma oportunidade para ser virtuosa. e que ela não está sendo uma mulher temente a Deus se pedir o divórcio. Culpar a mulher pelo divórcio, em casos de violência doméstica, inverte a culpa e implica que ela é a responsável final pelas ações do marido. Colocar sobre as esposas a responsabilidade espiritual da redenção masculina é pedir-lhes que transformem no melhor o que há de pior nos homens — em outras palavras, é pedir-lhes que façam a obra de Jesus. Além do mais, essa obra geralmente significa que as mulheres carregarão as feridas da mudança.
A ideia de que a mulher deva carregar esse fardo conjugal, enquanto suporta viver em um lar violento, como se esse fosse um papel intrinsecamente feminino, não só é imoral, como também é antibíblica. Isso colide com o ideal de casamento ensinado por Paulo em Efésios 5.25-28, o qual coloca o homem como um redentor semelhante a Cristo, como alguém que dá a vida por sua noiva. Nesse sentido, muitos têm invertido os padrões bíblicos, segundo os quais o amor sacrificial é primordial e especificamente exigido do homem. A aliança matrimonial bíblica é uma aliança não de morte predatória, mas de ressurreição, na qual o sacrifício de amor é inspirado pelo sacrifício de Cristo.
Deus pode restaurar todo mundo, até mesmo um homem violento ou adúltero. Mas esse homem deve arcar com as consequências de suas ações, e essa restauração não deve ocorrer onde ele ainda tenha acesso àqueles que feriu. Jesus já carregou sobre si nossas feridas, e a transformação interior é obra do Espírito Santo. Portanto, nenhuma mulher precisa arriscar obrigatoriamente sua vida por amor à alma de qualquer ser humano que seja, nem mesmo por amor à alma do próprio marido.
Uma mudança bem-vinda
No início deste ano, a CT publicou um artigo sobre uma igreja americana cujos líderes haviam aconselhado vítimas de violência doméstica a permanecerem casadas. A história é dolorosa, mas a recepção que ela teve revelou que muitos cristãos hoje veem as ações desses líderes como inadequadas, e entendem que, ainda que esse comportamento tenha sido considerado “normal” ou aceitável no passado, ele é errado. Talvez a pergunta a ser feita agora não seja apenas “Como chegamos a esse ponto?”, mas sim “Como pudemos ficar assim por tanto tempo?” ou “Como podemos mudar essa situação de uma vez para sempre?”
Em 2019, em meio a uma discussão explosiva entre os evangélicos a respeito do enfrentamento da violência contra mulheres, o teólogo complementarista Wayne Grudem compartilhou com a CT sua reinterpretação de 1Coríntios 7.15. Após quase 40 anos de ministério, Grudem compartilhou uma mudança em sua hermenêutica, que lhe permitiu reconhecer a violência e o abuso como causas para o divórcio (além do adultério e do abandono). Como alguém que aconselha vítimas de violência doméstica há anos, recebi com satisfação essa importante mudança.
Aconselhar mulheres a permanecerem casadas, quando elas não sabem se ainda estarão vivas amanhã, certamente não contribuirá para preservar a instituição do casamento. Aconselhar mulheres desesperadas de que existem argumentos bíblicos para esse tipo de submissão é perverter a Palavra para manter uma imagem conjugal falsa e superficial, quando a própria aliança do casamento já foi quebrada.
Como o editor-chefe da CT, Russell Moore, escreveu no ano passado: “Se um dos cônjuges abandona o lar, segundo revela a Bíblia, não é culpa da parte inocente. E se um dos cônjuges torna o lar um lugar perigoso para o outro cônjuge (ou para seus filhos), isso também não é culpa da parte inocente. Nesses casos, o divórcio não é pecado, mas é, acima de tudo, um reconhecimento de algo que já é realidade — o fato que a aliança dessa união de uma só carne foi dissolvida —, e o cônjuge que sofre abusos não deve sentir nenhuma condenação que seja por se divorciar.
Minha oração mais fervorosa é que as mulheres que sofrem abuso no casamento possam encontrar o consolo e o apoio de seus pastores e que, sempre que as pessoas lhes falharem, elas possam testemunhar a proteção do Pai. Existe um Deus que as vê (Gênesis 16), e ele não está exigindo que elas continuem em uma aliança de morte. Em vez disso, ele veio para que elas tenham vida e a tenham em abundância (João 10.10). Deus não precisa que uma mulher morra ou seja espancada como sacrifício pela vida de homem nenhum. Cristo já fez o sacrifício supremo e definitivo (Hebreus 10.12-14).
Bruna Santini trabalhou na área de direito de família e aconselhou vítimas de violência doméstica no Brasil e nos Estados Unidos, onde vive hoje com sua família. Ela atualmente está cursando seu mestrado em estudos teológicos no Reformed Theological Seminary, em Atlanta.
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