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Ajudadora: o sentido mais comumente dado a esta palavra é impreciso

Ela não significa o que em geral se acha que significa.

Christianity Today October 19, 2022
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons / Getty

Um estudo recente da LifeWay Research perguntou a pastores protestantes americanos se as mulheres em suas congregações tinham permissão para assumir seis papéis específicos de liderança.

As opiniões sobre a pregação [ser permitida a mulheres] foram, como previsto, divergentes, mas aproximadamente “9 em cada 10 pastores dizem que as mulheres podem ser ministras para crianças (94%), líderes de comitês (92%), ministras para adolescentes (89%) ou professoras de estudo bíblico para classes mistas de adultos (85% ) em suas igrejas”, de acordo com Aaron Earls. Uma proporção menor (64%) disse que as mulheres poderiam ser diaconisas.

A questão dos papéis em que a mulher pode servir na igreja “tem sido debatida há séculos e tem estudiosos bíblicos, de diferentes denominações, que chegam a diferentes conclusões sobre o que as Escrituras querem dizer [nesse aspecto]”, disse Scott McConnell, diretor executivo da Lifeway Research.

A primeira parte da Bíblia, em particular, desempenha um papel fundamental. Há gerações, os cristãos têm olhado para as histórias da criação, em Gênesis 1 a 3, como o paradigma para os papéis de gênero. “Conforme Gênesis 1–3, assim segue todo o debate bíblico”, diz Raymond C. Ortlund Jr.

A palavra “ajudadora”, em Gênesis 2.18, tem sido há muito tempo um ponto de inflexão nesses debates. Alguns a utilizam para argumentar que o principal papel da esposa é apoiar a liderança do marido. Outros a usam para justificar fortes convicções sobre submissão e serviço feminino. E outros ainda interpretam a ideia da forma mais suave possível, dizendo: “Deus fez o homem como um líder gracioso e a mulher como uma ajudadora essencial no casamento”.

Mas, e se tivermos entendido errado essa palavra? As conotações de subserviência em geral associadas a ela não se encontram em lugar nenhum nas Escrituras. E nosso equívoco de interpretação nos colocou em maus lençóis quanto à forma como vemos os papéis masculinos e femininos.

A compreensão mais precisa, ao menos na minha visão, é importante tanto para defensores do complementarismo quanto do igualitarismo. Todos têm algo a ganhar com um olhar mais atento e cuidadoso para o texto de Gênesis e o que ele diz: que uma “ajudadora” é, de fato, uma parceira, em toda a plenitude da palavra, na obra que Deus designou aos seres humanos.

Indiscutivelmente, a passagem mais importante para entender a condição de pessoa é Gênesis 1.26-28. Deus faz macho e fêmea como a coroa da criação. Somos designados como “imagem de Deus”, status que no antigo contexto do Oriente Próximo significa que os seres humanos representam fisicamente a presença de Deus na terra.

Em Gênesis 1, esse status é expresso por meio do governo — uma tarefa que é dada sem levar em conta o gênero. Homens e mulheres devem governar juntos, em nome de Deus, mantendo a ordem e assegurando o florescimento da criação.

Surpreendentemente, no entanto, os seres humanos não são instruídos a governar um ao outro. O trabalho em equipe é o modelo estabelecido.

É essencial ter em mente esse trabalho de base ao virarmos a página para Gênesis 2, passagem em que a criação dos seres humanos é recontada de modo mais próximo. O homem colocado no jardim de Deus recebe a tarefa de cultivá-lo e guardá-lo (Gênesis 2.15).

Mas aquele homem tinha um problema: ele estava só. Embora muitos animais povoassem o jardim, nenhum deles era adequado para companhia. Se o homem precisasse de alguém para receber ordens, poderia ter escolhido um boi ou uma mula. Se ele precisasse de uma sombra, poderia ter escolhido um cachorro. Mas nenhum deles poderia ajudá-lo, como um parceiro pleno, a cumprir suas responsabilidades, assim como nenhum deles poderia cobrar do homem a responsabilidade de manter os limites estabelecidos por Deus.

O que falta ao homem, então, é uma ‘ēzer kenegdô, “uma ajudadora que lhe corresponda”.

Entra em cena a mulher. E resolve o conflito do enredo de Gênesis 2, oferecendo ao homem o que nenhum animal no jardim poderia oferecer: um companheirismo no pleno sentido da palavra. Para alguns cristãos, esta seção oferece evidências para dois pressupostos centrais:

Primeiro: Deus designou os homens para liderar e ter autoridade sobre as mulheres.

Segundo: As mulheres são feitas para apoiar a liderança dos homens, seguindo-os.

No entanto, esses pressupostos tão comuns não resistem a um escrutínio. O ponto central da história não está primeiramente nas diferenças entre homem e mulher, ainda que isso tenha sua importância, mas em sua semelhança essencial e na igualdade de status de ambos perante Deus.

A mulher é como o homem de um jeito que nenhuma outra criatura é. Ela vem do próprio corpo dele — assim como todo homem, dali em diante, virá do corpo de uma mulher — o que sugere sua misteriosa conexão. Ela “lhe corresponde” (no hebraico, kenegdô, Gênesis 2.18, 20). E ela cumpre o papel de parceira para apoiar a tarefa que Deus designou para que o homem fizesse. Juntos eles povoarão a terra e juntos a governarão.

Então, por que chamá-la de “ajudadora” do homem? Isso não significa que ele é o chefe?

Nas versões em inglês de Gênesis 2.18 (NIV, NLT, ESV, NRSV, NASB) — assim como em muitas das versões em português (nas quais aparece a palavra “ajudadora” [como na ARF e na ARIB] ou sinônimos dela [como na ARA e na NAA, nas quais aparece “auxiliadora” ou na ARC, na qual aparece “adjutora]) —, a palavra “ajudadora” sugere que o homem assume a liderança e a mulher está presente em um papel de apoio. Ela é a recepcionista do CEO, a líder de torcida do quarterback ou a enfermeira do grande cirurgião.

Ao longo da história, as mulheres muitas vezes desempenharam papéis como esses e contribuíram muito ao fazê-lo. No entanto, este modelo deixa de fora um aspecto sobre a palavra hebraica ‘ēzer.

Que tipo de ajuda um ‘ēzer oferece? Quem são os ‘ēzers na Bíblia?

O restante do Antigo Testamento usa a palavra ‘ēzer de duas maneiras principais. Primeira, como uma referência a soldados aliados que auxiliam na batalha. (Veja, por exemplo, Josué 1.14 ou 1Crônicas 12.1-22.) Em segundo lugar, como uma referência a Deus no papel de ajudador de Israel. (Veja Gênesis 49.25; 2Crônicas 32.8; Salmos 10.14; Isaías 41.10-14.)

Claramente, nessas passagens, o “ajudador” não tem um papel subserviente. Se podemos afirmar alguma coisa é que seu sentido é o oposto disso. Deus supre o que falta a Israel. Como explica Mary Conway, estudiosa do Antigo Testamento, “a expressão kenegdô é melhor traduzida como ‘que lhe corresponda’, termo que implica competência e igualdade, e não subordinação ou inferioridade”.

De fato, a palavra ‘ēzer aparece como substantivo comum mais de 90 vezes no Antigo Testamento, mas nunca se refere àquilo que servos ou subordinados fazem por seus senhores.

Se você correr o risco de perder uma batalha, o que precisa é de um ‘ēzer — outro esquadrão de tropas ou uma intervenção divina — que se aproxime e reforce seu exército já quase sem forças.

O que isso significa para as mulheres? O homem não precisa de uma secretária, de uma ajudante nem de alguém para cumprir suas ordens. Em vez disso, ele precisa de uma parceira no sentido pleno da palavra, uma parceira na obra de governar a criação, de manter o jardim e de guardá-lo de intrusos. Ele precisa de uma mulher.

A palavra “ajudadora” não faz justiça ao papel que Deus designou para que as mulheres preenchessem em Gênesis 2. “Aliada necessária” ou “parceira essencial” podem ser as melhores maneiras de traduzir essa palavra.

Como membro de carteirinha do movimento evangelical, para mim é um mistério pensar em quantos segmentos de nossa comunidade enraizaram sua doutrina de papéis de gênero em Gênesis 3, em vez de em Gênesis 2. É verdade que Gênesis 3 apresenta hierarquia de gênero: “Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará” (Gênesis 3.16).

Mas essa dinâmica decorre das terríveis consequências da rebelião humana. Eva, em última análise, falhou em seu trabalho de ajudar Adão a cumprir sua missão de guardar o jardim. Um intruso astuto lançou dúvidas sobre a adequação do mandamento de Deus, e marido e mulher engoliram a mentira — com anzol, linha, chumbada e tudo. Como resultado, seu relacionamento com Deus foi severamente danificado, de mesma forma que o relacionamento entre eles e a terra que deveriam administrar.

Observe, porém, que a mulher foi totalmente responsabilizada por seu próprio pecado e o homem pelo dele. Se Eva fosse apenas uma ajudadora, Deus não a trataria como um agente moral em seu pleno direito — responsável por sua própria obediência ao mandamento de Deus. E se a culpa fosse somente dela, então, o homem não teria também sua parcela de culpa.

E aqui está o meu ponto: é um erro ver Gênesis 3 como um paradigma para relacionamentos humanos, em especial para o relacionamento homem-mulher. Este texto está descrevendo as consequências da rebelião humana, e não a intenção original de Deus.

Deus anuncia que a mulher terá dificuldades porque seu marido dominará, mas não porque as coisas deveriam ser assim, e sim porque o pecado humano os levou a um ponto de disfunção. Eles escolheram confiar na própria sabedoria, em vez de confiar na sabedoria de Deus, e esse erro não acabou bem.

Deus não desejava espinhos, cardos e dominação masculina, não mais do que um pai e uma mãe projetariam minuciosamente um cantinho do castigo para seus filhos antes mesmo de eles nascerem. Se quisermos resgatar a visão de Deus para a criação, precisamos nos debruçar sobre Gênesis 1 e 2, textos em que homens e mulheres permanecem lado a lado, como aliados na obra que Deus designou para nós.

Mas Adão não dá nome a Eva? E dar nome não implica em hierarquia? Não tenho a menor certeza de que dar nome implique em hierarquia. (Por exemplo, Hagar dá nome a Deus, em Gênesis 16.13.) Mas, mesmo que dar nome implicasse em hierarquia, como o professor de teologia Glenn Kreider aponta, Adão dá nome a Eva depois da queda, não antes (Gênesis 3.20).

Com tudo isso em mente, vamos reconsiderar os dois pressupostos comuns sobre o que esses capítulos ensinam:

Deus designou homens e mulheres para liderarem juntos.

As mulheres são feitas para apoiar a liderança dos homens, liderando com eles.

Não ouça o que não estou dizendo. Não estou negando que as mulheres devam ser servas. A Bíblia é muito clara quando diz que todos nós, independentemente do sexo, devemos assumir uma postura de servos em relação uns aos outros. Jesus era o servo de todos, e ele chama todos nós a imitá-lo.

Segundo o livro do Êxodo, o serviço é expressão essencial da vocação de Israel. Toda a história é enquadrada como uma grande mudança do fato de servir a faraó para servir a Yahweh (Êxodo 7.16).

Quando pensamos em nossas vidas nos dias de hoje, esse chamado não expirou. O problema surge quando lemos a palavra “serviço” e ela nos remete a “ajudadora”, em Gênesis 2.18, e nós a aplicamos de forma desigual com base no gênero. Isso não está lá em Gênesis 2. Dizer o contrário é violentar o texto.

Embora essas ideias não sejam a palavra final da Bíblia sobre os papéis de gênero, elas de fato fornecem um ponto importante para um início de conversa. E é um ponto muito útil por onde se começar.

Carmen Joy Imes é professora associada de Antigo Testamento na Talbot School of Theology da Biola University e autora de Bearing God s Name: Why Sinai Still Matters.

Partes deste artigo foram adaptadas de Being God’s Image: Why Creation Still Matters, de Carmen Joy Imes (InterVarsity Academic, 2023). Publicado com permissão.

Speaking Out é uma coluna que traz opiniões de pessoas convidadas pela Christianity Today e (ao contrário de um editorial) não representa necessariamente a opinião da revista.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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A força da luz do contrabandista de Deus: cristãos árabes choram a morte do irmão André

Líderes reunidos no encontro de evangélicos do Oriente Médio relembram conversas e livros do irmão André que moldaram seus ministérios.

Irmão André, fundador da missão Portas Abertas.

Irmão André, fundador da missão Portas Abertas.

Christianity Today October 13, 2022
Open Doors International

Quando chegou ao Oriente Médio, o “contrabandista de Deus” entrou pela porta da frente. Já conhecido por esconder Bíblias na traseira de seu Volkswagen, quando cruzava a Cortina de Ferro, o irmão André agora simplesmente as entregava a terroristas. Juntamente com sua devoção à igreja palestina, o fundador da missão Portas Abertas abalou o status quo cristão ocidental.

E os evangélicos árabes o amavam por isso.

“Ele tinha um coração que se comovia por aqueles que sofrem, pelos perseguidos e por aqueles geralmente considerados como os que são do outro lado, como o inimigo”, disse Jack Sara, coordenador geral da Aliança Evangélica para o Oriente Médio e o Norte da África. “Ele estava disposto a entrar em lugares difíceis e a conversar com pessoas difíceis, sem jamais comprometer a mensagem do evangelho.”

A notícia da morte de Anne van der Bijl, no dia 27 de setembro , aos 94 anos, abalou os participantes durante a segunda assembleia geral da Aliança Mundial Evangélica (WEA) na região árabe. David Rihani, presidente do Conselho Evangélico da Jordânia, relembrou as palavras de seu pai, que recebia com frequência o evangélico holandês.

“Este homem é um exemplo de um verdadeiro líder cristão”, dizia o primeiro pastor evangélico jordaniano ao filho. “Ele escreve livros, compartilha conhecimento e se preocupa com todos, sem discriminação.”

Rihani elogiou a cooperação ecumênica do irmão André. Desenvolvendo relacionamentos com líderes tradicionais católicos e ortodoxos da região, por décadas a Portas Abertas tem relatado a perseguição contra todas as denominações cristãs. E, à medida que a luta do grupo crescia em 60 países e passava a incluir a situação dos fieis de outras tradições religiosas, o contrabandista de Bíblias também ganhava o respeito da comunidade de direitos humanos em geral.

“Ele lutou incansavelmente pela liberdade religiosa, [foi] uma fonte de esperança para comunidades cristãs perseguidas em todo o mundo”, tuitou o embaixador-geral dos EUA, Rashad Hussain, um muçulmano. “Sou grato porque seu legado sobreviverá no trabalho de @OpenDoors [conta em inglês da missão Portas Abertas].”

Mas foram seus livros que a princípio construíram a fama mundial do irmão André. O contrabandista de Deus, escrito em 1967, vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzido para 35 idiomas, incluindo o árabe.

Irmão André, coautor da obra “O contrabandista de Deus”.Open Doors International
Irmão André, coautor da obra “O contrabandista de Deus”.

Maher Fouad, presidente da Sociedade Geral das Igrejas Evangélicas Nacionais do Iraque, foi mais tocado por E Deus mudou de ideia (1990). Chamando o irmão André de “santo abençoado”, ele se lembra de ter lido o livro em 1991, quando chefiava o ministério de oração da Igreja Evangélica Nacional de Bagdá.

“Esse livro me redirecionou completamente”, disse Maher. “Ele sabia como entrar pouco a pouco na presença de Deus, e só então encontrar respostas de oração.”

A publicação de Força da luz, em 2004, destacou para o mundo a crescente atenção que o irmão André dedicava ao mundo muçulmano. Aclamado por ser tão cativante quanto a obra O contrabandista de Deus, sua dependência da oração ficava evidente em sua preocupação prática com a igreja do Oriente Médio.

“Meu propósito é encorajar e fortalecer os crentes locais para serem uma Força da Luz” ou um exército da Luz, escreveu ele, “uma alternativa ao poderio militar”.

Ele próprio, porém, era o primeiro exemplo disto.

Em 1992, quando 415 militantes do Hamas foram expulsos por Israel, para a encosta de uma montanha em Marj al-Zohour, no sul do Líbano, irmão André viu ali uma oportunidade de colocar em prática Mateus 25. Ele doou tendas, alimentos e remédios.

“Não há terroristas — apenas pessoas que precisam de Jesus”, escreveu ele mais tarde em sua obra Força da Luz. “Enquanto enxergarmos qualquer pessoa — seja ela muçulmana, comunista, terrorista — como um inimigo, então, o amor de Deus não pode fluir através de nós para alcançá-la.”

O ativismo do irmão André desconcertava muitos cristãos — tanto crentes locais quanto apoiadores ocidentais. Ele frequentemente criticava o apoio dos evangélicos dos EUA às guerras no Afeganistão e no Iraque, vendo isso como falta de fé deles no poder das missões. Ele defendia os refugiados e orou por Osama bin Laden — cuja morte ele chamou de “assassinato”.

Ele também condenava os “assassinatos” de seus “amigos” em Gaza. Em 2004, os militares israelenses mataram o Sheikh Ahmad Yassin, fundador do Hamas, que sete anos antes havia recebido o fundador da missão Portas Abertas em sua casa. Apenas o evangelho do amor, como o irmão André consistentemente pregava, poderia ser a resposta para o impasse do conflito no Oriente Médio.

Irmão André e Sheikh Yassin, fundador do Hamas.Open Doors International
Irmão André e Sheikh Yassin, fundador do Hamas.

“A melhor maneira de ajudar Israel”, dizia ele, rebatendo seus críticos na obra Força da Luz, “é levando seus inimigos a Jesus Cristo”.

E fazendo isso com os crentes locais. Esforçando-se para que os cristãos locais escapassem de sua “mentalidade de vítima”, ele também ajudou no crescimento de pessoas e instituições que poderiam levar outros a Cristo.

“Agradecemos a Deus por colocar uma pessoa tão grandiosa à nossa frente, e nos convidar a imitá-lo”, disse Bassem Fekry, presidente da Comunidade de Evangélicos do Egito. “Ele está agora entre a grande nuvem de testemunhas.”

Fekry lembrou do irmão André contando suas histórias de contrabando de bíblias para uma multidão, na Igreja Salvação das Almas, que fica no denso bairro urbano de Shubra, no Cairo. Com seus 20 e poucos anos na época, o líder egípcio foi inspirado para uma vida de serviço.

“O irmão André estava sempre em busca de novos rebeldes e radicais dispostos a ir aos lugares mais sombrios da Terra, correndo risco de morrer, para mudar o mundo”, escreveu David Curry, CEO da missão Portas Abertas EUA, em uma homenagem esta semana. “E ele ficava grato por todos que se juntavam à sua causa.”

Jack Sara é um desses que se juntaram à causa. O irmão André visitava regularmente sua igreja em Jerusalém, quando Sara era um jovem crente, em 1992, e também mais tarde, quando passou a ser líder da mesma congregação. No meio tempo, porém, quando o fundador da missão Portas Abertas ouviu do pastor que crentes pobres haviam prometido enviar Jack Sara às Filipinas para estudar em um seminário, ele tirou todo o dinheiro que tinha no bolso — o que correspondia exatamente à quantia para completar o financiamento necessário.

Jack Sara só descobriu isso dois anos depois, quando perguntou de onde viera o dinheiro para seus estudos. Doações regulares continuaram a desenvolver o ministério do Bethlehem Bible College (BBC) — que dava continuidade ao controverso ministério palestino do holandês, por meio de conferências regulares chamadas Cristo no posto de fronteira .

“Cada cantinho do BBC tem o toque do irmão André”, disse Jack Sara, agora presidente da faculdade. “Ele se preocupava com o testemunho dos cristãos em nossa comunidade.”

Irmão André e Jack Sara, presidente do Bethlehem Bible College (BBC).Cortesia de Jack Sara
Irmão André e Jack Sara, presidente do Bethlehem Bible College (BBC).

Outro desses indivíduos é Salim Munayer, fundador do ministério Musalaha, com sede em Jerusalém. De volta do Seminário Fuller, em 1985, para ser o primeiro professor local contratado pelo BBC, sua visão de estimular a reconciliação centrada em Cristo entre judeus messiânicos e evangélicos palestinos — que mais tarde se expandiria para toda a sociedade na Terra Santa — recebeu seu primeiro financiamento da missão Portas Abertas.

Mais tarde, ele se juntou ao irmão André e ao presidente fundador do BBC, Bishara Awad, para uma tensa viagem de táxi por estradas secundárias até Hebrom. Sob o toque de recolher israelense na época, Munayer havia carregado uma caixa cheia de Bíblias e traduções para o árabe da obra O contrabandista de Deus, no segundo veículo locado. O primeiro, sabendo do destino, recusou-se a levá-los.

Ao chegarem à cidade da Cisjordânia, uma multidão de mais de 100 apoiadores do Hamas estava reunida no local. O líder local os acalmou, dizendo que o irmão André certa vez os socorreu em um momento de necessidade. Distribuindo livros e pregando sobre como o amor de Deus exige amar também o “irmão”, Munayer — que agora era o coordenador de rede da Rede de Paz e Reconciliação da Aliança Evangélica Mundial — lembrou como o holandês falava com clareza sobre a cruz.

“Ele foi uma das poucas pessoas que podia dizer aos líderes do Hamas: ‘Sou cristão e seguidor de Cristo, e ajudo pessoas que passam por aflição'”, disse ele. “Ele construiu um histórico de confiança entre eles.”

Irmão André e Yasser Arafat.Open Doors International
Irmão André e Yasser Arafat.

O irmão André conseguiu a permissão de Yasser Arafat para abrir uma livraria bíblica em Gaza, e para falar sobre o cristianismo na Universidade Islâmica do enclave costeiro.

Hanna Massad, que serviu 12 anos como pastor da Igreja Batista de Gaza, chamou o irmão André de “herói da fé”. Foi por seu cuidado genuíno que irmão André conquistou o direito de falar — e longe dele ser ingênuo sobre as realidades locais.

“Se não fôssemos até eles com o amor de Cristo”, lembra Massad da convicção do evangelista, “eles viriam até nós com suas armas”.

Mas o irmão André não estava interessado apenas em cultivar boas relações. A obra Cristãos secretos, publicada em 2007, tinha por subtítulo: O que acontece quando muçulmanos se convertem a Cristo.

Até o fim da vida, disse Curry, o irmão André manteve acesa essa paixão. Aos 90 anos, ele viajou para o Paquistão, à procura de conhecer líderes do Talibã. O homem que, antes da própria conversão, matou a tiros muçulmanos inocentes na Indonésia, quando serviu como soldado do exército holandês, estava determinado a demonstrar amor para essa geração de extremistas.

“O irmão André podia ver o que outros não podiam”, disse Munayer, “e com voz profética ele não apenas proclamou a verdade, mas a viveu, fielmente”.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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O que acontece quando perguntamos sobre sexo a milhares de mulheres evangélicas

A pesquisa de Sheila Gregoire, feita com cristãs ao longo de todo o espectro, corrige suposições prejudiciais e traz nova atenção sobre o prazer das mulheres no casamento.

Christianity Today October 11, 2022
Source Images: Envato Elements / LWA / Getty

Quando foi publicado no ano passado, o livro de Sheila Gregoire sobre casamento, The Great Sex Rescue: The Lies You've Been Taught and How to Recover What God Intended [Em defesa do sexo incrível], surgiu como um forte contraste, quando comparado com o que muitos cristãos aprenderam na igreja sobre sexo e casamento.

Com base em seu próprio estudo científico, que inclui uma pesquisa feita com 22 mil mulheres cristãs, a autora canadense afirma que o prazer sexual também é para as mulheres — e narra os danos causados ​​a mulheres e a homens, bem como a seus relacionamentos, quando as pessoas agem de acordo com visões distorcidas do sexo no casamento.

A crítica de Sheila Gregoire a posicionamentos anteriores de materiais cristãos colocou alguns na defensiva; para muitos, porém, é uma mudança revigorante de abordagem. Mulheres cristãs, de reformadas a defensoras mais progressistas, encontraram consolo e cura em seus ensinamentos — e alguns pastores, professores e conselheiros também estão começando a mudar sua abordagem, em consequência das descobertas de Gregoire.

“Acho que o trabalho de Sheila traz um equilíbrio muito necessário aos círculos conservadores da igreja”, disse Craig Flack, pastor de Findlay, Ohio, que tem usado The Great Sex Rescue em seus aconselhamentos pré e pós-matrimoniais. “Há tantas obras que ignoram amplamente o prazer feminino, e as pessoas se perguntam por que as mulheres não podem desfrutar da intimidade.”

Sheila Gregoire tem como alvo a ideia de que os homens “precisam” de sexo e que suas esposas estão lá para fornecê-lo — uma premissa que ela vê em livros como Love and Respect, The Act of Marriage e Every Man’s Battle.

Sua pesquisa mostrou que as mulheres cristãs foram ensinadas que os rapazes ultrapassariam os limites e eram elas as responsáveis ​​por impedi-los de ir longe demais. No casamento, elas viam que seu papel era nunca privar seus maridos de sexo, e que isso impedia que eles recorressem à pornografia. Na pesquisa de Gregoire, as mulheres cristãs que acreditavam nesses ensinamentos mostravam-se menos propensas a gostar de sexo, a falar abertamente com seus maridos sobre seus desejos sexuais ou a ter um parceiro que priorizasse seu prazer sexual.

Embora Flack não concorde com “todas as áreas tratadas no livro”, ele disse que mudou a maneira como aconselha casais, e passou a incorporar uma forma de tratar diretamente do prazer da esposa, da verdadeira intimidade e de “como isso traz alegria mútua no sexo”.

O sucesso da obra The Great Sex Rescue em grande parte se baseia em propaganda boca a boca, testemunhos pessoais e na própria discussão que Sheila Gregoire faz no Twitter. Ela se diz encorajada pelos avanços que fez individualmente, com pastores como Flack e com terapeutas cristãos, que aprenderam com a pesquisa dela e estão incorporando em seu trabalho com casais a abordagem que ela sugere.

Ela tem visto cristãos das mais variadas denominações se unirem contra o que ela vê como uma visão do sexo que é equivocada e focada nos homens, a qual tem sido pregada ou silenciosamente aceita entre os evangélicos, há anos.

Enquanto outros autores cristãos criticam os ensinamentos da cultura de pureza em geral, Sheila Gregoire nomeou deliberadamente os professores que ela acredita serem os responsáveis por perpetuar ideias prejudiciais sobre o sexo conjugal. “A única maneira de parar de ferir é fazer isso em público”, disse ela em entrevista à CT. “E se esses autores estivessem realmente comprometidos em servir as ovelhas, eles estariam abertos a críticas.”

Os colegas autores, porém, dizem que as citações e as apresentações que ela faz de seus ensinamentos estão fora de contexto. Focus on the Family (que publicou Love and Respect, de Emerson Eggerichs) divulgou um comunicado, dizendo que Sheila Gregoire “leu e julgou inteiramente mal” o livro. Shaunti Feldhahn, a quem Sheila menciona várias vezes em seu livro, divulgou uma declaração dizendo que as acusações contra ela eram “imprecisas” , além de serem “ataques calculados”.

Sheila disse anteriormente à CT como até mesmo seus primeiros livros estão sujeitos a críticas suas atualmente — ela retirou postagens antigas do blog, em decorrência do que aprendeu em sua pesquisa, e está comprometida a corrigir o curso de seu novo material.

Kevin Schulz, pastor da Irmandade Menonita (USMB), comprou o “Curso de Lua de Mel” de Sheila Gregoire para vários casais. O material de Gregoire, disse ele, é “um contraponto muito necessário ao ensino unilateral e tendencioso da igreja” do passado.

Sheila Gregoire está comprometida com uma ética sexual cristã, mas identifica áreas em que ela acredita que as Escrituras foram distorcidas de modo a prejudicar casamentos, a causar dor para as mulheres e a perpetuar abusos.

Por exemplo, Mateus 5.28 diz: “Qualquer que olhar para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração”. Quando dizemos a jovens rapazes que olhar para uma mulher é cobiçá-la, disse Gregoire, as mulheres se tornam imediatamente objetos sexuais. “Olhar é cobiçar?” pergunta Sheila em seu livro. Se a resposta for “não”, diz ela, isso muda muito as coisas.

Em sua pesquisa e em resposta ao seu livro, mulheres relataram experiências sexuais negativas, que variam de insatisfação e dor a abusos e traumas. Courtney Wright disse que ler The Great Sex Rescue abriu seus olhos para o abuso que sofreu em seu casamento anterior de nove anos, no qual ela era coagida a fazer sexo, estrangulada e tratada “como uma serva”.

“Eu redescobri minha força e a coragem para denunciar”, disse Wright à CT.

Rebecca Gregoire Lindenbach, coautora do livro junto com a epidemiologista Joanna Sawatsky, contou histórias de horror de mulheres como Wright, que sofreram abusos que apenas defendiam com sua própria maneira de pensar ou escutavam seus pastores lhe responderem: “Bem, isso tecnicamente não é algo que não é permitido na Bíblia.”

“Muitas pessoas com quem conversamos viviam nessas situações horríveis, em que seus maridos eram viciados em pornografia a ponto de forçá-las a encenar o que assistiam”, disse Lindenbach em entrevista. “E essas mulheres tinham as palavras de Shaunti [Feldhahn], de [Emerson] Eggerichs e de [Stephen] Arterburn ecoando na mente, dizendo: ‘Mas se eu conseguir satisfazer as necessidades do meu marido, talvez ele consiga se livrar do vício’”.

Alguns líderes cristãos, no entanto, acham que as preocupações pontuais de Sheila merecem resposta e amplificação. Sean McDowell é um orador teologicamente conservador e autor de um novo livro sobre sexualidade para adolescentes, Chasing Love. McDowell defendeu a obra de Gregoire, e até mesmo a convidou para falar em uma de suas aulas na Biola University.

“Acho que eles certamente devem interagir com essas ideias, pois acho que ela está levantando algumas questões justas e que são importantes”, disse McDowell sobre aqueles a quem Sheila Gregoire critica.

McDowell disse que foi atraído pela obra dela porque o desafiou a pensar sobre o sexo no casamento de uma nova maneira; ele respeita o modo como Sheila Gregoire sempre aponta os leitores de volta às Escrituras.

“Muito do ensino que tivemos sobre sexualidade é centrado no homem”, disse McDowell. “Acho que adotamos isso dentro da igreja de forma acrítica.”

Junto com a obra de Sheila Gregoire, McDowell vê um movimento positivo no mundo evangélico no que diz respeito ao ensino sobre sexo. Seu novo livro faz parte da renovação do movimento True Love Waits, da Lifeway.

O corretivo proposto por Sheila Gregoire faz parte de uma onda de autores que aderem a uma ética sexual cristã tradicional, mas estão oferecendo uma crítica ou alternativa à cultura da pureza, entre os quais encontram-se a autora de Talking Back to Purity Culture, Rachel Welcher, bem como Christopher Yuan, Sam Allberry e Nancy Pearcey.

Terapeutas e conselheiros cristãos também estão combatendo relacionamentos sexuais prejudiciais ou abusivos no casamento. Julie Hilton, uma assistente social licenciada da Geórgia, muitas vezes recomenda The Great Sex Rescue aos clientes.

“Eles dizem que se sentem reafirmados, compreendidos e até com raiva”, disse Hilton à CT. “Acredito que a obra dela está ajudando as mulheres a se curarem e incentivando casamentos saudáveis.”

Halie Howells, terapeuta de Illinois, chama de “monumental” a abordagem de Sheila Gregoire, e um dos únicos recursos desse tipo. “Ela está fornecendo uma nova linguagem, novas expectativas e uma nova conexão para os casais, ao mesmo tempo em que integra a fé”, disse Howells.

Esse ponto da excitação feminina quase sempre está ausente ou é subestimado nos livros cristãos sobre sexo, afirma Sheila Gregoire, enquanto o desejo sexual dos homens é o foco. “Quando sua temperatura estiver subindo, sua esposa pode ser como uma dose de metadona [droga usada no tratamento de desintoxicação por certas substâncias]”, escreveu Arterburn em uma linha que Sheila Gregoire tornou infame, da obra A Batalha de Todo Homem. Ela está preocupada com o fato de que sentimentos como esses objetifiquem as mulheres e as façam ignorar seus próprios desejos e prazer no relacionamento.

A pesquisa de Sheila descobriu que as mulheres cristãs relatam vaginismo, um espasmo muscular involuntário, numa proporção duas vezes maior do que a da população geral. Uma em cada cinco mulheres cristãs relatou ser portadora dessa condição que torna a penetração dolorosa. Suas descobertas sugerem que isso pode ser devido ao fato de que as mulheres cristãs, que veem a relação sexual como uma obrigação, perdem seu senso de autonomia no sexo e se tornam mais propensas a se forçar a praticá-lo, mesmo que seja doloroso.

Quando lancei uma chamada por mulheres que se identificam como “teologicamente conservadoras” e que se beneficiaram da obra de Gregoire, minha caixa de e-mails foi imediatamente inundada por centenas de mensagens de mulheres ansiosas por compartilhar suas histórias. Tanto as complementaristas quanto as defensoras da igualdade aplaudiram a mensagem principal de Sheila Gregoire de que os casais cristãos têm sido mal orientados sobre o propósito e os prazeres da intimidade sexual para marido e mulher.

“Acho que a obra de Sheila valida o que tantas mulheres sentem e sentiram por tantos anos, mas não conseguiam articular”, escreveu a leitora Talia Bastien Reha. Ela disse que aprecia o modo como a obra de Sheila Gregoire “aponta para o coração de Jesus”.

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O nacionalismo cristão não é capaz de salvar o mundo

Não se deixe enganar pelo secularismo disfarçado de uma espécie de Grande Comissão.

Christianity Today October 6, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia Commons

Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Assim como acontece com alguns norte-americanos, que reivindicam abertamente para si o rótulo de “nacionalismo cristão”, essa ideologia está avançando no mundo todo.

A quase fusão que está em curso, da Igreja Ortodoxa Russa com o governo autoritário de Vladimir Putin, ganhou as manchetes, quando o patriarca da igreja declarou que morrer na Ucrânia como parte do exército invasor de Putin “lava todos os pecados”. Ao mesmo tempo, outra líder populista, empregando a retórica nacionalista cristã, obteve vitória nas eleições da Itália.

Tendo isso em mente, os cristãos evangélicos do mundo talvez devam lembrar a si mesmos de que o nacionalismo cristão não é capaz de salvar o mundo — nem vai salvá-lo.

Ao analisar a vitória de Giorgia Meloni, o comentarista Damon Linker observou que o partido dela, Irmãos da Itália, — que tem raízes em remanescentes da Segunda Guerra Mundial, no movimento político promovido por Benito Mussolini, homem forte do fascismo — moderou significativamente sua retórica nos últimos anos. Alguns podem olhar para isso com suspeita, dado o discurso pós-eleitoral de Meloni, no qual ela culpou “especuladores financeiros” de roubarem os italianos de suas raízes e de sua identidade — termo que, ao longo da história, quase sempre foi equiparado a judeus.

Independentemente de quão iliberal o novo governo italiano possa ser, Linker chama a atenção para a demografia por trás dessa virada eleitoral, que tem implicações para o restante do mundo ocidental. O movimento populista, representado pelo partido que saiu triunfante, é cimentado com uma forma particular de religião, a saber, “aqueles que se declaram religiosos, mas não praticantes”.

Para algumas pessoas, essa categoria soa como algo do tipo “aqueles que se declaram empregados, mas não têm renda”. E, no entanto, como observa o historiador Adam Tooze, esse grupo não só é o maior segmento, como também a maioria da população italiana — 52%. São as pessoas, escreve Linker, “que tratam a religião como um símbolo ou marcador identitário sem de fato crer nela ou praticá-la”.

Linker adverte pessoas que são de centro-esquerda ou de centro-direita — assim como ele — sobre o fato de que, se não conseguirem reconquistar a classe trabalhadora, continuarão perdendo para os movimentos populistas e nacionalistas. Mas ele também defende que ninguém é capaz de vencer, se não conseguir apelar para “os religiosos nominais”.

Em termos de ciência política, Linker está correto, sem sombra de dúvida. E mesmo que a democracia e a estabilidade global fossem as únicas coisas em jogo, esse ainda seria um debate que vale a pena. Para os cristãos evangélicos, porém, há muito mais em jogo — a saber, está em jogo a que nos referimos quando falamos em “cristianismo”, para começo de conversa.

A expressão nacionalismo cristão refere-se ao uso de palavras, símbolos ou rituais cristãos como meio para reforçar uma identidade étnica ou nacional. Tal como acontece com qualquer outra ideologia, esta também existe ao longo de um espectro.

Na ponta (até agora) menos extremada estão pessoas que, da mesma forma que os líderes populistas na Itália, França e Alemanha, reivindicam o “cristianismo” como um aspecto-chave de sua identidade nacional ou étnica — e como uma forma de diferenciar seu grupo daqueles que definem como outsiders (muçulmanos, “globalistas” etc.). Na ponta mais extremada estão pessoas que fazem pronunciamentos teológicos explícitos como base para sustentar agressões iliberais autoritárias de cunho étnico e nacionalista — assim como fez o patriarca ortodoxo russo Kirill, ao tentar reprimir os protestos contra a guerra dizendo que “o sacrifício no curso do cumprimento do dever militar lava todos os pecados.”

Em termos de ordem mundial, um dos lados do espectro claramente causa danos mais imediatos. Os comentários de Kirill são semelhantes, se não idênticos, a clérigos muçulmanos jihadistas radicais dizendo a homens-bomba que, após a morte, serão recebidos por virgens no paraíso. Esse tipo de promessa pode não só motivar pessoas desesperadas a cometer atrocidades contra o testemunho de suas próprias consciências, mas pode também conferir autoridade inquestionável àqueles que ordenam tais atrocidades. Na verdade, nessa visão do líder autoritário, tal aliança entre autoridade religiosa e política parece conceder-lhe as “chaves do reino”, e quem for convocado na terra para esse reino está convocado para o céu.

Essa dinâmica não é novidade. No livro do Apocalipse, o poder político da Besta é sustentado pelo falso profeta, “que havia realizado os sinais miraculosos em nome dela, com os quais ele havia enganado os que receberam a marca da besta” (Apocalipse 19.20). A revelação, afinal, veio a João em meio a um Império Romano no qual os césares reivindicavam status divino para si mesmos.

Tal arrogância já seria ruim o bastante do ponto de vista sociológico; mas e se a Bíblia estiver certa sobre o inferno? E se o julgamento de Deus vier não apenas contra nações, mas também contra indivíduos? E se o pecado for definido como uma falta de conformidade não em relação a um grupo ou país, mas em relação à santidade de Deus? E se Jesus estiver certo, quando diz que “ninguém pode ver o reino de Deus, se não nascer de novo” (João 3.3)?

Se assim for, então, a afirmação de Kirill de que o militarismo nacionalista é capaz de salvar uma pessoa não só é manipuladora, mas também blasfema. Ela fortalece não apenas a injustiça nacional, mas também a condenação pessoal.

Além disso, a verdade do evangelho segundo Jesus significa que formas menos sangrentas de nacionalismo cristão também estão aquém do reino de Deus.

Na verdade, o argumento de todo o Novo Testamento é que as pessoas não podem comparecer perante Deus com base em solidariedade étnica, cultural ou mesmo moral (Lucas 3.8-9; Colossenses 2.16-22). Ninguém é justificado nem mesmo pelas obras da lei que foi dada por Deus, e muito menos pela carne, ou seja, por sua identidade étnica ou nacional temporal (Gálatas 3.15-16). Cada pessoa deve se unir a Cristo por arrependimento e fé pessoais — e não pelo fato de viver em uma cultura que se conforme a alguma definição exterior de “valores cristãos”.

Jesus nos ensinou que nada do que vem de fora pode contaminar uma pessoa; antes, é o que está dentro do coração de uma pessoa que a contamina (Marcos 7.14-23). Foi por isso que ele se afastou especificamente daqueles que queriam usar seu evangelho para libertação política (João 6.15) ou para prosperidade material (v. 26-27).

Apesar de se perceberem como oposição ao evangelho social de antigamente, os nacionalistas cristãos abraçam a mesmíssima visão do evangelho. Para a ala esquerda orientada para o evangelho social, o cristianismo existe para construir uma ordem social em sintonia com o progresso ascendente da humanidade. Para a direita nacionalista cristã, o cristianismo existe para construir uma ordem social em sintonia com a identidade nacional ou étnica. O evangelho é um meio para um utopismo prospectivo no primeiro caso e para uma nostalgia retrógrada no outro. O nacionalismo cristão é uma teologia da libertação para os brancos.

E esse não é o evangelho de Jesus Cristo.

O nacionalismo cristão é uma espécie de Grande Comissão ao contrário — na qual as nações procuram fazer discípulos de si mesmas, usando a autoridade de Jesus para batizar sua identidade nacional em nome do sangue, da terra e da ordem política.

O evangelho é um meio para nenhum outro fim senão a união com o Cristo crucificado e ressurreto, aquele que transcende e julga todos os grupos, identidades, nacionalidades e culturas.

O nacionalismo cristão pode muito bem “funcionar” no curto prazo ao cimentar laços de solidariedade cultural segundo a carne.

No entanto, sem derramamento de sangue não pode haver perdão de pecados. Sem o Espírito Santo não pode haver novidade de vida.

O nacionalismo cristão não pode fazer retroceder o secularismo, pois é apenas outra forma deste. Na verdade, é uma forma ainda mais virulenta de secularismo porque diz ser “cristão” algo que não pode comparecer perante o tribunal de Cristo.

O nacionalismo cristão não é capaz de salvar o mundo; ele não é capaz de salvar nem mesmo você.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today.

Traduzido por Marisa Lopes.

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Um guia para entender os ‘Anéis de Poder’, série da Amazon

O reino de Númenor criado por Tolkien é um conto de advertência para nós, hoje.

Christianity Today October 4, 2022
Copyright Amazon Studios / Photo by Ben Rothstein / Prime Video

Um demagogo carismático seduz um grandioso império, conquistando o poder com promessas de restaurar a glória do passado. Um povo trai seus princípios fundantes, apostatando da fé de seus antepassados para perseguir sonhos de imortalidade. Sua grande cidade oscila à beira da guerra civil. Um remanescente fiel é perseguido, como se fosse traidor, por uma multidão fanática e obcecada por destruição.

Isso não é uma sinopse dos profetas do Antigo Testamento nem das páginas do New York Times de ontem; estou falando de algumas das histórias que J. R. R. Tolkien nos conta em O Silmarillion — a bíblia dos mitos, lendas e tradições da Terra-média. Por muito tempo relegadas ao esquecimento, as histórias finalmente encontraram seu momento no centro das atenções.

A série da Amazon, O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder já está em nosso meio.

Supostamente o programa de televisão mais caro já produzido, o projeto de 1 bilhão de dólares é uma adaptação de uma parte muito pequena da obra de Tolkien. Na linha do tempo fictícia do autor, a história da Terra-média se desenrola ao longo de três eras. A maior parte de O Silmarillion diz respeito à Primeira Era. O livro e o filme mais famoso e amado da trilogia, O Senhor dos Anéis, cobre o fim da Terceira Era. A nova série de TV da Amazon se passa bem no meio.

Tolkien não escreveu quase nada sobre esse período. No entanto, o pouco que escreveu tem reverberações políticas. Nas breves 23 páginas de “Akallabêth”, um capítulo de O Silmarillion, Tolkien fala da glória do reino de Númenor e também de sua arrogância e loucura.

Em metade do capítulo seguinte, “Anéis de Poder”, Tolkien escreve sobre os anéis que levam esse nome e faz essencialmente uma descrição da Terceira Guerra Mundial — um conflito de proporções tão cataclísmicas e tão destrutivo que, embora os mocinhos vençam, o mundo jamais se recuperará.

Trata-se de uma narrativa extraordinária (e extraordinariamente relevante) — que fala de paixão política, ambição, manipulação e trapaças; intriga geopolítica; guerra religiosa; teodiceia; e apocalipse. É uma história sobre aqueles que chegam à liderança por honra, trapaças ou conquista; é também um conto de advertência sobre a destruição que pode ser provocada por homens e mulheres ambiciosos, quando recebem incríveis poderes.

Se você planeja assistir à série, aqui está o que precisa saber sobre aquilo em que a história se baseia e, se possível, quais lições vale a pena extrair dela.

O reino de Númenor

No texto original de Tolkien, os númenorianos eram “sábios e gloriosos”, altos e longevos, além de célebres marinheiros. Eles aprenderam a falar o élfico, a linguagem do aprendizado, e “produziram cartas, pergaminhos e livros” nos quais escreveram “muitas coisas de sabedoria e maravilhas no auge de seu reino”.

Númenor é o reino original, do qual Gondor — velho conhecido dos leitores e espectadores de O Senhor dos Anéis – é uma cópia. Númenor é o centro do império, enquanto Gondor é o reino no exílio.

Os homens e as mulheres que mais tarde formam Númenor são famosos por sua fidelidade aos deuses. Como recompensa, eles ganham um lar — um reino insular na costa da Terra-média — bem como uma era de ouro de prosperidade e sabedoria.

Em sua grandeza, os númenorianos visitam a Terra-média. Vendo a pobreza e a ignorância desse “mundo abandonado”, eles concedem aos homens menores a dádiva do imperialismo benevolente de Númenor — uma intervenção humanitária que visa melhorar sua condição e ajudar “na ordenação de sua vida”.

Númenor, então, é a visão idealizada de um grande poder que usa sua grandeza para fazer justiça.

Mas a grandeza do reino torna-se a fonte de sua tentação. Após milhares de anos de bem-aventurança e glória, alguns dos númenorianos começam a cobiçar a única coisa que não têm: “O desejo da vida eterna, de escapar da morte e do fim do prazer, cresceu forte entre eles; e sempre que seu poder e glória cresciam, sua inquietação aumentava”.

Eles caíram vítimas do clássico pecado da arrogância.

Com o povo dividido, a maioria dos númenorianos e de seus líderes se distanciam dos deuses, embora um pequeno remanescente permaneça fiel. O maior de seus reis está “tomado pelo desejo de poder ilimitado e do domínio exclusivo de sua vontade”.

Aqui, a história de Tolkien se desenrola no mesmo ritmo de 1 e 2Reis, livros bíblicos em que um povo cai porque seus líderes caem.

Númenor começa a esbanjar riqueza e poder conforme “aqueles que viveram se voltaram mais avidamente para prazeres e festas”. Em seu orgulho e hedonismo, o império se torna voraz, escreve Tolkien, “e agora desejavam riqueza e domínio” — uma vez que a vida eterna lhes fora negada — e “aparecem mais como senhores, mestres e coletores de tributos do que como auxiliares e professores. ”

Não é difícil perceber a intenção de Tolkien neste jogo de moralidade política. O Reino Unido, assim como Númenor, era um reino insular que se via como um império benevolente. Tolkien, porém, criou O Silmarillion no século 20, quando o império estava diminuindo a cada dia que passava, e a sociedade ocidental parecia cada vez mais materialista e secular.

Esta foi uma época de pessimismo para os ocidentais de elite como Tolkien, que viam um mundo cada vez mais hostil à herança cultural com a qual cresceram. Uma nostalgia pela glória do passado permeia sua obra.

A história de Sauron

Se isso fosse tudo, o “Akallabêth” não seria digno de nota — como também seria impróprio para ser adaptado para a TV por 1 bilhão de dólares e indigno das demais obras de Tolkien. Mas a imaginação católica de Tolkien conferiu-lhe mais discernimento psicológico e ambição espiritual.

A história não é um apelo neo-reacionário em prol de uma renovação da civilização ocidental ou do imperialismo britânico. É muito mais pessimista do que isso. Tolkien de fato tem um personagem na história que clama por renovação e grandeza da nação. No entanto — talvez por ainda estar com a Segunda Guerra Mundial fresca em sua memória — ele coloca esse apelo na boca de seu vilão.

Na história do declínio cultural e espiritual de Númenor entra em cena um demagogo trapaceiro: ninguém menos do que o próprio Sauron. Embora ele seja retratado como um olho flamejante no topo de sua torre, em O Senhor dos Anéis, este conto anterior, ele é um personagem que anda e fala com “astúcia de mente e de boca”, com “uma bajulação doce como mel […] sempre na ponta da língua.”

Dito de outra forma, Sauron é um influenciador profissional. Com a ajuda dos anéis de poder, ele se infiltra nos conselhos do rei por meio de promessas de “riqueza incontável […] de modo que o aumento de poder deles não tenha fim”.

Sauron joga habilmente com o medo que os númenorianos têm da morte, prometendo-lhes chegarem a alturas cada vez maiores de poder, ao tirar dos deuses o que lhes pertence por direito. O rei númenoriano se afasta “totalmente da lealdade a seus antepassados” e trata os númenorianos que permanecem fiéis como rebeldes, oferecendo-os como sacrifícios humanos no templo recém-construído de Sauron. O império númenoriano, que já era voraz, agora se torna brutal e violento.

Nesta parte da história, Tolkien parece falar de uma conexão natural entre poder, demagogia e violência. O grande poder atrai naturalmente o vigarista, que ganha influência bajulando a multidão e apelando para seus instintos básicos. No devido tempo, o poder aliado à demagogia sempre leva ao derramamento de sangue — na própria nação e no exterior.

As lições de Númenor

O final de “Akallabêth” é chocante e apocalíptico — contado mais como parábola ou mito do que como puramente uma ficção. Sauron convence o rei númenoriano a guerrear contra os deuses, a invadir sua morada e a arrancar deles a vida eterna pela força das armas.

O rei, que enlouquecera por causa de sua velhice e arrogância, conduz sua armada de guerra através do mar. Em resposta, os deuses rasgam o mar ao meio e afundam os navios da armada, a própria Númenor e metade da Terra-média. É o apocalipse contado pelos próprios condenados. (Eu desafio a Amazon a colocar isso na tela.)

A combinação de alusões pagãs e bíblicas — Atlântida e faraó, o Império Romano e os reinos de Israel e Judá — é típica de Tolkien. Ao recorrer a fontes díspares do cânone ocidental, ele empresta [à sua narrativa] um senso de peso histórico e de importância religiosa. Ele também pinta em uma tela tão vasta que a história soa importante — e trágica.

Nesta paisagem sombria, Tolkien oferece um raio de esperança. Em “Anéis de Poder” (o capítulo final de O Silmarillion), o remanescente fiel foge de Númenor antes de sua destruição, funda Gondor e lidera a última aliança entre elfos e homens em uma desesperada guerra final contra Sauron. (Para que tenham uma referência, esta é a grande batalha extraída do prólogo para a versão cinematográfica de O Senhor dos Anéis, e provavelmente será a cena final de Os Anéis de Poder daqui a cinco temporadas.)

Os mocinhos vencem, mas é tarde demais para que qualquer vitória seja digna desse nome. Sauron é derrubado, mas quase todos os heróis são mortos, o mundo está devastado e o anel de Sauron sobrevive.

Será que o esforço foi inútil? Nós sabemos o final da história — depois de um longo atraso, Sauron e seu anel são finalmente derrotados, mesmo que os fiéis númenorianos jamais vejam isso.

Aqui, então, está a lição final de Tolkien, e aquela que devemos ter em mente, quando enxergamos Os Anéis de Poder no contexto da igreja nos dias de hoje:

Em qualquer era de hedonismo, demagogia, ganância e violência (inclusive em nossa era), os remanescentes fiéis podem nunca chegar a ver sua vitória final ou os frutos de seu sacrifício. Mas eles continuam a lutar, mesmo assim, porque sabem que, no final da história, a providência justificará seus esforços. À luz disso, só nos resta perguntar se estaremos entre os remanescentes fiéis ou entre os condenados.

“É um conto justo, embora triste, assim como todos os contos da Terra-média”, Aragorn diz aos hobbits em A Sociedade do Anel.

Como um veterano da Primeira Guerra Mundial, Tolkien entendia tão profundamente a queda do mundo, a arrogância de homens e mulheres, e as tentações do poder que sabia bem que não deveria dar a qualquer de suas histórias um final feliz.

O brilhantismo de Peter Jackson foi permanecer fiel a Tolkien e terminar sua trilogia O Senhor dos Anéis mais como tragédia do que como fantasia. Quando a maioria do entretenimento comercial segue a demanda por resoluções plenas, é ousado contar uma história madura sobre um mundo caído que está sob julgamento, no qual todos os heróis são falhos e toda vitória terrena é condicional.

Também é inspirador, pois é realista, ainda que esteja povoado de elfos e magos. Quanto mais a série Os Anéis de Poder, da Amazon, se aproximar dessas verdades, maior será a sua contribuição — não apenas para o nosso entretenimento, mas para a nossa edificação.

Paul D. Miller é professor da Georgetown University e pesquisador da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado Por Marisa Lopes

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Books

Morre Irmão André, conhecido por contrabandear Bíblias para países comunistas

O fundador da missão Portas Abertas dizia que não era um “dublê evangélico”, mas um cristão fiel que seguia a liderança do Espírito.

Irmão André (Anne van der Bijl), conhecido como o homem que contrabandeava bíblias.

Irmão André (Anne van der Bijl), conhecido como o homem que contrabandeava bíblias.

Christianity Today September 28, 2022
Courtesy of Open Doors / edits by Mallory Rentsch

Anne van der Bijl, evangélico holandês conhecido por cristãos do mundo inteiro como Irmão André [Brother Andrew], o homem que contrabandeava Bíblias para países comunistas fechados ao evangelho, morreu aos 94 anos.

Van der Bijl tornou-se famoso como “contrabandista de Deus”, quando o relato em primeira pessoa de suas aventuras missionárias — ao passar por guardas de fronteira com Bíblias escondidas em seu Fusca azul, para igrejas clandestinas em países comunistas — foi publicado em 1967. God’ Smuggler [O Contrabandista de Deus], livro escrito com os jornalistas evangélicos John e Elizabeth Sherrill, foi publicado sob o seu codinome “Brother Andrew”. A obra vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzida para 35 idiomas.

O livro inspirou vários outros “contrabandistas missionários”, financiou o ministério Portas Abertas, fundado por van der Bilj, e chamou a atenção dos evangélicos para a situação dos crentes em países onde a fé e a prática cristãs eram consideradas crime. O missionário van der Bijl protestava, porém, dizendo que as pessoas tinham perdido o ponto central,quando faziam dele uma figura heróica e extraordinária.

“Eu não sou um dublê evangélico”, dizia ele. “Sou apenas um cara comum. O que eu fiz, qualquer um pode fazer.”

Ninguém sabe quantas Bíblias van der Bijl conseguiu fazer entrar em países como Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Alemanha Oriental, Bulgária e outros do bloco soviético, uma década antes do sucesso de God's Smuggler forçá-lo a assumir o papel de figura pública, como líder e arrecadador de recursos para a missão Portas Abertas. As estimativas chegaram a milhões. Uma piada holandesa popular, do final dos anos 1960, dizia: “Sabe o que os russos encontrarão, se chegarem primeiro à lua? O irmão André com um monte de Bíblias”.

Irmão AndréOpen Doors International
Irmão André

Van der Bijl, por sua vez, não mantinha registro da quantidade de Bíblias e não achava que o número exato fosse importante.

“Não me importo com estatísticas”, disse ele, em uma entrevista dada em 2005. “Nós não contamos […] Mas Deus é o contador perfeito. Ele sabe”.

Van der Bijl nasceu na Holanda, em 1928, filho de um ferreiro pobre e de uma mãe inválida. Ele tinha 12 anos, quando os militares alemães invadiram o país neutro, durante a Segunda Guerra Mundial; ele passou o período da ocupação, como contou a John e Elizabeth Sherrill, escondendo-se em canais holandeses, para evitar ser pressionado pelos soldados nazistas a servir o exército. Quando a fome atingiu o país, em 1944, van der Bijl, como tantos holandeses, comeu bulbos de tulipa para sobreviver.

Após a guerra, van der Bijl juntou-se ao exército holandês e foi enviado para a Indonésia como parte da força colonial que tentava reprimir a luta indonésia pela independência. Ele estava empolgado com a aventura, até que o tiroteio começou e ele precisou matar pessoas. Segundo seu próprio relato, van der Bijl esteve envolvido no massacre de uma aldeia indonésia, matando indiscriminadamente todos os que ali viviam.

Ele era assombrado, depois disso, pela visão de uma jovem mãe e um bebê, mortos pela mesma bala. Ele começou a usar um chapéu de palha ridículo quando estava na selva, na esperança de se tornar um alvo fácil e ser morto. Van der Bijl adotou o lema: “Seja esperto — perca o juízo”.

Ele foi baleado no tornozelo, e começou a ler uma Bíblia que sua mãe lhe dera durante sua convalescença. Depois que voltou para a Holanda, começou a frequentar compulsivamente a igreja e, no início de 1950, entregou-se a Deus.

“Não houve muita fé em minha oração”, disse van der Bijl. “Eu apenas disse: ‘Senhor, se me mostrares o caminho, eu o seguirei. Amém.’”

Van der Bijl dedicou sua vida ao ministério e, em 1953, foi para a Escócia estudar na escola missionária da Cruzada de Evangelização Mundial. Em entrevista para a Christianity Today, em 2013, ele recordou uma lição crítica de um oficial do Exército da Salvação, que ensinava sobre evangelismo de rua. O homem mais velho dizia que a maioria dos aspirantes a evangelistas desiste cedo demais, uma vez que o Espírito Santo só prepara o coração de uma pessoa em cada 1.000.

“Na mesma hora meu coração se revoltou. Eu disse a mim mesmo: ‘Que desperdício'”, recordou van der Bijl. “Por que ir e gastar sua energia com 999 pessoas que não iriam responder [ao evangelho]? Deus sabe disso, o diabo também sabe e ele se ri, pois, depois das primeiras 1.000 pessoas, eu desisto em desespero.”

Ele decidiu que pediria a Deus para guiá-lo até a única pessoa que estava pronta para o evangelho. Em vez de gastar seu tempo calculando e bolando estratégias, ele seguiria a orientação do Espírito.

Pouco tempo depois, ele sentiu Deus falar com ele por meio de Apocalipse 3.2: “Esteja atento! Fortaleça o que resta e que estava para morrer”. Van der Bijl entendeu que deveria apoiar a igreja em países controlados pelos comunistas. Em 1955, ele fez uma excursão, supervisionada pelo governo, pela Polônia, mas escapou de seu grupo para visitar igrejas clandestinas. Em uma segunda viagem à Tchecoslováquia, ele viu que as igrejas nos países comunistas precisavam de Bíblias.

“Prometi a Deus que, sempre que pudesse colocar as mãos em uma Bíblia, eu a levaria para aqueles seus filhos que estavam atrás de muros construídos por homens”, van der Bijl lembrou mais tarde, “[eu iria] para todo […] país em que Deus abrisse a porta por tempo suficiente para eu pudesse entrar.”

Irmão André na Iuguslávia.Open Doors International
Irmão André na Iuguslávia.

Em 1957, ele fez sua primeira viagem de contrabando pela fronteira de um país comunista, entrando na Iugoslávia com folhetos, Bíblias e porções de Bíblias escondidos em seu Fusca azul. Enquanto observava os guardas revistarem os carros à sua frente, ele fazia uma oração que mais tarde chamaria de “Oração do Contrabandista de Deus”:

“Senhor, na minha bagagem tenho Bíblias que quero levar para seus filhos que estão além desta fronteira. Quando estavas na Terra, fizeste olhos cegos enxergarem. Agora, eu oro para que tu tornes cegos olhos que enxergam. Não deixe que os guardas vejam aquelas coisas que tu não queres que eles vejam.”

Van der Bijl prosseguiu com mais viagens, após seu sucesso inicial na Iugoslávia; mais tarde, até contrabandeou Bíblias para a União Soviética. Ele recrutou outros cristãos para ajudá-lo, e eles desenvolveram estratégias para desviar a atenção dos guardas de fronteira e da polícia secreta. Às vezes, os contrabandistas viajavam em pares, disfarçados de casais em lua de mel. Outras vezes, eles usavam passagens pela fronteira fora da rota costumeira. Experimentavam diferentes maneiras de esconder as Escrituras em seus carros pequenos e discretos. Eles sempre seguiram a direção do Espírito, e ninguém nunca foi preso.

O contrabando de Bíblias foi criticado por várias organizações cristãs, incluindo a Baptist World Alliance, a Southern Baptist Foreign Mission Board e a American Bible Society. Eles consideravam uma ação perigosa — especialmente para os cristãos que viviam em países comunistas — e ineficaz. Histórias sensacionais eram boas para arrecadar dinheiro, alegavam os críticos, mas serviam para pouco mais do que isso.

Historiadores que escreveram sobre a Guerra Fria discutiram o impacto do contrabando de Bíblias nos regimes comunistas. Francis D. Raška escreve que foi “provavelmente significativo”, mas “evidências das façanhas são incertas ​​e propensas ao exagero e ao engrandecimento pessoal”. Há pelo menos alguma evidência de que a KGB manteve controle próximo da atividade de van der Bijl, e pode ter tido informantes infiltrados na rede do missionário, de acordo com Raška.

Irmão André.Open Doors International
Irmão André.

Após o sucesso do livro God's Smuggler, van der Bijl deixou o contrabando para outros cristãos menos famosos. Ele voltou sua atenção para a arrecadação de fundos para a missão Portas Abertas e para oportunidades de ministério em países muçulmanos. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, em 2001, e o Iraque, em 2003, ele se tornou um crítico aberto do apoio dos evangélicos americanos à guerra contra o terror. Os cristãos, disse ele, só poderiam colocar sua confiança na intervenção militar se tivessem perdido a fé em missões.

Quando falava para audiências de americanos, no início dos anos 2000, van der Bijl perguntava regularmente aos cristãos se eles haviam orado por Osama bin Laden, líder da Al-Qaeda. Quando as forças dos EUA mataram Bin Laden, em 2011, ele expressou tristeza.

“Acredito que todos podem ser alcançados [pelo evangelho]. Pessoas nunca são o inimigo — apenas o diabo é”, dizia van der Bijl. “Bin Laden estava na minha lista de oração. Eu queria conhecê-lo. Eu queria dizer a ele quem é que manda de verdade no mundo.”

Na hora em que ele morreu, o ministério fundado por van der Bijl estava ajudando cristãos em mais de 60 países. A missão Portas Abertas distribui 300 mil Bíblias e 1,5 milhão de livros cristãos, materiais de treinamento e manuais de discipulado todos os anos. O grupo também oferece socorro, ajuda humanitária, desenvolvimento comunitário e aconselhamento para traumas, enquanto defende cristãos perseguidos em todo o mundo.

Quando lhe perguntaram se ele tinha algum arrependimento sobre o trabalho de sua vida, van der Bijl disse: “Se eu pudesse viver tudo de novo, seria muito mais radical”.

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Books
Review

Entendendo o autismo pelo olhar de um autista

Em um relato sincero de alguém que vive dentro do espectro, um professor da Taylor University nos convida a ver suas “deficiências” como dádivas.

Christianity Today September 22, 2022
Illustration by Jianan Liu

A palavra tem poder e, muitas vezes, de maneiras sutis. Rótulos, por exemplo, nos ajudam a distinguir as coisas; aliás, uma parte importante da ciência consiste em criar rótulos para características recém-descobertas da realidade. Mas a rotulagem torna-se algo complicado na área das ciências humanas, principalmente quando estamos lidando com tipos diferentes de pessoas.

On the Spectrum: Autism, Faith, and the Gifts of Neurodiversity

On the Spectrum: Autism, Faith, and the Gifts of Neurodiversity

Brazos Press

256 pages

$12.59

Nunca esquecerei o conselho que recebi de um dos professores do meu programa de doutorado em psicologia: nunca devemos nos referir a pessoas com esquizofrenia como “esquizofrênicas”, disse ele, porque isso as desumaniza, pois parece reduzi-las ao seu transtorno. O conselho fez eco à minha crença cristã de que as pessoas com esquizofrenia são feitas à imagem de Deus.

Os rótulos, porém, são ainda mais poderosos no mundo de hoje. Para muitos, eles servem como marcadores identitários em uma paisagem política e cultural cada vez mais fluida. Daniel Bowman Jr., poeta e professor de inglês da Taylor University, ilustra essa dinâmica em sua obra On the Spectrum: Autism , Faith , and the Gifts of Neurodiversity [Sobre o espectro: autismo, fé e as dádivas da neurodiversidade]. Esse fascinante e comovente livro de “memória em ensaios”, escrito por um evangélico incomumente reflexivo e transparente, visa reformular nossa maneira de pensar sobre o autismo, sugerindo novos rótulos para descrevê-lo.

Bowman desafia certos estereótipos que muitas pessoas associam ao autismo, o que torna o livro extraordinariamente atraente, mesmo que possa fazer dele um porta-voz um tanto controverso da comunidade autista. No entanto, é precisamente o seu notável grau de autoconsciência que lhe permite oferecer algumas descrições impressionantes de como é ser autista.

Bowman compartilha de forma honesta sobre a ansiedade social, a “desregulamentação executiva”, a tendência de afastar os outros, os colapsos periódicos e a vergonha significativa. Esses relatos oferecem uma abertura valiosa para enxergarmos os tipos específicos de sofrimento sentidos por, ao menos, alguns daqueles que têm autismo.

Vestindo o rótulo

Os ensaios de Bowman giram em torno de alguns temas comuns. Estar no espectro autista, segundo ele argumenta, é uma forma legítima de ser humano que é tragicamente patologizada e incompreendida pela “maioria neurotípica” (por aqueles sem autismo). O livro convida os leitores a ouvir as vozes dos próprios autistas, a fim de que realmente entendam os autistas e o autismo “a partir de dentro”.

Bowman defende que a beleza, a arte e a literatura contribuem significativamente para o florescimento do ser humano, em especial quando surgem de fontes inesperadas, como os marginalizados. O livro, que exemplifica sua própria visão com palavras, experimenta diferentes gêneros textuais, inclusive algumas entrevistas e uma carta que ele escreveu a dois queridos mentores (embora, infelizmente, não tenha poemas!). Mas Bowman nos encanta com suas histórias, e estas formam a maior parte do livro.

Especialmente tocante é seu relato sobre o fato de perceber gradualmente que poderia ser autista (um diagnóstico que só foi confirmado por profissionais em 2015). Bowman sentiu um alívio palpável quando descobriu a verdade, pois esta dava sentido a padrões de sofrimento que ele havia tido ao longo da vida. Desde o diagnóstico, Bowman acolheu o autismo como parte central de sua identidade.

Acho que ele diria que isso o capacitou a ver o que há de bom em sua condição e a perceber o máximo possível do potencial que Deus lhe deu. A alegria que ele hoje irradia ao compartilhar sobre o autismo é algo contagiante, e deve encorajar outros como ele a compartilhar suas histórias pessoais.

Isso leva a uma das maiores surpresas do livro, pelo menos do meu ponto de vista: Bowman acolhe ativamente o rótulo de “autista”. Na verdade, ele até prefere usar o termo “autistas” em vez de “pessoas com autismo”, a designação mais geral (e, segundo eu pensava, mais respeitosa). Ele aprecia profundamente quando os amigos levam em consideração seu autismo, pois isso significa que eles o apoiam como autista.

Na visão de Bowman, esse tipo de reconhecimento direto contraria a forma dominante como abordamos o autismo hoje, a qual ele chama de “paradigma da patologia”. Do ponto de vista de Bowman, tendemos a enxergar as pessoas autistas através de uma lente redutora — um prisma objetivo e científico que amplia as capacidades físicas, sociais e emocionais que podem faltar aos autistas. Isso, segundo ele argumenta, reflete os preconceitos da maioria neurotípica, que vê o autismo meramente como um transtorno psicológico.

Dentro dessa mentalidade, o autismo envolve um conjunto de sintomas negativos, muitas vezes definidos e avaliados por observadores insensíveis, que não são autistas e que se sentem desconfortáveis quando expostos a eles. Também poderíamos chamá-lo de “paradigma científico”, dada sua origem no estudo empírico e no tratamento do autismo.

Com toda a probabilidade, uma forma ou outra do paradigma científico é o que ainda prevalece entre muitos dos que trabalham com pessoas autistas hoje (como seria o caso da maioria dos meus professores de psicologia). Bowman, porém, acredita que essa abordagem apenas exacerba a alienação que os autistas já tendem a sentir. Ao se concentrar nos problemas do autismo em vez de nas pessoas autistas, e ao se esforçar para administrar e minimizar os sintomas, esse paradigma pode se assemelhar a um esquema para controlar os autistas em benefício da maioria neurotípica.

Bowman, em contrapartida, prefere o “paradigma da neurodiversidade”, que parte da perspectiva dos autistas e vê o autismo como uma questão de diferença neurológica, e não uma anomalia. Para dar um exemplo, os defensores da neurodiversidade interpretariam o comportamento de se balançar (que os autistas chamam de “stimming”) como um mecanismo calmante e útil de enfrentamento. Bowman lamenta a falta de curiosidade e de empatia da maioria neurotípica para com os autistas.

Muitas das sugestões de Bowman ajudam a reverter padrões arraigados de preconceito e de ignorância. Outras, no entanto, repousam em terreno mais instável. Um professor contemporâneo que Bowman cita afirma que “o comportamento de pessoas [autistas] não é aleatório, desviante nem bizarro”. De acordo com outro, “O conceito de um ‘cérebro normal’ ou de uma ‘pessoa normal’ não tem mais validade científica objetiva do que [tem] o conceito de uma ‘raça superior’— e não serve a nenhum propósito melhor”.

Tais declarações podem ser interpretadas, de forma caridosa, como esforços para minar o estigma do autismo e combater os sentimentos de vergonha entre as pessoas que estão no espectro. Mas elas também parecem patentemente enganosas, em especial em relação às formas mais severas de autismo. O próprio Bowman se esforça bastante para ajudar os leitores a compreender os desafios singulares que ele enfrenta.

É importante lembrar que o transtorno do espectro autista, conforme a Associação Americana de Psiquiatria o define em seu manual de diagnóstico padrão, varia muito em suas manifestações.

Em uma ponta do espectro estão pessoas com “desempenho mais alto” e “necessidades de apoio menores”. No outro extremo estão as pessoas com “desempenho mais baixo” e “necessidades de apoio maiores”, uma categoria que abrange deficiências intelectuais graves (como, por exemplo, adultos com idade mental inferior a quatro anos), sérias dificuldades com linguagem e comunicação e padrões de comportamento autolesivo (como morder, bater com a cabeça, puxar o cabelo) que podem causar danos corporais permanentes.

A maioria dos pais de crianças que sofrem com necessidades de apoio maiores ficaria perplexa com apelos bem-intencionados à “neurodiversidade”. Eles são gratos pelos avanços terapêuticos e não têm problema em chamar o autismo de transtorno. Contudo, não parece ser uma questão de um “lado” estar certo e o outro estar errado. Dadas as grandes variações entre as pessoas no espectro, parece natural que alguns de seus defensores se concentrem em garantir diagnósticos precisos e tratamentos eficazes para transtornos graves, enquanto outros se concentrarão em confrontar os estereótipos e os estigmas que atrapalham alguns autistas.

Fraqueza que aperfeiçoa

A fé cristã desempenha um papel central (se não exclusivo) na história de Bowman. Ainda que ele possa relatar vários episódios em que se sentiu estigmatizado na igreja por causa de seu autismo, ele afirma prontamente, com Paulo, que o “poder [de Deus] se aperfeiçoa na fraqueza” (2Coríntios 12.9).

No entanto, a perspectiva cristã sobre o sofrimento e a fraqueza dos seres humanos contém riquezas que nem os pontos de vista neurodiversos nem os neurotípicos podem, isoladamente, alcançar. As Escrituras nos dizem que Cristo veio “não para os sãos”, mas para “os doentes” (Lucas 5.31). Ele prometeu descanso a “todos vocês que estão cansados ​​e sobrecarregados” (Mateus 11.28). Ele declarou que os “pobres de espírito” são bem-aventurados (Mateus 5.3), porque em seu reino muitos “primeiros serão os últimos, e os últimos serão primeiros” (Marcos 10.31).

Essa inversão de valores ancora a ideia cristã de redenção. Em Cristo, todas as nossas fraquezas comparativas tornam-se ocasiões para que sua glória brilhe ainda mais, e somos convidados a reinterpretá-las à luz de sua morte e sua ressurreição. Isso significa que, como cristãos, não negamos a fraqueza e aceitamos que o normal inclui certas capacidades físicas, mentais e emocionais. No entanto, também somos chamados a protestar, quando pessoas que possuem essas características são privilegiadas e colocadas acima de pessoas que não as possuem, especialmente quando esse tipo de hierarquia se manifesta dentro da igreja. E somos chamados a seguir o exemplo de Deus, exaltando os humildes e os desprezados. Como Paulo nos lembra: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes” (1Coríntios 1.27).

É fácil entender por que alguns são tentados a negar suas deficiências e seus transtornos, ou a revesti-los como formas diferentes de bem. Mas vê-los do ponto de vista de Deus nos ajuda a apreciar tanto os fardos reais que essa condição lhes impõe quanto a glória que ela revela.

Entrar em acordo com nossas deficiências e nossos transtornos leva tempo — talvez até uma vida inteira. E requer amor e apoio abundantes dos outros. Para mim, é neste ponto que o livro de Bowman mais me incomoda. Só porque acredito que todos somos feitos à imagem de Deus não significa que eu trate todos de acordo com essa verdade, ou que eu busque relacionamentos com essa verdade em mente. Fico um pouco envergonhado, portanto, em dizer que, apesar da minha formação psicológica (ou talvez por causa dela), nunca de fato levei em conta o valor de entender o mundo em que os autistas habitam.

Assim, tenho um sentimento de gratidão a Bowman, por ele ter atraído este leitor neurotípico para o mundo dele e ter desafiado alguns dos meus preconceitos. Graças ao livro dele, espero que, da próxima vez que encontrar um autista, eu seja um pouco mais curioso, relacional e compassivo.

Eric L. Johnson é professor de psicologia cristã na Houston Baptist University.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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Como a igreja deve responder à polarização?

10ª pergunta da entrevista da Christianity Today sobre as eleições brasileiras de 2022.

Christianity Today September 19, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source Image: Marcos Martinez Sanchez / Getty

Qual deve ser o posicionamento da igreja em tempos de polarização política como os que estamos vivendo?

Guilherme de Carvalho: Com ou sem polarização, a tarefa da igreja é sempre a mesma: dar testemunho apostólico do evangelho e de suas implicações para o mundo. As igrejas evangélicas precisam reencontrar a doutrina social cristã e o testemunho do evangelho. Essa é a única cura verdadeira para o nosso mundo fraturado.

Iza Vicente: Em tempos de polarização e violência política, a igreja deva ser um ente pacificador, disseminando a paz e cultivando relações cordiais, em uma comunhão que vá além das diferenças políticas. Como poderemos ser sal e luz, se apenas reproduzirmos entre nós as violências políticas que a sociedade já está vivenciando? Que diferença faremos neste mundo polarizado? Nossa grande diferença é reconciliar.

Ziel Machado: Devemos primeiro orar e discernir. Não estamos lidando simplesmente com forças políticas, mas com forças espirituais também. Assim, é importante discernir o mal travestido de bem. Não é porque algo está citando a Bíblia que aquilo é bíblico. O diabo tentou Jesus usando a Escritura, e continua usando a Escritura para nos tentar até hoje. Somente a igreja tem a Palavra e o Espírito de Deus que nos capacitam a discernir para além da aparência. Em um momento político de polarização, esse discernimento nos ajuda a entender muita coisa.

Os cristãos também precisam olhar para a cruz de Cristo. A nossa teologia da cruz nos ajuda a fugir dos falsos deuses do nosso tempo e abraçar o poder da cruz, poder que se entrega e serve. Assim, o povo de Deus jamais deveria se dividir por causa de questões ideológicas, nem comprometer a sua unidade conquistada na cruz por Cristo. Mesmo que haja pensamento contrário (e deve haver), isso não implica em desunião da igreja.

Quando a política traz desunião para a igreja, isso não é outra coisa senão Satanás usando a Escritura e dizeres religiosos para dividir a igreja. Portanto, a igreja precisa recuperar esse discernimento. Isso começa por um grande pedido de perdão para que Deus nos perdoe e, em sua infinita misericórdia, nos permita de novo ouvir a voz do bom pastor.

Clique aqui para voltar para o artigo principal.

Jacira Monteiro: Disse Jesus: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.” (Mateus 5.9). A igreja deveria estar falando de política para apontar soluções de como sermos bons agentes da paz em meio a um mundo tão polarizado.

Enquanto o mundo exibe cada vez mais as obras da carne, por meio de brigas, inimizades, dissensões, idolatrias políticas (Gálatas 5.19-21), a igreja deve demonstrar ainda mais os frutos do Espírito, a saber, o amor, a paz, a mansidão e a temperança (Gálatas 5.22). A igreja deve ser agente do amor e da reconciliação em meio a um mundo tão agressivo, polarizado e extremista.

Ricardo Barbosa: Vamos perseverar em oração e instruir o povo de Deus a reconhecer que é Jesus Cristo, o Senhor, que governa todas as coisas e é o único a quem devemos, acima de tudo e de todos, obediência. Toda vez que algum outro poder — sejam governos, poderes, ideologias — tentar assumir o domínio sobre nossas vidas, negaremos o governo do único Soberano da história.

Confira a biografia dos nossos entrevistados no artigo principal.

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Deveríamos levar a política para nossos púlpitos?

9ª pergunta da entrevista da Christianity Today sobre as eleições brasileiras de 2022.

Christianity Today September 19, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source Image: Wagner Meier / Stringer / Getty

O púlpito é um local adequado para discutir política?

Guilherme de Carvalho: O púlpito é um lugar apropriado para o ensino da doutrina social bíblica e, quando for o caso, dos fundamentos bíblicos para uma teologia política cristã. Mas para política partidária, de jeito nenhum! O crente precisa ter a segurança de que a Palavra de Deus reinará no púlpito de sua igreja. Pastores não deveriam dar o púlpito a candidatos ou a políticos, nem usar o púlpito para declarar voto ou para recomendar partidos políticos.

Iza Vicente: O púlpito é lugar para pregar o Evangelho. Isso não quer dizer, porém, que a igreja não possa fomentar espaços de discussão e reflexão sobre política, o que é bem diferente de levar candidatos ao altar para receber bênção ou oração, o que, muitas vezes, é na verdade um endosso. Estou exercendo um mandato político, mas, durante a campanha, jamais subi no púlpito da minha igreja para me colocar como a melhor opção para os evangélicos.

Clique aqui para voltar para o artigo principal.

Ziel Machado: O púlpito é o lugar para se alimentar o povo de Deus, para ensiná-lo a viver como Deus quer. Então, em algum momento, a política aparecerá no púlpito também, pois a Palavra de Deus se relaciona com toda a vida.

O problema não é a política em si, mas como a política aparece no púlpito. Púlpito não é palanque eleitoral. Por isso, toda vez que o púlpito for usado como palanque ficará comprometido. Quando isso acontece, o nome de Deus está sendo tomado em vão. Além disso, pode ser visto como crime pela justiça eleitoral.

Jacira Monteiro: A igreja é um local de discutir política, pois os cristãos estão na polis e todos somos seres políticos. Contudo, sobre aquilo que a Bíblia se cala, nós, cristãos, não devemos especular nem inventar. A Bíblia não é de esquerda nem de direita; a visão bíblica de sociedade é muito superior aos modelos humanos que possuímos. Dessa forma, devemos, sim, falar de política, mas não violando a consciência dos nossos irmãos e irmãs.

Ricardo Barbosa: O púlpito da igreja pertence à Palavra de Deus.

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A importância da liberdade de expressão para os cristãos

8ª pergunta da entrevista da Christianity Today sobre as eleições brasileiras de 2022.

Christianity Today September 19, 2022
Illustration by Rick Szuecs / Source Image: Bob Thomas / Getty

A liberdade de expressão deve ser uma questão importante para os evangélicos?

Guilherme de Carvalho: A liberdade de expressão é absolutamente prioritária. Ela é necessária para a livre pregação do evangelho. Mas o fato é que a liberdade de expressão está sob ameaça, não apenas por sofrer abuso, principalmente por parte de extremistas de direita, mas também pela oposição militante de movimentos autoritários de esquerda, interessados em censurar a crítica.

Iza Vicente: A liberdade de expressão deve, sim, ser um tema importante para os evangélicos. É preciso defendê-la e também entender que essa liberdade tem limites. Equilibrar liberdade e discursos é um desafio para todos, inclusive para os evangélicos.

Ziel Machado: A liberdade de expressão é um valor importante para qualquer sociedade democrática; portanto, é importante para evangélicos e não evangélicos.

A democracia é algo sempre instável, sempre no limiar de risco. Democracia demanda participação, mas participação consciente. Para apoiar este sistema de governo, os evangélicos precisam se educar para a vida democrática.

A maior contribuição da igreja para o bem comum é o evangelho, e as liberdades civis fundamentais são necessárias para a livre divulgação da Palavra de Deus. Há, claro, pessoas que consideram egoísmo colocar essas liberdades como prioridade política. Mas elas se esquecem de que, historicamente, os direitos sociais só se desenvolveram no Ocidente sobre a base das liberdades fundamentais. À luz da história e da lógica, nossa prioridade deve ser primeiro proteger os direitos individuais, antes de passar para a proteção dos direitos sociais.

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Jacira Monteiro: A liberdade de expressão é, sim, algo importante para os cristãos. Quem se preocupa com o bem-estar do seu próximo se preocupa com o fato de cada um poder se expressar livremente.

Contudo, o cristão sabe que a liberdade de expressão deve ser usada com responsabilidade e amor pelo próximo. Toda liberdade de expressão que é usada irresponsavelmente gera um pecado. Por vivermos em sociedade, tudo o que fazemos respinga nos outros. Por isso, devemos estar sempre abertos ao diálogo, a não demonizar os outros que pensam diferente de nós e a dar espaço para a pluralidade florescer. Liberdade de expressão com responsabilidade é algo importante para os cristãos.

Ricardo Barbosa: A liberdade de expressão é uma questão importante para todos, não só para os evangélicos. Não precisamos concordar com tudo ou com todos, mas é importante que todos tenham espaço para expressar seus pensamentos, ideias, valores sem, no entanto, querer impô-los. A liberdade de expressão aliada ao interesse pelo bem comum e a um bom argumento são as melhores matérias-primas para construir uma sociedade madura.

O problema é que existem muitas formas de limitar este tipo de liberdade. As autoridades públicas podem impor-lhe restrições, mas nós também podemos fazê-lo, por meio do desprezo, da intolerância, da incapacidade de reconhecer o simples fato de que somos diferentes. Precisamos preservar valores como o respeito, a tolerância e a diversidade.

Confira a biografia dos nossos entrevistados no artigo principal.

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