Por que os evangélicos discordam sobre o presidente

A razão pela qual estamos divididos e como podemos nos unir.

Christianity Today November 4, 2020
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Eddie Brady / Tasos Katopodis / Stringer / Getty Images / Jesse Zhou / Unsplash

Este artigo foi escrito tendo as eleições norte-americanas como pano de fundo. No entanto, muitos dos pontos aqui podem ser aplicados à realidade brasileira e de outros países de língua portuguesa.

Todos os quatro evangelhos descrevem a violência no Getsêmani. Jesus chorou sozinho entre as oliveiras, orando para que o cálice do sofrimento passasse dele. Quando ele voltou para junto de seus discípulos cansados, soldados e líderes religiosos os confrontaram. Pedro respondeu com um golpe de espada e cortou fora a orelha de um homem chamado Malco. “Guarde sua espada”, disse Jesus, enquanto curava Malco. “Acaso não beberei o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18.11).

Jesus foi levado ao sumo sacerdote, e depois ao governador romano. “Meu reino não é deste mundo”, disse ele a Pilatos. “Se fosse, meus seguidores lutariam para impedir que eu fosse entregue aos líderes judeus. Mas meu reino não procede deste mundo”(18.36).

O reino dos céus é um mistério. Não vem com uma espada, mas com um sacrifício; não vem com uma coroa de metal, mas com uma coroa de espinhos. Ele vem não por meio dos poderes do mundo, mas pelo poder invertido da cruz, ou seja, o poder da impotência. Pedro atacou com a espada. Jesus bebeu do cálice.

Essa história vem à mente quando nos aproximamos de uma eleição presidencial com profundas divisões entre nós. Cristãos evangélicos que labutaram por muito tempo no mesmo lado, agora se encontram em campos adversários. Um lado declara que não consegue compreender como homens e mulheres que compartilham sua fé podem, em sã consciência, apoiar o candidato da situação. O outro se pergunta como alguém que se guia pela Palavra pode rejeitar o candidato da situação. Os dois lados não discordam apenas, mas não conseguem se entender. Incapaz de enxergar lógica no argumento do outro, cada lado afirma que o outro sucumbiu à falta de razão, ao preconceito ou ao desejo de poder ou de aprovação.

Nossa incapacidade de compreender a racionalidade de um ponto de vista oposto é mais frequentemente uma falha de imaginação de nossa parte do que uma falha de racionalidade da parte deles. A diferença entre os dois lados não pode ser que um lado seja verdadeiramente cristão e o outro não, ou que um dos lados detenha o monopólio das boas ideias e boas intenções. Incontáveis homens e mulheres, que lutam com todas as suas fibras para seguir a Jesus, encontram-se dos dois lados.

Se fosse uma divisão entre evangélicos conservadores e progressistas, seria mais facilmente compreensível. No entanto, essa é uma divisão entre os evangélicos conservadores, e lutei durante anos para entendê-la. Talvez ainda não a tenha entendido, mas quero explicá-la da melhor forma que puder. Passei a acreditar que, por trás das diferenças entre nós, está uma visão diferente do reino de Deus.

Após a publicação do editorial do ex-editor-chefe Mark Galli, em dezembro, e minha declaração reafirmando a consistência de sua preocupação, ouvi amigos respeitados e amados que estavam de coração partido. Lutamos incansavelmente, disseram eles, para salvar a vida dos embriões. Estamos na linha de frente, defendendo as liberdades religiosas que permitem que famílias e igrejas vivam de acordo com a consciência. Estamos trabalhando, eles disseram, em prol de um governo e de uma cultura que ouçam as preocupações cristãs e honrem os valores cristãos. Ouvir tais afirmações foi para mim tão doloroso quanto deve ter sido para eles fazerem-nas, pois queridos amigos sentiram que estávamos traindo a causa em um momento crítico.

Com algumas exceções, o sentimento geralmente veio de pessoas que foram formadas em ambientes onde o cristianismo era, ou até recentemente tinha sido, a força cultural predominante. Eles acreditavam que a ética cristã sempre fora uma influência para o bem e, conforme essa influência foi diminuindo, viram as próprias liberdades serem restringidas, mas também o bem comum da comunidade se deteriorar. Eles também acreditavam que anos de política externa progressista haviam diminuído nossa presença global e feito vista grossa para a perseguição cristã no exterior. Essas preocupações os levaram a apoiar um político que contradiz os valores cristãos em seu comportamento pessoal, mas que, segundo acreditavam, promove os valores cristãos na arena pública. Eles não admiravam a personalidade desse político nem subscreviam à sua retórica, mas acreditavam que ele e o partido que representa trariam o maior bem para a sociedade como um todo.

Vou chamar esse contingente de Igreja Reinante. A Igreja Reinante vê o reino de Deus, o fim pelo qual nos esforçamos, como um mundo no qual homens e mulheres são livres para seguir sua fé, a vida é considerada sagrada desde a concepção até a morte, as famílias podem criar seus filhos na verdade bíblica, as igrejas assumem a liderança nas práticas de caridade, e o governo garante uma ordem estável para o florescimento de empreendimentos significativos.

Os membros da Igreja Reinante estão preocupados com as políticas externa e econômica, mas se sentem especialmente compelidos a apoiar o atual governo por suas posições sobre a vida e a família. Não votar no candidato republicano dá poder ao partido que protege o terrível regime de aborto e promove uma ética sexual que leva a uma grande confusão e a sofrimento.

Existem, com certeza, forças de apoio ao presidente em exercício mais virulentas. Mas também há apoiadores amorosos e sensatos, e a discordância generosa exige que representemos nossos irmãos e irmãs da melhor maneira possível. Fazemos um desfavor à nossa fé quando caricaturamos nossos irmãos de fé.

Não há nada essencialmente irracional ou imoral na posição exposta acima. Ela leva a Igreja Reinante a dar mais valor à aquisição e ao uso do poder político. A Igreja Reinante vê a eleição inteiramente como uma batalha entre o bem e o mal. Os defeitos do presidente parecem pequenos quando a virtude do mundo está em jogo. Ganhar o poder político significa proteger o modo de vida cristão e plantar sementes de verdade e virtude na cultura, trazendo, assim, a bênção de Deus sobre a terra. Perder o poder político significa que a cultura mergulha em uma espiral profunda de imoralidade e inverdade, erodindo os fundamentos da sociedade e levando a um sofrimento maior para todos. Para esses amigos, então, minar o apoio ao presidente é minar o poder dos cristãos de moldar políticas de modo a proteger a igreja e a beneficiar o mundo.

É claro que o outro grupo respondeu de maneira bem diferente ao editorial de Galli. Eles ligaram e choraram ao telefone. Eles enviaram balões para a redação. Eles nos encorajaram a permanecer firmes contra as críticas fulminantes. Eles ficaram imensamente gratos por alguém ter articulado seus profundos receios éticos e espirituais sobre o apoio evangélico a Trump.

Como isso pode ser? Os dois grupos não estão divididos ao longo de linhas teológicas, e ambos seriam considerados conservadores antes do movimento Trump. Eles estudam as mesmas Escrituras, afirmam os mesmos credos e cantam os mesmos hinos. Eles também têm em comum a maioria dos compromissos éticos fundamentais, desde a liberdade religiosa e a santidade da vida até o propósito amoroso de Deus para o casamento e a sexualidade.

Vamos chamar o segundo grupo de Igreja Remanescente. Ao contrário da Igreja Reinante, a Igreja Remanescente tende a vir de lugares onde o cristianismo não é a autoridade cultural ou política dominante. Claro, essas são generalizações, mas a Igreja Remanescente tende a ser mais jovem, mais urbana e com mais diversidade do que a Igreja Reinante. Os membros da Igreja Remanescente têm maior probabilidade de viver à margem do poder, às vezes, deliberadamente e, às vezes, por exclusão.

Esse contingente é maior do que se imagina. Quando os evangélicos são definidos pela crença e todas as etnias são incluídas, vemos que apenas 58% dos eleitores evangélicos apoiaram Trump em 2016 — o que não diz absolutamente nada a respeito daqueles que optaram por não votar.

A Igreja Remanescente é cativada por uma visão fundamentalmente diferente do reino de Deus. O reino, nessa visão, é sagrado demais para ser confundido com ganhar eleições e aprovar leis. Não é uma dispensação política nem uma ordem social. Não é um reino deste mundo. Em vez disso, o reino irrompe no tempo e no espaço, quando homens e mulheres enviados pelo rei buscam os perdidos e servem aos menores dentre todos. O reino dos céus está entre nós, quando pregamos o evangelho em palavras e atos, servimos aos sem-teto e aos refugiados, e nos colocamos ao lado de nossos próximos que sofrem.

Para a Igreja Remanescente, o reino de Deus tem menos a ver com adquirir poder do que com desinvestir-se de poder, renunciando aos nossos direitos e privilégios como Cristo fez (Fp 2), a fim de servir aos que não têm voz. Em outras palavras, a cristandade não é o reino, e representar a cristandade não é o mesmo que representar Cristo. O reino dos céus não é sobre a espada, mas sobre o cálice, não é sobre nos defendermos, mas sobre morrermos para nós mesmos.

Por essa razão, a Igreja Remanescente dá mais prioridade à pureza da Igreja do que à prosperidade do país. A prosperidade nacional é importante, mas as nações florescem e caem, enquanto a Igreja permanece por toda eternidade. Sua unidade e integridade testemunham o caráter divino de Cristo (Jo 17) e não podem ser comprometidas. Isso torna a Igreja Remanescente mais otimista quanto à perda de influência cultural e política. A sede do poder possui uma enorme atração gravitacional, que muitas vezes distorce nossa capacidade de ver e testemunhar Cristo claramente. Às vezes, a Igreja precisa de um tempo no deserto para se lembrar de quem ela é.

A Igreja Remanescente prefere que a Igreja perca sua influência do que sua integridade, mesmo que a perda das liberdades religiosas leve à perseguição. Quando a perseguição alguma vez derrotou a Igreja? Certamente, o mesmo Deus que criou as estrelas, e que preservou a Igreja ao redor do mundo por dois mil anos, pode preservar a igreja americana contra quatro anos de exílio político. A igreja sempre morre a partir de dentro somente.

Mas, se a igreja perder sua integridade e, portanto, seu testemunho, a cultura ao redor sofrerá. Na verdade, para a Igreja Remanescente, o apoio evangélico ao presidente promoveu valores corrosivos na cultura — encorajando o narcisismo e o materialismo, a ganância e a luxúria, o racismo e o sexismo — que são tão prejudiciais, senão mais, do que políticas mal concebidas.

Os leitores que ficaram gratos pelo editorial de Galli não atiraram pedras em outros crentes que votaram relutantemente em Trump. Eles estavam mais preocupados com os líderes evangélicos que criaram a impressão de que toda a Igreja havia se unido em torno dele, especialmente quando esses líderes não se mostravam dispostos a condenar publicamente o mau comportamento de Trump ou a defender as vítimas de sua retórica. Isso, em sua opinião, manchou o testemunho do corpo de Cristo. Isso levou seus amigos a deixarem as igrejas e seus filhos a renunciarem à criação que receberam. Quantidade nenhuma de vitórias políticas poderia justificar isso. Eles sentiam que os evangélicos brancos haviam vencido a eleição, mas perdido uma geração.

A discordância entre a Igreja Reinante e a Igreja Remanescente tem menos a ver com manter valores diferentes do que com priorizá-los de forma diferente. A Igreja Reinante responderia que eles também valorizam o testemunho da Igreja e muitas vezes dão a vida para o evangelismo e o serviço, mas os cristãos são chamados a lutar por coisas que são importantes para Deus, mesmo quando isso nos torna impopulares. A Igreja Remanescente diria que eles também se preocupam com a santidade da vida e a proteção da Igreja e da família, e lutarão por essas causas de outras formas, mas não estão dispostos a ganhar influência à custa da integridade. Muitos também se apressariam a acrescentar que não podem apoiar o outro candidato, devido a seus pontos de vista pró-escolha; portanto, eles se veem incapazes de votar em qualquer um dos candidatos em sã consciência.

Então, onde isso nos deixa?

Alguns membros da comunidade da Christianity Today pertencem à Igreja Reinante e outros à Igreja Remanescente. Embora eu compreenda os dois lados, pertenço à Igreja Remanescente. Digo essas coisas não para envergonhar meus irmãos e minhas irmãs que pensam o contrário, mas para que possam entender meu coração. Eu acredito que o alinhamento evangélico com a administração de Trump promoveu os reinos humanos, mas não o reino de Deus. Minha preocupação é que isso cause danos à cultura e manche nosso testemunho por gerações. Claro, eu posso estar errado. Espero estar errado. Mas lamento que tantas pessoas olhem, agora, para os evangélicos e vejam Trump em vez de Cristo, e temo que, em consequência disso, meus filhos crescerão em uma sociedade mais hostil à sua fé. Estou de coração partido pelo fato de que tantos dos que estão à margem, em particular os cristãos negros, tenham sido feridos pelo apoio dos evangélicos brancos ao presidente.

Mas o amor exige que eu compreenda os homens e as mulheres (de todas as etnias) que pertencem à Igreja Reinante. Estes também são meus irmãos e minhas irmãs, homens e mulheres de mente sã e bom coração. É por isso que a Christianity Today continuará a ser um ambiente em que os evangélicos podem ter essas discussões, mas cercadas de muita reflexão e amor. Organizamos nossa série “Table”, no início deste ano, sobre diferentes pontos de vista do engajamento político evangélico. Publicamos argumentos eloquentes a favor e contra os dois candidatos. Fizemos uma parceria com o First Principles Project para superar as divergências partidárias e redescobrir os valores fundamentais, que informam por que e como os cristãos se envolvem na vida pública. E a conversa vai continuar.

O ato radical último em uma era radicalmente polarizada é amar e compreender os dois lados. O ano de 2020 já deixou muitos destroços em seu rastro. Estenda a mão para aqueles que discordam de você e demonstre o amor de Cristo. Seja qual for o resultado, precisaremos trabalhar juntos para levar o reino de Deus às ruínas do mundo, a fim de ajudar nosso povo a encontrar esperança novamente.

Timothy Dalrymple é presidente e CEO da Christianity Today. Siga-o no Twitter @TimDalrymple.

Traduzido por Maurício Zágari

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Books

Doenças mentais e a armadilha da “teodiceia médica”

Por que sentimos uma sensação tão palpável de alívio espiritual, quando o problema é com o corpo e não com a mente?

Christianity Today November 3, 2020
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Adolfo Félix / Dadalan Real / Unsplash / WikiMedia Commons

Há cinco anos, recebi um telefonema de uma amiga. Ela me contou que um de nossos amigos em comum havia tirado a própria vida. Ninguém sabia por quê.

Brian era um profissional de saúde bem-sucedido, com esposa, família e um futuro aparentemente muito brilhante. Muitos não viram indicação alguma de que algo estava errado, embora aqueles em contato próximo com ele soubessem que havia problemas. Ele apenas acordou certa manhã e, depois, nunca mais foi visto com vida. Todo mundo ficou arrasado.

O que você faz com uma notícia como essa? Uma das experiências humanas mais dolorosas deve ser dizer até mais tarde a um ente querido, pela manhã, e depois, nunca mais ver essa pessoa com vida. Pediram-me para pregar no velório de Brian. Preguei sobre os salmos de lamento e o amor infinito e infalível de Deus. Tentei ajudar as pessoas a verem que a alegria que Deus promete inclui sofrimento, e que os salmos de lamento oferecem uma linguagem fidedigna para expressar dor, quebrantamento, raiva e decepção pelo que meu amigo havia feito e pelo que Deus aparentemente não fez: salvá-lo.

Duas afirmações

Brian era cristão; ele amava Jesus, assim como sua família e muitos de seus amigos. E, apesar do profundo consolo do evangelho, para alguns, a primeira reação à sua morte por suicídio não foi consolo, mas medo. Apesar da sólida garantia do apóstolo Paulo de que “nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o que existe hoje nem o que virá no futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade, nada, em toda a criação, jamais poderá nos separar do amor de Deus revelado em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.38–39), eles temiam pelo futuro eterno de Brian. Acho que esse é o problema com as teologias hipercognitivas, que presumem que nosso futuro eterno está em nossas mãos, e não nas mãos amorosas de Deus. Se é verdade que nem morte nem vida podem nos separar do amor de Deus, então, não precisamos temer a morte, mesmo a morte por suicídio. Simplesmente precisamos confiar na graça de Deus.

Há uma tensão difícil entre reconhecer que Deus não abandona aqueles que acabam com a própria vida e o imperativo de que tais ações não são o desejo de Deus para os seres humanos. Como Warren Kinghorn, teólogo da Duke Divinity School, certa vez me lembrou, duas afirmações são indispensáveis para uma abordagem cristã do suicídio:

  1. O suicídio é uma tragédia e uma perda, e nunca deve ser encorajado nem visto pelos cristãos como algo positivo.
  2. Nada poderá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Se nós, cristãos, proferirmos uma dessas afirmações sem a outra, cairemos em erro. Meu sermão, no funeral de Brian, tentou captar a dinâmica complexa dessas duas declarações. Os salmos de lamentação articulam a realidade da tragédia e da perda lado a lado com a realidade do amor infinito de Deus. Essa abordagem não tira nossa dor, mas com certeza nos dá um certo tipo de esperança consoladora. Creio que as pessoas foram amparadas por esse sermão.

Mas, então, algo mudou.

Os resultados da autópsia chegaram, e descobriu-se que Brian tinha um problema na glândula pituitária que pode ter contribuído para sua depressão e morte, ao final. Algumas pessoas pareceram estranhamente aliviadas quando ouviram isso. “Ah! A questão não era, na realidade, a sua mente. Era o corpo dele que tinha um problema.”

Bem, pode ter sido esse o caso, mas há duas coisas a considerar, quando refletimos sobre essa reação. Primeiro, o dualismo espiritual é bastante surpreendente. Se a morte de Brian tem algo a ver com sua mente, então é um problema espiritual, mas, se tem a ver com seu corpo, é um problema médico. Segundo — e correlacionado ao primeiro ponto —, é interessante como a medicina se tornou, para alguns, uma teodiceia terapêutica, uma forma de explicar a presença do mal e do sofrimento perceptíveis. Se o problema encontra-se na psique humana, e se a psique humana é o ponto em que determinamos nossa salvação, então, Brian tem um problema real. Mas, se a questão é biológica, então, a medicina pode explicá-la, sem que haja necessidade de fazer perguntas incômodas sobre a natureza de Deus e o significado do sofrimento humano.

Um dos problemas dos ocidentais modernos é a tendência de equiparar alma e mente. Culturalmente, atribuímos um valor social excessivo ao intelecto, à razão, à rapidez de pensamento e à habilidade acadêmica. Certas vertentes do pensamento teológico podem ser sugadas por essa armadilha hipercognitiva, quando uma ênfase determinante é posta no intelecto e nas habilidades verbais, com a proclamação verbal do nome de Jesus tomada como um aspecto central e vital de nossa salvação. Quando pensamos assim, qualquer dano à mente se transforma, implícita ou explicitamente, em dano à alma.

Isso pode se tornar particularmente difícil para cristãos viverem bem com problemas de saúde mental, danos cerebrais ou algo como a demência. A implicação de que o problema real é o dano à alma ronda como um leão que ruge. A sensação palpável de alívio que alguns de meus bem-intencionados amigos cristãos expressaram, ao encontrar uma teodiceia médica, é um mero exemplo de um fenômeno cultural que é, para dizer o mínimo, problemático.

Uma linguagem libertadora

Avancemos de cinco anos para alguns meses atrás. Eu tinha acabado de descer de um voo de Aberdeen para Londres, e estava caminhando em direção à saída do aeroporto, quando um homem que eu nunca tinha visto antes me parou. “Você é John Swinton?”, ele disse. Nunca tenho certeza se devo responder a uma pergunta como essa! Mas, naquela ocasião, respondi. Ele disse: “Você falou no funeral de Brian, cinco anos atrás. Eu só quero agradecer-lhe. Nunca havia pensado em sofrimento e alegria daquela forma, e certamente nunca pensei que fosse normal ficar zangado com Deus e expressar raiva e frustração por meio dos salmos. Eu só queria agradecer.” Dito isso, ele foi embora.

Saí do aeroporto e peguei um trem para o centro de Londres. Enquanto pensava naquele rápido encontro, comecei a perceber que o problema que muitas pessoas sentiram, quando Brian tirou a própria vida, foi que elas não sabiam o que dizer. Os amigos de Brian não tinham uma linguagem eficaz para expressar a dor, a perda e, de fato, a raiva que sentiram em relação à situação — e, de muitas maneiras, em relação a Deus. Eles haviam se tornado monoidiomáticos em sua vida de fé, seguros e confiantes em relação à linguagem da felicidade e da esperança, mas completamente perdidos quando se tratava da linguagem para expressar sofrimento, quebrantamento, decepção e, em particular, a compreensão bíblica da alegria.

Eles tinham ouvido Jesus dizer: “Eu lhes digo a verdade: vocês chorarão e se lamentarão pelo que acontecerá comigo, mas o mundo se alegrará. Ficarão tristes, mas sua tristeza se transformará em alegria” (Jo 16.20), mas não haviam experimentado a iluminação de suas palavras. Essa falta de uma linguagem adequada os levou a recorrer à medicina e à biologia para obter alívio intelectual e espiritual. Eles se voltaram para essas áreas da ciência como teodiceias, não apenas porque aliviavam seus temores sobre o destino eterno de Brian, mas porque falavam uma língua com a qual estavam familiarizados. A medicina e a biologia representavam ambientes seguros. Dentro de sua tradição teológica, eles não conseguiam encontrar o tipo certo de linguagem para articular seus sentimentos e medos. A linguagem da medicina e da biologia preencheu essa lacuna.

Aquele desconhecido no aeroporto me ensinou que as palavras do meu sermão forneceram a ele uma linguagem para expressar a tristeza, a dor e a raiva que sentia, e que essa linguagem vinha de dentro de sua tradição de fé, de uma forma que ele não percebera anteriormente. Minha exposição sobre o poder dos salmos o moveu do silêncio para a fala. Eu o ajudei a reformular o lamento e a alegria.

Ao compreender a natureza e o propósito da alegria, podemos entender a depressão de uma maneira diferente, e isso nos proporcionará um modo de falar sobre a depressão (e de permanecer em silêncio) que é tanto libertador quanto, espero, curador. Compreender a depressão pelas lentes da alegria cristã pode nos ajudar a entender a depressão com mais profundidade e a reagir a ela com mais fé.

John Swinton é professor de teologia prática e cuidado pastoral na Universidade de Aberdeen, na Escócia, e diretor fundador do Centro de Espiritualidade, Saúde e Deficiência. Ele é o autor de Finding Jesus in the Storm: The Spiritual Lives of Christians with Mental Health Challenges (Eerdmans), obra da qual este ensaio foi adaptado.

Traduzido por Maurício Zágari

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As mulheres leem mais a Bíblia do que os homens. Por quê?

Mulheres que ensinam a Bíblia e escrevem estudos bíblicos de sucesso revelam os fatores que levam as mulheres a priorizar o tempo com as Escrituras.

Christianity Today October 30, 2020
Illustration by Sarah Gordon / Source Image: Dave & Les Jacobs / DigitalVision / Getty

Quando Anne Graham Lotz era criança, ela fez uma trilha de 22 quilômetros nas montanhas Blue Ridge, acompanhada de uma amiga. A certa altura, elas se viram perdidas em um bosque de loureiros, sem saber como encontrar o caminho de volta. “Esses bosques podem cobrir a encosta de uma montanha, e você se vê em uma mata cerrada”, disse Anne Lotz a CT. “Você não consegue ver nada acima, além, nem dos lados”. Felizmente, sua amiga tinha levado uma bússola na mochila, e, com ela, puderam definir seu curso para o norte e encontrar o caminho para sair daquele bosque. “Voltamos à trilha que havíamos perdido e chegamos onde precisávamos chegar”, disse Anne Lotz, “e tudo acabou bem”.

Ela compara essa experiência ao seu modo de abordar a leitura da Bíblia todos os dias. “Quando me levanto de manhã e passo um tempo com o Senhor, é como acertar minha bússola para que, independentemente da direção que eu tome durante o dia, a bussóla sempre aponte o norte”, disse Lotz. “Meus pensamentos e minha atenção estão centrados no Senhor.

Mulheres lideram no compromisso com as Escrituras

O empenho de Anne Lotz em gastar um tempo diário com a Palavra reflete os hábitos de compromisso com a Bíblia de muitas mulheres americanas. O estudo do cenário religioso conduzido pelo Pew Research Center relata que, entre os protestantes evangélicos, 66% das mulheres leem as Escrituras pelo menos uma vez por semana, em comparação com 58% dos homens. Embora esses hábitos de leitura da Bíblia possam incluir o envolvimento com as Escrituras durante um culto na igreja ou um estudo bíblico no meio da semana, as mulheres também ultrapassam os homens quando se trata de seu envolvimento com as Escrituras fora da igreja. De acordo com o Levantamento sobre Religião de 2017, conduzido pela Baylor University, 36% das mulheres cristãs passam um tempo sozinhas, semanalmente ou diariamente, lendo a Bíblia, em comparação com 29% dos homens cristãos.

A pesquisa sobre o Estado da Bíblia em 2020, encomendada pela American Bible Society (ABS) e conduzida pelo Instituto Barna, também descobriu que “as mulheres são mais comprometidas com as Escrituras do que os homens”. O estudo relata que mais da metade das mulheres americanas (52%) assumem as posturas de “amigas da Bíblia”, “engajadas na Bíblia” ou “centradas na Bíblia”, em comparação com 47% dos homens americanos. Os pesquisadores usaram o termo “amigas da Bíblia” para descrever aquelas que “interagem com a Bíblia de forma consistente” e podem considerá-la “uma fonte de entendimento espiritual e sabedoria”. O termo “engajadas na Bíblia” descreve aquelas que “interagem com a Bíblia de forma frequente — transformando seu relacionamento com Deus e com os outros”. Finalmente, “centradas na Bíblia” descreve aquelas cuja interação frequente com as Escrituras transformou não apenas seus relacionamentos, mas também suas escolhas.

O relatório da ABS também observa que os afro-americanos “são mais engajados nas Escrituras do que outros grupos raciais ou étnicos”. Entre os cristãos negros, o Pew Research Center relata uma diferença de gênero semelhante: 64% das mulheres cristãs negras leem a Bíblia pelo menos uma vez por semana, em comparação com 56% dos homens cristãos negros.

Então, por que as mulheres estão liderando na área de compromisso com a Bíblia? Embora os estudos do Pew research Center e da American Bible Society não abordem diretamente a causa definitiva dessas descobertas, outras pesquisas, apoiadas por observações de importantes autoras de obras sobre o estudo da Bíblia, apontam para possíveis razões sociológicas, culturais e eclesiásticas.

Diferenças nos hábitos de leitura

“Mais mulheres leem, para começar”, disse Sandra Glahn, professora do Seminário Teológico de Dallas e autora de estudos bíblicos, quando questionada sobre a elevada taxa de engajamento bíblico entre as mulheres. “Já sabemos disso há muito tempo. Existem muitas teorias sobre o motivo, porém, mais mulheres estão comprando livros, seja lá de qual tipo for”.

De modo geral, mulheres e meninas tendem a ler mais do que homens e meninos. De acordo com o estudo sobre as “Diferenças de gênero no desempenho nas áreas de leitura e escrita”, divulgado por American Psychologist, as mulheres leem mais do que os homens em quase todos os países desenvolvidos. Desde a infância, as mulheres também leem com mais profundidade e têm maior compreensão da leitura do que os homens. Embora a maioria das diferenças de gênero em relação às habilidades cognitivas sejam consideradas mínimas, triviais ou estatisticamente insignificantes, a diferença no desempenho em leitura “ultrapassa em tamanho o patamar dos efeitos de diferenças de gênero não triviais”. Em termos mais simples, as diferenças em termos de linguagem e leitura, entre homens e mulheres, são grandes o suficiente para serem significativas e importantes. Os hábitos de leitura frequente e profunda que as mulheres trazem para outros textos são provavelmente um fator de influência no engajamento das mulheres com as Escrituras.

Flexibilidade de cronograma

Embora alguns especialistas em negócios sugiram que horários de trabalho flexíveis são o futuro do emprego para homens e mulheres, as mulheres há muito priorizam a flexibilidade, a fim de equilibrar trabalho e vida familiar. Jackie Hill Perry, autora de Gay Girl, Good God e de um estudo recente da Bíblia LifeWay sobre o Livro de Judas, disse: “Não que as mulheres tenham mais tempo — mas acho que as mulheres têm mais tempo em casa”. Quer as mulheres estejam em casa trabalhando ou conduzindo a educação escolar dos filhos, Jackie Perry acredita que esse tempo em casa e a flexibilidade na programação diária fornecem a algumas mulheres mais oportunidades de se aprofundar nas Escrituras.

Jennie Allen, fundadora do IF: Gathering e autora do livro e estudo bíblico Get Out of Your Head, também disse que a liderança das mulheres no engajamento com a Bíblia provavelmente tem a ver com o fato de terem “margem” durante o dia. “Muitas mulheres que conheço faziam ‘Programas para Mães’”, disse Jennie Allen. “Elas levavam os filhos a estudos bíblicos, alguém ficava com eles por três horas, e essas mães [estudavam a Bíblia].”

Claro, nem todas as mulheres escolhem trabalhar em casa ou têm essa opção. Anne Lotz, comentando sobre o compromisso das mulheres com o estudo da Bíblia em épocas anteriores, disse: “Um dos motivos era porque as mulheres pareciam ter mais tempo em casa [. . .] e os homens trabalhavam fora de casa. Isso não é mais verdade, pois acho que há tantas mulheres trabalhando fora de casa quanto homens”. Na verdade, o US Bureau of Labor Statistics relata que, em 2014, cerca de 6 em cada 10 mulheres com 16 anos ou mais trabalhavam fora de casa (57%), em comparação com índices de 43% em 1970 e de 34% em 1950. Em 1900, apenas 6% das mulheres casadas trabalhavam fora de casa. Para as mulheres de hoje que não têm flexibilidade ou margem significativas em seus horários de trabalho, pode haver outros fatores que as estejam levando a priorizar o tempo gasto na leitura e no estudo da Bíblia.

Liderança e oportunidades de ministério limitadas

Christine Caine, fundadora da A21 Campaign and Propel Women, postula outra razão pela qual as mulheres americanas são tão altamente comprometidas com a leitura e o estudo da Bíblia: “Será porque não há oportunidades para as mulheres servirem de forma mais ampla no contexto da igreja local?”

Em seu estudo Christian Women Today, realizado em 2012, o Barna Group se referiu às mulheres como “a espinha dorsal das igrejas cristãs nos Estados Unidos”. Ainda assim, o estudo descobriu que, embora muitas mulheres estivessem satisfeitas com suas oportunidades de ministério e liderança, uma parte notável não estava. “Cerca de três em cada 10 mulheres que vão à igreja (31%) dizem que se resignaram com baixas expectativas quando se trata da igreja. Um quinto sente-se subutilizada (20%). Um sexto diz que suas oportunidades na igreja são limitadas pelo gênero (16%). Aproximadamente uma em cada oito mulheres se sente subestimada por sua igreja (13%), e uma em cada nove acredita que não é devidamente valorizada (11%). ” O relatório do Barna observa que, embora esses índices possam parecer baixos, eles representam milhões de mulheres que se sentem subutilizadas por sua igreja local.

As oportunidades limitadas de liderança e ministério que algumas mulheres encontram em suas congregações podem levá-las a procurar outras maneiras de servir e exercer seus dons espirituais. O estudo da Bíblia é uma àrea em que as oportunidades abundam. Christine Caine comentou sobre a diferença entre seu país natal, a Austrália, e a popularidade e a prevalência de ferramentas para estudos bíblicos escritos por mulheres na América. “Na Austrália é exatamente o oposto”, disse Caine. Ela acredita que, se as mulheres tivessem mais oportunidades de usar seus dons espirituais e de comunicação na igreja local, talvez “não nos ocorresse escrever um estudo bíblico, a menos que tivéssemos estudado em um seminário”.

Mulheres têm sucesso como autoras prolíficas de estudos bíblicos

Além de ultrapassar os homens em termos de frequência de engajamento com a Bíblia, as mulheres, como autoras de estudos bíblicos, regularmente lideram ou figuram nas listas de best-sellers de editoras cristãs. A LifeWay, por exemplo, lista as autoras de estudos bíblicos Beth Moore, Priscilla Shirer, Kelly Minter, Lysa TerKeurst, Jen Wilkin, Angie Smith e Lisa Harper entre seus autores mais vendidos.

Kelly Minter, autora do recente estudo bíblico da LifeWay Finding God Faithful: A Study on the Life of Joseph, disse que o sucesso e a visibilidade das autoras de estudos bíblicos fizeram aflorar seu desejo de escrever livros desse tipo. “Tudo começou com Kay Arthur, depois Beth Moore e Priscilla Shirer — os estudos bíblicos para mulheres realmente se tornaram populares. As pessoas começaram a viajar para participar de palestras dessas autoras, a ir a livrarias para comprar seus livros, a acessar a Amazon para comprar seus estudos”, disse Kelly Minter. “Eu não conhecia Beth Moore, mas ela me ensinou a escrever estudos bíblicos, e Kay Arthur também.” Kelly Minter observou que, mesmo sendo uma estudante do ensino médio, ela estava mergulhando nas Escrituras por meio dos estudos bíblicos de Kay Arthur.

Jennie Allen sugeriu que a popularidade das autoras de estudos bíblicos se devia, em parte, à oferta e à procura. Ela observou que as mulheres podem ser mais propensas a usar recursos de estudo, enquanto os homens podem abordar o engajamento com o estudo da Bíblia de uma maneira diferente. Jennie Allen disse: “Quando penso nos rapazes se reunindo na igreja, [observo que] eles tomam café das seis às sete [da manhã] e compartilham a vida. Eles colocam os assuntos em dia e prestam contas uns aos outros. Penso em meu marido [e] no que ele esteve [envolvido] ao longo dos anos; é algo do tipo: ‘Vamos estudar Romanos 8 ao longo de um semestre, com outros 10 irmãos’. Cada um deles pega um versículo e discorre sobre ele — é muito diferente”.

Jennie Allen também alega que as mulheres, que podem ter sido ensinadas principalmente por homens em suas congregações locais, anseiam pelas vozes e perspectivas de líderes femininas e querem essas vozes em suas vidas. Ela observou: “Foi aberto um caminho para o estudo bíblico para mulheres e para o treinamento de mulheres — porque a maioria dos professores de domingo e de quarta-feira à noite eram homens.”

Para algumas autoras, escrever um estudo bíblico não era o objetivo principal. Kay Arthur, fundadora da organização Precept e uma das mais prolíficas autoras e professoras de estudos bíblicos do mundo, disse: “Nunca sonhei em ser nada do que sou, exceto ser uma mulher de Deus. Nunca quis escrever estudos bíblicos. Nunca sonhei em ser uma preletora. Nunca sonhei em minha vida que escreveria um livro. Nunca pensei em começar um ministério. Simplesmente fiz o que Deus colocou diante de mim, um passo de cada vez, atravessando as portas que ele abria”.

Com relação aos graus mais elevados de engajamento das mulheres com a Bíblia, Kay Arthur disse: “Não sei dizer o porquê”, mas ela contou como seu próprio caminho para o ensino e a autoria de estudos bíblicos surgiu de uma necessidade que ela sentiu, quando deu aulas para adolescentes no México, e, depois, nos Estados Unidos. Ela citou um de seus versículos favoritos, Salmos 119.102, que diz: “Não me desviei das tuas ordenanças, pois tu mesmo me ensinaste” (NASB). Kay Arthur diz que seus estudos bíblicos surgiram de “uma paixão para que as pessoas descobrissem a verdade sobre Deus por si mesmas, aprendendo a estudar indutivamente”.

O poder transformador da Palavra

Como Kay Arthur, muitas das mais conhecidas mulheres que se dedicam a ensinar a Bíblia hesitam em tentar adivinhar por que as mulheres dedicam mais tempo à leitura das Escrituras do que os homens. Mas elas sabem por que são apaixonadas por isso: elas dão testemunho de como o tempo dedicado às Escrituras mudou suas próprias vidas e serve como base para seu relacionamento com Deus.

“Não creio que se possa conhecer a Deus pelo que ele é à parte da Palavra”, disse Anne Lotz. “Pode-se ter alguns vislumbres dele, talvez. Pode-se saber sobre ele, ver reflexos dele — mas ele se revelou com precisão por meio da Palavra escrita, a Palavra viva. ” Ela continuou: “Não quero conhecer a Deus por aquilo que algumas pessoas dizem que ele pode ser, ou pensam que ele é ou que não é. Eu quero conhecê-lo pelo que ele é. E se existe um Deus no universo, então quero saber os nomes pelos quais ele chama a si mesmo. Eu quero saber como ele se revelou. Eu não quero conhecê-lo de segunda mão ou através de ouvir falar”.

“As Escrituras não voltam vazias”, disse Angie Ward, docente do Seminário de Denver, citando Isaías 55.11. Andie Ward, autora de I Am A Leader: When Women Discover the Joy of Their Calling, destaca a importância de mergulhar nas Escrituras para conhecer a Deus profundamente, em vez de meramente adquirir conhecimento. “Informação por si só não equivale a transformação”, diz Andie Ward. “Definitivamente, há poder nas Escrituras, mas esse poder está em deixá-la penetrar em nossas vidas” e experimentar a transformação “por meio da ação do Espírito Santo. O Espírito Santo opera por meio das Escrituras”.

Jackie Perry diz que a Palavra transformou sua vida ao ensiná-la quem Jesus realmente é. “Sem as Escrituras, eu não teria qualquer base para saber quem ele é, porque é confiável e como minha vida deve se parecer por causa dessa confiança”, disse ela. “As Escrituras fornecem evidências para fé, razões para acreditar, combustível para a fé — mas também fornecem uma compreensão realmente clara de por que existo, e do que devo fazer nesta vida. [. . .] Sem [as Escrituras], eu ainda seria a mesma pessoa [que era antes de me tornar cristã]. ”

Cada uma das autoras e professoras de estudos bíblicos entrevistadas para este artigo se confessa apaixonada pelo modo que a Palavra de Deus pode transformar a vida daqueles que a encontram. Todas elas exortam todo cristão a fazer da leitura e do estudo da Palavra uma prática diária. “Pare de chamá-la de hora do silêncio”, argumentou Sandra Glahn. Afinal, nem todas as mulheres têm a capacidade ou a possibilidade de criar um ambiente silencioso e ideal para o estudo e a reflexão bíblica. Não precisamos esperar pelo momento ou lugar perfeito; o poder transformador da Palavra está muito próximo. Como dizia Santo Agostinho, tudo o que devemos fazer é “Pegar e ler. Pegue e leia”.

Halee Gray Scott, PhD, é autora, apresentadora de um programa de rádio e pesquisadora social cujo foco de estudo são as questões relacionadas ao ministério no século 21. Ela é a diretora da Iniciativa para Jovens Adultos no Seminário de Denver. Este artigo é parte de “Por que as mulheres amam a Bíblia”, a edição especial da CT destacando as vozes femininas no tópico sobre engajamento nas Escrituras. Você pode baixar um PDF gratuito dessa edição ou solicitar cópias impressas em MoreCT.com/special-issue.

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Preservando o corpo e nossos corpos para a adoração

A adoração on-line nos acostumou às telas ou podemos voltar a adorar em carne e osso?

Christianity Today October 23, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Priscilla Du Preez / Unsplash / Aaron Menken / Prixel Creative / Lightstock

No verão passado, batizei a filha de um amigo. Embora pequena e frágil, a batizanda permaneceu calma nos braços do pai, enquanto eu gentilmente derramava água em sua cabeça. Os padrinhos e o irmão mais velho se aglomeraram ao redor da pia batismal, e outro sacerdote conduziu a liturgia, enquanto eu orava e abençoava a mais nova integrante da igreja.

Na minha tradição anglicana, a congregação participa da bênção e promete ajudar a criar os recém-batizados como membros da família de Deus. Naquela manhã, eles proclamaram: “Nós a recebemos na comunhão da Igreja. Confesse a fé do Cristo crucificado, proclame sua ressurreição e participe conosco do sacerdócio real de todo o seu povo”. Ao ouvir as vozes que vinham do lado, de trás e de minha frente, fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que participam do batismo de uma pessoa.

O rito do batismo é corporal e comunitário. É a iniciação de um corpo físico, um ser humano, no corpo social e espiritual de Cristo, a igreja. O batismo significa a natureza e a forma de toda a vida cristã: seguir Jesus é ser corporalmente adotado em seu corpo (1Co 12.12). Como cristãos, submetemos nosso corpo individual a Deus, como instrumento de justiça (Rm 6.12–13). Humildemente oferecemos nossas forças individuais a outros membros da família de Deus, pois somos membros uns dos outros (Rm 12.3-5).

A adoração coletiva demonstra essa realidade semanalmente. Nós nos reunimos como corpos, apresentando-nos por inteiro a Deus em louvor e ação de graças. Cantamos e levantamos as mãos, ajoelhamo-nos para confessar e orar, tomamos o pão nas mãos e o comemos. Mas também nos reunimos como um corpo composto por muitos corpos, incorporando nossa fé individual em uma realidade comunitária mais ampla. O cristianismo nunca é apenas pessoal e privado, mas sim interpessoal e familiar. Nossa comunhão com Deus é a comunhão de uma família.

A pandemia encobriu essas realidades à nossa visão. A renúncia ao culto público forçou o isolamento necessário como expressão de amor ao próximo, mas, com o passar do tempo, nossa aclimatação à conexão digital — ou, em alguns casos, a nenhuma conexão com a igreja reunida — pode nos fazer esquecer de quem somos. Os cultos transmitidos por streaming ou podcast nos induzem a acreditar que somos almas presas a um corpo, e que a adoração é apenas uma questão de baixar conteúdo cristão. Perdemos contato (trocadilho intencional) com nossa participação corporal na adoração, quando “vamos à igreja” utilizando fones de ouvido, ou enquanto dirigimos ou dobramos roupa lavada no sofá.

Essa adoração individualizada e sob demanda também nos põe em risco de esquecer o corpo mais amplo de adoração, a igreja. Não vemos os outros membros de nossa congregação nem ouvimos suas vozes, quando cantamos. Não somos confrontados com suas lágrimas nem lembrados de suas lutas particulares. Devido à ampla disponibilidade dos serviços de transmissão on-line, nós facilmente "pulamos” da adoração de uma congregação para outra diferente, no Zoom, ou simplesmente ignoramos a adoração, trocando-a por outra mídia cristã.

Isso não é novo. Em 2000, Rodney Clapp escreveu profeticamente em seu livro Border Crossings sobre algo que ele chamou de “dupla desencarnação” do cristianismo moderno:

Discípulos […] são separados do corpo social da igreja, e sua fé, como crença, é separada de seus corpos físicos e do mundo social e material em que habitam. O culto coletivo está se tornando subordinado ao individual, como uma prática adjunta ou auxiliar do culto que os indivíduos empreendem por conta própria. […] Tais adoração e espiritualidade estão, é claro, eminentemente de acordo com o ethos do capitalismo, que favorece a multiplicação sem fim da escolha individual.

O cristianismo americano tem sido prejudicado pelo consumismo. O capitalismo valoriza o indivíduo e nos ensina a enxergar tudo, inclusive a igreja, pelas lentes da satisfação do cliente. Isso torna difícil abraçar a igreja como uma família à qual pertencemos e junto à qual temos responsabilidades.

Nossa separação forçada, durante a pandemia, é uma desencarnação que nenhum de nós escolheu. Mas ela criou condições que exacerbam o impacto do consumismo na igreja: nossa dispersão física e a maior dependência da adoração digitalizada e privatizada reforçam a mentira de que somos consumidores anônimos de conteúdo cristão, em vez de membros interdependentes de uma comunidade cristã. Essa mentira desencarna nossa adoração e desmembra nossa comunhão.

Qual é a solução? Enquanto a pandemia se alastra, a adoração on-line continua sendo uma necessidade. Mas podemos “discernir o corpo”, mesmo enquanto permanecemos separados fisicamente.

Primeiro, podemos envolver nossos corpos na adoração, tanto quanto possível. Podemos cantar junto, no momento da adoração, em nossa sala de estar. Podemos nos ajoelhar ou levantar as mãos, fazer anotações durante o sermão ou participar fisicamente de outras maneiras disponíveis.

A adoração corporal também pode ajudar a envolver as crianças. Meus filhos têm dificuldade de assistir ao culto todo on-line, mas adoram dançar durante as músicas. As famílias podem recrutar as crianças mais velhas para criar um espaço sagrado em casa, nas manhãs de domingo, decorando-o com velas, cruzes, Bíblias ou outros lembretes tangíveis de que entramos na presença de Deus como seres físicos, enraizados no tempo e no espaço. Adoração é mais do que consumo de conteúdo; é uma resposta encarnada.

Em segundo lugar, podemos nos lembrar de forma criativa do corpo social com o qual adoramos e ao qual pertencemos. Algumas igrejas incorporam vídeos ou pedidos de oração dos membros em seus cultos de domingo. Algumas famílias em minha igreja formaram um pequeno grupo para assistir aos cultos, de modo que ainda pudessem adorar juntas. Pesquisas sugerem que os cultos ao vivo promovem uma conexão maior do que a adoração pré-gravada, mas mesmo aqueles que precisam assistir aos cultos gravados podem discutir o sermão e orar com amigos da igreja, por telefone, durante a semana. Os ambientes de bate-papo com transmissão ao vivo, “cafés virtuais” antes ou depois do culto e hinos entoados por corais virtuais são formas de facilitar o envolvimento e a interação. Ver rostos e pronunciar seus nomes nos lembram de que a igreja é uma comunidade, não um grupo de consumo.

Terceiro, podemos orar para que Deus use a pandemia a fim de curar nossa “dupla desencarnação”. O distanciamento social e a quarentena já levaram a um ressurgimento da apreciação do contato físico pessoal. O que antes tínhamos como certo — apertos de mão, jantares com amigos, louvar juntos — agora são coisas que apreciamos ainda mais e pelas quais ansiamos. Talvez esta temporada de isolamento e recessão social leve a uma renovação na igreja.

Podemos orar para que nossa solidão revele a necessidade de um verdadeiro pertencimento, expondo a insuficiência da intimidade digital e do consumo anônimo. Podemos orar por um compromisso maior com o corpo composto de muitos corpos, que é a igreja — às vezes separados no tempo e espaço, mas mantidos em união pelo Cristo ressurreto. Podemos orar por graça para lembrar nosso batismo e os votos inerentes a ele. Pois “todos nós fomos batizados em um só corpo pelo único Espírito […]. De fato, o corpo não é feito de uma só parte, mas de muitas partes diferentes” (1Co 12.13–14).

Hannah King é pastora da Igreja Anglicana da América do Norte e reitora associada da Village Church, em Greenville.

Traduzido por Maurício Zágari

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Mesmo em meio à crise, aprender nunca é perda de tempo.

A COVID-19 não é desculpa para negligenciar o chamado de Deus para estudar e aprender.

Christianity Today October 22, 2020
Illustration by Chris Koehler

Lá estava eu, deitado em uma cama de hospital, sozinho, com uma dor lancinante percorrendo meu corpo. Por três meses, não consegui ficar em pé ou sentar por mais de 30 minutos. Os médicos não tinham solução para aquela dor constante nos nervos e para os espasmos musculares debilitantes. Em minha agonia, perguntava-me se minha vocação para o ensino cristão e a pesquisa havia chegado ao fim.

Antes de a dor começar, eu fora um professor bastante saudável e bem-sucedido na Universidade Baylor. Havia publicado vários livros, concluído um trabalho com uma bolsa significativa e apreciado discussões em classe com alunos de doutorado, em um programa que ajudei a criar. Em março de 2017, fui fazer o que presumi ser um procedimento médico de rotina. Pouco depois, eu estava em agonia.

Tornei-me um prisioneiro da dor. Para mantê-la sob controle, tive de definhar na cama. Eu não podia mais trabalhar, fazer exercícios, dirigir ou sentar à mesa com minha família para jantar. Eu me sentia isolado dos amigos e da igreja.

Também não podia cumprir minhas responsabilidades básicas como professor. Na maior parte daqueles meses, não tive ânimo para ler, muito menos para escrever. Em minha angústia, como a de Jó, sentia como se tudo o que havia me trazido realização ou senso de identidade me tivesse subitamente sido retirado. “Quem sou eu, agora que parece que perdi tudo?”, eu me perguntava. Eu seria capaz de ensinar, escrever e aprender da mesma maneira de novo?

É muito provável que as consequências da COVID-19 tenham levado alguns educadores e alunos a fazerem perguntas semelhantes. Talvez você (ou seus entes queridos) tenha contraído o vírus e enfrentado complicações de longo prazo. Talvez a rotina da sua vida tenha sido alterada por causa do aprendizado on-line, das restrições do isolamento ou de prejuízos econômicos. As crises sempre levantam questões sobre quem somos e o que Deus nos chamou a fazer. Espero trazer à memória as razões de nosso chamado para aprender — e para lidar com as barreiras e as distrações que as crises tendem a colocar em nosso caminho.

A oração deve assumir o controle

“Eu não quero morrer”, disse meu filho mais novo, enquanto falava sobre a COVID-19, certa noite, à mesa do jantar. Ele tem 16 anos e um sistema imunológico comprometido, assim como o de minha esposa. Meu outro filho costumava ter asma. Eu também tenho meus pais com 81 anos, e um deles com apenas parte do pulmão. Todos que amo parecem vulneráveis.

Eu sei que minha experiência não é única. Todos temos medo de perder pessoas que amamos. O espectro da morte nos assombra. Podemos perder de vista o chamado que recebemos de Deus. O que fazer, quando o medo da morte desvia nossa atenção desse chamado?

Primeiro, devemos orar. Quando minha esposa me disse que não estava se sentindo bem, há alguns meses, enfrentei um ataque de medo paralisante. Seria a COVID-19? Quando o medo ameaça tomar conta de nossa vida, a oração deve assumir o controle. Oramos para alinhar nosso coração com o de Deus. Por meio da oração, ele nos conforta e nos orienta, lembrando-nos de quem ele é e de quem somos.

Como deve ser a oração em tempos de crise? Ela pode assumir inúmeras formas. Meu cunhado, que convive com uma dor crônica implacável, ensinou-me que, às vezes, você apenas ora: “Senhor, ajuda-me a viver bem esta próxima hora” ou “Senhor, ajuda-me a viver bem os próximos cinco minutos”. Outras vezes, a oração é mais cheia de nuances. Durante meus problemas de saúde, muitas de minhas orações se reduziram a pouco mais do que gritar com Deus. Se você gritou com Deus recentemente, isso é bom. Significa que você ainda vive um relacionamento com ele, mesmo em meio a um extremo estresse. Além disso, como Salmos nos lembra, Deus pode aceitar esse tipo de oração. Na verdade, Deus é o único que pode carregar o fardo do nosso medo.

No entanto, o livro de Salmos também nos dá algo mais. Durante minha internação no hospital, alguns velhos amigos da universidade foram me visitar, o que foi providencial. Eles oraram por mim e levantaram meu ânimo. Mais tarde, um deles me enviou um livro de Salmos. Claro, eu já tinha uma Bíblia, mas, por algum motivo, aquele livro separado só de Salmos me fez ler, orar e memorizá-los mais.

Por meio dessas três práticas, lembrei-me de viver na história de Deus. Encontrei palavras para expressar minha angústia nos lamentos: “Estou exausto de tanto clamar; minha garganta está seca” (Sl 69.3). Suspirei com desejos esperançosos: “Pois espero por ti, ó Senhor; responde por mim, Senhor, meu Deus” (Sl 38.15). E fui lembrado de que “O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e resgata os de espírito oprimido” (Sl 34.18).

Lembre-se da Primeira Grande Comissão

Uma vez que lidamos com nossa paralisia emocional e voltamos a mergulhar na comunhão com Deus, podemos nos concentrar de novo em cumprir nosso chamado dentro da história de Deus. O sermão de C. S. Lewis “ Aprendizado em tempo de guerra”, proferido no início da Segunda Guerra Mundial, nos lembra de que os seres humanos estão sempre enfrentando a realidade da morte e do julgamento eterno. Lewis convida os cristãos a se perguntarem: “Como pode [ser] certo, ou mesmo psicologicamente possível, que criaturas, que estão a cada momento dando um passo a mais em direção ao céu ou ao inferno, gastem qualquer fração do pouco tempo que lhes é permitido neste mundo em trivialidades comparativas como literatura ou arte, matemática ou biologia”?

Em meu primeiro ano de faculdade, ponderei sobre questões semelhantes e comecei a respondê-las de uma forma que interferiu em meu chamado para aprender. Em minha mente, evangelismo e discipulado (como eu então os concebia, de maneira restrita) tinham precedência sobre ciência política e economia. Eu me via condenado pela mesma pergunta direta que Lewis fez ao público: “Como você pode ser tão frívolo e egoísta a ponto de pensar em qualquer coisa que não seja a salvação de almas humanas?”

Levei dois anos na faculdade para entender o que o ensaio de Lewis esclareceu em alguns parágrafos. Você não pode viver toda a sua vida com uma mentalidade de batalha. Como Lewis observou, mesmo os soldados da linha de frente na Primeira Guerra Mundial raramente falavam sobre a guerra. Em vez disso, passavam a maior parte do tempo fazendo atividades normais, incluindo leitura e escrita.

A guerra contra a COVID-19 não mudou essa realidade. Certamente, passamos mais tempo lavando as mãos, nos distanciando socialmente e trabalhando à distância, mas ainda gastamos a maior parte de nossos dias em atividades cotidianas como comer, nos relacionar, trabalhar e aprender. As aulas e reuniões, os cultos e encontros com amigos acontecem virtualmente ou à distância, mas acontecem. Como Lewis disse à sua audiência de professores e alunos, se você suspender toda a sua atividade intelectual e estética em uma crise, “só terá conseguido substituir uma vida cultural melhor por uma pior”. Ainda enfrentamos decisões sobre se faremos maratonas na Netflix, estudaremos para as aulas ou cultivaremos relacionamentos profundos com amigos e familiares — mesmo que seja apenas on-line ou a dois metros de distância.

Em linguagem teológica, mesmo durante tempos de crise não devemos negligenciar a primeira grande comissão de Deus (encher a terra e governá-la), apenas porque a segunda grande comissão (fazer discípulos) continua válida.

Gênesis 1 contém uma declaração surpreendente sobre o ser humano e sua vocação: “Então Deus disse: 'Façamos o ser humano à nossa imagem; ele será semelhante a nós. Dominará sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre todos os animais selvagens da terra e sobre os animais que rastejam pelo chão'. Assim, Deus criou os seres humanos à sua própria imagem, à imagem de Deus os criou; homem e mulher os criou”(v. 26–27).

Deus cria. Visto que os seres humanos são feitos à imagem dele, também fomos criados para criar. Na verdade, Deus, em sua primeira grande comissão, ordena aos seres humanos que “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e governem a terra” (Gn 1.28). Recebemos a honra de criar cultura. Fazemos ferramentas, escrevemos música e até construímos cidades (ações descritas no quarto capítulo do Gênesis). Construímos civilizações inteiras com estradas e pontes, com línguas e livros. Criamos empresas e instituições de caridade, fundamos hospitais e universidades, abrimos galerias de arte e teatros.

Em todos esses esforços, Deus nos fez buscá-lo e conhecer seus pensamentos e seu caráter. Ele nos projetou para desejar a verdade, a virtude e a beleza, e para descobrir sua sabedoria (Pv 1.8). Como nos lembra Hugo de São Vítor, educador do século 12, buscar a sabedoria significa encontrar a mente viva de Deus, como se estivéssemos entrando em uma relação de “amizade com aquela Divindade”.

É por isso que aprendemos — não apenas para conseguir dinheiro ou um emprego, embora sejam importantes. Aprendemos porque Deus nos criou à sua imagem, de modo que possamos refletir sua criatividade, verdade, virtude e beleza. Também aprendemos a recuperar a plenitude dessa imagem unindo-nos a Cristo, para reverter os efeitos da Queda em nossa vida individual e no mundo como um todo. Na verdade, os cristãos povoaram o mundo com escolas, em parte, para promover esses objetivos.

A pandemia apenas ampliou esse ponto. Se epidemiologistas, cientistas e profissionais de saúde tivessem ignorado o chamado de Deus para estudar e seguir uma carreira secular, eles não estariam preparados para combater o vírus. Precisamos de economistas para nos ajudarem a navegar em meio às armadilhas financeiras. Precisamos de psicólogos, poetas, escritores, filósofos e artistas para nos ajudarem a processar as emoções confusas que sentimos. Precisamos de pastores, líderes de louvor e leigos com preparo teológico para nos ajudarem a ver a pandemia à luz da história maior de Deus.

Por essa perspectiva, os cristãos devem ser os maiores fãs do aprendizado. Enfrentar uma crise sempre requer sabedoria de Deus, que encontramos nas Escrituras e no que há de melhor da tradição humana. Em contraste, como Provérbios repetidamente diz, apenas os tolos desprezam a sabedoria, a instrução e o entendimento. Nós travamos uma guerra contra a pandemia atual por meio da busca de conhecimento e ao manejá-lo com destreza. Certamente, nossos profissionais de saúde e pesquisadores médicos devem se valer de todos os dons que a engenhosidade humana e a graça de Deus puderem fornecer.

Talvez você não tenha certeza se deve prosseguir ou adiar o aprendizado durante esse período. Se realmente ama a Deus e ouve seu chamado para você (Pv 1.20-33), deve prosseguir em seu aprendizado agora, em vez de esperar até que as coisas “voltem ao normal”. Assim Lewis descreve os maiores aprendizes entre os seres humanos: “Eles queriam conhecimento e beleza agora, e não ficavam a esperar pelo momento adequado que nunca vinha”.

Novas formas de disciplina

Não devemos nos surpreender se a pandemia interrompeu o trabalho de ensino e aprendizagem. As grandes crises tendem a fazer isso. Ainda assim, temos de nos proteger para não permitir que circunstâncias adversas nos consumam e nos deixem exauridos.

O medo obsessivo pode ser um grande impedimento para manter o rumo. A ansiedade toma conta de sua vida, ocupando todos os seus pensamentos, quando você está acordado? Entendo bem desse perigo. Quando tive problemas de saúde graves pela primeira vez, deixei que eles dominassem tudo. Passei horas procurando respostas on-line. Caí em depressão, em razão da dor e da exaustão mental.

Enquanto eu me dedicava a essas buscas vãs, minha esposa compartilhou alguns conhecimentos extremamente necessários. Uma década antes, quando passou um ano de cama se recuperando de problemas médicos, ela aprendeu a lidar com as condições de uma “quarentena” forçada. O Senhor lentamente ensinou-lhe a importância de estruturar seu dia. Ela me lembrou de começar o dia passando um tempo com Deus, e fazendo os alongamentos e exercícios que ajudavam a acalmar meus músculos afetados e a reorientar minha mente divagante. Gradualmente, reaprendi a administrar corpo, mente e alma.

Para aprender bem durante uma pandemia, temos de estabelecer novas estruturas e ritmos que impeçam as pressões do momento de nos oprimir. Embora permaneçamos comprometidos com as tarefas do momento ordenadas por Deus, talvez precisemos experimentar meios não ortodoxos de completá-las.

Durante minha crise de dor aguda, não conseguia ficar sentado ou em pé por períodos mais prolongados. Para continuar escrevendo, tive de pensar criativamente e aprender a usar ferramentas novas. Encomendei um suporte para computador que me permitia escrever deitado na cama. Pela graça de Deus, logo descobri que focar no trabalho me distraía da dor e ajudava a recuperar minha produtividade anterior. Na verdade, escrevi dois livros dessa maneira.

Assim como o fato de estar confinado à cama me forçou a escrever de novas maneiras, a COVID-19 nos forçou a ensinar e a aprender de novas maneiras. Tendo ensinado tanto on-line quanto presencialmente, não tenho dúvidas de que o ensino presencial é mais propício ao aprendizado. Os alunos que frequentam as aulas on-line se distraem facilmente com seus celulares e arredores, incluindo animais de estimação, outros membros da família e lanches na cozinha. Manter o foco requer uma nova forma de disciplina.

O que pode nos ajudar a alcançá-la? Em primeiro lugar, tratarmos o aprendizado on-line da mesma forma que o aprendizado presencial, ou seja, como parte essencial do chamado de Deus em nossa vida. Em segundo lugar, tratarmos esse aprendizado como uma disciplina espiritual que promove a santificação. Ouvir as pessoas com atenção é uma habilidade de amor. A aprendizagem on-line nos obriga a praticar essa virtude em um contexto desafiador. Em terceiro lugar, exercermos o arbítrio moral. Isso envolve manter o foco mental e evitar a tentação de realizar várias tarefas ao mesmo tempo (em outras palavras, saia do celular!). O aprendizado on-line não é desculpa para um esforço desmotivado. Como Lewis argumentou em Cristianismo puro e simples, “Deus não gosta de intelectuais preguiçosos, assim como não gosta de qualquer outro preguiçoso”.

E, por fim, nos recompensamos com o descanso sabático e com brincadeiras. Se sentimos que temos de trabalhar sete dias por semana durante a pandemia, provavelmente estamos confiando nas próprias forças mais do que em Deus. Se sentimos que precisamos deixar de ter comunhão com Deus para sobreviver, estamos falhando em confiar nosso tempo a Deus.

A crise da COVID-19 apenas confirma o que os cristãos já deveriam saber: desde a Queda, a vida nunca foi “normal” e os dias sempre foram anormalmente maus (Ef 5.16). Satanás, este mundo e nossa carne pecaminosa conspiram continuamente para nos desviar do chamado de Deus em nossa vida. No entanto, sua graça ainda capacita os cristãos fiéis — dentro e fora das salas de aula — a buscar a companhia de Deus, a conhecer sua mente e seus desígnios e a cumprir seus propósitos neste mundo.

Perry L. Glanzer é professor de fundamentos educacionais na Baylor University, onde também é pesquisador-residente do Institute for Studies of Religion. Ele é coautor das obras The Outrageous Idea of Christian Teaching e Christ-Enlivened Student Affairs: A Guide to Christian Thinking and Practice in the Field.

Traduzido por Maurício Zágari

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A negação da pandemia semeia divisão e põe vidas em risco

Negação da pandemia por pastores e líderes da igreja pode causar muitos problemas.

Christianity Today October 14, 2020
Unsplash/Brian McGowan

Ontem, quando os Estados Unidos ultrapassaram um marco sombrio, publiquei no Twitter:

Já são 200 mil mortos nos Estados Unidos. Apenas um lembrete de que ainda estamos em uma pandemia global, mesmo que seu pastor diga que não.

A reação da maioria dos pastores foi extremamente positiva — o tweet foi amplamente compartilhado, com centenas de retuítes e milhares de curtidas. Muitos pastores e líderes de igreja disseram ter a mesma preocupação.

No entanto, alguns ficaram chateados. Alguns pastores se sentiram atacados, o que pode ser compreensível, se estiverem entre os que negam a pandemia global.

Caso contrário, parece não haver razão para considerar minha declaração controversa.

Deixe-me explicar.

Os pastores que negam a pandemia estão errados e espalhando desinformação.

Tenho tentado entender por que alguns pastores negariam que a COVID-19 seja uma pandemia global. Eu esperava que os pastores não se deixassem facilmente enganar por um meme recente do Facebook, que dizia que essa pandemia havia sido rebaixada para um surto.

O USAToday desmascarou facilmente essa afirmação, ao publicar: "Verificação de fatos: A COVID-19 ainda é uma pandemia, mesmo que o site do CDC a chame de ‘surto’

Classificamos esta afirmação como FALSA. O meme está errado. Nenhum elemento disso é verdade. O surto de COVID-19, embora muitas vezes seja descrito dessa forma, ainda é uma pandemia e tem sido desde 11 de março.

E espero que eles não tenham aderido ao equívoco da estatística de 6%, que não foi “discretamente atualizada” e foi claramente desmascarada por quase todo o setor médico.

Como um estatístico e professor de epidemiologia explicou ao USAToday:

Nenhum de nós viverá para sempre, então, a morte é sempre uma questão de "quando", não "se". O fato de que muitas pessoas que morreram de COVID-19 podiam estar mais perto da morte do que o restante de nós não muda o fato de que o vírus as matou antes do tempo.

Argumentar que apenas 6% dessas mortes são “reais” não apenas diminui o impacto da pandemia da COVID-19 nos Estados Unidos, mas desvaloriza as semanas, os meses ou os anos que todos aqueles com doenças preexistentes ainda teriam para viver, se o vírus nunca tivesse aparecido.

Um artigo explicava de forma bem direta: “A alegação que viralizou de que apenas 6% das mortes por COVID-19 foram causadas pelo vírus é totalmente errada.”

Então, se a questão não é o meme ou o equívoco da estatística de 6%, o que é?

Visto que ambos foram claramente desmascarados, por que alguns pastores (uma minoria, com toda certeza) continuam a compartilhar a desinformação?

Como a desinformação se espalha

A desinformação corre solta durante as crises. Uma vez que tenha sido corrigida, como o meme e a estatística foram, eu esperaria que aqueles que espalham essas informações falsas também as corrigissem. É do interesse de todos estarmos unidos durante a crise. Por que rejeitar o que a COVID-19 realmente é — uma pandemia?

Talvez seja porque alguns pastores acham que esta pandemia afeta principalmente aqueles com comorbidades ou pessoas com 65 anos ou mais. Talvez vejam que a taxa de mortalidade de idosos está diminuindo desde o início da pandemia. Talvez vejam que as hospitalizações não estão fora de controle.

Ou talvez não consigam tolerar a politização da pandemia pelos dois partidos. Talvez estejam cansados do medo infundido pela mídia. Talvez estejam cansados do fechamento de nossos negócios, cidades e comunidades; cansados de ver seus filhos lutando com o e-learning, deprimidos por não poderem praticar esportes ou por não poderem encontrar os amigos na igreja.

Eu entendo que tudo isso pode levar à negação. Faz parte do luto. E nós, coletivamente, como nação, estamos vivendo uma dor descomunal.

No entanto, nada disso muda a verdade.

A pandemia da COVID-19 tem sido como uma viagem de avião com turbulência, que cria estresse sobre estresse, tensão sobre tensão, e só queremos que o avião pouse e que este pesadelo de viagem termine.

Mas nenhuma das opções citadas é razão para negar a verdade de nossa realidade. E nossa realidade é que estamos vivendo uma pandemia. CDC, NIH, OMS, democratas, republicanos, o Congresso, seu hospital local, seu médico pessoal e o presidente Trump, todos sabem que se trata de uma pandemia.

Portanto, quando pastores espalham informações falsas, isso é prejudicial não apenas para o público, mas para o nosso testemunho público. Também é prejudicial para a unidade da igreja. Além disso, torna a liderança ainda mais difícil para os pastores que estão levando esta pandemia a sério.

Portanto, sim, estou criticando os pastores que espalham informações incorretas e falsas.

Permaneçam em sua missão.

Se tivessem lido meu tweet em tempos normais, as pessoas diriam, como a maioria dos pastores disse: “Sim, faz sentido. É uma pandemia, mesmo que seu pastor pense que não é.” Claramente, ele não foi um ataque aos pastores. Se você achou que foi, não leu meu tweet direito. O que fiz foi confrontar pastores que estão espalhando informações errôneas perigosas por meio de minha plataforma do Twitter. Acredito que tenha sido por isso que milhares de pessoas o compartilharam — elas sabem os danos que a desinformação causa.

Estamos de fato vivendo dias difíceis. Eu entendo o estresse que todos estamos sentindo e a pressão que todos estamos sofrendo — em especial os pastores. Mas, em uma crise, não devemos esquecer de enfrentar os fatos brutais e a realidade da situação. Não devemos nos deixar influenciar facilmente por nossos sentimentos, nossas emoções ou mesmo por nossos desejos pessoais. E, com toda certeza, não devemos nos curvar à massa da Internet.

Aqui está a realidade: vocês são pastores — arautos das boas-novas de Cristo, pastores do rebanho do Senhor e agentes mobilizadores para a missão de Deus. Pastor não é médico nem epidemiologista. É bastante interessante o fato de que algumas das vozes mais conservadoras no Twitter tenham gritado: “Não fale sobre raça, apenas pregue o evangelho”. No entanto, essas mesmas vozes agora dizem: “Eu vi um meme do Facebook, essa pandemia não existe”.

Meu encorajamento para os pastores seria este: permaneçam em sua missão. Portanto, pode ser melhor pregar o evangelho e deixar de fora palpites médicos baseados em um meme.

Ainda vivemos uma pandemia e devemos tentar fazer o melhor que pudermos.

Essa é a verdade em que nós, pastores, precisamos nos basear.

  1. Ainda estamos em uma pandemia, mesmo que outros pastores digam que não.
  2. Existem milhões de pastores bons e piedosos fazendo as coisas funcionarem em seu contexto local. Os pastores que negam a pandemia estão tornando as coisas mais difíceis para esses que estão trabalhando, pois semeiam divisão e desinformação.
  3. Os pastores sabem que há um chamado bíblico para a comunhão e o estão cumprindo. As igrejas (incluindo a minha) estão se reunindo presencialmente, algumas ainda on-line (somente ou principalmente), com extremo cuidado e muitas vezes a um custo elevado.
  4. Esses pastores fiéis são gratos por eu estar denunciando a desinformação. (E estou fazendo isso aqui mais uma vez).

Posso entender que alguns questionem a gravidade da situação (está bem menos grave desde que adotamos medidas de isolamento. Como disse o presidente Trump, poderíamos ter tido dois milhões de mortos se não o tivéssemos feito). Portanto, sou grato por muitos no governo levarem a pandemia a sério e agirem. E sou grato pelo bom trabalho de muitos pastores, que estão fazendo o mesmo, ou seja, levando a situação a sério e liderando fielmente o povo de Deus.

Entenda esta realidade: 200 mil pessoas morreram nos Estados Unidos durante esta pandemia. Negar essa verdade ou argumentar “Mas… elas tinham diabetes” não muda o fato. Este ano, 200 mil pessoas deram seu último suspiro e entraram na eternidade — e muitas delas sem Jesus.

Em vez de tentar desqualificar a COVID-19 como pandemia, o que resulta em desinformação, divisão e mau testemunho público, desejo que cada pastor que proclama Jesus como Senhor e prega as boas-novas de Cristo renove sua paixão por alcançar este mundo envolto em sombras e morte. Essa é nossa tarefa e nossa missão, e é assim que vamos fazer o melhor que pudermos nesta pandemia.

Então, conforme postei no Twitter:

Sejamos gratos pelos muitos pastores piedosos que ESTÃO cientes de que estamos em uma pandemia E estão tomando decisões sábias e cuidadosas, que são eficazes em seu contexto local.

Mas isso ainda é uma pandemia, mesmo que seu pastor (ou alguém nas redes sociais) diga que não é.

Ed Stetzer é diretor executivo do Wheaton College Billy Graham Center , atua como reitor no Wheaton College e publica recursos de liderança da igreja através do Mission Group. A equipe do Exchange contribuiu com este artigo e o atualizou.

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Não basta transmitir cultos on-line. As igrejas precisam promover o senso de comunidade.

O que os pastores podem aprender com a queda na frequência aos cultos on-line.

Christianity Today October 9, 2020
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: PeopleImages / Adene Sanchez / Getty Images / Christopher Gower / Alex Knight / Unsplash

Desde que o coronavírus forçou a realização on-line dos cultos públicos, quase um terço dos fiéis pararam de frequentar a igreja, de acordo com uma recente pesquisa do instituto americano Barna. Entre os millennials, a queda foi ainda maior: metade dos que costumavam ir à igreja parou, desde o início da pandemia.

O motivo não está claro. Mas, quando a frequência cai, precisamos parar, refletir e entender a razão.

Talvez as pessoas estejam “cansadas das videoconferências”. Mesmo que as pessoas gostassem desse recurso antes do isolamento, semanas de videoconferências on-line no trabalho, na escola e em reuniões sociais fizeram com que muitos ficassem sem vontade de se conectar por mais uma hora nas manhãs de domingo. Mas será que isso realmente representa quase um terço dos fiéis?

Pode ser o louvor. Cantar em casa, em frente a uma tela, não proporciona a mesma experiência que cantar na igreja, cercado por outros cristãos. O tempo de atraso e falhas ocasionais na transmissão tornam incrivelmente difícil entrar na música e encontrar aquele “estado de fluxo” que muitos associam à boa adoração. Mas a maioria dos frequentadores não considera o louvor a parte mais importante de sua experiência na igreja. O autor cristão Gary Thomas identificou nove “caminhos sagrados” que levam as pessoas a se conectar a Deus. Apenas dois deles priorizam a música. O ministério North Point, da mesma forma, descobriu que a adoração por meio da música é uma prioridade para, talvez, 14% dos frequentadores regulares da igreja.

Outra razão pode ser que os membros da igreja vivam em áreas com Internet limitada ou inexistente, o que torna os serviços de streaming ao vivo praticamente impossíveis. Em 2018, a Federal Communications Commission dos Estados Unidos descobriu que 18,3 milhões de americanos não tinham acesso à Internet de banda larga. Como explicou a comissária Jessica Rosenworcel, “a questão não é que as pessoas não possam pagar. Simplesmente não está disponível”. Essa falta de acesso é realidade especialmente nas zonas rurais do país. Mas isso representa apenas 5% ou 6% dos americanos e não parece explicar a queda dramática na frequência à igreja desde março.

Deixe-me sugerir outro potencial motivo. Há algo envolvido no fato de ir à igreja que ainda não foi traduzido a contento para o ambiente on-line. As igrejas estão focadas no que acontece no santuário durante aquela uma hora por semana, o que é compreensível. Antes da pandemia, muito esforço era dedicado para criar aquele evento de 60 a 90 minutos. Assim que a pandemia eclodiu, o mesmo tipo de energia foi canalizado para traduzir o culto para um formato on-line. Mas algo se perdeu.

Nas manhãs de domingo, antes da COVID-19, enquanto as pessoas que participam da organização do culto planejavam e se preparavam para o que aconteceria dentro do santuário, algo mais acontecia do lado de fora, no saguão, no átrio, no pátio, na área de boas-vindas da igreja. Algo menos planejado e, para algumas igrejas, menos intencional. As pessoas conversavam. Elas compartilhavam sua vida. E, pelos cantos do santuário, ou em salas reservadas para esta finalidade, as pessoas oravam juntas pelas mais variadas necessidades. Antes da COVID-19, o prédio da igreja reunia em si adoração, comunidade e cuidado pastoral.

Quando os cultos passam a ser on-line, o que ocorre com esse conjunto de coisas? Para muitos membros de igreja, esses pontos de conexão pessoal desapareceram. Alguns, embora bem poucos, podem ter feito um esforço para resgatá-los no Zoom ou no Facebook Live — com instruções para virtualmente dizer olá para alguém que esteja “sentado ao seu lado”. Meu palpite é que as perdas no senso de comunidade e no cuidado pastoral tiveram um impacto dramático na frequência às igrejas.

Embora o culto público seja algo que as igrejas possam produzir e transmitir em grande escala para quem quiser assistir, senso de comunidade e conexão pessoal são coisas que não podem ser transmitidas em grande escala. Isso significa que ambos não se sujeitam à produção em massa. Ser pessoalmente conhecido e cuidado é quase sempre uma experiência individual, que não pode ser produzida em massa. Os cultos públicos, em compensação, tendem a ser projetados para um modelo de produção em massa do tipo um-para-muitos — ou seja, como algo que é produzido por uma pessoa e distribuído para muitas. É possível apenas observar o culto público como membro da audiência, mas com muito pouca participação.

O que ocorre no santuário, durante o culto público, é aparentemente fácil de se transmitir on-line. O que acontece fora do santuário, porém, é incrivelmente difícil. Mas, se o senso de comunidade e o cuidado pastoral são aquilo de que as pessoas precisam e não estão mais recebendo no culto on-line, faz sentido o fato de muitos terem parado de frequentá-lo.

Quando as igrejas priorizam os cultos de adoração da mesma forma que faziam antes da pandemia, é fácil ignorarem outras atividades aparentemente periféricas, embora sejam essas atividades que tornam a frequência à igreja uma experiência vital para muitos. A verdade é que podemos ter interpretado mal por que um terço da congregação frequentava a igreja todos os domingos. A razão pode ser o cuidado e o consolo que as pessoas recebiam de seus amigos e pastores. Na verdade, presumimos que o culto promove a comunidade, mas a realidade pode ser o oposto: a comunidade e o cuidado pastoral apoiam o culto.

Para muitos, o “periférico”, na verdade, é central. E, se essa parte desapareceu porque igreja é apenas o que está sendo transmitido on-line, então as pessoas procurarão outro lugar para atender às suas necessidades relacionais e espirituais.

A pesquisa do instituto Barna fez essa mesma descoberta. E ela vale não só para os que abandonaram a frequência aos cultos, mas também para aqueles que continuam a assisti-los on-line. A pesquisa relatou que “os cristãos praticantes em todos os EUA estão buscando oração e apoio emocional”. Na transição para um [formato apenas de transmissão dos cultos] (https: // j hn / what-is-an-online-broadcast-virtual-stream-local-church-some-úteis-disttions /), algumas igrejas podem ter perdido de vista essas outras prioridades importantes. O culto de adoração foi dissociado da comunidade e do cuidado pastoral. Ao passar para o formato on-line, o prédio da igreja não mantém mais esses três elementos juntos.

Diante disso, o que as igrejas podem fazer?

Embora a pesquisa do instituto Barna a princípio pareça perturbadora, ela também oferece uma percepção crucial. A frequência aos cultos — on-line ou presenciais — não pode mais ser o único parâmetro que os líderes de igreja usam para medir a saúde espiritual e relacional de sua igreja ou congregação. As igrejas devem buscar novas formas de medir as conexões da comunidade e o cuidado pastoral que estão acontecendo em outros lugares de seu ecossistema on-line e off-line.

As igrejas seriam sábias se desenvolvessem novas métricas neste tempo de dispersão. Considere rastrear os pedidos de oração que chegam por meio dos formulários on-line da igreja. Algumas igrejas já notaram aumento na quantidade desses pedidos. As igrejas também podem verificar o número de ligações que os pastores e sua equipe estão recebendo e fazendo para sua congregação. As métricas devem medir o que importa. Elas não precisam ser descartadas, mas, em vez de rastrear a frequência como a principal, a igreja pode explorar novas métricas capazes de ressaltar, promover e capacitar a comunidade e o cuidado pastoral.

A COVID-19 também pode redirecionar nossa atenção para a interação membro a membro na comunidade. O prédio da igreja servia como uma espécie de plataforma social. A comunidade crescia organicamente naquele espaço. Que espaços podemos criar na era da COVID-19, que encorajem e fomentem essa experiência em que as pessoas se sentem cuidadas, conectadas e conhecidas? A pandemia nos tirou algumas coisas, mas ela não precisa ter a palavra final.

Existem muitos exemplos encorajadores de igrejas que vêm fazendo experimentos criativos em defesa da comunidade. As melhores ideias parecem começar pela consideração da personalidade singular de cada congregação. Por exemplo, a All Saint’s Episcopal Church, no bairro de Ravenswood, em Chicago, é uma igreja histórica que tem a tradição de celebrar mensalmente os aniversários dos membros. Assim que a quarentena começou, essa tradição foi adaptada para o ambiente on-line. As pessoas passaram a enviar por e-mail uma foto para um dos pastores, que as compila em uma montagem de fotos que a igreja integrou à transmissão ao vivo do culto, nas manhãs de domingo. O contexto on-line deu aos participantes a chance de se envolverem mais e de verem a si mesmos e aos outros no culto on-line. Essa prática ajudou as pessoas a se sentirem conectadas umas às outras.

Tais esforços não precisam envolver alta tecnologia, porém. Algumas igrejas reativaram antigas abordagens, que comunicam o cuidado de maneira mais profunda. Uma igreja em Nova York organizou os membros em grupos de cerca de quinze pessoas e designou líderes para acompanhá-los, ver se precisavam de oração, comida ou outros suprimentos. Embora a equipe pastoral possa não ser capaz de se conectar com cada membro da igreja, distribuir o fardo atua como um catalisador, fazendo o ministério acontecer por todo o corpo da igreja, e não apenas a partir da liderança.

Uma igreja batista na Carolina do Sul convidou seus membros a escreverem cartas para residentes de lares de idosos, os quais não podem receber visitas e se sentem muito solitários. O esforço extra que essas cartas enviadas envolve vai muito além das simples palavras escritas. Novamente, pela simples organização de um plano criativo, os líderes da igreja conseguiram mobilizar os membros para ministrarem fora do santuário.

Em Moose Jaw, Saskatchewan, uma igreja imprimiu e distribuiu cartazes nos quais estimulavam as pessoas a telefonar ou enviar e-mails em caso de necessidade. Embora alguns dos que procuraram a igreja precisassem de provisões materiais, outros apenas se sentiam solitários e telefonavam, a fim de conversar ou pedir oração. Outra igreja da região montou um time de conselheiros espirituais, que pudessem fornecer “escuta compassiva” a qualquer pessoa que telefonasse. E um terceiro grupo, como a igreja em Nova York, organizou um serviço telefônico que, como uma carta enviada pelo correio, comunica mais que um simples texto ou e-mail em grupo.

Há, provavelmente, tantas ideias para apascentar comunidades quantas forem as comunidades. A questão é que a COVID-19 é um convite à criatividade das igrejas. Como um amigo sempre gosta de me lembrar: “No meio da devastação, há uma oportunidade para inovação”. É uma palavra oportuna para a igreja em um tempo sem precedentes.

Adam Graber é diretor da FaithTech e coapresentador do podcast Device & Virtue. Você pode encontrá-lo no Twitter @AdamGraber.

Traduzido por Maurício Zágari.

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Quando pastores e congregações discordam sobre a reabertura da igreja

A submissão aos pastores em meio a uma pandemia: A quem os cristãos devem ouvir quando seguir Romanos 13 e Hebreus 13 parecer conflitante?

Christianity Today October 7, 2020
KL Yuen / Getty Images

Conforme as igrejas em todo o país começam a reabrir com cautela, muitos membros podem se sentir presos entre as recomedações de seu governo e as de seu pastor. Enquanto os fiéis decidem se retornam às igrejas reabertas ou se ficam frustrados com a falta de uma movimentação para reabri-las, como eles devem agir? O que fazer quando discordamos? CT pediu a vários líderes cristãos que dessem sua opinião.

Aaron Reyes, pastor titular da Hope Community Church e reitor da instituição Vida House

Hebreus 13.17 diz “Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles”. Mas submissão, ou “sujeição” (como se sugere no grego), não significa obediência cega. Independentemente de quais escolhas os pastores façam sobre a reabertura de igrejas, todos nós devemos agir de acordo com nossa consciência. Respeitar nossos líderes não significa que não podemos escolher livremente se vamos ou não participar de um culto presencial, no templo, na manhã de domingo. Pelo contrário, significa escolher, por exemplo, ficar em casa até acharmos mais segura a convivência em público, porém, sem criticar abertamente a decisão de seu líder. Não devemos tentar influenciar outros membros da igreja, explicando por que a liderança está errada e tentando fomentar desconfiança. Em vez disso, expresse gentilmente sua posição para a liderança. Informe-os em amor sobre sua decisão, e continue a amar sua igreja, esteja você perto ou longe.

Daniel Patterson, vice-presidente executivo da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa

Independentemente de você achar que sua igreja é ansiosa ou cautelosa em excesso, pode ser que o melhor lugar para começar seja com a simples decisão de presumir que seus pastores e líderes estão fazendo o melhor. Não há cursos sobre pandemias e contágio no seminário, nem respostas fáceis ou soluções padronizadas que digam quando e como as igrejas devem reabrir. Isso significa que as igrejas em todo o país estão tendo de tomar decisões difíceis, as quais seus líderes sabem que não alcançarão unanimidade. Seja como for, tome as melhores decisões que puder no que diz respeito à sua saúde e à de sua família, especialmente no caso daqueles que pertencem a grupos de risco. Ao mesmo tempo, tenha em mente que é quase certo que sua igreja compreenderá, se você estiver ansioso ou cauteloso em voltar a frequentar a igreja imediatamente. O que é mais necessário, segundo penso, é que todos nos esforcemos para manter a segurança e a unidade em proporções iguais.

Jamaal Williams, pastor titular da Sojourn Church Midtown

Em geral, quando os membros da igreja discordam de seus pastores sobre quando devem voltar a se reunir, eles devem expressar suas preocupações com respeito, conscientes de que seus líderes têm de tomar decisões difíceis. Afinal, a maioria de nós está enfrentando esse tipo de crise pela primeira vez, e as comunidades processam informações de forma diferente e são impactadas de forma diferente. Além disso, cada pessoa deve ter cuidado para não causar divisão entre os outros membros, pois a unidade do corpo é essencial. Cada membro do corpo deve “considerar os outros superiores a si mesmo”. As igrejas que caminham em amor são igrejas em que tanto os membros quanto os pastores respeitam as consciências uns dos outros e concedem uns aos outros o benefício da dúvida; enquanto trabalham pela segurança de todos os membros, em especial a dos mais vulneráveis.

Raymond Chang, ministro do campus do Wheaton College e presidente da Asian American Christian Collaborative

Eu encorajaria as pessoas a manterem a postura que presume que pastores e líderes estão fazendo o melhor que podem com o que sabem. As decisões sobre quando e como reabrir são difíceis. E podem se tornar ainda mais desafiadoras quando posicionamentos e abordagens de caráter racional se tornam desnecessariamente politizados. O povo de Deus deve buscar nas Escrituras posturas piedosas para guiá-los. Amar a Deus amando o próximo deve ser o princípio que nos move. Além disso, acho que 1Coríntios 10.23-24 é útil. É verdade que nem tudo o que é permitido é necessariamente benéfico, mas o versículo 24 realmente dá uma orientação para a tomada de decisões: “ninguém deve buscar o seu próprio bem, mas sim o dos outros”. Precisamos entender como a Bíblia define o próximo e estender nosso cuidado a todos eles. A partir daí, também devemos procurar especialistas em virologia e epidemiologia para determinar a natureza do vírus, como ele se espalha e, em função disso, como deve ser a segurança, e, assim, tomar decisões (tendo em mente os mais vulneráveis) que sejam baseadas nos conhecimentos desses especialistas.

Mateus de Campos, professor-assistente de Novo Testamento e diretor de discipulado do Gordon-Conwell Theological Seminary

A Carta de Paulo aos filipenses foi escrita para uma comunidade que enfrentava forte pressão que dividia a igreja. O apóstolo, portanto, exorta-os a fazer o que for preciso para alcançar um só espírito (Fp 1.27), moldado pela mente de Cristo (Fp 2.5), pois esta era a única maneira pela qual eles seriam capazes de permanecer firmes. Unidade de espírito não significa ter as mesmas opiniões, mas buscar o que temos em comum — Cristo, o Espírito, o Evangelho, a afeição fraternal — para encontrar um espaço de unidade. O ponto principal da admoestação de Paulo é este: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros”(Fp 2.3-4). Os pastores que decidem reabrir suas igrejas devem ser sensíveis aos membros que podem se sentir inseguros em retornar aos cultos presenciais. Em contrapartida, alguns dos que estão lutando contra a solidão podem descobrir que reunir-se é o melhor para eles. Acima de tudo, a unidade deve ser mantida, para que, quando a pressão diminuir, a igreja ainda esteja de pé.

Kathryn Freeman, seminarista, escritora e coapresentadora do Melanated Faith Podcast

Devemos ouvir as decisões dos líderes da igreja com humildade e amor. Acreditamos que eles consideraram, em espírito de oração, todos os riscos e benefícios envolvidos para os membros da congregação e a região em que se encontra. Com amor e humildade, nos unimos a eles em oração sobre essas decisões, e depois confiamos neles, mesmo quando não concordamos com as decisões ou não as entendemos. Nossa capacidade de nos submetermos uns aos outros pode ser o verdadeiro teste de nosso compromisso com a comunidade cristã, e também deve ser o que diferencia a igreja. Devemos nos perguntar: Eu me comprometo apenas em meus termos e desde que minhas necessidades individuais sejam atendidas? Se a resposta for sim, eu diria que você está procurando um clube de recreação. A igreja é muito maior do que nosso conforto pessoal.

Brian Gibson, pastor sênior da His Church e líder do Peaceably Gather Movement

Eu acredito que as igrejas devem reabrir, com um protocolo cuidadoso e compassivo, ao mesmo tempo mantendo nossas liberdades garantidas pela Primeira Emenda. A Primeira Emenda da Constituição fornece proteção aos locais de culto. Não estou incentivando uma corrida maluca para os templos, mas simplesmente um posicionamento racional em defesa da Primeira Emenda. Acredito que a maneira de lidar com as divergências sobre esse assunto é com um espírito de honra. Quem semeia honra, colhe favor. Estou orando para que Deus dê sabedoria aos líderes e fiéis de toda esta grande nação.

Tony Suarez, vice-presidente executivo da National Hispanic Christian Leadership Conference

Dizem que uma das características de um líder diferenciado é sua capacidade de se adaptar às mudanças. Os pastores, compreendendo a essencialidade da igreja, adaptaram-se logo no início desta crise, para garantir que o ministério não cessaria, mas continuaria por via de todos os meios de comunicação possíveis. Acredito que seus esforços foram recebidos com gratidão. Muitos de meus colegas relataram um número sem precedentes de visualizações e perguntas sobre sua igreja. O que parecia uma catástrofe (no que se refere à suspensão dos cultos presenciais) se transformou em uma oportunidade de estender o alcance da igreja local. Os pastores merecem e precisam do nosso apoio, pois agora lutam com a decisão de quando recomeçar as reuniões presenciais. Não existe uma resposta do tipo “tamanho único”. Nossa resposta nestes tempos difíceis deve ser orar por nosso pastor, compartilhar nossas opiniões com ele e, finalmente, apoiar sua decisão. Vivemos tempos sem precedentes e eles exigem que nos unamos.

Traduzido por Erlon Oliveira

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Eu era esposa de pastor. O suicídio fez de mim uma viúva de pastor.

O que aprendi sobre saúde mental e ministério, após a trágica morte de meu marido.

Christianity Today October 3, 2020
Courtesy of Kayla Stoecklein

Eu tinha 19 anos quando conheci Andrew e rapidamente me apaixonei. Ele era um filho de pastor que sentiu o chamado para o ministério, e não demorou muito para perceber que a vida com ele significava a vida de esposa de pastor.

Cresci frequentando a igreja todos os domingos, mas, só depois de conviver um tempo com a família de Andrew, tive um vislumbre de como era a vida nas trincheiras do ministério. Ao me envolver, ouvir e aprender, vi que, embora servir no ministério possa ser algo significativo e bonito nos bastidores, também pode ser estressante, decepcionante, desanimador e solitário.

Em 2015, Andrew se tornou o pastor da igreja de seus pais e eu rapidamente encontrei maneiras de me encaixar em meu novo papel como esposa do pastor titular. Eu servia na equipe do ministério feminino; inscrevi-me para participar do grupo de mães de crianças em idade pré-escolar, às quartas-feiras; e todo domingo chegava na igreja pontualmente para o primeiro culto.

O ministério era tudo. Todo o nosso mundo girava em torno da igreja local e do chamado de Deus para a vida de Andrew. Seu chamado se tornou o meu chamado; sua paixão, a minha paixão; seu propósito, o meu propósito.

Então, em 25 de agosto de 2018, depois de lutar por um tempo contra o esgotamento, a depressão e a ansiedade, meu amado marido, Andrew, tragicamente suicidou-se.

A vida como eu a conhecia mudou para sempre e passei a ter uma vida totalmente nova, como viúva e mãe que criava sozinha nossos três filhos. De repente, a triste história da internet era a nossa. Eu vi imagens de minha vida e família ganharem as manchetes em todo o mundo. De uma hora para outra, fomos parar no centro das atenções.

E enquanto o mundo estava assistindo, inclinando-se e ouvindo atentamente, decidi falar. Eu não deixaria o suicídio dar a última palavra. Apenas três dias depois que Andrew foi para o céu, escrevi uma carta para ele e postei no blog da família. “Seu nome continuará vivo de forma poderosa”, eu prometi. “Sua história tem o poder de salvar vidas, mudar vidas e transformar a maneira como a Igreja apoia os pastores.”

Foi por meio daquela carta que comecei a ver a mão de Deus em ação, redimindo o que estava perdido e até salvando vidas do suicídio. Recebemos de completos estranhos centenas de cartas, presentes, doações, livros, cobertores e buquês. O amor falou alto.

O que percebi logo no início e aprendi nos últimos anos é que a história de Andrew não é algo incomum. Recentemente tivemos a Semana Nacional de Conscientização sobre a Prevenção do Suicídio nos Estados Unidos. É muito triste, mas, ano após ano, a igreja americana vem perdendo mais líderes para o suicídio.

Muitos pastores e pessoas que servem em posições ministeriais lutam com questões de saúde mental. E, infelizmente, nem sempre sentem que há espaço para compartilhar suas lutas com colegas de ministério ou membros da igreja. O medo de perder o emprego, o púlpito, a voz e o respeito de seus colegas é uma realidade bem concreta. Pela minha experiência com Andrew, aprendi como é importante para a igreja formar líderes para atender pastores e pessoas que servem em posições ministeriais, quando estes inevitavelmente se encontrarem em um período de fadiga ministerial.

Todos os pastores precisam de um círculo seguro de pessoas, com as quais possam ser vulneráveis. Eles precisam de amigos próximos e de uma comunidade de confiança, na qual possam baixar a guarda, tirar o chapéu de pastor e ser eles mesmos. Andrew costumava dizer: “É solitário aqui no topo”. Mas não precisa ser. Não fomos criados para viver sozinhos; isso não funciona.

Um pesado fardo de responsabilidade está ligado a essa solidão. Andrew costumava se referir a si mesmo como o “eixo”, a pessoa que mantém tudo unido. Constantemente e com amor, eu lhe apontava de volta Jesus e o fazia lembrar quem realmente era o eixo. Quando servimos em uma posição ministerial, é crucial que a liderança seja vista como um trabalho em equipe. Se não permitirmos que outros nos ajudem a carregar o fardo, desmoronaremos sob a pressão.

O fardo parece especialmente desgastante quando as exigências do ministério parecem implacáveis. Demorou anos de pastorado até Andrew poder ter pelo menos um dia por semana para descansar. Se não estabelecermos margem para descanso, estaremos correndo com o tanque vazio. Precisamos intencionalmente desligar o telefone, desconectar de nosso e-mail ou ficar longe do computador durante o dia. O descanso é a chave do sucesso.

A verdade que descobri em minha experiência como esposa de pastor é que os pastores também são gente como a gente. Eles não são super-homens; são humanos. Eles não são invencíveis; são apenas vasos quebrados que estão dando o seu melhor para ser uma luz resplandecente em um mundo realmente em trevas e desesperado. Mas, para continuar brilhando e liderando com energia, os pastores devem pensar também sobre como cuidar de si mesmos. Os pastores precisam da comunidade, necessitam compartilhar o peso da liderança e devem dar a si mesmos permissão e margem para ser curados e descansar.

Para líderes que se comprometeram com a igreja e com Deus a servir a qualquer custo, pode ser difícil – ou até mesmo impensável – dizer que o custo pessoal se tornou alto demais. Mas a verdade é que sua vida e sua saúde são mais importantes do que seu ministério. Se o seu ministério está matando você, destruindo sua família e piorando sua depressão, é hora de contar isso para alguém e fazer uma pausa.

Reitero que fazer isso é difícil para qualquer um de nós, mas é particularmente difícil para aqueles que se veem como alguém que está respondendo a um chamado vitalício e abrangente para a liderança sacrificial. Mas, ao liderar como Cristo, nossos pastores não precisam liderar como [se fossem o próprio] Cristo. O maior sacrifício já foi feito por nós. Os pastores devem ter liberdade para compartilhar suas dores e lutas, sabendo que ninguém jamais esperou que eles as carregassem sozinhos.

Kayla Stoecklein é uma voz em defesa das pessoas que enfrentam doenças mentais e mãe de três meninos. Junte-se a ela em kaylastoecklein.com e no Instagram @kaylasteck. Seu primeiro livro, Fear Gone Wild, foi publicado este mês nos Estados Unidos.

Traduzido por Maurício Zágari.

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O poder modelador da vergonha

A vergonha piedosa abre nosso coração para a obra formativa do Espírito.

Christianity Today October 2, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Kushal Medhi / Unsplash

Brené Brown, em sua participação no Super Soul Sunday de Oprah Winfrey, declarou: “Acho que a vergonha é algo letal, destrutivo. E acho que estamos profundamente mergulhados nela”. Sua palestra proferida nas conferências TED Talks, “Dando ouvidos à vergonha”, teve mais de 14 milhões de visualizações. Nela, Brené alerta que a vergonha é um gremlin que ri e repete duas mensagens em nossa mente: “[Você] nunca é bom o bastante” ou “Quem você pensa que é?”

Essa metáfora apresenta a vergonha como uma armadilha que se repete: experiências recorrentes de vergonha destroem nossa autoestima, e a baixa autoestima nos predispõe a sentir vergonha. Esse ciclo vicioso acaba saindo do controle, levando a padrões de comportamento viciantes e destrutivos. Para Brené Brown, a vergonha é um sentimento pernicioso que não tem nenhum propósito construtivo; devemos, portanto, renunciar ao seu uso e desenvolver resiliência a todas as formas de vergonha.

O desejo de eliminar a vergonha de nossa experiência cotidiana parece razoável, mas isso prejudica nossa capacidade de sermos pessoas morais. Os sentimentos morais estão fortemente entrelaçados; eles não existem de forma fragmentada. Portanto, como escreve Krista Thomason, “não podemos nos livrar de um sentimento [como a vergonha] sem ‘desfigurar’ todo o resto”.

Além disso, eliminar a vergonha em grande parte promove a falta de vergonha. Como Daniel Henninger escreveu no The Wall Street Journal, logo após as acusações contra Harvey Weinstein, Charlie Rose e Al Franken: “Seus atos revelam um colapso do domínio próprio. Isso, por sua vez, sugere uma dissipação mais ampla da consciência, do senso de que fazer algo é errado (…). Portanto, quando alguém pergunta como esses homens puderam se comportar de forma tão grosseira e monstruosa, uma das respostas é que eles (…) não (…) têm (…) vergonha”.

Henninger alerta para não nos iludirmos pensando que esses homens são casos isolados ou anomalias. Pelo contrário, eles são o produto de uma “cultura que acabou com a vergonha e os limites comportamentais”. A Escritura também reafirma a necessidade da vergonha e se posiciona contra a falta de vergonha. Os profetas repreendem Israel por seu entorpecimento espiritual e sua incapacidade de enrubescer por sua conduta detestável (Jr 3.3; 6.15; Sf 3.5). Da mesma forma, Paulo censura os coríntios por sua apatia moral e por não se lamentarem por seus pecados (1Co 5.2;15.34).

Con toda certeza, a vergonha pode ser tóxica, mas não necessariamente é. Devemos fazer uma distinção entre vergonha mundana e vergonha piedosa. Com a vergonha piedosa, nossas consciências são inflamadas por valores calibrados de acordo com o padrão de Deus, e não o do mundo. A vergonha piedosa está fundamentalmente relacionada com o certo e o errado da perspectiva de Deus; está atada à beleza e à santidade de Deus. Ela guia nossas escolhas futuras, impedindo-nos de fazer qualquer coisa que possa trazer desonra a Deus, à igreja, aos outros e a nós mesmos.

Ela nos lembra de nossa responsabilidade de acolher os que estão na fé como irmãos e irmãs, independentemente de sua origem socioeconômica, imigratória ou racial; pois o muro que nos divide foi destruído pelo sangue de Jesus Cristo (Ef 2.14;Fm 1.16). Também nos compele a respeitar a dignidade de todas as pessoas, pois todos nós fomos criados à imagem de Deus (Gn 1.26-27).

A vergonha piedosa avalia nossos pensamentos, ações e omissões passados com uma mente que não é conformada com o mundo, mas transformada pelo evangelho (Rm 12.1-2). Ela repreende nosso interesse voltado apenas para nós mesmos e nossa indiferença para com a perseguição e o sofrimento sofridos pelos outros, pois todas as partes do corpo de Cristo sofrem quando uma parte sofre (1Co 12.26). A vergonha piedosa condena nossa hesitação em nos juntarmos ao lamento daqueles que sofrem injustiça racial, e nos chama a “chorar com os que choram” (Rm 12.15). Ela repreende nossa disposição de humilhar outras pessoas online, quando nossos tweets mordazes sinalizam nossa própria “virtude”, em vez de buscar o bem genuíno dos outros.

A repreensão da vergonha piedosa é perturbadora e dolorosa; no entanto, produz fruto de justiça para aqueles que por ela foram exercitados (Hb 12.11). A repreensão da vergonha piedosa mina a autoestima indevida em prol da maturidade cristã.

A vergonha mundana destrói, mas a vergonha piedosa restaura. A vergonha piedosa mostra que entristecemos o Espírito Santo, mas também nos dá a segurança da graça (Hb 4.16). A vergonha piedosa nasce de um conhecimento genuíno daquilo que Deus requer e de sua misericórdia. Em resposta a “[Você] nunca é bom o bastante”, a vergonha piedosa concorda que nunca somos bons o bastante por nós mesmos, mas somos bons mais do que o suficiente por causa de Cristo (2Co 5.21).

Em resposta a “Quem você pensa que é?”, a vergonha piedosa nos acusa como pecadores, mas depois confirma que somos filhos e herdeiros de Deus por causa de nossa união com Cristo (Rm 8.17). A vergonha piedosa não contesta a honra que Deus deseja para seus filhos. Como aconteceu com o filho pródigo, quando ele caiu em si (Lc 15.17), a vergonha piedosa corrige, repreende para a contrição, o arrependimento e a humildade; e então compele a retornar ao abraço gracioso de nosso Pai – com a certeza de nosso perdão, nossa identidade reformada, nossos relacionamentos restaurados, nossa honra correta recuperada. A vergonha piedosa é aquela de que precisamos para andar de modo digno de nosso chamado como filhos de Deus.

Te-Li Lau é professor associado da Trinity Evangelical Divinity School e autor de Defending Shame: Its Formative Power in Paul’s Letters [Em defesa da vergonha: Seu poder formativo nas cartas de Paulo].

Traduzido por Eduardo Fettermann

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