Church Life

Deus nos chama a dar com generosidade. Mas existe alguma prioridade? 

Um missionário reflete sobre quando devemos ajudar e quando devemos dizer “não” a um pedido de ajuda.

Christianity Today September 16, 2024
Ilustração de Mallory Rentsch Tlapek / Fonte da imagem: Getty

Há alguns anos, uma viúva procurou uma igreja em Uganda para pedir ajuda. Após discutir a situação dela, o conselho da igreja recomendou que lhe dessem alimentos. O pastor, no entanto, incentivou os líderes a primeiro descobrirem mais sobre a situação familiar dela.

Depois de conversar com os parentes, o conselho descobriu que os filhos da viúva estavam bem financeiramente, mas se recusavam a cuidar dela por causa de uma briga familiar. Então, o pastor organizou um encontro para tentar uma reconciliação. Os filhos perdoaram a mãe e decidiram cuidar dela novamente.

Se a igreja tivesse se apressado em ajudar, sem antes considerar a responsabilidade da família, a viúva poderia ter continuado a recorrer à igreja em busca de apoio constante, e a família talvez nunca tivesse feito as pazes.

Como missionário em Uganda, histórias como essa influenciaram profundamente minha abordagem em relação a ajudar os necessitados ao meu redor. Muitas vezes, eu me debati com questões como: “Com pedidos de ajuda financeira surgindo diariamente, a quem devo ajudar? Quando é aceitável dizer não?”

Uma prioridade óbvia é doar para onde for maior a necessidade. Todos concordamos com isso. Mas nosso mundo está cada vez mais interconectado. Posso simplesmente clicar em um botão para ajudar pessoas de quase qualquer lugar do mundo. Se a única orientação fosse a necessidade, eu me veria paralisado pela indecisão.

Mas as Escrituras me conduzem para além de simplesmente olhar para as maiores necessidades e me mostram que Deus me deu responsabilidade maior sobre pessoas específicas. Proponho olharmos para a ajuda financeira através de um conceito que chamo de “círculos de prioridade.” Ou seja, quando se trata de generosidade financeira, devo priorizar pessoas e comunidades que estão mais próximas de mim.

Acredito que o Novo Testamento revela que minha primeira preocupação deve ser cuidar da minha família ou daqueles com quem tenho uma relação de parentesco próxima. Como Paulo escreve em 1Timóteo 5.8: “Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente.”

Circles of Priority

Em seguida, em Gálatas 6.10, aprendemos que devemos priorizar também aqueles de quem estamos espiritualmente próximos. Paulo escreve: “Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé”. Isso deixa claro que, embora devamos amar todas as pessoas, temos uma responsabilidade especial de ajudar nossos irmãos e irmãs em Cristo.

Por fim, consideremos a parábola do bom samaritano, em Lucas 10.25-37. Nesta passagem, três pessoas veem um homem espancado à beira da estrada. O surpreendente é que o sacerdote e o levita não param para ajudar, mas o samaritano sim. Amar o próximo não significa amar apenas aqueles que são parecidos conosco. O samaritano fez exatamente o que todas as pessoas deveriam fazer: ajudar a pessoa que vê sofrendo fisicamente bem diante de seus olhos. Portanto, há também uma prioridade em cuidar das pessoas que estão geograficamente próximas a nós, aquelas com quem nos deparamos em nossa vida cotidiana.

Todos os cristãos ao redor do mundo devem priorizar ajudar aqueles que são próximos deles em termos relacionais, espirituais ou geográficos, além de dar clara prioridade a ajudar aquelas pessoas que tiverem as maiores necessidades.

Nossa responsabilidade diminui à medida que os círculos se afastam [de nós]. Mas, à medida que tivermos tempo e recursos, podemos, e de fato devemos tentar ajudar pessoas dos círculos mais distantes também. Por exemplo, no Novo Testamento, Paulo pede às igrejas que levantem uma oferta voluntária para cristãos necessitados que estavam distantes, em Jerusalém (1Coríntios 16.1-4).

Os círculos de prioridade me levaram a dar prioridade para ajudar os nossos amigos, vizinhos e à nossa igreja local, embora ocasionalmente eu ainda ajude pessoas com necessidades urgentes em lugares distantes de Uganda, por meio de doações a organizações internacionais. Essa estratégia me aliviou de um grande fardo. Não sou atormentado pela culpa por não ajudar os outros 47 milhões de ugandenses. Eu não sou Deus. Não tenho recursos nem tempo ilimitados. Ao contrário, posso ajudar com alegria e generosidade, sabendo que Deus usa cada um de nós de pequenas maneiras para que, juntos, tenhamos um grande impacto.

Por exemplo, quando uma pessoa que nunca conheci liga e diz: “Pastor, por favor, preciso que pague as mensalidades escolares dos meus filhos”, eu geralmente digo não, por causa de minhas limitações. Seguindo os princípios dos círculos de prioridade, quero priorizar a doação no contexto dos relacionamentos próximos, o que me permite entender as reais necessidades da pessoa, de modo que eu possa caminhar com ela por um longo período, ajudando periodicamente e incentivando-a, à medida que ela fizer determinadas mudanças. Isso não me impede de doar para organizações que trabalham com os pobres, pois muitas dessas organizações também priorizam relacionamentos de longo prazo.

Os círculos também orientam o ministério da igreja. Vejamos o exemplo da Covenant Reformed Church, em Soroti, Uganda. Esta igreja recebe cerca de 3 dólares por semana em ofertas e cerca de 1 dólar por semana para a cesta de caridade, a qual usam para ajudar pessoas pobres em sua igreja ou pessoas com deficiência. Esta igreja não deve se sentir culpada por não ajudar órfãos em outros países. Deus a está usando para cuidar das pessoas que estão próximas a eles.

Uma igreja americana com muitos recursos provavelmente pode ajudar pessoas em sua própria congregação, enquanto também apoia financeiramente organizações que ajudam os pobres em outros países. Ao mesmo tempo, esse princípio pode corrigir uma igreja que se concentrou apenas em doar para pessoas em outros países, enquanto ignora em grande parte os pobres que vivem na mesma cidade ou membros que estão passando por dificuldades financeiras.

Mas seguir esses círculos não elimina todas as decisões difíceis. Às vezes, será necessário eu me abster de atender necessidades menores em minha própria família ou comunidade para ajudar pessoas distantes que enfrentam situações de vida ou morte. É preciso sabedoria para discernir quando uma grande necessidade supera a proximidade relacional, espiritual ou geográfica.

Ao seguirmos os círculos de prioridade, devemos tomar cuidado para não abusar deles. É fácil para cristãos abastados justificarem, para si mesmos, que estão fazendo o suficiente porque estão focando em cuidar das necessidades dos seus círculos internos — suas famílias, sua igreja local e sua comunidade. Mas lembrem-se do que Jesus disse em Lucas 12.48: “A quem muito foi dado, muito será exigido”. No caso daqueles de nós que vêm de nações exorbitantemente ricas, somos mais do que capazes de doar generosamente para ajudar pessoas em extrema pobreza ao redor do mundo e, ao mesmo tempo, também cuidarmos das pessoas em nossos círculos internos mais próximos.

É possível também que cristãos abastados abusem desse conceito dos círculos de prioridade controlando quem eles admitem em seus círculos mais próximos. Por exemplo, podemos nos mudar para bairros de luxo, onde não teremos vizinhos materialmente pobres, ou escolher rotas para ir para o trabalho que evitem locais onde pessoas pedem esmolas. Também podemos escolher frequentar uma igreja local repleta de cristãos ricos, que nos fazem sentir confortáveis com a nossa riqueza. Muitos de nós, que somos cristãos mais ricos, devemos considerar como podemos trazer pessoas em situação de pobreza para nossos círculos mais próximos, ou como podemos escolher de forma mais intencional a comunidade em que vivemos e a igreja à qual pertencemos.

Os círculos de prioridade não apenas nos guiam na hora de discernir sobre a quem ajudar, mas também sobre como ajudar. Devo oferecer assistência de uma maneira que não destrua a responsabilidade, a mordomia ou administração [financeira] ou a generosidade dos outros. Devo intervir e oferecer ajuda quando a pessoa necessitada não puder ser devidamente assistida por seus círculos mais próximos. Foi exatamente isso que o pastor ugandense fez, quando verificou se a família da viúva estava disposta a cuidar dela.

De forma semelhante, esse princípio também se aplica às atividades de igrejas e organizações que buscam aliviar a pobreza. Elas precisam considerar os círculos da pessoa ou da comunidade que desejam ajudar.

No leste de Uganda, as pessoas da região de Karamoja costumavam atacar violentamente e roubar gado da tribo Iteso. Felizmente, a paz foi finalmente alcançada, após muitos anos de iniciativas do governo e da igreja. Logo depois, houve uma fome em Karamoja. Algumas igrejas da tribo Iteso se uniram para levar um caminhão de alimentos para Karamoja, como demonstração de perdão e amor.

No entanto, quando chegaram lá, ficaram chocados ao descobrir que os Estados Unidos já havia enviado muitas toneladas de alimentos de emergência. O esforço da igreja local ugandense tornou-se redundante e desnecessário, o que deixou esses cristãos profundamente decepcionados.

Embora os americanos possam genuinamente ter tido a melhor das intenções, eles não consideraram o que as pessoas mais próximas da área poderiam ter feito primeiro. E, sem querer, roubaram a bênção da generosidade da igreja ugandense, e minaram essa oportunidade de aprofundar a reconciliação entre as duas tribos.

As organizações devem ter o cuidado de permitir que os círculos mais próximos da pessoa ou da comunidade que necessita de ajuda sejam os primeiros a oferecer assistência. Na maioria das vezes, as pessoas mais próximas da situação são as que mais sabem sobre quais intervenções serão apropriadas. Mas um benefício adicional de incentivar a responsabilidade dos círculos mais próximos é a melhoria da capacidade e da administração das instituições que estão nesses círculos — de famílias, igrejas, escolas, organizações locais e estruturas governamentais. Isso resultará em um impacto duradouro na comunidade.

Pela minha observação como missionário em atuação na África, ignorar esse princípio é um dos erros mais comuns cometidos por igrejas e organizações internacionais. O resultado é a dependência.

Por exemplo, considere como algumas organizações podem se apressar em criar um orfanato em uma comunidade, mas sem antes considerar se os parentes dos órfãos poderiam adotar as crianças e cuidar delas com uma ajuda financeira extra. Ou pense em programas de apadrinhamento infantil, nos quais os custos escolares das crianças são totalmente cobertos, além de receberem doações como roupas ou creme dental. O resultado é que não é incomum, em Uganda, ouvir pais se dirigirem à organização que ajuda e patrocina seus filhos e dizerem: “Seu filho está doente, você precisa cuidar do seu filho” [como se a criança pertencesse à organização e não à família].

Em vez disso, a ajuda deveria ser dada de uma maneira que fortalecesse a responsabilidade dos pais de enviar seus filhos à escola. Seria melhor ajudar os pais a melhorar seus empregos e rendimentos, para que pudessem eles mesmos pagar as mensalidades escolares — ou descobrir primeiro o pouco que os pais podem pagar, de que maneira as igrejas locais também estão dispostas a ajudar e, só então, complementar seus esforços. Se, como resultado desse processo, a organização acabar tendo que dar menos dinheiro a cada família, então, ela poderá usar os recursos que sobraram para apoiar um número ainda maior de famílias e de outras comunidades. Não se trata de dar ou de ajudar menos. Trata-se de praticar a generosidade com sabedoria.

Antes de ajudar uma pessoa ou uma comunidade, sempre comece ouvindo. O que o governo local está fazendo para atender a essa necessidade? Há outras igrejas procurando ajudar as mesmas pessoas? Informe-se sobre os esforços das instituições locais, fazendo parcerias com elas, em vez de substituí-las no papel que Deus lhes deu. Há alegria e bênção no ato de dar; não devemos guardar toda a bênção só para nós!

Para finalizar, reflita sobre esta história do Níger. Em 2010, quase metade da população desse país da África Ocidental enfrentava um problema de insegurança alimentar. Uma organização cristã internacional doou grãos e trabalhou com um grupo cristão local para lhe vender, a um preço com desconto, esses grãos que seriam doados a pessoas necessitadas de várias comunidades.

No passado, a organização internacional havia fornecido grãos para indivíduos com deficiência ou doenças crônicas. Mas, desta vez, a equipe internacional desafiou o grupo local a considerar a possibilidade de arrecadar fundos localmente, a partir de suas próprias igrejas, para comprar os grãos que, então, seriam distribuídos gratuitamente.

A princípio, os membros do grupo estavam céticos, pois não conseguiam imaginar que houvesse algo que as igrejas pobres pudessem fazer por conta própria para ajudar as pessoas. Mas as igrejas doaram com generosidade e conseguiram comprar grãos para 98 pessoas dessas comunidades que tinham mais necessidade. No final, o grupo local agradeceu à organização por encorajar suas igrejas locais a participarem da doação.

“Foi um tremendo privilégio ajudar, saber que não estávamos apenas distribuindo a doação de outra pessoa, mas sim uma doação que veio dos nossos próprios bolsos e dos nossos próprios corações,” disse um membro da comunidade. “Todos na aldeia sabiam aquela ajuda veio de nós.”

Anthony Sytsma trabalha para a Resonate Global Mission em Uganda, onde orienta e ensina pastores e atua como facilitador no programa Helping Without Hurting in Africa [Ajudando sem ferir na África].

News

Morre Daniel Bourdanné, líder da IFES que trabalhou pela unidade na diversidade

O chadiano era líder do ministério estudantil e passou seus últimos anos fomentando publicações na África.

Christianity Today September 13, 2024
International Fellowship of Evangelical Students / Edições de Rick Szuecs

Morreu em 6 de setembro, aos 64 anos, em decorrência de um câncer, Daniel Bourdanné, cientista do Chade, país localizado na porção central da África. Ele inspirou jovens evangélicos ao redor do mundo inteiro como secretário-geral da IFES e foi um histórico defensor da publicação de livros cristãos na África.

Após anos de ministério com estudantes, Bourdanné se tornou secretário-geral da IFES (International Fellowship of Evangelical Students) em 2007, tendo servido nessa função até 2019. Um leitor ávido (e às vezes escritor), de 2018 até sua morte Bourdanné trabalhou com a Africa Speaks para fomentar a publicação de livros cristãos em todo o continente.

Bourdanné passou grande parte da vida em nações francófonas, entre elas Togo, Camarões e Costa do Marfim, antes de se mudar para Oxford, Inglaterra, quando se tornou secretário-geral da IFES. Na época de sua morte, ele estava morando em Swindon, Inglaterra.

“Deus me enviou ao mundo a partir deste continente, e para este mesmo continente ele me traz de volta, com o mundo, para que eu possa completar meu papel como missionário da igreja africana”, disse Bourdanné em seu discurso de despedida na África do Sul, em 2019, na Assembleia Mundial da IFES.

 “Daniel tinha orgulho de ser africano”, disse Tiémoko Coulibaly, secretário-geral da filial nacional da IFES no Mali. “Embora vivesse no Ocidente, seu coração permaneceu na África, o continente em que nasceu e do qual ele nunca desistiu.”

Filho de pastor, Bourdanné nasceu em 18 de outubro de 1959, em Pala, Mayo-Kebbi Ouest, no Chade. Aos 10 anos, ele perdeu o pai, cuja morte forçou Bourdanné a começar a trabalhar no campo, cortando lenha e cultivando hortaliças para sua mãe vender. Essas responsabilidades ficaram ainda mais pesadas por causa de uma guerra civil, que durou de 1965 a 1979 e tirou a vida de milhares.

Poucos meses antes do fim da guerra, Bourdanné ganhou uma bolsa para estudar ecologia animal na Université du Tchad. Ele, então, conquistou um diploma de bacharel em ciências naturais na Université de Lomé, Togo (antiga Université du Bénin).

Em 1983, Bourdanné mudou-se para Abidjan, na Costa do Marfim, para fazer um doutorado em ecologia animal. Em 1990, ele defendeu sua tese sobre milípedes, tornando-se posteriormente membro da International Society of Myriapodologists.

Enquanto estudava, Bourdanné começou a trabalhar como professor de biologia no ensino médio. No entanto, sua paixão por compartilhar o evangelho com estudantes havia sido despertada muito antes. “Aos 14 anos, em um estudo bíblico sobre Apocalipse 1, eu senti pela primeira vez a visão e a paixão de ver estudantes sendo salvos para o Senhor”, ele disse uma vez.

“Direta ou indiretamente, as universidades influenciam e guiam profundamente o futuro das sociedades humanas”, ele escreveu em um artigo sobre evangelismo estudantil, publicado no Dictionnaire de théologie pratique, em 2011. “Os estudantes estão frequentemente na vanguarda da mudança social ao redor do mundo. De fato, quando eles se movem juntos, motivados por sua energia, vitalidade, determinação, paixão, imaginação e criatividade, eles têm o poder de mover a sociedade.”

Em 1990, Bourdanné começou a trabalhar com a IFES como secretário itinerante; foi nomeado secretário regional da IFES Francophone Africa (GBUAF) em 1996.

Quando ele se tornou secretário-geral em 2007, sucedendo Lindsay Brown, que ocupava o cargo desde 1991, o movimento IFES tinha 60 anos e estava estabelecido em mais de 150 países. Ainda assim, durante seus 12 anos de mandato, o movimento cresceu significativamente, em especial na diversidade de sua liderança.

Sob Bourdanné, a IFES deu mais espaço a teólogos do Sul Global. Em 2007, ele nomeou Christy Jutare, das Filipinas, como a primeira secretária regional feminina da IFES a liderar a região da Eurásia. Em 2011, ele nomeou os dois primeiros representantes estudantis para o conselho diretivo da IFES. Em 2016, ele trouxe de volta um periódico global de reflexão teológica e missiológica (Word and World).

Quando perguntado sobre os destaques de sua gestão, Bourdanné respondeu que, entre eles, estavam ter testemunhado Deus “seguir o caminho incomum”, convidando pessoas inesperadas para se juntarem à caminhada com ele, bem como a alegria de ver Deus abrindo portas em contextos difíceis.

Ele também destacou um desafio fundamental. “Celebramos nossa unidade”, escreveu ele em seu e-mail de despedida para a IFES, “mas somos humanos; por isso, não é surpreendente que às vezes alguém tente promover sua agenda ou suas preferências pessoais. […] Por ter crescido em um contexto de guerra e conflito tribal, eu talvez fosse mais sensível a como isso poderia se tornar uma ameaça à unidade da IFES.”

Uma das maiores paixões de Bourdanné era possibilitar que a igreja global ouvisse mais os cristãos africanos. E fazia isso encorajando-os a não seguirem uma única escola de pensamento, mas a se tornarem vozes proeminentes no campo teológico.

“Alguns de nós podem ficar do lado de Billy Graham”, ele declarou no mesmo discurso de 2019. “Outros [alinham-se] com John Stott, ou com John Piper, e essas diferenças nos enriquecem mais do que nos dividem.” Mas ele acrescentou: “Entre esses três nomes, não há nenhum africano. Nem há ninguém da América Latina ou da Ásia.”

O amor de Bourdanné pelos estudantes só era rivalizado por seu amor pelos livros. O cientista possuía centenas, senão milhares deles, cuidadosamente guardados em três bibliotecas diferentes — uma, em sua casa, na Inglaterra; outra, em seu escritório, em Oxford; e a terceira, em uma residência na Costa do Marfim.

A certa altura, a paixão de Bourdanné pela palavra escrita o levou a começar uma revista. Ele e quatro amigos juntaram seus recursos para financiar a primeira edição e investir na publicação. A revista funcionou sem dívidas até o grupo se desfazer, e, exceto por uma doação única de 80 dólares de alguns missionários, eles nunca dependeram de ajuda externa.

Em 1995, Bourdanné se tornou o diretor da Presses bibliques africaines (Imprensa Bíblica Africana). Em 2018, ele se juntou ao conselho da Africa Speaks, onde continuou a servir até sua morte, trabalhando para promover o crescimento da indústria editorial cristã na África, encorajando escritores cristãos africanos a escreverem e a publicarem e divulgando seus livros.

Bourdanné acreditava que, para os cristãos africanos, os livros poderiam ser catalisadores para uma transformação. “A África não experimentará sua revolução editorial até que vençamos a batalha pelo amor aos livros”, ele escreveu. Por sua vez, essa paixão “contaminaria” a África positivamente, de dentro para fora, dizia ele, em uma metáfora inspirada pelas palavras de Jesus em Marcos 7 de que o que contamina (ou torna impura) uma pessoa é o que sai de dentro para fora.

Bourdanné tinha firme convicção de que a África precisava se preparar para seu próprio progresso, o que exigia, em sua opinião, uma mudança de mentalidade acompanhada de colaborações produtivas com o Ocidente.

“Qual é a utilidade do fervor dominical da África, se os demônios da corrupção, do conflito e do genocídio ressurgem na segunda-feira?”, pregou Bourdanné em Genebra, em 2006, para uma audiência de líderes evangélicos, principalmente europeus. “Qual é o sentido de nosso culto e de nossas orações na Europa, se nossas vidas ainda são movidas pela busca do maior lucro e se nossas igrejas continuam divididas?”

Ele convocou os cristãos europeus a lutarem por mudanças: “Nossas ações falam mais alto do que nossas palavras. As vítimas da injustiça devem ver o compromisso dos cristãos ocidentais nessa área.”

Embora estivesse mais envolvido em promover a literatura cristã na África do que em escrevê-la, foi autor de Ces évangéliques d’Afrique, qui sont-ils? (Quem são os evangélicos africanos?, 1998) e L’Évangile de la prospérité, une menace pour l’Église en Afrique (O evangelho da prosperidade, uma ameaça à igreja africana, 1999), entre outros.

Em 2018, a Calvin University concedeu a ele o Prêmio Abraham Kuyper de Excelência em Teologia Reformada e Vida Pública, destacando seu trabalho na área de publicação cristã francófona e seu ministério com a IFES.

“Há vinte e cinco anos, Daniel viu a necessidade de que estudantes cristãos fossem orientados, a partir de uma cosmovisão cristã, sobre vários tópicos que eram uma grande preocupação para eles; então, Daniel entrou em ação”, disse Jul Medenblik, presidente do Calvin Theological Seminary.

Timothée Joset, professor de missiologia na Faculté libre de théologie évangélique (FLTE), na França, e membro da IFES Global Resource Ministries, disse que seu amigo Bourdanné o apresentou a questões complexas enfrentadas pela África francófona e também pelas relações globais Norte-Sul.

 “Algo que também me impressionava era a sua resiliência. Ele nunca ficou ressentido, mesmo tendo sofrido muito racismo”, disse Joset, destacando um exemplo tão flagrante que o teólogo N.T. Wright até o mencionou em um sermão de Páscoa.

Depois que a IFES o nomeou para a função de secretário-geral, “o Alto Comissariado Britânico em Accra demorou para se manifestar sobre o pedido de residência de Daniel, e, em seguida, recusou-o com uma explicação sucinta”, disse Wright. “Daniel, então, pediu permissão para viajar para o Reino Unido com seu visto atual de visitante, e foi informado de que poderia. Mas, quando ele chegou, ficou detido por 22 horas, seus celulares foram apreendidos e ele foi despachado de volta para a África.”

Apesar desses incidentes, Bourdanné inspirava seus colegas com sua cortesia e humildade. Um de seus alunos lembra com carinho que Bourdanné lhe enviava livros pessoalmente, depois de o sistema postal inglês continuar confundindo seu endereço com um endereço de outro país. Outro colega internacional lembrou que ele se prontificava a sentar no chão, durante as conferências, para que outros tivessem uma cadeira para sentar.

Essa modéstia nunca impediu Bourdanné de desafiar seus colegas cristãos sobre questões com as quais ele se importava profundamente, como o evangelismo. Ele serviu ao Movimento de Lausanne como Diretor Adjunto Internacional para a África de Língua Francesa (21 países) até a conferência de Lausanne de 2010, na Cidade do Cabo, África do Sul. Quando deixou essa posição, foi nomeado para o conselho do Movimento de Lausanne.

“Podemos ter credibilidade, se proclamarmos um evangelho que ignora a exploração dos fracos pelos fortes? Podemos continuar a nos importar apenas com a salvação das almas africanas, enquanto fechamos os olhos para a sua situação social?”, ele perguntou em 2016. “De que forma o evangelho é boa-nova para comunidades que lutam para satisfazer suas necessidades básicas? Como podemos permanecer em silêncio diante das crescentes desigualdades sociais na África ou das questões ambientais? Proclamação e ação devem caminhar de mãos dadas.”

Bourdanné também é lembrado com carinho pelo pastor Ziel Machado, amigo e companheiro de ministério por muitos anos na IFES: “Meu coração está em um misto de tristeza, profunda gratidão e paz. […] Daniel partiu, se antecipou a mim, foi ao encontro do nosso amigo eterno. Deixou comigo este sentido de profunda reverência do lugar sagrado que é a amizade. Lugar no qual discernimos um espaço seguro para as decisões mais importantes que venhamos a tomar. Por um tempo, agora, nosso lugar de encontro será a minha memória, até o momento em que nosso reencontro será marcado pela eternidade”.

Daniel Bourdanné deixa a esposa Halymah, natural do Níger, e quatro filhos.

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Books

Nicarágua passa a tributar dízimos depois de fechar 1,5 mil igrejas

Centenas de ministérios evangélicos perdem seu status legal, enquanto o regime de Ortega confisca bens e impõe tributação de até 30% sobre as ofertas.

Apoiadores do presidente nicaraguense Daniel Ortega e da vice-presidente Rosario Murillo carregam cartazes com fotos de ambos durante uma marcha.

Christianity Today September 13, 2024
Oswaldo Rivas / Getty

6 de setembro, 2024
Pastores e líderes debatem sobre os impactos das ações do governo para fechar igrejas

Apenas algumas semanas após fechar 1.500 organizações e igrejas, o governo da Nicarágua suspendeu o status legal de mais 169 entidades, sendo 86 delas cristãs. Entre as entidades afetadas estão a Aliança Evangélica Nicaraguense, denominações como a Igreja Episcopal e a Igreja da Morávia, e congregações locais, incluindo a Primeira Igreja Batista de Manágua.

Em seu anúncio de 29 de agosto, o governo chamou as suspensões de necessárias devido à falta de apresentação de relatórios financeiros e às falhas das organizações em relatar informações sobre sua liderança. O governo também diz que as medidas são um esforço para combater a lavagem de dinheiro por parte de organizações sem fins lucrativos.

A suspensão do status legal não resultará no fechamento imediato das igrejas. Em uma declaração emitida em 31 de agosto, dois dias após as suspensões, o conselho provincial da Igreja da Morávia admitiu falhas em sua documentação financeira, culpando por isso uma mudança feita em 2019 nos regulamentos internos da igreja. No entanto, o conselho garantiu aos congregantes que as atividades religiosas “serão mantidas normalmente, sem quaisquer restrições por ninguém”. A denominação também disse que seus líderes se encontraram com autoridades regionais em 31 de agosto, para discutir o assunto. “Eles nos disseram que não havia intenção de suspender as atividades das congregações, nem os ativos da igreja seriam tocados”, afirmou.

A maioria das organizações afetadas são pequenas e não têm apoio formal de contadores profissionais, disse um pastor nicaraguense que pediu para permanecer anônimo.

Alguns cristãos continuam a apoiar a posição do governo. Sergio Tinoco, presidente da Federação Nicaraguense de Igrejas Evangélicas, que afirma representar mais de 10.000 congregações no país, disse que “a alegação de que as igrejas estão sendo fechadas é uma mentira”.

Ele acredita que o governo está apenas implementando “uma mudança no arcabouço legal para melhor auxiliar as igrejas”. Em sua opinião, o governo está cancelando esses registros porque as igrejas afetadas não mais serão registradas no Ministério do Interior.

Em vez disso, segundo Tinoco, o governo quer que as igrejas que administram escolas trabalhem com o Ministério da Educação, que as que administram um hospital denominacional se registrem no Ministério da Saúde e que as que administram orfanatos se registrem no Ministério da Família.

“Não haverá fechamentos [de igrejas]. [O propósito] é obter novos registros para trabalhar sob um novo modelo”, ele afirmou.

No entanto, o decreto provocou reações preocupadas de organizações que promovem a liberdade religiosa. A Christian Solidarity Worldwide (CSW; Solidariedade Cristã no Mundo), sediada no Reino Unido, condenou o cancelamento do status legal das organizações sem fins lucrativos e apelou à comunidade internacional que fizesse o mesmo.

“O cancelamento arbitrário de associações religiosas históricas e diversas está, em muitos casos, deixando seus membros sem ter onde se reunir para fins religiosos”, disse Anna Lee Stangl da CSW em uma declaração. A CSW também está “bastante preocupada” com o efeito que os fechamentos terão em escolas e hospitais administrados por essas organizações.

Em outro local, um acordo negociado entre os governos dos EUA e da Nicarágua levou à libertação de 135 presos políticos, entre os quais estão 11 pastores do ministério Mountain Gateway, sediado no Texas, que foram presos em dezembro do ano passado sob alegações de lavagem de dinheiro. Em março, o governo os condenou a 12 a 15 anos de prisão e multou cada um em 80 milhões de dólares.

Como condição para sua libertação, o governo enviou os presos libertados para a Guatemala. “Os Estados Unidos e nossos parceiros humanitários fornecerão temporariamente aos indivíduos comida, hospedagem e assistência médica, incluindo apoio psicológico, para ajudá-los a se recuperarem e a começarem o difícil trabalho de reconstruir suas vidas”, disseram os governos dos Estados Unidos e da Guatemala em uma declaração conjunta.

23 de agosto, 2024
nicarágua passa a tributar dízimos

Uma série de políticas recentemente implementadas pelo governo nicaraguense impactará significativamente as atividades de igrejas e ministérios que operam no país.

Vistas por especialistas em liberdade religiosa como uma tentativa de aumentar o controle estatal sobre as instituições religiosas, as medidas impõem tributos sobre dízimos e ofertas, ao mesmo tempo em que exigem que as organizações façam parcerias formais com o governo nicaraguense, para a implementação de projetos no país. O jornal local La Prensa estima que a tributação sobre dízimos possam chegar a 30%.

O presidente Daniel Ortega apresentou o projeto de lei, que foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Nacional, no dia 20 de agosto. O partido de Ortega, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, que começou nos anos 1970 como um grupo guerrilheiro, controla o legislativo.

As mudanças na lei favorecerão “o desenvolvimento de projetos de interesse para famílias e comunidades, dentro de um cenário de solidariedade e de adesão às leis nacionais”, disse a vice-presidente Rosario Murillo, esposa de Ortega.

O escopo da nova regulamentação legal tem sido vago. Tanto Murillo quanto uma declaração da Assembleia Nacional sobre o projeto de lei descreveram a legislação como algo “que visa fortalecer a transparência, a segurança jurídica, o respeito e a harmonia”. Uma consequência provável é que igrejas que recebem dinheiro do exterior — inclusive fundos enviados por suas próprias denominações — serão obrigadas a entrar em uma “alianza de asociación” (“aliança de parceria”) para acessar seus recursos.

No mesmo dia em que a legislação foi aprovada, o governo cancelou o status legal de 1,5 mil organizações, citando a falta de apresentação de relatórios financeiros adequados. Pela primeira vez, desde que o governo Ortega começou a reprimir as organizações sem fins lucrativos, quase metade das instituições afetadas inclui entidades com conexões evangélicas.

Isso abrange um grande número de ministérios e igrejas pentecostais, bem como aqueles que são administrados por batistas, metodistas, luteranos e presbiterianos. Embora poucas das instituições afetadas trabalhassem em âmbito nacional, muitas eram igrejas de bairro com menos de 100 membros.

A maioria dos outros grupos afetados é ligada à Igreja Católica. (O restante tinha seu foco voltado para as áreas do esporte ou da cultura). Como parte do decreto governamental, os bens dessas organizações serão transferidos para o governo nicaraguense.

“Igrejas, especialmente as menores, são lugares onde o senso de comunidade e a participação são muito fortes”, disse um porta-voz do Observatório da Liberdade Religiosa na América Latina (OLIRE), com sede na Holanda, que pediu para permanecer anônimo por razões de segurança. “O governo quer diminuir a importância dessa contribuição, para que apenas o Estado se destaque.”

No ano passado, esses requisitos de prestação de contas com relatórios financeiros levaram ao fechamento de dez igrejas pertencentes a um ministério com base no Texas, Mountain Gateway, e à prisão de 11 de seus pastores que serviam na Nicarágua. Semanas antes, o grupo havia liderado um evento evangelístico e de ajuda humanitária de dois dias, que reuniu mais de 300.000 pessoas.

No entanto, várias leis aprovadas nos últimos anos criaram padrões complexos para os relatórios financeiros das organizações não-governamentais, resultando em dificuldades de atender e se adequar a essas normas, de acordo com o The New York Times. Até mesmo a Igreja Católica enfrentou dificuldades.

Desde 2018, o governo nicaraguense fechou 3.390 organizações (10% delas estrangeiras) sob a acusação de “lavagem de dinheiro”, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2022, o governo fechou 20 igrejas evangélicas com base em acusações semelhantes.

A Christianity Today (CT) tentou entrar em contato com representantes de várias organizações cristãs na Nicarágua, incluindo algumas das que tiveram seu status cancelado. Quase todas se recusaram a comentar. Uma fonte descreveu a situação como “muito delicada”.

“Podemos até ser presos ou perder a cidadania por comentários críticos”, disse a pessoa.

No ano passado, o governo nicaraguense proibiu procissões e cultos ao ar livre, citando preocupações com a segurança após os protestos de 2018, que resultaram em tumultos e prisões. O governo também proibiu a exibição de símbolos, como cruzes ou a Estrela de Davi, em frente a residências particulares.

Os evangélicos representam quase 40% dos 7 milhões de habitantes da Nicarágua, o que faz do país o terceiro mais evangélico da América Latina. Muitos não veem problemas nas ações de Ortega.

“Isso não é exatamente perseguição”, disse Ismael Jara, pastor da Igreja Batista Sendero de Luz, em Ciudad Sandino. “Não estamos proibidos de sair às ruas e fazer evangelismo… Apenas grandes aglomerações não são permitidas devido à [instabilidade política que se seguiu aos protestos de 2018].”

Jara explicou que as regras mais rígidas para eventos fora das igrejas forçarão as congregações a serem mais organizadas ao planejar eventos. Ele também sugeriu que a perda dos registros das organizações pode até ser positiva para algumas igrejas, incentivando-as a se tornarem mais transparentes financeiramente, para atender às exigências de prestação de contas ao governo.

Além disso, Jara acredita que será saudável para os fiéis manterem uma distância maior da política. “Precisamos aprender a ser neutros e a respeitar as autoridades”, disse ele.

Em abril, após um grupo de especialistas apresentar um relatório sobre violações de direitos religiosos nas Nações Unidas, seis organizações evangélicas — entre elas três associações de igrejas, dois grupos denominacionais e um centro de estudos teológicos — publicaram cartas abertas reafirmando a existência de liberdade de culto no país. O bispo Aldolfo Sequeira, presidente do Centro Intereclesial de Estudos Teológicos e Sociais, assinou uma das cartas, declarando que o governo “respeita a liberdade de culto e as expressões de fé do povo cristão, permitindo que cada pessoa pratique a religião de sua escolha em todo o país.”

Na mesma época, a Convenção Batista da Nicarágua publicou uma declaração de apoio a Ortega e Murillo, que “sempre apoiaram nosso trabalho evangelístico e foram favoráveis a todas as nossas atividades.”

Mas os que estão fora do país estão menos convencidos disso.

Como esses fechamentos são “respaldados por um arcabouço legislativo”, a ameaça do governo à liberdade religiosa é “mais evidente e mais escandalosa” do que a repressão aos grupos religiosos pelos sandinistas, na década de 1980, disse o porta-voz da OLIRE.

Ao revogar registros e confiscar bens de organizações religiosas, o governo está forçando esses ministérios a se alinharem com grupos maiores, que estão dispostos a se submeter às condições impostas pelo governo, explicou um representante do poder legislativo que pediu para permanecer anônimo por razões de segurança. Sem um registro legal, elas não podem comprar terrenos nem construir igrejas.

Além disso, de acordo com a OLIRE, o governo impõe suas metas e políticas às organizações cristãs na tentativa de “eliminar qualquer presença de instituições que não comunguem da mesma orientação política”.

Em sua justificativa para a legislação aprovada, Ortega argumentou que as atividades das organizações não-governamentais resultaram em “uso discricionário de [programas e projetos] que não está ligado aos planos, estratégias e políticas nacionais, promovidos pelo nosso bom governo na luta contra a pobreza e pela segurança de nossa população.”

Em junho, a Comissão dos EUA sobre Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF) publicou um relatório destacando “condições de liberdade religiosa gravemente deterioradas na Nicarágua”. “O presidente Daniel Ortega e a vice-presidente Rosario Murillo estão usando leis sobre crimes cibernéticos, crimes financeiros, o registro legal para organizações sem fins lucrativos, a soberania e a autodeterminação para perseguir comunidades religiosas e defensores da liberdade religiosa”, afirmou o relatório.

A USCIRF recomendou que os EUA designassem a Nicarágua como um país de preocupação particular “por engajar-se em violações sistemáticas, contínuas e flagrantes da liberdade religiosa”, e sugeriu a imposição de sanções a agências e representantes do governo nicaraguense.

Até agora, a principal fonte de tensão entre os sandinistas e o setor religioso tem sido com a Igreja Católica. Em fevereiro do ano passado, o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, foi preso sob a acusação de conspiração e teve sua cidadania nicaraguense revogada, devido a sermões considerados contrários ao governo.

Álvarez ficou detido até janeiro deste ano, quando o governo o exilou para o Vaticano. A tentativa do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva de negociar sua libertação levou a um esfriamento nas relações entre Brasil e Nicarágua, culminando na expulsão dos embaixadores de ambos os países, no início de agosto.

Em agosto de 2023, a pedido do governo, a justiça nicaraguense ordenou o fechamento e o confisco dos bens da Universidade Centroamericana, uma instituição de ensino superior em Manágua que é administrada por jesuítas. As autoridades acusaram a universidade de abrigar atividades criminosas durante os protestos de 2018. A ação gerou protestos na comunidade acadêmica e no Vaticano.

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Uma geração de mães e pais ansiosos

Embora Jesus diga para não andarmos ansiosos, a cultura impõe aos pais outro padrão. E isso está prejudicando nossos filhos.

Christianity Today August 21, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Pexels

Enquanto minha filha se balançava 3 metros acima do chão, com as pernas em volta do tronco grosso e liso de uma videira, no meio da selva de Belize, lá estava eu, olhando para cima e calculando o quão longe ela estava do solo firme, de uma estrada asfaltada e do hospital mais próximo.

Nem preciso dizer que isso não estava na minha agenda do dia. Estávamos visitando uma pequena vila, em uma viagem missionária ao oeste de Belize, com amigos da nossa igreja que vêm todo ano para esse mesmo lugar há mais de uma década. Nossa tarefa era ajudar na escola da vila, dar apoio a projetos de desenvolvimento comunitário, compartilhar o amor de Jesus e aprofundar a amizade com pessoas que vivem em um contexto cultural totalmente diferente do nosso.

Foi essa última parte que colocou minha filha lá em cima daquela árvore. Fizemos uma caminhada matinal para ver algumas ruínas maias pouco conhecidas, mas fizemos um desvio de percurso para uma aventura na selva, sem cintos de segurança, liderados por um guia que estava de Crocs, Julio, nosso amigo local que claramente não achava preocupante deixar uma criança escalar livremente uma árvore.

De volta aos Estados Unidos, vivemos constantemente preocupados com nossos filhos. É fartamente documentado e geralmente aceito que smartphones, mídias sociais e a falta de independência e de brincar livremente na infância contribuem para criar o que o psicólogo social Jonathan Haidt apelidou de “geração ansiosa”. Mas, em meio a toda essa preocupação coletiva, tendemos a ignorar um problema intimamente relacionado e igualmente difundido: a ansiedade parental — que corre solta, descontrolada e é socialmente normalizada — e o estilo parental sufocante que ela gera.

Não há nada de novo debaixo do sol, e, até certo ponto, tenho certeza de que isso é verdade em relação às preocupações de todos os pais. Ao longo dos tempos, pais e mães temem perder seus filhos por causa de doenças, acidentes ou violência. Agora mesmo, enquanto me preocupo com os testes do time de vôlei e o nervosismo do primeiro dia de aula, há mães ao redor do mundo que se preocupam com bombas, balas, fome e frentes de batalha.

O problema dos pais que desfrutam de relativo conforto, como nós, parece ser o que fazemos com nossas preocupações. Nossas estratégias como pais acalmam com sucesso nossos próprios medos, mas isso não significa que elas atendam às necessidades de desenvolvimento de nossos filhos. Nós desempoderamos nossos filhos, em vez de ajudá-los a se tornarem adultos competentes e confiantes. Nós chamamos o excesso de preocupação de prova de amor e tratamos nossa busca por segurança e tranquilidade como chantilly em chocolate quente: se um pouco é bom, certamente quanto mais, melhor.

Dentre todas as divisões políticas e sociais, por exemplo, os pais estão entre os mais ferozes oponentes à proibição de smartphones nas escolas, apesar da montanha de evidências que nos diz que estes estão atrapalhando a educação. A justificativa dos pais? Segurança e tranquilidade. Os smartphones nos dão a capacidade antes inimaginável de saber onde nossos filhos estão a cada instante. Nós nos imaginamos resgatando-os de um tiroteio na escola — ou, de algo mais realista, como resgatá-los das consequências da lancheira que esqueceram.

E o problema não para nos celulares. Nós empilhamos precaução sobre precaução: uvas cortadas ao meio e cintos de cinco pontos dão lugar a rastreamento por AirTag e à verificação compulsiva de notas escolares. E com toda essa nossa mania de ficar em volta dos nossos filhos, consertando as coisas e nos preocupando, acidentalmente estamos dizendo a eles que o mundo é um lugar cheio de perigos com os quais eles não estão preparados para lidar sem a nossa ajuda onipresente.

Mas estamos errados sobre essa busca por segurança. Mais não é melhor. Temos uma geração de crianças ansiosas, em parte, porque somos uma geração de pais ansiosos. Por melhores que sejam as nossas intenções, prejudicamos essa geração porque nossos calibradores de risco estão quebrados. Nós lutamos para protegê-los de perigos raros e prestamos pouca atenção à cascata de consequências terríveis e muito mais prováveis ​​que a própria maneira como criamos nossos filhos gerou.

Em alguns casos, corrigir isso pode exigir ajuda profissional para controlar nossa própria ansiedade. Mas, para além do reino clínico, existe uma ansiedade mais comum, uma espécie de preocupação crônica que todos os pais modernos já viram, seja em nós mesmos ou em nossos pares. E, nesse aspecto, a maioria dos cristãos ocidentais não parece muito diferente do mundo.

Somos tão ansiosos quanto nossos vizinhos que não são cristãos, e a maneira como criamos nossos filhos é tão excessivamente cautelosa quanto a deles. Essa realidade deveria nos fazer parar para pensar em tudo o que Jesus disse sobre as aves do céu e os lírios do campo (Mateus 6.25-34). O que chamamos de cautela, Deus pode chamar de pecado: esse clamor por controle e essa recusa em confiar a Deus os filhos que ele mesmo nos confiou.

Essa questão também é diferente para os cristãos porque podemos reconhecer o que outros pais não conseguem: que, em sua essência, o desafio que enfrentamos é muito mais espiritual e existencial do que prático e de caráter procedimental.

Eu sei disso em primeira mão. Minha filha mais velha começou a oitava série em uma escola pública de ensino fundamental, este mês. Recebo e-mails sobre procedimentos de segurança da escola dela [em caso de ataques]. Todas as manhãs, eu a observo entrar na escola ao lado de todas aquelas crianças carregando em suas mochilas fardos invisíveis e sabe lá Deus mais o quê, e tenho que engolir meu medo. Tenho que espantar os pensamentos que invadem minha mente, sugerindo que esta pode ser a última vez que a verei.

À medida que minhas meninas crescem e suas vidas giram cada vez mais para fora da minha órbita, e para um mundo de desordem e caos, às vezes acordo no meio da noite com o coração disparado, sentindo como se eu estivesse à beira de um precipício, segurando as mãos das minhas filhas para que elas não caiam. Sob a luz racional do dia, sei perfeitamente que não há como planejar uma saída de emergência para todas as maneiras pelas quais a tragédia ou a adversidade pode alcançar nossa família. No entanto, nos momentos mais profundos dessas noites, parece que não consigo parar de tentar encontrar essas saídas.

E há duas coisas que podem ser verdade ao mesmo tempo: essas ansiedades que me atrapalham o sono são reais, profundas e, como cristãos, não precisamos ser consumidos por elas.

Nós — eu, na verdade — devo começar com uma confissão. A ilusão do controle é o mais encantador dos elixires, mas nunca irá me satisfazer. Devemos admitir que sabemos que isso é verdade, mas buscamos o controle de qualquer maneira. Talvez essa honestidade nos deixe mais prontos para nos voltarmos para Jesus.

“Neste mundo vocês terão aflições” (João 16.33). Em seu último sermão neste mundo, Jesus fez esta promessa a seus discípulos. Ela também vale para nós. Este não é o tipo de versículo que estampamos nas placas vendidas na livraria cristã local, mas talvez devesse ser. É por nossa conta e risco que desconsideramos as promessas de Deus sobre choro, luto e tristeza neste mundo.

Gastar tanto tempo e tanta preocupação tentando evitar problemas não é apenas uma atitude não realista; é uma rejeição do convite de Cristo para confiarmos na esperança que ele oferece, não importam as nossas circunstâncias. É uma rejeição do descanso [que encontramos] neste mesmo versículo: “Tenham bom ânimo!” Jesus ordena. “Eu venci o mundo.”

Mas como confiar e ter coragem? Devemos associar nossa confissão a um arrependimento real. Devemos nos render e encarar cada dia, todos os dias, aconteça o que acontecer, com a confiança dos pequeninos que sabem que seu Pai dá boas dádivas (Lucas 11.13).

Esta é a primeira lição sobre criação de filhos na vida de Jesus, que nos é dada na oração que Maria fez, ao ouvir que ela daria à luz o Filho de Deus: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lucas 1.38, NRSV). Esta é uma “verdadeira oração de indiferença”, diz a pastora e escritora Ruth Haley Barton, na qual Maria demonstra uma “profunda prontidão para deixar de lado suas preocupações pessoais, a fim de participar da vontade de Deus segundo esta se desenrolava na história humana”.

Esse tipo de santa indiferença não significa um falta de cuidado indiferente, mas sim uma disposição para aceitar a vontade de Deus em nossa vida. O termo remonta a Inácio de Loyola, teólogo do século 16, mas o conceito tem profundas raízes bíblicas. Nós o vemos na renúncia de Ana ao filho Samuel, no templo (1Samuel 1.28) e em Jesus, no Jardim do Getsêmani (Mateus 26.39). Como Barton aconselha, às vezes uma oração de indiferença deve começar com uma oração por indiferença, pedindo a Deus que nos ajude a afrouxar nosso controle sobre o que queremos segurar com tanta força.

Em Belize, ouvi a voz calma de Júlio, enquanto ele guiava a descida da minha filha pelo tronco da videira. “Solte”, ele disse, encorajando-a a deslizar pela videira, embora ela ainda não conseguisse ver onde pousaria os pés. Foi como se eu tivesse sido subitamente despertada pelas palavras dele. Solte. Solte. Solte.

Não foi Júlio quem expôs minha filha a riscos e preocupações desmedidos. Fui eu — ao dar a ela uma vida de experiências selecionadas e de responsabilidades limitadas, ao trocar suas aventuras da vida real por aventuras online, ao criar o hábito de ficar em volta dela todos os dias com minha ajuda maternal e meus lembretes quase constantes para ela ter cuidado. Querido Jesus, ajuda-me a soltá-la.

Observando aqueles dois, percebi que a melhor coisa que eu poderia fazer no momento era controlar minha própria energia nervosa. E quando comparo aquele momento com a vida em casa, fico cada vez mais convencida de que é isso que nossos filhos precisam de nós. Pois, quando minha filha estava de novo com os pés firmemente plantados no chão, vi algo novo brilhar em seus olhos. Foi uma centelha de realização e de confiança, pensei comigo mesma, depois que ela colocou em prática a confiança que estou orando tanto para aprender.

Carrie McKean é uma escritora que mora no oeste do Texas, cujo trabalho apareceu no The New York Times, The Atlantic e na revista Texas Monthly. Você pode encontrá-la em carriemckean.com.

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N.T. Wright: O que Jesus diria aos poderosos hoje?

Como seu novo livro, escrito em coautoria com Michael F. Bird, chama os cristãos a atuarem na esfera política.

Christianity Today August 20, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Wikimedia Commons

Em um ano em que mais de 50 países estão indo às urnas — e em que metade dessas votações podem alterar significativamente a geopolítica — o lançamento de Jesus and the Powers [Jesus e os poderes] não foi mero acaso.

Há alguns anos, N. T. Wright (autor de Surprised by Hope [Surpreendido pela esperança]) e Michael F. Bird (autor de Jesus Among the Gods [Jesus entre os deuses]) — que já haviam trabalhado em colaboração na obra The New Testament in Its World [O Novo Testamento em seu próprio mundo] — perceberam que faltava para os cristãos uma orientação bíblica clara sobre como devem se engajar na política, e decidiram fazer algo a respeito.

“Nós dois tínhamos a sensação de que não foi de fato ensinada uma visão cristã da política para a maioria dos cristãos hoje em dia”, disse Wright. “Até o século 18, havia muito pensamento político cristão, algo que ignoramos nos últimos 200 a 300 anos — e é hora de trazermos isso de volta.”

A “porta de entrada” para a teologia política, segundo Wright, é a ideia de que, até a volta de Cristo, “Deus quer que os seres humanos estejam no comando”. E embora, de acordo com as Escrituras, todos os poderes políticos tenham de certo modo sido “ordenados por Deus”, ele afirma que os cristãos são chamados a “assumir a liderança” em cobrar e responsabilizar aqueles que estão no poder.

“A igreja foi projetada para ser o modelo funcional em pequena escala da nova criação, para apresentar ao mundo um símbolo — um sinal eficaz do que Deus prometeu fazer pelo mundo. Assim, a igreja deve encorajar o mundo a dizer: ‘Olha, é assim que a comunidade humana deve ser. É assim que se faz.’”

E, à medida que a igreja global se torna “uma comunidade que adora o único Deus e pratica a justiça e a misericórdia no mundo”, isso é um “sinal para os césares do mundo de que Jesus é o Senhor, e não eles” e um “sinal para os principados e potestades de que esta é a maneira [correta] de ser humano”.

Em uma entrevista à Christianity Today, Wright discute questões como a necessidade de mais colaboração teológica em torno das questões políticas; a escatologia distorcida por trás da abdicação da esfera política por parte dos cristãos; e como a igreja global deve se engajar com as várias formas de império que estão à solta no mundo hoje.

No outono passado, na conferência da Evangelical Theological Society (ETS, Sociedade Teológica Evangélica), ouvi de algumas pessoas que não há muitos estudiosos trabalhando com teologia política no momento. Você concorda com isso?

Sim, deixe-me dar um exemplo. Quando a situação na Ucrânia surgiu, há dois anos, escrevi para dois ou três pensadores cristãos importantes nos EUA e disse: “Ok, pessoal, vocês trabalham nessa área mais do que eu. O que devemos pensar sobre isso? Se pudéssemos falar com o presidente Volodymyr Zelensky, ou quem sabe até mesmo com Vladimir Putin, o que deveríamos dizer a eles?” Pelas respostas deles ficou bastante claro que há muita cautela — que essa é uma área extremamente difícil, e não temos certeza de como abordar essas questões.

Acho que isso reflete o fato de que, mesmo entre aqueles que escreveram livros sobre teologia política, quando ocorre uma crise, não estou certo de que algum de nós tenha um roteiro claro sobre como abordar a situação. Meu ponto é que nossa reflexão sobre esses temas e a iniciativa de estruturar a política com sabedoria ainda são questões embrionárias.

Foi dito a muitos cristãos, com todas as letras, que a política é um jogo sujo. Deixamos a política para os políticos e assistentes sociais, enquanto ensinamos as pessoas a orar e a ir para o céu — e uma coisa nunca se mistura com a outra. Acho que chegamos ao ponto em que a maioria dos cristãos percebe que essa separação simplesmente não reflete a Bíblia em geral nem o testemunho cristão. Especialmente quando você começa a pensar no que Jesus quis dizer com o reino de Deus “assim na terra como no céu”.

No final do Evangelho de Mateus, quando Jesus diz “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra”, o que isso nos faz pensar sobre a autoridade de Jesus na terra? Parece, no Novo Testamento, que Jesus está delegando tarefas por meio do Espírito Santo à igreja. Não que a igreja deva governar o mundo, mas ela tem o papel vital de dizer a verdade para quem está no poder — de segurar um espelho para que os poderosos se vejam, e de ser um modelo de como a nova criação de Deus deve ser.

Em sua introdução, você mencionou que obras anteriores suas e de Mike inspiraram parcialmente este livro. Mas eu gostaria de saber se você poderia falar mais sobre os fundamentos bíblicos ou teológicos dessa obra.

Uma das coisas que realmente tem chamado a minha atenção nas últimas duas décadas é o papel dos seres humanos dentro da boa criação de Deus. A ideia em Gênesis 1 da criação dos seres humanos à imagem de Deus significa que Deus está comprometido em trabalhar no mundo através dos seres humanos.

Na teologia ocidental, muitas vezes lemos Gênesis 1–2 como se Deus estivesse preparando os seres humanos para passarem por um teste moral, no qual eles falham. Isso coloca toda a história no caminho errado, quando, em vez disso, a questão é: como Deus governará sabiamente o seu mundo através de seres humanos obedientes e sensíveis a ele, se estes erraram e estão adorando ídolos? A resposta é que ele os resgatou de sua idolatria, para que eles possam governar o mundo como seus vice-regentes, da maneira que Deus deseja.

Para mim, João 19 é um dos textos-chave que me chamou a atenção, quando comecei a trabalhar nesse livro. Nessa passagem, Jesus diz a Pôncio Pilatos: “Não terias nenhuma autoridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima”. Com isso, Jesus reconhece que esse governador romano de segunda categoria tem uma autoridade que lhe foi dada por Deus.

Em outras palavras, sim, os governantes têm uma autoridade dada por Deus, e Deus os responsabilizará pelo que fazem com ela. […] Tanto a igreja primitiva como os judeus achavam que era sua responsabilidade criticar os governantes. É como vemos no testemunho profético de João Batista dizendo a Herodes “Você está pisando fora de linha nisso aqui”, ou no próprio Jesus dizendo aos governantes e autoridades quando estavam errando.

Engajamento cristão fiel na política não é dizer aos líderes políticos: “Vocês não têm autoridade dada por Deus”. É dizer: “Vamos ser seus críticos no que diz respeito a como vocês estão usando essa autoridade que lhes foi dada por Deus”. Suspeito que a maioria das pessoas na maioria das igrejas no mundo ocidental — para não dizer em qualquer outro lugar — nunca sequer começou a conceber a questão dessa forma. Mas, até que o façamos, não entenderemos qual deve ser a responsabilidade da igreja.

Como os cristãos devem cobrar que o governo preste contas e devem garantir que os servidores públicos usem seus poderes de maneira responsável? E como você enxerga isso acontecendo em uma sociedade pluralista, onde as pessoas têm diferentes visões religiosas e podem ter padrões diferentes de justiça?

Leia, por exemplo, o Salmo 72 — ao qual volto repetidamente, o grande salmo messiânico. Algumas pessoas criticam os “salmos reais” porque “estão a serviço do império”. Mas, na verdade, se você olhar para o Salmo 72, ele diz: “Senhor, concede a tua justiça ao rei, para que ele cuide das viúvas, dos órfãos e dos estrangeiros,” etc., e esse pedido se repete várias vezes. No final, diz: “E assim a terra, toda a terra se encherá da tua glória”. É assim que Deus quer ser glorificado.

Há algo que poderíamos chamar de uma espécie de teologia natural da ética global. A maioria das tradições diria que cuidar dos fracos e vulneráveis parece uma boa ideia. Mas, infelizmente, interesses pessoais entram em jogo, porque, se esses fracos e vulneráveis forem migrantes que estão entrando no seu país, e você não quiser mais pessoas no seu país, então, diz: “Não, mande-os embora, eles que vão para outro lugar!” Contudo, também precisamos de políticas sábias e bem pensadas sobre migração, pois nem todos os países conseguem dar suporte aos milhares de pessoas que querem viver lá.

A igreja precisa treinar as pessoas para pensarem de maneira sábia sobre todas essas questões relevantes. Não devemos deixar isso apenas para economistas profissionais — ou, pelo menos, precisamos de economistas profissionais cristãos. Precisamos de cristãos que analisem questões de desenvolvimento, migração ou os enormes desafios que enfrentamos globalmente e que aconselhem a igreja de forma sábia, para que a igreja possa falar com verdade. Não apenas em frases de efeito, como estou fazendo agora, é claro, mas com profundidade e autoridade reais sobre questões sérias.

O que você diria aos cristãos que pensam “Bem, este mundo vai de mal a pior mesmo” — e àqueles que não se envolvem no governo porque acham que “a igreja é separada — é uma fortaleza afastada do mundo”?

Certo, isso é muito interessante. A transição ocorreu no início do século 18. Tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, havia quase um triunfalismo no sentido de que “Agora estamos dominando o mundo, e o evangelho vai governar” — e coisas como O Messias de Handel, “Ele reinará para sempre e sempre” —, o que soava maravilhoso na década de 1740. Mas, curiosamente, na década de 1790, algo mudou, e o epicurismo venceu — a Revolução Francesa aconteceu, as pessoas ficaram assustadas e se perguntando o que estava acontecendo.

Acredito que isso remonta ao Iluminismo, onde ocorre a separação entre religião e política. O epicurismo dos séculos 17 e 18 basicamente separou o céu e a terra, colocando entre eles uma enorme distância. Isso deixa as pessoas livres para governar a terra da maneira que desejarem — o que geralmente significa que a governarão para seu próprio benefício, mantendo qualquer coisa que seja religiosa fora da equação. E isso foi um desastre.

Depois, temos o movimento dispensacionalista, especialmente nos Estados Unidos, e outros movimentos semelhantes com uma escatologia muito negativa — no sentido de que a única maneira de algo acontecer é se Deus abandonar completamente este projeto [de mundo] e começar de novo do zero. Assim, muitos cristãos se voltaram a Platão para dizer: “Bem, na verdade, temos almas que vão escapar deste lugar de qualquer maneira e ir para outro”. Mas, como nunca me canso de dizer aos alunos, a palavra céu no Novo Testamento nunca é usada para designar o lugar de nosso destino final. E a palavra alma nunca é usada para designar os seres que seremos em nosso destino final.

As pessoas chegaram à suposição de que a história bíblica trata de como as almas humanas podem encontrar seu caminho até a visão beatífica no céu. Enquanto isso, toda a narrativa bíblica vai na direção oposta — e trata de como Deus vem habitar com os seres humanos na terra. A temática de Apocalipse 21 não é que os seres humanos habitam com Deus — e sim que Deus habita com os seres humanos.

Quanto mais envelheço, mais percebo que Atos 2, a descida do Espírito enchendo toda a casa, é uma cena de templo; ela remete diretamente a 1Reis 8 ou a Êxodo 14. É uma maneira de dizer: “Isso é o que Deus sempre pretendeu fazer. Deus, o Espírito Santo, sempre pretendeu viver com os seres humanos, nos seres humanos — e operar através deles. E, vejam só, isso está realmente acontecendo”. Essa é uma maneira totalmente diferente de fazer teologia.

A ideia arcaica de que Deus jogaria fora a criação presente — e, portanto, por que nos incomodaríamos em consertá-la? — simplesmente não faz justiça [ao que lemos na Bíblia]. Precisamos urgentemente, como comunidade global, pensar de forma mais cristã e mais bíblica sobre todo esse cenário.

N.T. Wright é professor emérito de Novo Testamento e Cristianismo Primitivo no St. Mary’s College, na Universidade de St Andrews, e Senior Research Fellow no Wycliffe Hall, Oxford. Seu livro mais recente, escrito em coautoria com Michael F. Bird, é Jesus and the Powers: Christian Political Witness in an Age of Totalitarian Terror and Dysfunctional Democracies [Jesus e os Poderes: Testemunho Político Cristão em uma Era de Terror Totalitário e Democracias Disfuncionais].

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Eu não preciso ser um ‘influencer’ para cumprir o propósito de Deus

Quero escrever para edificar o corpo de Cristo, mas construir plataformas rouba tempo da minha congregação local.

Christianity Today August 16, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Unsplash / Wikimedia Commons

Recentemente, conversei com um pastor de Harrisburg, na Pensilvânia. Sua congregação é pequena — tem cerca de 150 membros — e sua rotina é intensa, com deveres que se estendem muito além das paredes da igreja.

A semana típica do pastor é uma prova de sua dedicação aos irmãos e irmãs da comunidade. A maior parte de seu tempo é dedicada a visitas, orações e cuidados pastorais, geralmente em casas de repouso e hospitais. Ele reserva os sábados para a preparação do sermão e tenta manter as sextas-feiras para passar um tempo com a família.

Às vezes, o pastor recebe convites para ir mais longe: falar em conferências, contribuir para veículos de mídia cristãos ou até mesmo escrever livros —oportunidades que são atraentes e um sinal de sua mestria intelectual e da extensa rede que construiu nos círculos ministeriais. No entanto, ele normalmente os recusa, ao considerar o quanto esse trabalho e sua ausência afetariam o crescimento espiritual de seu rebanho. Ele está nutrindo uma comunidade, e não construindo uma plataforma. Ou, nas palavras da autora Jen Pollock Michel, ele está construindo vidas, e não deixando uma história.

Eu mesma tenho lutado com essa escolha. Depois de me formar no seminário, comecei a escrever e a ensinar em minha igreja local. Como não precisava ganhar dinheiro com o que escrevia, tive o luxo da flexibilidade e, logo, procurar lugares que publicassem meu conteúdo passou a ser meu trabalho. Ser convidada para ser membro de um grupo de escritores e ter outros promovendo meu trabalho era uma experiência ao mesmo tempo gratificante e que me inspirava humildade. Mas também comecei a ver que escrever regularmente para consumo de um público era complicado, difícil e insustentável, se eu quisesse continuar investindo em minha congregação.

Quero escrever para servir à igreja, mas escrever toma cada vez mais o tempo que eu dedicaria à minha igreja local. Suponha que eu passe todo o meu tempo promovendo meu material em busca de publicação, construindo minha rede de seguidores, criando conteúdo cristão e tentando fazer sucesso no “Complexo Industrial Evangélico”. Será que ainda estarei sendo Cristo para os outros? Estarei mostrando seu amor?

Em contrapartida, se eu sinto um chamado para escrever e acredito que tenho algo valioso e fiel a dizer, é errado usar meu talento para promover meu trabalho? Devo me contentar em não alcançar o reconhecimento público do meu dom e do meu trabalho, como aquele pastor da Pensilvânia que acabei de mencionar? Devo me sentar com a mulher cuja mãe morreu, cujo marido foi embora ou que recebeu um telefonema do médico sobre o laudo de sua tomografia? Muitas vezes me perguntei se tenho a inteligência, a sabedoria e a resiliência necessárias para levar a vida de uma escritora cristã.

Este discurso que foi feito para escritores cristãos sobre a dinâmica do ministério cristão e o cenário editorial sugere que não sou a única que está se fazendo essa pergunta. Toda essa conversa é moldada pela ideia de como as mudanças tecnológicas transformaram o trabalho da escrita. De certa forma, a publicação agora está mais democratizada. Entre podcasts, mídias sociais, Substack e outros boletins informativos, bem como plataformas de vídeo, como YouTube e TikTok, não há escassez de conteúdo cristão, e as barreiras mínimas de entrada permitem que muito mais vozes falem sobre teologia, crescimento espiritual e vida cristã.

O problema é o que acontece depois que entramos neste mundo. A jornada rumo ao reconhecimento envolve cultivar deliberadamente uma marca pessoal e uma rede profissional. “As editoras estão constantemente avaliando propostas de livros, não apenas com base no conteúdo do livro, mas na plataforma do autor também”, escreveu Michel no Substack, em um post sobre a decisão de parar de publicar, mas continuar escrevendo. “Essa pessoa consegue escrever? Sim, essa é a primeira coisa que perguntam. Mas eu diria que nem é a mais importante na matemática das escolhas de publicação. Essa pessoa consegue vender? Agora sim chegamos à pergunta que realmente importa.”

Você precisa construir uma presença digital robusta e expandir seu público. Também espera que outros escritores promovam seu trabalho, assim como você promove o deles — quem você conhece e marca em seus perfis sociais se torna uma espécie de moeda de troca. Não basta ser dotado pelo Espírito; você deve comercializar seus dons nas mídias sociais. Você cria conteúdo para o Instagram, escreve pepitas de sabedoria e começa a fazer reels, na esperança de que quanto mais conteúdo você criar, mais pessoas notarão.

Será que é assim que eu deveria gastar meu tempo? Onde isso deixa meu ministério? Onde isso deixa as pessoas que estão passando por divórcio, doença e dificuldades com os filhos — ou as pessoas que apenas estão buscando uma comunidade? Se eu escrever sobre Cristo, estarei negligenciando seu corpo? Como a teóloga Nika Spaulding perguntou, quando a entrevistei: “Estou deixando de lado o imperativo de priorizar as necessidades da igreja local? Preciso recalibrar minhas aspirações e ambições?”

Eu luto com isso todos os dias. Acredito que Deus me chama para servir fielmente onde vivo, para amar a Deus e amar as pessoas em minha igreja local — e não para construir uma plataforma ou para ser influenciadora em busca da validação de um público de admiradores (e de uma boa dose de dopamina). Mas também acredito que escrever é uma maneira pela qual Deus me equipou para servir, e a indústria editorial diz que devo construir uma plataforma, se eu quiser que alguém leia meu trabalho. Em minhas conversas com a jornalista e escritora Devi Abraham, ela observou que, no cristianismo americano, assim como na cultura americana em geral, parece que “permanecer no anonimato não é a resposta para o sucesso”.

Não tenho uma resposta definida para essas perguntas, mas tenho mais perguntas que podem trazer clareza — e uma história que reformulou meu pensamento.

Podemos encontrar contentamento em permanecer desconhecidos? “Falei em dois eventos bem grandes para mulheres e, pela primeira vez, não incentivei ninguém a assinar meu boletim informativo”, disse a autora e líder de ministério Sarah K. Butterfield, falando de um período em que fez uma pausa na escrita. “Compareci com o único propósito de servir as pessoas que participavam do evento, sem qualquer expectativa de aumentar meu número de seguidores. O resultado foi libertador!”

Temos condições de fazer o mesmo? Como nossos hábitos de escrita, divulgação e publicação mudariam, se não estivéssemos constantemente tentando aumentar nosso número de leitores? Existe uma dissonância em nossa alma, de modo que não podemos nos satisfazer com o pouco e constantemente nos encontramos desejando mais?

Se Deus nos deu um dom criativo, o que significa usá-lo para a sua glória? Devemos usar nossos dons para Deus e para a expansão do seu reino; mas, e se o alcance que ele quer que tenhamos em nosso ministério, seja este na igreja ou paraeclesiástico, for limitado? E se ele quiser que ministremos — ou mesmo que escrevamos — apenas para um pequeno número de pessoas, e não para termos 20.000 livros vendidos, mas sim sermos fiéis aos poucos em nosso círculo? Nossa “plataforma” pode ser uma igreja local ou um bairro.

“Servir em uma igreja, em uma comunidade local é difícil, desafiador e exaustivo”, disse-me Jen Wilkin, professora dedicada ao ensino da Bíblia. Mas também é gratificante ver, pessoalmente, as pessoas ganharem vida no conhecimento das Escrituras e no amor a Deus. Nesta cacofonia digital de vozes que competem por atenção e afirmação, nós, no ministério cristão, precisamos encontrar maneiras de construir relacionamentos substanciais e promover o crescimento em profundidade espiritual daqueles que estão literalmente [e não virtualmente] ao nosso alcance.

Tive uma longa conversa sobre isso com Al Hsu, diretor editorial associado da InterVarsity Press. Ele disse que mesmo na indústria editorial “a plataforma não é” — ou não deveria ser — “um fim em si mesma. É uma extensão da nossa missão e vocação”. Nossas plataformas devem estar alinhadas com o nosso chamado e com quem somos chamados a servir, de modo que as plataformas devem parecer diferentes para pessoas diferentes.

Podemos ser pacientes em nosso desenvolvimento? Como muitos escritores, eu aspirava ser como os líderes, mestres e autores que têm plataformas imensas e alcançaram fama. Talvez um dia eu consiga isso, mas eles não chegaram a esse nível da noite para o dia. Autoras famosas como Beth Moore e Ann Voskamp “trabalharam por anos no anonimato”, como observou a escritora Karen Swallow Prior, “e, o que é mais importante, não começaram motivadas pela esperança de conquistar as imensas plataformas que hoje têm”.

A autora Christine Caine escreve sobre como ela foi “desenvolvida, não descoberta”. Ela desejava servir a Deus desde cedo; então, quando os líderes de sua igreja pediram que ela servisse na equipe de limpeza, na sua juventude, ela concordou. Isso a levou a ter mais responsabilidade e a receber orientação, e, depois de anos na limpeza, seu sim fiel aos 21 anos a preparou para o grande ministério que ela lidera hoje. Deus desenvolveu sua fé e suas habilidades quando ela ainda era uma desconhecida.

O que realmente queremos? Talvez Deus queira que ministremos em escala pequena, local. Ou talvez ele nos ajude a escrever para milhões de pessoas. Segundo disse em nossa conversa a autora Mary DeMuth, em ambos os casos devemos prestar atenção em nosso coração. “Nós nos pegamos amando mais o nosso feed do que as pessoas que estão por trás do feed?” ela perguntou. “Deus está chamando pessoas para o contexto de amar seres humanos de carne e osso, e precisamos procurar abençoá-los, amá-los e conhecê-los”.

Deus nos chama para uma vida dedicada a conhecê-lo e a caminhar com ele, e devemos cultivar isso em primeiro lugar. Se um grande público é o que Deus quer para nós, ele pode fazer isso acontecer. Não precisamos desperdiçar nosso tempo lutando por proeminência e plataformas. Podemos crescer onde estamos plantados, crescer no conhecimento de Deus e praticar sua presença no cotidiano. A verdadeira medida do sucesso não está na quantidade de seguidores nem nos recordes de vendas, mas sim na profundidade de nossa fidelidade a Deus.

Recentemente, li uma história sobre Bertha, uma princesa do Reino dos francos que se mudou para Cantuária, no reino inglês de Kent, por volta do ano 580, para se casar com seu rei pagão, Ethelbert. O cristianismo havia sido introduzido na Inglaterra naquela época, mas ainda não estava difundido.

Bertha era uma pessoa com uma forte fé cristã. Ela se casou com a condição de ter permissão para permanecer cristã e trouxe um bispo com ela para seu novo lar. Ela trocava correspondências com o papa, que, mais tarde, lhe escreveu que suas “boas obras são conhecidas não apenas entre os romanos […] mas também em vários lugares”.

Em 597, após anos de fidelidade aparentemente “malsucedida” por parte de Bertha, um grupo de missionários liderado por um monge chamado Agostinho veio de Roma. Quando chegaram em Kent, eles pregaram o evangelho ao rei, que finalmente reconheceu a soberania de Cristo. Muitas pessoas seguiram o exemplo do rei, e Cantuária se tornou o centro do cristianismo na Inglaterra. Até hoje, é o lar espiritual de muitos cristãos.

Bertha não deixou escritos nem registros de exercício público de poder. No entanto, seus anos de fidelidade ajudaram a evangelizar a Inglaterra e muitas outras nações. Hoje, a UNESCO reconhece sua capela de oração como o local mais antigo de adoração e de testemunho cristão ininterrupto no mundo de língua inglesa. Deus usou as orações de Bertha para fazer infinitamente mais do que ela poderia ter pedido ou imaginado (Efésios 3.20).

Ele pode usar nossa fidelidade silenciosa, mergulhada no anonimato, da mesma forma. Embora “a gente prefira o espetáculo”, como disse o autor Skye Jethani, referindo-se à parábola do semeador, “Deus fica feliz em trabalhar por meio do que é sutil. E embora pensemos que os resultados são baseados em como a Palavra de Deus é proclamada, Deus sabe que os resultados são determinados por como a sua Palavra é recebida”. Nossa preocupação é construir uma plataforma para nós mesmos ou ser as mãos e os pés de Cristo, semeando onde pudermos e deixando que Deus dê o crescimento?

E. L. Sherene Joseph é uma filha de missionários e escritora que fala sobre fé, comunidade e cultura. Como imigrante nos Estados Unidos, ela compartilha suas experiências de viver entre mundos diferentes. Você pode encontrar mais do trabalho dela em www.sherenejoseph.me.

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Precisamos de uma vida de oração sem filtros

Como amigos de Deus, podemos falar com ele sem reservas.

Christianity Today August 15, 2024
Anggie / Lightstock

Às vezes falo em voz alta, quando estou sentada na poltrona perto da mesinha de livros de manhã ou quando estou sozinha no carro, dirigindo. Se alguém entra na sala, fico um pouco envergonhada com essa exteriorização da minha oração. Mas acho que falar com Deus em voz alta é algo que ajuda a me concentrar. E está se tornando um hábito entre amigos.

Como acontece com qualquer conversa entre amigos, os tópicos que compartilho com Jesus variam de tarefas práticas a esperanças específicas, bem como perguntas mais profundas. “Você pode me lembrar de passar no correio?”. “Sou muito grata pela professora da quarta série de Rhodes este ano”. “Eu estou me sentindo sozinha hoje. Você me ajudaria a saber que está aqui comigo e a acreditar nisso?”.

Eu me pergunto se Davi falava em voz alta, quando estava compondo seus salmos pela primeira vez. Ouvi dizer que os salmos foram cantados por muitas gerações, antes de serem registrados por escrito. Sou grata pelas orações escritas e pelos hinos que me dão palavras para expressar o que está em meu coração e me ensinam a orar. Mas a arte de conversar com Deus de forma espontânea e audível parece uma prática distante. Você acha que é absurdo considerar Deus um amigo que anda conosco dessa maneira tão trivial?

Acredito que exista um modesto vislumbre desse desejo de Deus em ser nosso amigo no seu generoso convite em Deuteronômio 6.6-7: “Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar”.

Austin Miles, autor de vários hinos, lançou este convite para nós de forma um pouco diferente: “Venho ao jardim sozinho / Enquanto as gotas de orvalho ainda umedecem as rosas […] E ele anda comigo, e ele fala comigo / E ele me diz que sou dele”.

Como é uma conversa cotidiana entre amigos? Meu professor de literatura da faculdade certa vez usou uma caneta vermelha, para me treinar a escrever com um ponto de vista consistente, que ajudasse o leitor a entender claramente a história. Se o objetivo é entender, então, certamente faremos bem em seguir esse conselho.

Mas, talvez, ser plenamente humano signifique admitir que nosso ponto de vista é inerentemente complexo, misterioso e está sempre mudando. Como um prisma sob a luz do sol, nossas almas e histórias refletem a luz de Deus em milhares de direções ao mesmo tempo. E, diferentemente das aulas de literatura, no caso da oração é bom lembrar que nossas palavras não são classificadas com uma caneta vermelha.

Na amizade com Deus, um ponto de vista fluido nos ajuda a enxergar além do entendimento, e vislumbrar a beleza infinita de Deus. Ao falarmos abertamente com Jesus sobre os acontecimentos, os sentimentos e os relacionamentos do nosso dia, somos atraídos para um verdadeiro companheirismo e nossos corações são movidos a adorar.

Um dos meus salmos favoritos é o Salmo 62. Nele, como em grande parte da literatura poética das Escrituras, vemos súbitas mudanças de ponto de vista na voz do autor. Davi finca sua bandeira no versículo 1: “A minha alma descansa somente em Deus”. Em seguida, relata os atos fiéis de Deus nos dois primeiros versículos e, mais adiante, no versículo 5, Davi persuade a própria alma novamente a crer e a descansar: “Descanse somente em Deus, ó minha alma”.

No versículo 8, ele se vira e exorta seu povo a fazer o mesmo: “Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame diante dele o coração”. Por fim, Davi pessoalmente reafirma Deus, nas últimas linhas: “contigo, Senhor, está o amor leal.” (v. 12).

Deus revela suas impressões digitais em nossa vida de mil maneiras diferentes. Sua redenção se estende a cada molécula do universo, e toca a ciência, a literatura, a arte, a psicologia, a matemática e a história. Todas as coisas foram feitas por ele e para ele. Nele tudo subsiste (Cl 1.16-17) e ele age em todas as coisas para o bem supremo daqueles que o amam (Rm 8.28).

A convite de Deus e com a ajuda do Espírito Santo, que possamos derramar nosso coração para ele, em todos os momentos — em voz alta no carro, ao redor da mesa de jantar ou em uma brincadeira divertida na floresta. Que nossas palavras fluam de volta para ele, honestas e sem filtros.

Embora falar casualmente e em voz alta com Deus o dia todo possa ser uma prática social um tanto estranha, Davi nos lembra que também é uma antiga tradição de sanidade do evangelho, que alinha nosso coração ao consolo eterno da amizade com Deus.

Sandra McCracken é cantora e compositora; ela mora em Nashville. Siga-a no Twitter @Sandramccracken.

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Books
Review

A hesitação em ter filhos vai além das preocupações financeiras

O que antes era uma fase comum da vida agora parece uma escolha cada vez mais complicada.

Christianity Today August 14, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Getty

Em um artigo recente do The Guardian sobre “os principais adeptos da pró-natalidade da América”, a jornalista menciona sua própria suposição de que “a principal coisa que torna [ter filhos] uma tarefa difícil [é] que hoje é incrivelmente caro criar uma criança”.

What Are Children For?: On Ambivalence and Choice

What Are Children For?: On Ambivalence and Choice

336 pages

$17.18

“Não”, responde o pai de uma família entrevistada. “De forma alguma”— e, em sentido substancial, acho que ele está certo. E assim também pensam Anastasia Berg e Rachel Wiseman, autoras do recém-lançado What Are Children For?: On Ambivalence and Choice [Para que servem as crianças?: sobre ambivalência e escolhas].

Isso não significa que Berg e Wiseman (ou que eu mesma) desconsiderem as reais dificuldades financeiras que muitos futuros pais enfrentarão. Pelo contrário, elas dedicam o primeiro dos quatro longos capítulos do livro a uma análise sóbria desses “fatores externos.”

Mas o que encanta no livro é que elas não param por aí. Berg e Wiseman também rejeitam a suposição — presente em muitas discussões superficiais sobre a criação de filhos — de que os fatores externos representam a totalidade do problema, de que toda essa hesitação desapareceria apenas com o pacote certo de políticas que estendessem a licença-maternidade e a licença-paternidade e tornassem as creches mais acessíveis.

Isso não aconteceria, e a obra What Are Children For? é uma reflexão bem-vinda que complica essa visão simplista. Como o próprio título sinaliza, Berg e Wiseman pretendem mostrar uma análise cultural e filosófica perspicaz, examinando de maneira rigorosa, porém cordial, um “mundo que é tanto pró-natalista quanto antinatalista”. Embora, no último minuto, elas abracem uma grande alegação a que parecem resistir ao longo do texto todo, o projeto delas é bem-sucedido.

Um mar de opções

Os leitores já familiarizados com o conceito de secularismo que o filósofo cristão Charles Taylor apresenta na obra Uma Era Secular estarão bem preparados para entender um dos argumentos centrais da obra What Are Children For?: o fato de ter filhos antes não era uma escolha, mas agora é, e essa mudança colossal é parte integrante da experiência moderna dessa hesitação em relação a ter filhos.

Taylor definiu o secularismo como o que acontece quando uma sociedade passa de uma visão “em que a crença em Deus é incontestada e, de fato, não problemática, para uma sociedade em que essa crença é entendida como uma opção entre tantas outras, e, frequentemente, não a mais fácil de se abraçar”. Berg e Wiseman escrevem que, da mesma forma que, antes, ter filhos era “apenas algo que as pessoas faziam”, agora, é algo que sentimos que devemos “pesar e contrastar com um mar de outras opções”, muitas delas no mínimo superficialmente mais fáceis, mais prazerosas, menos arriscadas e com maior chance de sucesso.

Uma citação que Berg e Wiseman compartilham da psicóloga Nancy Felipe Russo, escrita em 1976, expõe o caráter recente e a totalidade dessa mudança. Naquela época, ter filhos era algo tão pressuposto que “mesmo que o contraceptivo perfeito fosse desenvolvido e usado”, pensava Russo, as “forças sociais e culturais que reforçam o mandato da maternidade continuariam”. Hoje, a meu ver, o oposto é verdadeiro: mesmo que todos os contraceptivos desaparecessem amanhã, nossa agonia não desapareceria com eles.

Tampouco estaríamos mais próximos de saber como tomar essa decisão. Segundo Berg e Wiseman argumentam, para muitos de nossos contemporâneos “ter filhos está se tornando uma prática cada vez mais ininteligível e de valor questionável”. Com a ajuda da internet, noticiamos relatos sobre a maldade e o sofrimento humano, e depois duvidamos da sabedoria de prolongar a existência humana. “Carecemos de recursos para responder a tais questionamentos”, refletem as autoras. “Os antigos paradigmas, quaisquer que fossem, parecem não se aplicar mais. E os novos nos deixaram muito menos certos sobre a própria questão de ser desejável ter filhos”.

Vida, história, literatura

A obra What Are Children For? começa e termina com seções escritas por uma das autoras; Wiseman escreve no início sobre a sua escolha de buscar a maternidade; Berg, a outra autora, faz uma reflexão no final sobre a vida após a escolha de ter filhos. Nos capítulos intermediários, o capítulo que trata dos fatores externos é um mapa bem elaborado de um território já bastante familiar para quem acompanha os debates sobre natalidade: preocupações financeiras, medo de perder liberdades e de ter carreiras decepcionantes, incapacidade de encontrar um parceiro amoroso adequado, e assim por diante.

Passagens-chave sobre essa novidade de ver os filhos como escolha encontram-se aqui, assim como uma seção notavelmente sombria sobre o namoro moderno, cujos trechos aparecem em um ensaio de 2022 na The Atlantic, “The Paradox of Slow Love” [O paradoxo do amor lento. N. da T:“Slow love” vem da expressão “fast sex, slow love” (rápido para transar, devagar para amar), que tem sido usada para caracterizar a dinâmica dos relacionamentos no mundo atual]. Não tenho espaço para fazer justiça a esse tema, mas é alarmante o esboço que Berg e Wiseman fazem de uma barreira crescente entre romance e família.

O segundo capítulo, que fala sobre a história do debate feminista em torno da reprodução, fornece um contexto intelectual valioso — embora para leitores de contextos evangélicos mais conservadores o capítulo possa explicar melhor as motivações e impulsos de outras pessoas do que os nossos próprios. Alguns dos pensadores que Berg e Wiseman exploram nesse capítulo estão bem fora do mainstream, mas sua influência sobre a cultura mais ampla é clara.

Talvez a parte mais forte desse capítulo seja sua crítica à notória abdicação da responsabilidade por parte dos homens, feita em nome do progresso. “Em círculos de centro-esquerda,” escrevem Berg e Wiseman, “a convicção de que as mulheres devem ser capazes de determinar seus próprios destinos reprodutivos e exercer tanta autonomia sobre seus corpos quanto os homens se transformou, ao longo dos anos, na presunção de que a questão de se iniciar ou não uma família é prerrogativa exclusiva das mulheres”.

Às vezes, elas reconhecem que essa passividade masculina pode ser bem-intencionada: se a maternidade é algo tão custoso quanto nossa cultura passou a acreditar, “como poderia um homem pedir à mulher que ele ama que se submeta a tal destino?”. Mas, às vezes, o que “pode parecer a princípio um ato altruísta de deferência (se você quer um filho, podemos ter um) funciona mais como uma manobra evasiva”:

Ofertas mornas de cooperação podem atrapalhar uma tomada de decisão confiante e sem reservas. Quem gostaria de trazer uma criança ao mundo com alguém que, quando perguntado se quer ser pai, só responde com um fraco “se você insiste…”? A frase “faça o que você quiser — a decisão é sua” já é suficientemente irritante quando estamos tentando escolher um filme para assistir ou um restaurante para pedir comida; mas é insuportável como resposta à pergunta “você quer ter um filho comigo?”

O terceiro capítulo, que fala sobre literatura, amplia essa exploração do contexto cultural até os dias de hoje: “A ambivalência dos romancistas sobre a maternidade é profética”, conforme mostram Berg e Wiseman, “na medida em que o sentimento geral sobre maternidade/ paternidade hoje é de dúvida”.

Devo admitir que neste ponto eu já estava ficando inquieta, ansiosa para chegar ao quarto capítulo, que aborda diretamente a questão do título. Mas esta parte final da cena também foi perspicaz, oferecendo um tour por um gênero que eu sabia ser influente, mas que não li pessoalmente. Para aqueles que já leem esse tipo de literatura — talvez não de forma muito crítica — espero que seja esclarecedor.

Uma defesa da vida em si

No último capítulo antes da conclusão de Wiseman, as autoras lidam com dois argumentos primários contra a ideia de ter filhos: “que a vida é um mal imposto à humanidade” e “que a humanidade em si é uma imposição maligna ao mundo”.

Berg e Wiseman dão uma resposta simples para ambos: uma afirmação da vida. Não se trata de uma resposta simplista — elas debatem com filósofos sérios, que encontramos ao longo de séculos do pensamento clássico, judaico, cristão e pós-cristão. Mas é uma afirmação feita com ousadia e que se fundamenta, sem se desculpar por isso, na intuição e na experiência comuns ao ser humano.

Em síntese, Berg e Wiseman argumentam que a humanidade tem valor; que, ao lado da nossa capacidade para o mal, existe uma capacidade real de reconhecer e escolher o bem; que podemos perseguir objetivos bons, como “amizade e justiça”, de maneira incondicional e universal, os quais “tornam verdadeiramente valiosa a experiência de viver uma vida humana”; e que afirmar esse bom caráter não significa “fechar os olhos para as nossas lutas e falhas humanas”.

Quanto a ter filhos, Berg e Wiseman defendem que trazer uma nova vida ao mundo é afirmar sobre os outros aquilo que já afirmamos sobre nós mesmos. Na verdade, elas escrevem, perguntar “Para que servem as crianças?” é essencialmente o mesmo que perguntar: “Por que afirmar a vida?”

Afinal, o que se está querendo [com essa pergunta]? Uma lista de benefícios? Afirmar a vida não é dar-lhe uma justificativa teórica, reconhecer seus méritos e contrapor os argumentos de seus detratores. Ao decidir ter filhos, uma pessoa assume uma posição prática em um dos questionamentos mais fundamentais que alguém pode fazer: a vida humana, apesar de todo o sofrimento e da incerteza que ela implica, vale a pena ser vivida?

Essa é uma conclusão admirável e provocativa, especialmente por sua abordagem visivelmente não sectária. Eu seria convencida, se já não tivesse uma visão da humanidade que leva em conta essas tensões entre bem e mal, dignidade e sofrimento, acaso e virtude? Não tenho certeza. Como cristã, concordei com Berg e Wiseman em pontos grandes e pequenos — mas, muitas vezes, a concordância foi somente acidental. Chegamos ao mesmo lugar por caminhos aparentemente diferentes.

Às vezes, essa diferença de perspectiva foi construtiva. Eu adoraria ver as autoras em uma conversa com o escritor católico Timothy Carney, cuja análise da “tristeza civilizacional” na obra Family Unfriendly [Hostil à família] ecoa profundamente as notas finais de What Are Children For?. E ainda estou refletindo sobre a observação de Berg e Wiseman de que “de todos os milagres realizados por Cristo, ele nunca ajudou uma mulher estéril a conceber”.

Em contrapartida, posso imaginar como Berg e Wiseman provavelmente conciliariam seu chamado para “afirmar a vida” com a aprovação a vários direitos ao aborto presentes no livro — mas essa é uma conexão que eu mesma não consigo entender.

Uma pergunta que só você pode responder?

É comum dizer que uma escolha de vida tão importante quanto ter filhos é algo que cada um de nós deve fazer exclusivamente por conta própria. Berg e Wiseman apoiam essa visão, mas, ao longo da obra toda, parecem insatisfeitas com o lugar para onde essa visão leva.

Elas rejeitam a visão da decisão de ter filhos como uma busca solitária de “‘encontrar a si mesmo’ e descobrir ‘o que você realmente quer’”, em detrimento de “tudo o mais que você valoriza”. Elas repreendem os homens que fogem de seu papel no processo de tomada de decisão e lamentam um isolamento semelhante por parte de amigos e familiares. Elas se irritam com a profunda interioridade da literatura que trata dessa ambivalência sobre a maternidade, pelo modo que priva tanto personagens quanto leitores de insights sobre “as infinitas maneiras pelas quais cada um de nós pode ser opaco para si mesmo, cego para suas próprias fraquezas, iludido sobre suas motivações”. E elas elogiam o lembrete de uma escritora “de que o que está em jogo na decisão de ter filhos não é apenas uma série de experiências pessoais a serem desfrutadas e sofridas, mas sim a possibilidade da vida humana”.

No conjunto, isso me parece muito mais do que um convite ao discurso público. Soa como um apelo por comunidade, por pessoas com bons conselhos e influência real em sua vida, por pessoas que se importam com o que você se importa, que lhe dirão quando você estiver equivocado ou se iludindo, que ajudarão você a enfrentar essa questão difícil tanto quanto os desafios que virão, se a sua resposta for sim.

No entanto, apesar de tudo isso, a frase final do último capítulo escrito pelas duas autoras declara que, porque ter filhos é um compromisso de vida tão importante e afirmativo, “só você pode determinar se é a escolha certa para você”.

Em um sentido estrito, sim, isso é verdade. Certamente não tenho saudades dos velhos e maus tempos dos casamentos forçados nem de uma versão brutal e totalitária do pronatalismo. Mas estamos falando aqui de afirmar a vida. Vocês têm certeza de que a vida que estamos afirmando é uma vida que vivemos juntos?

Bonnie Kristian é diretora editorial de ideias e livros da Christianity Today.

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Nem dominar, nem se afastar: os cristãos devem unir o mundo

O testemunho da igreja primitiva nos ajuda a evitar tanto o triunfalismo quanto o isolamento.

Christianity Today August 14, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash

Logo no início da minha leitura e do meu estudo sobre o cristianismo primitivo, fui impactado por uma afirmação de um autor anônimo, que escreveu para um homem chamado Diogneto, no segundo século. Esse autor, em sua Carta a Diogneto, declarou que “os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo”.

O autor estava abordando um paradoxo que reside no coração de nossa fé: os cristãos vivem no mundo; contudo, nas crenças que professam e nas virtudes que buscam modelar, eles também transcendem as coisas deste mundo. Embora Cristo e os apóstolos tenham ensinado esse mesmo princípio, a analogia que a Carta a Diogneto faz com o que a alma é para o corpo é tocante. Mesmo existindo em um corpo mortal, os cristãos estão destinados à imortalidade. Assim como a alma mantém unido todo o corpo, os cristãos são chamados a manter unido todo o mundo. Sua missão é viver de maneira que tornem o mundo melhor por causa de sua presença.

Stephen O. Presley, um estudioso do cristianismo primitivo, articula essa visão de forma brilhante em Cultural Sanctification: Engaging the World like the Early Church [Santificação Cultural: envolvendo-se com o mundo como a Igreja Primitiva]. O livro explora como os primeiros cristãos viam seu lugar em um mundo que cada vez mais se assemelha ao nosso.

Em uma era secular, as posturas e a sabedoria das vozes cristãs primitivas podem nos ajudar a resgatar uma visão de como viver em uma sociedade que não tem espaço para a exclusividade religiosa e tem pouco interesse por uma lógica moral transcendental. Ao explorar e conectar temas proeminentes do testemunho público dos primeiros cristãos, Presley canaliza a analogia apresentada a Diogneto e a amplifica, através das vozes dos primeiros pensadores cristãos.

Dualismo ativo

Presley começa nos lembrando que nosso mundo não apenas olha para a igreja com desconfiança; ele vê o cristianismo como o antagonista. Conforme ele escreveu: “O cristianismo não é marginalizado [hoje] por ser religioso, mas porque suas alegações morais frequentemente contrariam as novas expressões de progresso social e de diversidade moral.”

Como argumenta Carl R. Trueman em The rise and triumph of the modern self [no Brasil, publicado como Ascensão e triunfo do self moderno], nossa era de “individualismo expressivo” não tem necessidade de alegações teológicas transcendentais e de fundamentos éticos clássicos. Assim, o testemunho cristão no século 21 deve, cada vez mais, responder à pergunta: Isso é bom e belo? Se não convencermos o mundo de hoje de que o cristianismo é atraente e desejável, teremos de lutar muito para convencê-lo de que o cristianismo é verdadeiro.

Para ilustrar isso, Presley analisa a natureza da identidade cristã primitiva. A conversão, segundo era concebida pela igreja primitiva, não era apenas um assentimento ou uma concordância mental com proposições de verdade. Através da catequese e da participação na vida litúrgica da igreja, os novos crentes tinham suas identidades purificadas e recriadas.

A catequese, ou instrução intencional na doutrina, identificava crenças falsas e buscava substituí-las por conceitos bíblicos. Mas era uma experiência profundamente espiritual. Funcionava como uma forma de exorcismo, que limpava o coração e a mente de pressupostos satânicos e abria espaço para o alimento que dá vida. A vida litúrgica da igreja, que incluía o batismo e a Ceia do Senhor, organizava a vida inteira do cristão em torno da obra de Cristo e da história da redenção divina. Como observa Presley, “essa formação litúrgica nos lembra que a igreja primitiva não estava interessada apenas em evangelizar e em pregar, mas em formar uma comunidade”.

Embora esteja sempre implícita na fé e na prática cristãs, essa ideia de “formação litúrgica” deve ser resgatada em nossos dias. Isso não é um argumento apenas a favor do culto litúrgico, mas um apelo em prol de práticas de adoração e de formação intencionais dentro do corpo da igreja. A comunidade cristã deve ir além de um relacionamento casual com aquela outra igreja ali na esquina e, em vez disso, ser vista como uma coletividade vital composta de homens e mulheres unidos e comprometidos.

Além disso, Presley destaca o cultivo da vida intelectual entre os pensadores cristãos primitivos. Temos o privilégio de ver uma recuperação desse impulso em grande parte do evangelicalismo contemporâneo. Mas os pensadores cristãos primitivos podem nos ajudar a levar isso ainda mais longe.

Ao colocar suas vidas intelectuais em diálogo com a literatura e a filosofia, esses pensadores traziam todo o conhecimento sob o domínio de Cristo. Para os pensadores cristãos primitivos, a Escritura era a bússola orientadora; na verdade, era o próprio tecido do conhecimento. Embora os evangélicos tenham (em sua maioria) mantido alta a sua atenção às Escrituras, muitas vezes perdemos a noção de como a Palavra de Deus deve moldar a maneira como nos engajamos em todas as demais formas de conhecimento.

Como Presley observa: “A igreja reconheceu a importância do engajamento intelectual e da interação com o clima filosófico do mundo ao seu redor”. Os cristãos primitivos, mesmo sob perseguição, não consideravam o isolamento uma opção. Os líderes cristãos de hoje, em uma era de confusão moral e epistemológica, precisam revigorar a igreja para um engajamento intelectual cativante e irênico na esfera pública.

É central para o argumento de Presley, portanto, um retrato de como os cristãos primitivos entendiam seu papel na vida pública. Embora ele separe sua discussão formal desse assunto em dois capítulos distintos, um sobre cidadania e outro sobre vida pública, as ideias por trás deles são semelhantes em ambos. Em um nível, os cristãos entendiam sua lealdade a Cristo e ao seu reino. Eles também procuravam demonstrar seu serviço e seu compromisso a autoridades temporais, como aquelas que Deus lhes ordenara a servir. Os cristãos não eram “anti-imperiais”, como Presley observa; eles aceitavam a ordem estabelecida e procuravam viver obedientemente dentro de seus limites.

Presley identifica essa forma de vida pública como um “dualismo político ativo”. Ela envolvia oração pelas autoridades governamentais, compromisso em pagar impostos e esforços para promover uma vida virtuosa em prol do bem comum. Isso, é claro, não garantia a aceitação por parte dos próximos que eram pagãos. Mas esse testemunho com consistência era suficientemente convincente para conquistar alguns para a comunidade de fé. Se por nada mais, pelo simples fato de demonstrar a natureza sobrenatural da comunidade cristã.

Embora o culto cristão fosse bem menos público do que o politeísmo romano, isso não significa que os cristãos viviam nas sombras. A vida e o testemunho deles estavam sintonizados com o que acontecia à sua volta. A fé cristã primitiva sempre impactou a vida pública, quer inspirando uma presença fiel e cuidando da comunidade, quer sendo um testemunho público contra violência e atrocidades, quer adotando uma postura de oração em relação às autoridades civis. Essa postura de dualismo ativo moderava as expectativas, ao mesmo tempo que lembrava os crentes de que, em última análise, eram peregrinos a caminho de uma pátria celestial.

Presença fiel

A principal alegação de Presley, em termos simples, é que os cristãos de hoje precisam reaprender e aplicar as lições desse dualismo ativo. Ele está ciente, é claro, de que resgatar vozes do cristianismo primitivo não é um exercício de idealismo seletivo. Não devemos presumir, em outras palavras, que todos os cristãos nos primeiros três séculos da igreja fizeram essa obra de santificação cultural com perfeição. (Nesse ponto, é proveitoso lembrar a recente obra de Nadya Williamssobre a presença de cristãos culturais na igreja primitiva).

Ainda assim, o modelo de presença fiel defendido pelos pensadores cristãos primitivos e atestado por observadores não cristãos continua tendo apelo. A igreja de hoje não deve operar com uma mentalidade triunfalista, mas isso não significa que deva se encolher de medo da cultura que a cerca. Como Presley afirma, “o chamado cristão à santificação cultural é um chamado para buscar santidade e conformidade à semelhança de Cristo em todo e qualquer contexto cultural”.

O modelo geral fornecido pela igreja primitiva e transmitido a nós pela obra de Presley, Cultural Sanctification[Santificação Cultural], é consistente. No entanto, pode exigir que alguns de nós lidemos com males que ameaçam infectar nossa visão da igreja, do mundo e do nosso lugar nele. Rejeitar a cultura não é a solução. Assim como substituir nossa cultura atual por uma cultura alternativa totalmente cristianizada também não é a resposta correta. A única resposta a um mundo que rejeita a igreja é uma igreja que ame o mundo com discernimento fiel e engajamento paciente, mesmo enquanto anseia pelo mundo vindouro.

Coleman M. Ford é professor assistente de humanidades no Southwestern Baptist Theological Seminary e autor de Formed in His Image: A Guide to Christian Formation [Formado à semelhança dele: um guia para a formação cristã], bem como de um livro que será lançado em breve, Ancient Wisdom for the Care of Souls: Learning the Art of Pastoral Ministry from the Church Fathers [Sabedoria primitiva para cuidar de almas: aprendendo a arte do ministério pastoral com os pais da igreja]. Ele é cofundador do Center for Ancient Christian Studies [Centro de Estudos de Cristianismo Primitivo] e atua como membro do Center for Pastor Theologians [Centro para Pastores e Teólogos].

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Books

Um monumento teológico à unidade em meio à diversidade

Cinquenta anos atrás, a solução do Pacto de Lausanne para a divisão desenfreada nas alas evangélicas não foi uniformidade.

Christianity Today August 12, 2024
Illustration by Ibrahim Rayintakath

No filme Memento [Amnésia, no Brasil], lançado em 2000, o protagonista Leonard Shelby tem uma lesão cerebral específica que o impede de formar novas memórias de longo prazo. Ele consegue se lembrar de informações por 30 segundos a um minuto, no máximo, mas depois se esquece de tudo.

A desconexão de Leonard com seu passado o deixa em um estado perpétuo de perplexidade sobre como ele chegou a esse dilema atual: De qual inimigo estou fugindo — e por quê? Por que estou segurando uma arma? Sua confusão é decorrente da amnésia, da incapacidade de se lembrar da própria história. Se Leonard pudesse reaprender e se lembrar das partes importantes do seu passado, ele poderia finalmente voltar a ter uma existência estável, com uma compreensão íntegra de si mesmo e das pessoas ao seu redor.

Ser evangélico hoje é muito parecido com isso. Nós também estamos desconectados do nosso passado, embora por razões bem mais reversíveis do que uma lesão cerebral. Em decorrência disso, os evangélicos estão mais divididos do que nunca, com muitos de nós combatendo inimigos que antes eram amigos.

Mas, e se fizéssemos uma pausa para nos lembrar da nossa história? Não só nos lembraríamos de quem somos e de como chegamos até aqui, mas poderíamos até mesmo redescobrir o melhor do que o evangelicalismo foi, é e pode vir a ser novamente.

Evidentemente, um dos maiores problemas que temos hoje é que parece não haver quase nenhum consenso sobre o que a palavra evangélico¹ significa. Quem dera os evangélicos de todo o mundo pudessem ao menos concordar com os parâmetros básicos para o evangelicalismo — com algo que fosse minimamente suficiente para encorajar uma diversidade saudável, mas substancialmente suficiente para garantir a integridade doutrinária.

E se algo assim já existisse?

Cinquenta anos atrás, em julho de 1974, cerca de 2.700 líderes cristãos de 150 países viajaram para Lausanne, na Suíça, a convite do evangelista americano Billy Graham e do teólogo britânico John Stott.

A conferência foi oficialmente intitulada “Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial”, mas veio a ser conhecida como o primeiro encontro de Lausanne de 74. E embora tenha incluído apenas parte da igreja global, a revista Time noticiou na época que o congresso foi “possivelmente o maior e mais abrangente encontro de cristãos já realizado”.

Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.

Talvez o resultado mais importante e duradouro desse encontro tenha sido o Pacto de Lausanne, que com o tempo se tornaria um dos documentos mais influentes do evangelicalismo moderno. O propósito do documento era responder a uma pergunta-chave: o quanto devemos concordar uns com os outros para sermos parceiros na tarefa de missões mundiais?

Na época, assim como agora, o evangelicalismo estava sentindo os efeitos da controvérsia fundamentalista-modernista, que causou divisões hediondas em quase todas as principais instituições e denominações cristãs. A abordagem fundamentalista às diferenças envolvia discussões rigorosas sobre o que realmente era aceitável e sobre rigidez doutrinária. A perspectiva progressista evitava estabelecer quaisquer limites doutrinários, arriscando-se a afastamentos substantivos do cristianismo histórico.

Mas os evangélicos tomaram outro rumo.

A abordagem do evangelicalismo à diversidade, exemplificada em Lausanne, caracteriza-se igualmente por: (1) negociação cuidadosa de uma unidade em meio às diferenças, a qual se fundamenta em confissões comuns do cristianismo histórico; (2) celebração da diversidade em si como bem intrínseco e até mesmo como evidência de expressão do plano pretendido por Deus para a igreja global e universal de todos os crentes.

O Pacto de Lausanne forneceu uma definição teológica de evangélico e evitou intencionalmente associar quaisquer elementos sociopolíticos ao movimento. Também não demarcou posições sobre uma série de questões importantes, porém secundárias, relacionadas a teologia, doutrina e práxis. Por exemplo, não há no documento discussão sobre batismo, papéis de gênero no ministério ou idade da Terra e evolução.

Ao evitar questões desse tipo, o Pacto de Lausanne incluiu cristãos de ambos os lados que divergiam e que, não fosse essa postura adotada, estariam divididos. Em vez de divisão, os líderes do congresso buscaram criar uma comunidade de aliança para além dessas diferenças e a serviço de uma missão compartilhada para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

Em certo sentido, o pacto é uma declaração de fé coletiva, composta de 15 artigos, uma introdução e uma conclusão. Com pouco mais de 3.300 palavras, o documento é suficientemente curto para caber nos dois lados de uma única página. Stott, presidente da comissão de redação, explicou o pensamento por trás de cada artigo em sua exposição — apêndice de leitura obrigatória para o pacto.

Seria um erro ver este documento como uma mera declaração de fé, uma vez que ele foi concebido como um pacto, escreve Stott — como um “contrato vinculante” em que seus signatários se comprometem com um propósito e uma parceria comuns. Após 10 dias de debates, discussões e negociações, a maioria dos participantes (2.300) assinou o documento em conjunto. Como o próprio Stott explicou: “Não queríamos apenas declarar algo, mas fazer algo — comprometer-nos com a tarefa da evangelização mundial”.

Mesmo agora, a intenção é que o pacto deva ser assinado por aqueles que o leem e concordam com ele — e, ao fazê-lo, nos comprometemos a cooperar uns com os outros na missão de Deus.

Como a maioria dos evangélicos, eu nunca tinha ouvido falar do Pacto de Lausanne quando era mais jovem, e só me pediram para assiná-lo quando eu já era adulto. Sou um indiano de pele escura que nasceu no sul da Califórnia, em 1978, filho de imigrantes de primeira geração que eram ambos cristãos — meu pai, inclusive, estudou na Universidade Biola.

E, muito embora alunos de instituições cristãs às vezes tivessem contato com o Pacto de Lausanne, eu frequentei uma escola pública no ensino médio e uma universidade estadual secular. As igrejas que frequentei enquanto crescia eram não denominacionais, o que tinha seus pontos fortes, mas também gerou alguma amnésia sobre a história cristã.

Eu soube da existência do pacto pela primeira vez no final de 2000, 24 anos atrás, quando eu era aluno de pós-graduação e estava estudando para ser um médico pesquisador. Eu me inscrevi e fui aceito para a Harvey Fellowship — uma bolsa de estudos oferecida a cristãos que estão entrando em campos com baixa representatividade de cristãos —, e todos os candidatos eram obrigados a assinar o Pacto de Lausanne. No verão seguinte, fui para Washington, D.C., para participar de um evento de uma semana e me encontrar com um pequeno grupo de outros novos bolsistas da Harvey.

Este evento ampliou substancialmente minha experiência em termos de diversidade evangélica. Ben Sasse, um historiador de Yale e presbiteriano reformado, foi o primeiro cristão que conheci a defender um argumento plausível para o batismo infantil, embora ele e eu discordássemos sobre essa questão. Mac Alford, um botânico de Cornell, foi o primeiro cristão que conheci que defendia a evolução — alg o que eu rejeitava na época.

E embora essas divergências fossem incômodas, pelo menos para mim, todos nós somos signatários do Pacto de Lausanne (que não assume posição sobre nenhuma dessas questões) e, portanto, já tínhamos nos comprometido a cooperar.

O Pacto de Lausanne oferece um arrazoado teológico de nossas diferenças — com base na crença subjacente de que essas diferenças podem ser intrinsecamente valiosas. Os líderes do congresso estavam insatisfeitos com uma comunidade pequena em concordância, e buscavam, em vez disso, uma comunidade maior que fosse capaz de transpor nossas diferenças.

O pacto explica, usando o que Stott chamou de “uma tradução literal de Efésios 3.10”, que nossas diferentes visões sobre as Escrituras são um mecanismo por meio do qual a sabedoria de Deus é revelada a nós:

A revelação de Deus em Cristo e nas Escrituras é imutável. Por meio dela, o Espírito Santo ainda fala hoje. Ele ilumina as mentes do povo de Deus em todas as culturas para que percebam a sua verdade de uma forma nova, através de seus próprios olhos e, então, revela a toda a igreja cada vez mais da multiforme sabedoria de Deus.

Em vez de minimizar os limites doutrinários para alcançar uma paz falsa, o convite evangélico é para que possamos ler juntos nossas Bíblias, entender nossas diferenças e negociar — e essas disposições estavam claramente presentes na forma como o Pacto de Lausanne veio a existir.

Embora a conferência em si tenha durado apenas 10 dias, o processo de elaboração do pacto levou meses de diálogo e negociação. Mas com 2.700 delegados na conferência, quanta cooperação foi possível? Muita, como se vê. Na avaliação de Stott, “pode-se dizer verdadeiramente, então, que o Pacto de Lausanne expressa um consenso da mente e do espírito do Congresso de Lausanne”.

A elaboração do documento foi atribuída a uma pequena comissão que incluía Stott; o então presidente do Wheaton College, Hudson Armerding; e Samuel Escobar, um teólogo peruano da InterVarsity Christian Fellowship.

Meses antes da reunião de julho, os participantes receberam artigos escritos de todos os palestrantes e lhes foi solicitado que enviassem um feedback por escrito. Um esboço preliminar escrito na época por J. D. Douglas, editor da Christianity Today, baseou-se nos principais temas e insights desses artigos.

Em sua exposição, Stott explica: “Já podíamos dizer que aquele documento verdadeiramente saiu do Congresso (embora o Congresso ainda não tivesse se reunido), porque refletia as contribuições dos principais palestrantes, cujos artigos haviam sido publicados com antecedência.”

Antes da conferência, uma versão inicial foi enviada a vários consultores, cujos comentários foram usados ​​para orientar a primeira revisão do documento. Então, uma segunda revisão foi supervisionada pela comissão.

Mas os redatores também queriam se envolver com os próprios participantes, ouvi-los e aprender com eles. Então, no meio da reunião de julho, cada participante recebeu uma cópia da terceira versão do pacto e lhes foi solicitado que enviassem seus feedbacks e discutissem o conteúdo em pequenos grupos que eram organizados a cada dia.

A partir desses feedbacks, quaisquer objeções e emendas sugeridas eram enviadas à consideração da comissão de redação. De acordo com Stott, o congresso

respondeu com grande diligência. Muitas centenas de respostas foram recebidas (nas línguas oficiais), traduzidas para o inglês, classificadas e estudadas. Algumas emendas propostas cancelavam-se mutuamente, mas a comissão de redação incorporou tudo o que pôde.

No fim, essa negociação impactou substancialmente o documento final em torno de três temas principais. Primeiro, uma declaração cuidadosamente negociada sobre a inerrância bíblica foi acrescentada. Segundo, a declaração do pacto sobre responsabilidade social foi reforçada. Terceiro, várias mudanças foram feitas para refletir as preocupações e a sabedoria da igreja global de fora do mundo ocidental. Esses três temas, acredito eu, resumem as lições de Lausanne para o nosso momento atual.

I. O artigo sobre a autoridade das Escrituras foi fortalecido de modo a incluir uma declaração cuidadosamente negociada sobre inerrância, declaração essa que foi influenciada pela contribuição de Francis Schaeffer e de outros, e dizia que a Bíblia é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Essa mudança específica foi muito contestada, criando um desafio significativo para a comissão de redação.

Por um lado, as razões para incluir uma declaração sobre inerrância eram fortes. Uma visão diferente das Escrituras era a raiz de muitas divergências profundas entre evangélicos e cristãos progressistas. A alegação modernista, motivada pela alta crítica, dizia que a Bíblia era “autoritativa”, mas que sua mensagem estava sempre sujeita a mudanças, devido a seus muitos erros.

Lado a lado com essa afirmação, muitos cristãos liberais rejeitaram a crença na ressurreição, no nascimento virginal e na historicidade de Adão e Eva. E embora essas três alegações clássicas do cristianismo não sejam de igual importância, rejeitar qualquer uma delas é uma revisão importante com consequências de longo alcance.

Esclarecer a natureza dessa discordância sobre as Escrituras era algo que estava em primeiro plano na mente dos organizadores da conferência. Por um bom motivo, os evangélicos não podiam facilmente celebrar parcerias em missões mundiais com pessoas cuja compreensão do evangelho não incluísse, por exemplo, a ressurreição corpórea de Jesus — pois isso seria outro evangelho totalmente (Gálatas 1.6-9). Como disse o apóstolo Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, inútil é fé que vocês têm” (1Coríntios 15.17).

Mas também, no contexto imediato, a conferência de Lausanne foi uma resposta à Conferência de Bangkok sobre a Salvação Hoje, convocada no ano anterior (1973) pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI; em inglês, World Council of Churches, WCC). Até mesmo o local foi escolhido, em parte, por causa da proximidade entre Lausanne e Genebra, onde o CMI está sediado.

A Conferência de Bangkok incluiu delegados evangélicos, bem como cristãos liberais e de igrejas históricas mais tradicionais, muitos dos quais tinham se afastado da ortodoxia. E embora seu relatório final inclua uma concessão aos evangélicos, quando afirma com Atos 4.12 que “não há nenhum outro nome [somente o nome de Jesus] dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”, outros pedidos para fortalecer a teologia do evangelho — ecoando a Declaração de Frankfurt, de 1970, na qual os cristãos alemães se opuseram à “virada humanista” das missões no CMI — foram rejeitados como contribuições ocidentais que não falavam por todos.

Além disso, o relatório de Bangkok incluiu declarações que rotulavam qualquer libertação da opressão social como uma forma de salvação, entre elas “a paz do povo no Vietnã, a independência em Angola, a justiça e a reconciliação na Irlanda do Norte e a libertação do cativeiro do poder”. Peter Beyerhaus escreveu para a Christianity Today:

Aqui, sob uma capa aparentemente bíblica, o conceito de salvação foi tão ampliado e destituído de sua qualidade distintamente cristã que qualquer experiência libertadora pode ser chamada de “salvação”. Por consequência, qualquer participação em esforços libertadores seria chamada de “missão”.

Beyerhaus acrescentou que a conferência também apresentou o maoísmo — o comunismo da China — como uma alternativa aceitável ao cristianismo. Da mesma forma, a igreja do profeta Simon Kimbangu — que alegava ser a manifestação encarnada de Deus Pai e que seu filho era a segunda encarnação de Jesus — foi apresentada como um exemplo louvável de um ministério autóctone.

Mais do que comentários improvisados, esses foram apelos intencionais da liderança do CMI às igrejas asiáticas e africanas, e quaisquer objeções teológicas foram descartadas como tentativas inúteis de assimilar igrejas autóctones ao pensamento ocidental.

Embora ninguém possa ditar quem tem permissão para se autoidentificar com o termo cristão ou mesmo evangélico, o Pacto de Lausanne fundamenta a unidade cristã em uma missão compartilhada de proclamar “o evangelho integral ao mundo todo”. Essa missão é o motivo pelo qual nos juntamos a essa comunidade muitas vezes incômoda e conhecida como igreja, a despeito de nossas diferenças.

Sérias discordâncias sobre a natureza do evangelho podem com frequência remontar a duas maneiras fundamentalmente diferentes de entender as Escrituras. Todos neste debate podiam concordar que as Escrituras eram “autoritativas”; mas e quanto a seus ensinamentos: estavam sempre mudando e eram repletos de erros?

Por outro lado, mesmo para muitos cristãos ortodoxos, o termo inerrância ainda era o ponto de discórdia. Inerrância era um termo que já trazia consigo certa carga, pois estava sendo usado por alguns fundamentalistas como um teste doutrinário decisivo. Para agravar o problema, o termo foi mal definido, pois ainda se passaram anos antes que as declarações de Chicago sobre inerrância e hermenêutica fossem escritas, em 1978 e 1982, respectivamente. Não deveria ser surpresa, então, o fato de que muitos participantes se opuseram veementemente ao uso que o pacto fazia do termo inerrância, em sua declaração sobre as Escrituras.

A solução de Stott para esse impasse foi forjada no processo de negociação e foi sábia. Em vez de exigir o uso da palavra inerrância, ele a substituiu por uma definição concisa e destacada do termo, dizendo que a Escritura é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Evangélicos que se opunham ao termo inerrância poderiam afirmar isso, mas muitos progressistas não o fariam.

II. O congresso também reforçou o artigo do pacto sobre responsabilidade social. Neste ponto, mais uma vez, os redatores estavam se distinguindo tanto dos progressistas no WCC quanto da reação exagerada dos fundamentalistas ao evangelho social do liberalismo.

Traçar o caminho do próprio Billy Graham na questão da justiça social nos fornece algum contexto instrutivo. Em 1953, rompendo com sua criação sulista, Graham começou a insistir que sua audiência fosse integrada, tendo negros e brancos sentados lado a lado.

Em 1960, Billy Graham falou em encontros de avivamento de amplo alcance em vários países da África — pregando o evangelho para multidões gigantescas em estádios lotados — mas ele não estava disposto a pregar o evangelho para multidões segregadas pelo apartheid sul-africano.

As ações deliberadas de Billy Graham eram declarações sociopolíticas claras sobre a integração racial na igreja — e enfureceram muitos fundamentalistas, incluindo os de sua própria denominação, os batistas do Sul.

Uma semana após Billy Graham se recusar a pregar na África do Sul, Bob Jones Sr., evangelista fundamentalista e apresentador, respondeu a isso em uma mensagem de Páscoa na rádio, intitulada “A segregação é bíblica?”. Argumentando a partir de uma leitura enviesada de Atos 17.26, Jones ensinou que a resposta era sim [ou seja, que a segregação racial é bíblica]. Os esforços para integrar as raças e acabar com a segregação, segundo ele argumentou, trabalhavam contra a ordem criada por Deus e desviavam da tarefa de compartilhar o evangelho. Nesse aspecto, Jones repercutia as opiniões de muitos cristãos do Sul.

Embora o apartheid tenha continuado até a década de 1990, Billy Graham finalmente pregou na África do Sul em 1973, apenas um ano antes de Lausanne — talvez em um dos primeiros grandes ajuntamentos no país a reunir pessoas negras, brancas e pardas sentadas lado a lado. Para uma multidão integrada por 100.000 pessoas, o pregador sulista bradou: “O cristianismo não é uma religião do homem branco […] Cristo pertence a todas as pessoas.”

Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.

Billy Graham era amigo de Martin Luther King Jr., e às vezes um aliado público da causa de King; seu desejo de ver justiça racial ainda no curso de sua vida continuava a crescer. Mas ele se questionava se já tinha feito o suficiente e, em 2005, Billy Graham expressou arrependimento por não ter feito mais pressão pelos direitos civis, desejando ter protestado com King nas ruas.

Este contexto dá vida à versão final do texto do pacto, que distingue a tarefa de proclamar o evangelho — centrando a mensagem de Deus para nós especificamente na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo — da tarefa de [buscar a] justiça social:

Aqui também expressamos arrependimento tanto por nossa negligência quanto por termos às vezes considerado evangelismo e preocupação social como coisas mutuamente excludentes. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, e ação social não seja evangelismo, e libertação política não seja salvação, ainda assim, afirmamos que evangelismo e envolvimento sociopolítico são ambos parte de nosso dever cristão.

Em resposta à Conferência de Bangkok, o Pacto de Lausanne deixa claro que a libertação da opressão não é sinônimo do conceito bíblico de salvação. No entanto, o pacto também evitou o erro fundamentalista de negligenciar a justiça social, e até mesmo chamou os evangélicos ao arrependimento por dissociar o cristianismo de sua preocupação legítima com a ordem social.

Essas são lições críticas para nós nos dias de hoje. Nossas dificuldades atuais, quando falamos e pensamos sobre raça, diversidade e justiça social, não são novas. O debate teológico sobre o evangelho e a justiça social é ao menos tão antigo quanto a controvérsia modernista-fundamentalista. Os evangélicos rejeitaram corretamente o evangelho social e formas particulares da teologia da libertação que levavam a um afastamento do ensino cristão histórico. No entanto, muitas vezes fomos demasiadamente complacentes — e demasiadamente despreocupados com essa complacência — em nossa busca por justiça.

Hoje, uma batalha contenciosa se desenrola sobre a teoria crítica da raça (TCR) e iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Existem muitas maneiras de definir e implementar a TCR e as iniciativas de DEI, algumas das quais se aproximam de versões secularizadas da teologia da libertação. Mas o desejo motivador de incluir e encorajar a diversidade na sociedade é admirável e, em última análise, reflete um anseio pelo reino de Deus. É por isso que muitos apelos cristãos por justiça racial são motivados pela linguagem e por preocupações das Escrituras e até mesmo fundamentados na pessoa de Jesus Cristo.

Pelo menos em alto nível, os objetivos declarados da teoria crítica da raça e das iniciativas de diversidade, equidade e inclusão não são o problema, mesmo que temamos que muitas das abordagens comuns para esses fins sejam equivocadas ou destrutivas. Para aqueles de nós que estão preocupados com versões antibíblicas da TCR, o melhor antídoto pode ser seguir o exemplo do Pacto de Lausanne. Que possamos articular uma teologia robusta de justiça e seguir adiante em nossas ações — e que possamos ser penitentes por nossas falhas no passado em buscar justiça.

III. Ao estudar o Movimento de Lausanne, sempre fico impressionado com o orgulho, a alegria e o amor de seus participantes pela diversidade da igreja global não ocidental e com seu desejo de dar-lhe mais voz. A conferência é estruturada para incluir pessoas dos países mais remotos, com baixa representatividade e poucos recursos. Ela oferece taxas de inscrição variáveis ​​para garantir que os participantes com menos recursos possam comparecer. Mesmo que os organizadores reúnam o grupo mais diverso e global de cristãos da história a cada reunião, eles sempre expressam tristeza por aqueles rincões da igreja que não conseguem comparecer.

Dito isso, o compromisso de Lausanne com a participação global enfrentou vários obstáculos já no início de sua história — a começar por seu primeiro encontro, no qual mais de 1.000 dos 2.700 participantes vieram de países em desenvolvimento.

Antes de Lausanne, alguns líderes africanos propuseram uma “moratória” [do engajamento] de missionários ocidentais na África e de quaisquer recursos financeiros arrecadados por meio de suas organizações. Isso ocorreu, em parte, porque muitos se opuseram aos padrões paternalistas que viam nas missões, geralmente nutridos por grandes desigualdades de riqueza.

As missões ocidentais, mesmo quando bem-intencionadas, às vezes eram exploradoras e falhavam em criar relacionamentos saudáveis ​​e colaborativos que bem servissem aos países não ocidentais. E, com certeza, a associação do movimento missionário da cultura ocidental com o cristianismo distorceu o evangelho e, muitas vezes, foi um obstáculo para o resto do mundo.

Os organizadores de Lausanne convidaram cristãos de todos os lados deste debate para o congresso, entre eles o teólogo queniano John Gatu, o autor da moratória. No congresso, o grupo East Africa National Strategy, composto de cerca de 60 africanos, abordou a questão desta solicitação. Um debate robusto e razoável ocorreu entre Gatu, que defendia a moratória, e Festo Kivengere, um bispo anglicano de Uganda que argumentava contra ela. Ao fim de uma semana, ambos os lados entenderam suas diferenças o suficiente para oferecer uma declaração de consenso ao congresso:

A ideia por trás da moratória é a preocupação com a dependência excessiva de recursos estrangeiros, tanto humanos quanto financeiros, o que às vezes dificulta a iniciativa e o desenvolvimento da responsabilidade local. [Nosso] grupo sentiu que a aplicação do conceito por trás da moratória poderia ser considerada para situações específicas, e não de forma geral.

Com a decretação de uma moratória em larga escala efetivamente retirada, o restante do congresso — e a comissão de redação amplamente ocidental — poderia ter respondido de forma triunfante, evitando a questão por completo. Mas, em vez disso, a comissão reconheceu a legitimidade das preocupações dos africanos e alterou o documento, a fim de declarar: “Também reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito lentas em equipar e encorajar os líderes nacionais a assumirem suas responsabilidades legítimas”.

Em outro ponto, em seu artigo sobre “Evangelismo e Cultura”, o pacto também inclui um reconhecimento de que, embora o “evangelho não pressup[onha] a superioridade de uma cultura sobre a outra” , as missões globais “muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha”.

O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.

Nessas declarações, a igreja não ocidental corrigiu com razão a igreja ocidental, e o Ocidente respondeu com arrependimento. Mais uma vez, a “ multiforme sabedoria de Deus”, para relembrar a frase usada no pacto, surgiu por causa de discordâncias que precisavam ser resolvidas, e não apesar delas.

Na raiz dessa questão estava o desejo comum dos cristãos não ocidentais de serem recebidos como iguais. E o Pacto de Lausanne saúda abertamente a beleza dessa visão:

Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente […], demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo.

Cinquenta anos atrás, os evangélicos estavam se conscientizando de como as igrejas não ocidentais sofriam quando o evangelho era intimamente vinculado a culturas e países ocidentais. Em nossos dias atuais, estamos vendo em primeira mão os perigos e danos que essa ligação causou às igrejas ocidentais também.

Sempre que identificamos o cristianismo com o Ocidente, com os Estados Unidos ou com qualquer outra entidade sociopolítica, nosso testemunho e nossa compreensão do evangelho são distorcidos. E quando ignoramos a plena diversidade de vozes na igreja global, negligenciamos a “multiforme sabedoria de Deus”.

Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.Courtesy of Wheaton Archives &amp
Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.

O Pacto de Lausanne criou um estranho tipo de movimento — uma rede de cristãos de várias denominações e organizações ao redor do mundo. E, embora o congresso em si fosse composto exclusivamente por protestantes, o pacto que eles adotaram estava intencionalmente alinhado com outros ramos do cristianismo. Pelo menos entre os bolsistas da Harvey Fellowship, muitos católicos e cristãos ortodoxos também assinaram o pacto.

Um cristão da China me contou, certa vez, que lhe pediram para assinar o pacto, o que lhe inspirou medo e preocupação reais. Na China, as assinaturas eram evidências físicas que o governo usava para identificar cristãos e persegui-los; por isso, ele fora ensinado a nunca assinar algo que lhe trouxesse implicações tão cabais. Ainda assim, após muita deliberação, ele decidiu assinar o pacto — a única declaração de fé que ele já assinou na vida. Muitos de nós nunca enfrentaremos uma perseguição como a dele, mas, ao assinar o pacto, estamos nos unindo em solidariedade a ele e a tantos outros como ele.

Particularmente fora dos Estados Unidos, a comunidade de Lausanne tem continuado a crescer e, embora continue repleta de discordâncias, manteve clara visão da missão daquele que é maior do que todas as nossas diferenças.

Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.Courtesy of Wheaton Archives & Special Collections, Wheaton College, IL
Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.

A comunidade de Lausanne continua a reunir novas gerações de líderes. Quinze anos após o congresso de 1974, em 1989, a Segunda Conferência Internacional para Evangelismo Mundial foi realizada em Manila, e ficou conhecida como Lausanne II. Este congresso teve 4.300 delegados de 173 países, incluindo a União Soviética. Em 2010, 21 anos depois, o Terceiro Congresso de Lausanne se reuniu na Cidade do Cabo, África do Sul. Desta vez, 4.000 delegados de 198 países se reuniram presencialmente, mas muitos outros participaram virtualmente.

Em setembro, o quarto congresso será realizado em Seul, onde 5.000 delegados — entre os quais eu me incluo — participarão presencialmente e outros 5.000 participarão virtualmente. Dezenas de milhares a mais comparecerão a reuniões-satélites pelo mundo todo.

Muita coisa mudou desde o último encontro em 2010. Novas guerras estão acontecendo ao redor do mundo, e rumores de guerra pairam até mesmo na Coreia, onde nos encontraremos. Os Estados Unidos estão se preparando para outra eleição presidencial contenciosa, junto com muitos outros países, e várias convenções denominacionais continuam a se dividir por causa de tensões entre fundamentalismo e progressismo.

Ainda assim, minha esperança é que os evangélicos tenham, mais uma vez, a oportunidade de lembrar quem somos, de onde viemos e por que é vital para nós trabalharmos as nossas diferenças, em vez de ignorá-las, reprimi-las ou nos dividirmos por causa delas. E talvez, ao nos reorientarmos para o trabalho da missão global de Deus, possamos recuperar a melhor versão do que já significou ser um evangélico.

Ao olharmos para Seul este ano, peço a todos os que creem — evangélicos ou não — que leiam, discutam e considerem assinar o Pacto de Lausanne. Que os líderes da igreja ensinem esse pacto do púlpito, para que as congregações possam refletir seriamente sobre o que ele exige de nós. Que ele nos lembre da bela e amada comunidade de diferenças e discordâncias para a qual somos chamados.

Vamos fazer esse pacto juntos, mais uma vez, o pacto de assumir a grande tarefa das missões mundiais, para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

S. Joshua Swamidass é um médico pesquisador, professor associado de medicina laboratorial e genômica na Universidade de Washington em St. Louis, fundador da Peaceful Science e autor de The Genealogical Adam and Eve [Adão e Eva Genealógicos].

¹Neste artigo, o termo “evangélico” abrange todas as tradições cristãs surgidas como desdobramento das Reformas protestantes, incluindo pentecostais, neopentecostais e independentes.

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