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Não sou e nunca quis ser universalista

Para Richard Mouw, mesmo as formas mais aprimoradas dessa doutrina ainda desapontam aqueles que esperam que Deus fará o que é certo.

Christianity Today March 14, 2023
Illustration by Sarah Gordon / Source Images: Getty / Wikimedia

Não sou um universalista. E não há nada de surpreendente no fato de eu dizer isso. Tendo vivido toda a minha carreira profissional em instituições evangélicas, já assinei muitas declarações de fé que afirmavam a realidade do céu e do inferno, e sempre o fiz com sinceridade.

Mas aqui está algo que surpreenderia muitos de meus colegas evangélicos: não só não sou universalista como nunca quis ser. Muitas vezes ouvi o contrário de amigos evangélicos: “Gostaria de ser um universalista, mas realmente não vejo base bíblica para a visão de que todos serão salvos no final”. É reconfortante saber que aqueles que expressam esse sentimento geralmente reconhecem que a Bíblia é clara sobre o assunto. Eu me preocupo, porém, com o fato de eles desejarem que isso não fosse tão claro.

Estou convencido de que a ideia de salvação universal falha em captar alguns elementos importantes nos ensinamentos bíblicos sobre os requisitos da justiça divina. As Escrituras deixam claro que Deus atende aos clamores dos oprimidos e que, no Dia do Juízo, todos os malfeitores serão julgados de acordo com as suas obras (Apocalipse 20.12). O universalismo tenta contornar esse mal indescritível que as pessoas fazem umas às outras, escapando da necessidade de arrependimento, ao mesmo tempo em que deprecia a cruz e o júbilo verdadeiro na justiça de Deus.

Certamente existem alguns aspectos dos ensinamentos evangélicos tradicionais sobre o inferno que me incomodam. Não quero ouvir repetições dos sermões sobre fogo e enxofre da minha juventude. Isso é semelhante à mensagem enfurecedora daquelas pessoas que carregam cartazes em funerais, declarando que a pessoa falecida queimará no inferno por toda a eternidade.

É certo que as imagens sobre o fogo do inferno estão na Bíblia, como em Mateus 25.41, quando Jesus diz aos que estiverem à sua esquerda: “Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. ”

Mas essas imagens bíblicas se tornaram tão caricatas que os incrédulos podem zombar delas, ignorando a clara mensagem bíblica de que a incredulidade persistente tem consequências eternas. Tal frivolidade atua no mesmo sentido da alegria destituída de amor — afasta-se da alegria e da seriedade da salvação. Nós, evangélicos, ganhamos a fama de sermos indivíduos mesquinhos, e fico feliz quando meus amigos procuram maneiras de diminuir o tom da retórica sem comprometer sua mensagem essencial.

Eu espero por uma amplitude nas misericórdias redentoras de Deus. E para isso me baseio em Charles Spurgeon, que destacou em um de seus maravilhosos sermões, “Adoração Celestial”, que enquanto a Bíblia nos diz que haverá no céu “uma grande multidão que ninguém pod[e] contar” (Apocalipse 7.9), ele nunca encontrou nada na Bíblia que dissesse que haverá no inferno “uma grande multidão que ninguém pode contar”.

Suponha que um evangélico dissesse: “Eu realmente gostaria de acreditar que Jesus não é divino, e sim que ele foi apenas um dos grandes mestres da moral, mas a Bíblia não me permite dizer isso”. Como poderíamos confiar na fé de tal pessoa?

Mas o caso do universalismo é diferente. O desejo de acreditar no universalismo geralmente nasce da preocupação com os entes queridos. Com razão, não nos sentimos traídos por aqueles que desejam a alegria eterna de fulana ou de beltrano, entes queridos pelos quais oram fervorosamente. Ou talvez alguém esteja pensando em seus vizinhos, pessoas maravilhosas, mas que não são cristãos. Conseguimos ter empatia por preocupações como essas.

No entanto, a descrição bíblica do estado de separação eterna de Deus é real. Como N. T. Wright coloca em Surprised by Hope [Surpreendido pela esperança], quando examinamos “o Novo Testamento, por um lado, e o jornal do dia, por outro”, não podemos evitar a conclusão de que a justiça divina exige, no fim dos tempos, uma prestação de contas a respeito das graves injustiças que ocorrem em nosso mundo. Por exemplo, um homem que vende meninas de 13 anos como escravas sexuais e desfruta de uma vida de lucros com esse crime enfrentará a condenação final. O mesmo se dará com assassinos, chantagistas e hipócritas de todos os tipos.

Isso não significa que possamos desistir de qualquer ser humano, quando testemunhamos a maravilhosa graça de Deus. Quando cantamos “A Deus Seja a Glória”, afirmamos a maravilhosa promessa de que “até mesmo o mais vil ofensor que verdadeiramente crer naquele momento receberá o perdão de Jesus”. E em nossa esperança de que criminosos vis cheguem à verdadeira fé, também devemos encontrar maneiras de assegurar às vítimas deles que o Senhor não ignorará os clamores para que se faça justiça. O perdão de Deus continua sendo justo.

Wright diz que os indivíduos que persistem em se rebelar contra Deus, com o passar do tempo se tornam tão desumanizados que danificam em si, de forma irreparável, a imagem de Deus, segundo a qual foram criados. Quando eles deixam esta vida, de acordo com ele, depois de terem “habitado o bom mundo de Deus, no qual a chama bruxuleante da bondade não foi completamente apagada”, eles entram em “um estado ex-humano, que não mais reflete seu Criador em qualquer sentido significativo”.

Como observa o salmista, os pecadores tornam-se como os ídolos que adoram (115.8). E, como aponta Wright, esse padrão desumanizante nos transforma em criaturas que “não estão apenas além da esperança, mas também além da compaixão”. Wright reforça seu ponto citando a observação de C. S. Lewis, em O Grande Divórcio, de que o Senhor no final proclamará aos pecadores impenitentes: “Seja feita a tua vontade”.

A fim de me manter íntegro sobre esse assunto, continuo defendendo o universalismo. Embora muitos dos que defendem o universalismo não façam nenhum esforço para conciliar a Bíblia com sua descrença no inferno, existem alguns argumentos que ficam dentro do âmbito do cristianismo, nos quais vale a pena prestar atenção.

O argumento mais recente e significativo é apresentado por David Bentley Hart, em seu livro That All Shall Be Saved: Heaven, Hell, and Universal Salvation [Todos devem ser salvos: céu, inferno e salvação universal], que despertou muita atenção. Alguns de meus amigos evangélicos o recomendaram como uma obra “fascinante” e “desafiadora”.

Hart discute o assunto em várias frentes, mas não consegui superar sua recusa em prestar atenção aos detalhes bíblicos. Tudo o que a Bíblia fornece, segundo ele, “são várias imagens fragmentárias e fantásticas, que podem ser tomadas de várias maneiras, organizadas de acordo com nossos preconceitos e expectativas, e declaradas literais, ou figurativas ou hiperbólicas, conforme ditam nossos desejos”. Em outras palavras, o inferno pode não ser o inferno. E, se não for, ninguém vai para lá, é claro. Tampouco Deus poderia ser levado tão a sério no que diz respeito a se vingar do mal.

Mas, e se pudermos chegar ao universalismo provando que toda pessoa, ao final, desejará Jesus como Senhor — que ninguém escolherá o inferno, quando vir Jesus? Este é um argumento muito mais forte do que simplesmente dizer que o Deus que amamos (a despeito do que ele mesmo disse) não condenaria as pessoas. Isso também é o que Hart argumenta. Ele diz que temos de perguntar se uma compreensão adequada da natureza humana nos permite acreditar que “essa rejeição desafiadora de Deus, por toda a eternidade, é de fato logicamente possível para qualquer ser racional”.

Este argumento em prol do universalismo depende de as pessoas serem sensatas, mais cedo ou mais tarde, o que as levaria à sua fé salvadora. Mas não há evidências de que toda pessoa se arrependerá ou será iluminada ao final.

Adolf Hitler se destaca como um exemplo de rejeição persistente e desafiadora. Os atos monstruosos pelos quais Hitler é responsável não o colocam além de qualquer reivindicação da misericórdia de Deus? Hart aborda diretamente esta questão, usando Hitler como seu principal exemplo de caso. Nenhum ser humano jamais poderia escolher voluntariamente, segundo palavras dele, “preencher os critérios necessários para condenar a si mesmo à miséria perpétua”.

O fato é que “o caráter até mesmo do pior [ser humano] entre nós é, em parte, produto de contingências externas”. Para seguir o argumento de Hart, teríamos de assumir que “em algum ponto, na história de cada alma, há momentos em que a pessoa perde um caminho melhor por acaso, ou por intervenções malignas exteriores, ou por desordens da mente interior”, segundo ele coloca.

E, então, para enfatizar o ponto que defende, ele observa que esses são precisamente os tipos de fatores em ação em um caso como o de Hitler, “em vez de qualquer perversidade intencional por parte da própria alma”.

Os atos horrendos de alguém como Hitler, que com toda certeza são “infinitamente maus em todos os sentidos objetivos”, ainda são “induzidos à ação por uma fome [ânsia] pelo Bem, [e] jamais poderiam, em perfeita clareza da mente, equiparar-se ao escopo niilista absoluto do mal que comete”. Por essa lógica, alguém como Hitler não poderia racionalmente “resistir ao amor de Deus de forma intencional por toda a eternidade”. Hart nos diz que está se baseando aqui em percepções da ortodoxia bizantina. Seu argumento aceita claramente a predileção bizantina pela filosofia de Platão.

Platão ensinava que, uma vez que o mal é a ausência do Bem, ninguém escolhe voluntariamente o mal. Essa perspectiva permite que Hart argumente que aquilo que poderíamos rotular, no caso de Hitler, como “perversidade intencional” é, na realidade, um estado de ignorância — devido a “contingências externas” que Hart listou.

Hart inclui a influência de “desordens da mente interior” como um dos fatores que poderiam ter impedido Hitler de compreender com clareza o Bem. O que Hart provavelmente tem em mente — em consonância com seu platonismo — são as maneiras pelas quais algumas das experiências passadas de Hitler ou sua química cerebral podem tê-lo impedido de enxergar os fatos com clareza. Ou talvez Hart pense que Hitler não conseguiu captar a verdade porque confiou em fontes não confiáveis para obter suas informações.

Aqueles que, como nós, não querem deixar a Bíblia de lado quando refletem sobre esses assuntos, não podem ignorar os extensos ensinamentos de Jesus, como os que estão em Mateus 25, sobre como alguns serão bem-vindos e outros excluídos, e que são acompanhados por sua advertência de que aqueles que desprezam os dons de Deus não apenas serão lançados nas trevas exteriores, mas também perderão o que receberam.

Também não podemos esquecer o que o apóstolo Paulo diz sobre a desobediência deliberada ao Bem: “a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, […] de forma que tais homens são indesculpáveis” (Romanos 1.18-20).

Já ministrei muitos cursos sobre os diálogos de Platão e mostrei a meus alunos esse ensinamento paulino de que as pessoas que negam a Deus são indesculpáveis. À luz disso, devemos rejeitar a insistência bizantina de que não é possível para um ser humano escolher o mal de forma consciente.

No entanto, a Bíblia de fato descreve um processo (não platônico) de rejeição do Bem sem aquilo que normalmente chamaríamos de obstinação. Podemos deixar de seguir, de maneiras aparentemente secundárias, a verdade que vemos, o que nos leva a nos afastar ainda mais do caminho da sabedoria. Nossa vida espiritual tem um caráter fundamentalmente direcional. Cada um de nós está em uma trajetória que segue em direção a Deus ou para longe dele. O Breve Catecismo de Westminster destaca esse fator em sua primeira pergunta e resposta, ao dizer que nosso “fim principal” como seres humanos é “glorificar a Deus e desfrutar dele para sempre”.

A graça redentora restaura nossa capacidade de buscar esse fim de novo. Nós, cristãos, estamos em processo de caminhar para o fim para o qual Deus nos criou e nos redimiu. Essa realidade é lindamente captada em 1João 3.2: “agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele [Cristo] se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é”.

Em termos teológicos clássicos, isso trata a santificação como processo e a glorificação como alvo. Quando o Espírito planta uma nova vida nas profundezas do ser de uma pessoa, a pessoa começa um processo de santificação, movendo-se em direção ao alvo escatológico de ser glorificada. Esse produto final é o que seremos quando Cristo voltar. No atual estágio de pré-glorificação de nossas jornadas, convivemos com o mistério de como seremos quando nosso alvo principal for alcançado.

Em “Peso de Glória”, Lewis capta o mistério de como — conforme a versão King James coloca — “ainda não se manifesta o que havemos de ser” na jornada cristã. Lewis observa que, embora tenhamos poucos problemas em pensar muito sobre nossa própria glória futura, não corremos o risco de refletir demais sobre a glória futura dos outros. Seria salutar, do ponto de vista espiritual, segundo Lewis, invertermos esse padrão: “A carga, o fardo ou o peso da glória de meu próximo deve ser colocado diariamente em minhas costas, uma carga tão pesada que somente com humildade se pode carregá-la, e que as costas dos soberbos não suportarão.”

É um bom exercício espiritual nos “lembrarmos que a pessoa mais enfadonha e desinteressante com quem você conversa pode ser uma criatura que, se um dia você a visse, ficaria agora fortemente tentado a adorar”. Esta é uma observação que nos connstrange e, compreensivelmente, é citada com frequência.

Mas há uma frase curta que conclui a observação de Lewis e que é citada com menos frequência. Ele imediatamente acrescenta que, além daqueles que serão maravilhosamente glorificados, existem alguns seres humanos que, se pudéssemos vislumbrá-los em seu estado final, testemunharíamos “um horror e uma corrupção iguais a que vocês hoje só encontram, quando encontram, nos pesadelos”. Para aqueles que caminham na direção oposta à da glorificação, também é verdade que “ainda não se manifesta” qual será o seu destino. A perdição final do inferno é real.

Não quero ser duro com meus amigos evangélicos que gostariam de ser universalistas. Eles em geral são motivados por uma preocupação com as almas dos entes queridos que não aceitaram a Cristo. Fico preocupado, porém, com o deslize teológico em nossa comunidade evangélica. Dizer à nossa geração mais jovem que gostaríamos que a Bíblia não fosse tão clara sobre a realidade do inferno é algo que poderia encorajá-los a simplesmente dar o passo que resistimos a dar.

Abraçar o universalismo significa uma perda teológica e espiritual. Sofremos uma perda em termos da glória das pessoas redimidas e da plenitude da glória divina. Em um futuro universalista, Deus varre para debaixo do tapete a degradação de suas criaturas. O banquete das bodas não está cheio de convidados vestidos com trajes de justiça, mas com pessoas que tentam fazer seus pecados se passarem por inevitáveis e, portanto, passíveis de serem postos de lado. E Deus assim permite. Encaro um presente como esse (e um futuro hipotético como esse) algo desanimador. Acho que está muito aquém do repúdio do mal, jubiloso e triunfante, que a Bíblia promete.

Embora eu não queira ser um universalista, oro pelos incrédulos a quem amo, assim como também oro por justiça para os que são vítimas da opressão. E faço isso com esperança, pois, como disse Abraão, em Gênesis 18.25: “Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?”

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

Richard Mouw serviu como presidente do Fuller Theological Seminary por 20 anos.

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