Ainda devemos ser chamados de “evangélicos”?

Talvez haja um termo melhor, em nossos tempos polarizados e politizados.

Christianity Today May 10, 2021
Pearl / Lightstock / Edits by Rick Szuecs

Será que existe uma palavra melhor para descrever os cristãos que defendem a autoridade da Bíblia em todas as questões de fé e prática?

Talvez seja hora de um novo termo para captar a autocompreensão dos cristãos, um substantivo diferente, que abranja todos os crentes e seguidores de Jesus, no qual todas as teologias e denominações evangélicas poderiam confortavelmente se enxergar. Será que um novo substantivo plural pode nos libertar de tipificações negativas no ambiente cultural em que vivemos?

Vocês me permitem recomendar uma palavra que os evangélicos não podem recusar, se formos sérios como cristãos e ainda quisermos dar e fazer sentido para o mundo em que vivemos — e também alcançar pessoas com a mensagem de salvação eterna de Jesus? Um substantivo difícil de rejeitar, enquanto buscamos consistência na crença e a autenticidade no comportamento?

Tendo celebrado o 500º aniversário da Reforma não muito tempo atrás,e a tradição de Lutero, um homem que não possuía autoridade mas sentiu a responsabilidade de desafiar as sensibilidades teológicas predominantes, que tal um novo substantivo? Proponho, então, o termo "bíblicos".

O substantivo "cristãos" carrega certa bagagem emocional fora do arco de abrangência do Atlântico Norte. Na Índia (minha terra natal), argumentos antigos e equivocados ainda geram uma antipatia conveniente para com os cristãos, vistos como ocidentais. O fato de o cristianismo não ter sido ocidental, desde a origem, e agora ter mais adeptos não ocidentais pode ajudar a recuperar a designação inicialmente dada aos crentes e seguidores de Jesus no Novo Testamento (At 11.26), mas ainda não chegamos lá.

O primeiro uso da palavra evangelium, por Martinho Lutero, no século 16, levou ao termo evangélico cem anos depois, durante o Grande Despertamento. Que termo sublime, transliterado de forma criativa e naturalmente adaptado a partir de uma palavra composta em grego (eu + angelion), tendo bondade e alegria como algo intrínseco a sua própria natureza. Tornou-se um termo de amplo uso nos Estados Unidos, nos anos de 1800, e em 1976 foi declarado “o Ano do Evangélico”. Embora carregado de conteúdo para pessoas que são da igreja, o substantivo era — e ainda é — menos ofensivo do que "cristão" para pessoas não cristãs, em grande parte do mundo. Na rua Villat, em Aleppo, na Síria, evangélico soa bonito para quem é novo nas igrejas e tem necessidades econômicas. A igreja evangélica, ali, é a única igreja conhecida por acolher todos a quem as demais rejeitam.

Ainda assim, nos Estados Unidos, o termo evangélicos foi contaminado por estereótipos cruéis — especialmente durante os períodos eleitorais recentes. Nosso hábito sociológico de rotular as pessoas — por geração (boomers ou millennials), convicção (calvinista ou arminiano) e cor (por exemplo, “vermelho e amarelo, preto e branco, todos são preciosos à sua vista”) — fixa na mente das pessoas significados não intencionais das palavras.

Já o termo "bíblicos" ainda não permite o apelo falacioso à emoção dos não evangélicos. É um conceito que não desperta visões competitivas contra um grupo eleitoral que parece ser de direita. Também consegue reunir as muitas correntes consonantes e dissonantes de cristãos evangélicos, e se aplica a todas as gerações, convicções e etnias que acreditam e seguem seu Senhor Jesus Cristo, no que diz respeito tanto à conversão pessoal quanto à expressão pública das convicções bíblicas.

O termo certamente requer ajustes de caráter pessoal e público. Deixe-me simplificar as compensações linguísticas com um gráfico:

Evangélicos vs bíblicos

Opções Prós Contras
Evangélicos
  1. Historicamente suficiente
  2. Teologicamente rico
  3. Tomado geograficamente (ou seja, onde a igreja de Cristo está crescendo)
  1. Incompreensão contemporânea
  2. Sociologicamente pobre
  3. Marginalizado onde a Igreja de Cristo está em declínio
Bíblicos
  1. Menos emocionalmente carregados (no momento)
  2. Naturalmente alinha os evangélicos
  3. Potencial razoável de aceitação
  1. Neologismo para acomodar o ambiente cultural
  2. Pode levar tempo para ficar de uso comum

Detesto pensar em perder a palavra "evangélico". Uma vez que se refere, essencialmente, àqueles que aceitam a pessoa, a obra e a missão de Jesus como o evangelho, o termo evangélico é o que sou em termos de identidade teológica. É também o que sou em termos de propósito pessoal — alguém que compartilha as boas-novas de Deus sobre a salvação eterna, assegurada no Senhor Jesus, que a oferece a toda a humanidade. Eu sou um cristão evangélico.

Ao mesmo tempo, detesto continuar usando esse termo nos Estados Unidos, minha terra por adoção. Um sentimento míope vem crescendo no país, por várias décadas. Evangélico passou a significar muito do que não é. Essa saudável descrição de cristãos que creem na Bíblia (mas não usam a Bíblia para agredir) é definida politicamente como antipovo, antiprogresso, anticiência e assim por diante. Vários setores da população se tornaram antievangélicos, na medida em que os evangélicos são acusados de ser contra tudo.

Poderíamos abolir o substantivo "evangélicos" nos Estados Unidos altamente politizados, onde a frequência à igreja estagnou. E ainda poderíamos reter sua maravilha e verdade no restante do mundo, onde a igreja está se multiplicando — e onde os crentes têm poucas restrições sobre o conteúdo e a expectativa bíblica do termo.

Talvez usar o termo "bíblico" permita a autoidentificação sem constrangimento nem mal-entendidos. Isso poderia gerar confiança entre os seguidores, sem o receio de que a mídia empregue argumentos estereotipados ou informações falhas a seu respeito. Poderíamos ter a esperança de que esse termo subsistisse por, pelo menos, algumas décadas — ou mais.

Talvez o termo evangélicos sobreviva ao uso indevido e à percepção equivocada para quem sabe, no futuro, nos levar de volta à extensão original do significado do conceito. Pois, então, poderíamos nos distanciar dos evangélicos políticos e nos tornarmos, redundantemente, evangélicos bíblicos. E, eventualmente, conforme se fizer necessário, cortaremos essa palavra mal-interpretada do conceito principal e simplesmente seremos chamados de bíblicos. Enquanto o substantivo "evangélico" é usado para se referir a uma pessoa específica, "bíblico" ainda é estritamente um adjetivo. Mas podemos ser chamados coletivamente de "bíblicos". Este substantivo, como outros substantivos sagazes, desencoraja o uso de um epíteto singular, pelo menos por enquanto. Ele poderia ajudar a esclarecer para todos que, entre os bíblicos, há muitos evangélicos de convicções compatíveis, embora diferentes. Vai levar algum tempo para que as pessoas se acostumem, como ocorre com a maioria dos adjetivos transformados em substantivos. Se Deus quiser, não levará mais 500 anos.

Um pós-escrito para amigos (não inimigos) do termo evangélicos, que sejam comprometidos em acreditar no evangelho, amar Jesus e seguir a Bíblia: o que você acha? Devemos apenas esperar sem fazer nada a respeito? Aguardo seus insights e suas opiniões em ramesh@rreach.org.

Ramesh Richard atua como presidente do RREACH, ministério de proclamação global, e professor de engajamento teológico global e ministérios pastorais no Seminário Teológico de Dallas.

Traduzido por Maurício Zágari

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Deixem vir à igreja os pequeninos

Uma lição que aprendemos com a COVID-19: Não subestime o modelo que se estabeleceu de cultuar a Deus ao lado de seus filhos.

Christianity Today May 5, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Gene Gallin / Christin Hume / Unsplash

Desde o ano passado, a COVID-19 exigiu que todos nós nos adaptássemos das mais variadas maneiras. À medida que começarmos a dispensar as precauções da pandemia, a pressão para retornar à normalidade será forte. Ao mesmo tempo, faremos uma avaliação do que aprendemos: quais práticas queremos manter? Para jovens famílias cristãs, uma prática da pandemia em particular promete grandes frutos para o discipulado.

Como tantas outras famílias, também nós recorremos a quebra-cabeças para preencher nossas inesperadas horas de convivência. Em março de 2020, não era apenas o papel higiênico que começou a faltar. Em meio a tudo, havia também uma escassez de quebra-cabeças de mil peças. Com a corrida desenfreada por quebra-cabeças na Amazon, finalmente me dediquei a encomendar um num site de impressão sob demanda. Quando chegou, era de fato um quebra-cabeça de mil peças… mas cada peça tinha o tamanho de uma moeda de dez centavos. Você sabe do que a gente precisa no lockdown? De mais formas de ficar mal-humorado e frustrado.

Dito isso, um hábito que espero que nossa família preserve após a pandemia é o de trabalhar juntos em quebra-cabeças (de tamanho normal). Com relação ao constante quebra-cabeças que é discipular nossos filhos, a COVID-19 nos apresentou uma imagem clara e em tamanho real de uma maneira essencial de fazer isso, por meio da mídia inesperada dos cultos dominicais, transmitidos via streaming para nossa sala de estar.

Para muitas famílias jovens, no lockdown decretado por causa do coronavírus foi a primeira vez em que participaram juntos do culto de forma mais consistente, passando por todos os elementos da igreja, em vez de seguir o padrão habitual em que as crianças frequentam a programação infantil, enquanto os adultos participam do culto semanal.

Na minha própria igreja, assim que começamos a transmissão dos cultos, as crianças começaram a perguntar sobre o batismo e a Ceia do Senhor a taxas sem precedentes. Muitas crianças nunca tinham visto um batismo ou a Ceia do Senhor. Nas salas de estar por todo o país, as crianças fizeram orações comunitárias, ouviram a pregação da Palavra, testemunhos e uniram suas vozes as de seus pais em louvor a Deus.

Como meu minúsculo quebra-cabeça, esses cultos de adoração em família não foram isentos de frustração. As crianças podem ter se debatido, comido salgadinhos demais ou corrido em círculos pela sala de estar, mas algo inestimável estava acontecendo — as famílias estavam vivendo na prática as palavras do Salmo 34.3: “Proclamem a grandeza do Senhor comigo; juntos exaltemos o seu nome”(grifo nosso).

Pais devotados, que podem ter presumido que o filho não tiraria nenhum proveito do culto, aprenderam que isso era, na verdade, profundamente falso. Porque, para os filhos, não há nada que se compare a ver seus pais dando o exemplo de como adorar a Deus. Porque as crianças têm o direito de testemunhar e aprender com as ordenanças da igreja. Porque as crianças não são a igreja do amanhã; elas são a igreja de hoje.

Sou grande fã do ministério infantil. Eu o considero inestimável. Sou paga pela minha igreja para pensar em maneiras proveitosas para o ministério infantil. Mas deixe-me ser bem clara: embora a igreja para crianças seja um apêndice maravilhoso para a igreja dos adultos, ela é um péssimo substituto.

Uma criança com idade suficiente para entrar no jardim de infância pode ser acolhida na grande igreja dos adultos com um pouco de orientação amorosa de pais que estejam determinados a discipulá-la. Se é verdade que “mais se aprende do que se ensina”, os pais deveriam valorizar seu exemplo de como adorar a Deus para seus filhos mais do que qualquer lição ensinada por um líder do ministério infantil da igreja.

Em certo sentido, a COVID-19 convidou os membros menores da igreja de hoje a adorar exatamente no lugar a que eles pertencem: com o restante da igreja. Parece que me lembro de alguém que fez algo semelhante, para a perplexidade de seus discípulos.

Quanto ao outro lado da pandemia, espero nunca mais encontrar prateleiras de supermercado totalmente sem papel higiênico. Ou quebra-cabeças. Ou Salgadinho Cheez-Its, sempre que estiver fazendo uma lista de compras. Mas espero que as peças do quebra-cabeça que se encaixaram no culto familiar compartilhado sejam mantidas e aprofundadas. Quando voltarmos ao normal, espero que não preservemos uma prática anterior à COVID que talvez não fosse tão boa quanto parecia.

Espero que mais famílias tragam crianças em idade escolar para o culto na igreja, além de enviá-las para a bênção que é a igreja voltada para o ministério infantil. Para as famílias, esse “comigo” da adoração é importante. Deixem vir os pequeninos — mesmo que se remexam e sussurrem. Eles são as peças que faltam para completar o quadro da igreja como família de Deus. Que eles sejam formados na casa do Senhor.

Jen Wilkin é esposa, mãe e professora de Bíblia. Ela é a autora de Women of the Word e None Like Him. Seu twitter é @jenniferwilkin.

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Books

Morre René Padilla, o pai da Missão Integral

Ele incentivou os evangélicos a verem a ação social e o evangelismo como “as duas asas de um avião”.

Christianity Today April 28, 2021

René Padilla, teólogo, pastor, editor e integrante de longa data da equipe da International Fellowship of Evangelical Students, morreu na terça-feira, 27 de abril, aos 88 anos.

Padilla era mais conhecido como o pai da Missão Integral, arcabouço teológico adotado por mais de 500 missões cristãs e organizações de ajuda humanitária, entre elas a Compassion International e a Visão Mundial. A Missão Integral levou evangélicos ao redor do mundo a ampliar sua missão cristã, sob o argumento de que ação social e evangelismo são componentes essenciais e indissociáveis — nas palavras de Padilla, como as “duas asas de um avião”.

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A influência de Padilla veio à tona com mais destaque no Congresso de Lausanne, em 1974, onde ele fez um empolgante discurso em sessão plenária. Quase 2.500 líderes evangélicos de mais de 150 países e de 135 denominações se reuniram em Lausanne, na Suíça, em uma reunião promovida principalmente pela Billy Graham Evangelistic Association (BGEA). Uma revista influente chamou Lausanne de “um fórum formidável, possivelmente o encontro de cristãos de espectro mais amplo já realizado”. Quando Padilla subiu à plataforma, ele carregou consigo as esperanças e os sonhos de muitos evangélicos do Sul Global, que buscavam igualdade na tomada de decisões de igrejas e organizações missionárias em todo o mundo.

Padilla exortou especificamente os evangélicos americanos a se arrependerem por exportar o “American way of life” para campos missionários de todo o mundo, mas sem nele incluir a responsabilidade social e o cuidado com os pobres; e assim, Padilla lançou a bandeira da Missão Integral.

O termo, inspirado em seu pão caseiro de trigo integral (pan integral), referia-se a uma abordagem espiritual e estrutural sintetizada para a missão cristã, originalmente traduzida como “uma missão abrangente”.

“Jesus Cristo veio não apenas para salvar minha alma, mas para formar uma nova sociedade”, disse ele em Lausanne.

A história de vida de Padilla foi surpreendente em seu alcance global — desde uma infância pobre na Colômbia e no Equador até chegar a inspirar evangélicos em todo o mundo. Ele ministrou com os missionários americanos Jim Eliot, Nate Saint e Pete Fleming, antes de suas mortes prematuras perto de Quito, em 1956; foi tradutor nas cruzadas de Billy Graham pela América Latina, na década de 1960; foi amigo íntimo de John Stott, a quem acompanhou em viagens para palestrar, na década de 1970; serviu de ponte para eliminar a divisão crescente entre uma geração mais jovem de evangélicos do Sul Global e líderes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, nas turbulentas décadas de 1960 e 1970; e liderou organizações evangélicas globais. Ele também teve seus escritos amplamente publicados em jornais teológicos e publicações estudantis, como a da InterVarsity Christian Fellowship (IVCF).

Muito do legado de Padilla permanece na América Latina, entre pastores, teólogos e líderes leigos. Embora muitas vezes recebesse ofertas de cargos nos Estados Unidos, Padilla optou por permanecer na América Latina, pastoreando entre os pobres, liderando o Centro Kairos para a Missão Integral e publicando centenas de autores latino-americanos de primeira viagem por meio de sua editora, a Ediciones Kairos. Padilla também foi cofundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) e da International Fellowship of Evangelical Mission Theologians; serviu ainda como presidente da Tearfund no Reino Unido e na Irlanda, além da Rede Miqueias.

Carlos René Padilla nasceu em Quito, Equador, em 12 de outubro de 1932. Ele cresceu junto com a comunidade missionária americana na região, tendo sido pioneiro em projetos de evangelismo e tradutor de programas de rádio dos Estados Unidos, quando era um jovem adolescente, para o ministério de rádio HCJB. Quando criança, Padilla sabia que era diferente, marcado por uma identidade religiosa marginalizada e excluída pela cultura latino-americana mais ampla. O pai de Padilla trabalhava como alfaiate para se sustentar, mas era um plantador de igrejas no coração. Seus pais se tornaram cristãos evangélicos antes de seu nascimento, por influência do tio de Padilla, Heriberto Padilla, que, segundo Padilla, foi um dos primeiros pastores evangélicos do Equador.

A plantação de igrejas era um empreendimento perigoso na fervorosa Colômbia católica romana, para onde sua família se mudou em 1934. Suas casas foram alvo de bombas e ele e seu pai sofreram várias tentativas de assassinato, enquanto plantavam igrejas e realizavam evangelismo a céu aberto. Padilla carregava cicatrizes de pedras atiradas contra ele, quando tinha 7 anos de idade, em ataque sofrido enquanto caminhava pelas ruas de Bogotá, tentando chegar na escola local.

Olhando para trás, Padilla percebia que isso era parte de ser um cristão evangélico fiel: “Na Colômbia, você tinha de se identificar como um cristão evangélico e, se o fizesse, tinha de arcar com as consequências”.

Como migrante pobre e membro de uma comunidade religiosa minoritária, Padilla foi moldado por um contexto de violência, opressão e exclusão. A relação entre sofrimento e teologia era orgânica para Padilla. Da juventude, ele se lembrava “de seu profundo desejo de compreender o significado da fé cristã em relação às questões de justiça e paz, em uma sociedade intensamente marcada por opressão, exploração e abuso de poder”. A questão para Padilla não era se o evangelho falava para esse contexto desafiador da América Latina, mas sim como falava. Essas perguntas levaram Padilla a buscar respostas na educação teológica e no ministério prático entre estudantes universitários.

Quando adolescente, Padilla sobrevoou os Andes equatorianos no avião do piloto missionário americano Nate Saint. Saint, junto com Jim Elliot e Pete Fleming, tinha há pouco organizado um acampamento bíblico para crianças evangélicas, em uma pequena cidade nas proximidades de Quito. Enquanto Padilla olhava a selva amazônica lá embaixo, ele se lembrou do conselho de Saint: “Você vai estudar teologia — tome cuidado para não consumir teologia sem digeri-la”. Quando os três missionários foram mortos pelo povo indígena Waorani, em uma tentativa fracassada de evangelização, em 1956, Padilla era estudante na alma mater de Elliot, o Wheaton College. A morte repentina deles causou, em suas palavras, um “enorme impacto” sobre ele em Wheaton.

Depois de chegar ao campus, no outono de 1953, Padilla procurou a ajuda do presidente da escola, Victor Raymond Edman, que havia servido como missionário em Quito e trabalhado com os pais de Padilla na Aliança Cristã e Missionária. Edman apoiou seu novo aluno — que mal falava inglês e ainda estava endividado com a passagem de avião — ajudando-o a encontrar um emprego e a se conectar com os recursos do campus. Em 1959, Padilla se formou em filosofia e concluiu seu mestrado em teologia. Mas ele se formou in absentia, uma vez que já fazia parte da equipe dos movimentos estudantis da International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na Venezuela, na Colômbia, no Peru e no Equador. (A organização global IFES surgiu da InterVarsity Christian Fellowship, cujo foco era voltado apenas para os EUA.)

Da América Latina, Padilla propôs casamento a Catharine Feser, sua amiga americana de longa data, também graduada em Wheaton, que trabalhava na InterVarsity. Ele descreveu sua proposta de casamento como explicitamente dupla: casar-se com ele e com a América Latina. Seu compromisso com a América Latina como campo missionário teria um papel importante no ministério do casal. (Ela acabaria rejeitando os EUA e juraria nunca mais voltar.) Catharine editou quase tudo que René escreveu, incluindo seu discurso de 1974, em Lausanne. Ela fez uma ponte crucial entre a proficiência na língua inglesa e a fluência nativa.

Padilla passou a desempenhar um novo papel, seis meses depois que o regime de Fulgencio Batista foi derrubado em Cuba, pelas forças comunistas leais a Fidel Castro. A revolta despertou os jovens da região para a realidade de que o imperialismo americano não era inevitável e o sucesso da empreitada ampliou as tendências nacionalistas, lançando suspeitas generalizadas sobre as ideias estrangeiras. A maioria dos materiais teológicos evangélicos na América Latina tinha pouco a dizer sobre a influência das ideologias marxistas. Retornar dos subúrbios americanos para o contexto político tumultuado da América Latina chocou o jovem equatoriano, e pôs em questão suas categorias teológicas, particularmente aquelas adquiridas por sua educação em Wheaton.

O descontentamento de Padilla com as abordagens existentes para o ministério, junto com a demanda dos alunos por engajamento social, o levou a explorar soluções inovadoras nas áreas de missão e teologia. Seu amplo contato com universidades e estudantes, no contexto da Guerra Fria na América Latina, rendeu-lhe uma perspectiva única. Mas a experiência prática do ministério não era sua única especialidade. As credenciais de sua educação evangélica deram-lhe maior credibilidade para falar em debates teológicos como o de Lausanne.

De 1963 a 1965, Padilla completou seu PhD na Universidade de Manchester, sob orientação de F. F. Bruce, professor de Crítica Bíblica e Exegese, “o mais proeminente estudioso bíblico evangélico conservador da era do pós-guerra”, como o historiador Brian Stanley mais tarde o descreveria. Estudar com Bruce deu confiabilidade a Padilla, aos olhos do mundo evangélico mais amplo, o que resultou em um convite para falar em Lausanne e uma parceria com John Stott, algo que se mostraria crucial para a posterior inclusão de elementos sociais no Pacto de Lausanne.

Nos anos 1960 e início dos anos 1970, Padilla começou a falar da pobreza teológica da América Latina, lamentando que questões locais estivessem sendo abordadas com respostas estrangeiras. Padilla uniu forças com Samuel Escobar e Pedro Arana, colegas da IFES, além do missionário Orlando Costas, criando uma coalizão eclética de teólogos inquietos. Juntos, eles compartilharam experiências de vida em contextos injustos e desiguais, durante os tempos da Guerra Fria; também compartilhavam uma frustração com o modo que muitas organizações evangélicas tratavam os latino-americanos.

Uma dessas frustrações ocorreu no “Primeiro Congresso Latino-Americano para Evangelização”, patrocinado pela BGEA, em 1969, mais conhecido por sua sigla em espanhol, CLADE. O evento foi uma tentativa de ajudar pastores e teólogos latino-americanos a enxergarem os perigos das teologias de inclinação marxista, bem como de impor categorias teológicas dos Estados Unidos à região. A BGEA observou que havia um avanço aparentemente desenfreado de movimentos teológicos radicais promovidos por proeminentes teólogos da libertação de primeira geração, e que o compromisso com a missão evangelística protestante tradicional começava a diminuir. Mas, para a embrionária esquerda evangélica latino-americana, o CLADE representava o ressurgimento do paternalismo e do imperialismo evangélico americano. Padilla chamou a conferência de “made in the USA” e disse que o paternalismo era “típico da maneira como o trabalho às vezes era feito na ala conservadora”.

Em resposta, Padilla, Costas, Escobar e outros fundaram a Fraternidad Teológica Latinoamericana (FTL). A organização incentivou Padilla a publicar e a produzir respostas para persistentes questões missiológicas, e seus primeiros anos forneceram algumas das teologias contextuais mais significativas para os evangélicos protestantes latino-americanos, incluindo o livro de Padilla Mission Between the Times: Essays on the Kingdom.

Padilla já ganhava destaque e aguçava sua voz crítica antes mesmo de Lausanne. Em um artigo de 1973 para a Christianity Today — o primeiro artigo da revista a abordar diretamente a teologia da libertação — Padilla alertou os evangélicos conservadores a abordarem os próprios preconceitos ideológicos antes de criticarem a teologia da libertação. Ele também rejeitou a própria teologia da libertação, ao concluir: “Onde está a teologia evangélica que irá propor uma solução com a mesma eloquência, mas também com uma base mais firme na Palavra de Deus?”.

Em julho de 1974, Catharine Feser Padilla reuniu seus filhos em torno de um atlas mundial, em sua casa, no bairro de Florida Este, em Buenos Aires. Sua filha, Ruth Padilla DeBorst, mais tarde lembrou: “O tom de sua voz tinha uma certa urgência incomum: ‘Hoje, quando ele fizer sua palestra aqui, em Lausanne, Suíça’ — e apontou para a cidade no atlas — ‘Papi dirá algumas coisas que nem todo mundo vai querer ouvir. Vamos orar por ele e pelas pessoas que o ouvem’”.

No Congresso de Lausanne de 1974, pela primeira vez, líderes do Sul Global ganharam um lugar à mesa da liderança evangélica mundial — e trouxeram consigo sua marca emergente do cristianismo social. Os latino-americanos falavam com uma voz particularmente forte, tendo afiado sua crítica como comunidade de minoria religiosa. O editor da Crusade Magazine escreveu que os comentários de Padilla “realmente incendiaram o congresso” e receberam “a mais longa salva de palmas concedida a qualquer palestrante até aquele momento”. Até mesmo a revista Time destacou o discurso de Padilla em sua cobertura, chamando-o de “um dos discursos mais provocativos do encontro”.

Aproveitando o impacto de seu discurso e do de Escobar na plenária, Padilla, ao lado de John Howard Yoder, reuniu um grupo ad hoc de 500 participantes, que chamaram de grupo de “Discipulado Radical”, o qual buscava aprimorar ainda mais os elementos sociais no esboço do Pacto de Lausanne. Depois do congresso, Padilla lembrava desse documento de discipulado radical como “a mais forte declaração baseada na Missão Integral já formulada por uma conferência evangélica até aquela data”. Ele também declarou a morte da dicotomia entre ação social e evangelismo na missão cristã.

A apresentação de Padilla causou polêmica. Stott, por exemplo, havia rejeitado anteriormente essa visão, mas publicamente se retratou em seu livro de 1975, A Missão Cristã no Mundo Moderno. Mas a apresentação deixou muitos outros líderes evangélicos nervosos, não apenas na América do Norte e na Grã-Bretanha, mas também no Sul Global. O secretário geral da InterVarsity, Oliver Barclay, discordou do cerne da apresentação de Padilla em Lausanne e, mais tarde, naquele mesmo ano, o alertou sobre a reação à sua apresentação na “mídia” e tentou conter o jovem líder.

Em Lausanne, Padilla havia conectado a missão da igreja ao conteúdo da própria mensagem do evangelho — conteúdo que continha realidades sociais. Ao fazer isso, ele desafiou a teologia predominante do evangelicalismo protestante convencional, que dizia que a ação social era uma implicação da mensagem do evangelho — e não algo inerente a ela. Para alguns, porém, chamar a ética social de parte da mensagem do evangelho soava irritantemente como evangelho social e liberalismo teológico.

Para Padilla, no entanto, abraçar a mensagem mais ampla do evangelho era crucial para a missão cristã. “A falta de apreciação das dimensões mais amplas do Evangelho leva inevitavelmente à má compreensão da missão da igreja”, disse ele. “O resultado é um evangelismo que considera o indivíduo como uma unidade autossuficiente — um Robinson Crusoé, a quem o chamado de Deus se dirige como [se estivesse] em uma ilha”.

Nas décadas seguintes, Padilla ajudou a moldar a trajetória do Movimento de Lausanne, conduzindo colóquios e conferências em todo o mundo. Ele continuou a aguçar sua mensagem, inclusive criticando o papel dos Estados Unidos como potência global. Seu legado missiológico talvez seja visto com mais clareza nos documentos do Congresso de Lausanne, na Cidade do Cabo, em 2010. Pela primeira vez, a Missão Integral foi incluída nos documentos oficiais do Movimento de Lausanne.

Hoje, é comum para muitos evangélicos falar de uma mensagem do evangelho mais ampla — para o indivíduo, para o próximo e para a criação. Além de encontros globais, Padilla dedicou grande parte de seu tempo à formação teológica em Missão Integral de pastores e líderes leigos em toda a América Latina, por meio do Centro de Estudios Teológicos Interdisciplinarios (CETI), fundado com Catharine, em 1982.

Padilla foi precedido na morte por sua primeira esposa e colega de longa data, Catharine Feser Padilla, em 2009. Ele deixa a segunda esposa, Beatriz Vásquez, seus cinco filhos com Catharine, Daniel, Margarita, Elisa, Sara e Ruth, bem como vários netos.

Traduzido por Maurício Zagari.

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Boas novas: amanhã morremos

Por que pensar em nossa mortalidade pode ser bom para nós.

Christianity Today April 26, 2021
Madeleine Maguire / Unsplash

Eu costumava achar que Deus me devia uma vida longa — para que eu buscasse e lutasse com todas as minhas forças por uma vocação, por minha família, e vivesse o suficiente para me tornar avô. Então, aos 39 anos, fui diagnosticado com um câncer incurável. O esperado enredo da minha vida foi interrompido. Agora, como paciente com câncer, minhas expectativas mudaram. O câncer provavelmente cortará décadas da minha vida; sinto dores e cansaço diários que esgotam minhas forças. Embora minhas expectativas anteriores em relação a Deus possam parecer razoáveis, vim a perceber como, sem querer, acabei abraçando uma espécie de evangelho da prosperidade. Eu acreditava que Deus me devia uma vida longa.

Essa suposição é generalizada. Entre os que acreditam em Deus, nos Estados Unidos, 56 por cento pensam que “Deus concederá boa saúde e cura de doenças aos crentes que tiverem fé suficiente”, de acordo com um estudo recente do Instituto Pew Research Center. Em outras partes do mundo, a porcentagem de cristãos que defendem essa visão é ainda maior.

De certa forma, essa crença se alinha a ensinamentos do Antigo Testamento sobre colher o que semeamos. “O infortúnio persegue o pecador, mas a prosperidade é a recompensa do justo”, diz Provérbios 13.21. O evangelho da prosperidade pega pepitas de sabedoria como essa e as combina com o ministério de cura de Jesus, de forma a explicar a doença por meio de um axioma claro: porque Deus nos ama, ele não quer que adoeçamos. Portanto, se não temos boa saúde, isso deve ser consequência de algum pecado pessoal ou, no mínimo, de falta de fé da nossa parte. De uma forma ou de outra, o culpado é quem está doente. E ainda que muitos evangélicos rejeitem essa forma “radical” do evangelho da prosperidade, muitos de nós aceitamos uma versão mais branda dela, um corolário: se procuro obedecer a Deus e viver com fé, devo esperar uma longa vida de sucesso terreno e relativo conforto.

Recentemente, uma amiga me contou sobre seu trabalho como conselheira de jovens do ensino médio, em um acampamento cristão de verão. Em um dia designado, esses jovens participaram de uma atividade destinada a ajudá-los a desenvolver pequenos gestos de empatia para com pessoas portadoras de deficiências físicas. Alguns deles tiverem os olhos vendados; outros, as orelhas tapadas; e outros ainda tiverem de fazer as atividades do dia sentados em uma cadeira de rodas.

No meio do dia, uma garota arrancou a venda e se recusou a colocá-la de volta. “Se eu ficasse cega, Deus me curaria”, disse ela. Ela tinha fé em Jesus e estava tentando obedecer a Deus. Como em uma transação previsível, ela sabia que, se fizesse sua parte, poderia contar que Deus lhe concederia uma vida que ela considerasse próspera. Se ela ficasse cega, Deus consertaria a questão.

O problema com essa abordagem não é a crença de que Deus pode curar e que ele nos ama. A questão é que o Deus das Escrituras nunca promete o tipo de prosperidade que essa estudante esperava com tanta confiança. Certamente, quando a cura acontece, inclusive por meio de tratamento médico, é uma boa dádiva de Deus. Quando nos sentimos como se estivéssemos em uma “cova” escura, como o salmista (Sl 30.1-3), podemos e devemos lamentar e implorar por libertação, inclusive de nossa dor e enfermidade. Agimos com razão quando pedimos a Deus por cura, assim como pedimos ao Pai o pão nosso de cada dia, na Oração do Senhor. No entanto, a cura, assim como o pão nosso de cada dia, são coisas efêmeras, apenas passageiras. Quer vivamos apenas alguns anos ou várias décadas, Eclesiastes nos lembra que, visto por uma lente mais ampla, “O homem sai nu do ventre de sua mãe, e como vem, assim vai” (5.15).

Cada um de nós acabará sendo um dia abatido pela morte, essa ferida que remédio nenhum pode curar. Embora Provérbios esteja certo em nos apontar a sabedoria comum de que colhemos o que semeamos, isso não é uma lei divina de como o universo sempre funciona. Jó era “íntegro e justo”, e ainda assim sofreu grande calamidade com a perda de seus filhos e servos, de sua riqueza e saúde (Jó 1.1, 13-19; 2.7-8). O apóstolo Paulo serviu a Cristo e à igreja sacrificialmente, com fé, mas não lhe foi concedido livramento de seu “espinho na carne” (2Co 12.7-10). Quando se trata de mortalidade e das perdas que a acompanham, nenhum de nós ficará livre. Embora tenhamos a tendência de afastar essas realidades humanas básicas de nossa vida cotidiana, descobri algo surpreendente: para nós, como cristãos, abraçar os lembretes diários de nossas limitações mortais pode ser um refrigério para nossa alma sedenta.

Boas novas pelas quais vale a pena morrer

Nossa vida “não passa de um sopro”, nossos dias são como “o comprimento de um palmo” em relação ao Deus eterno, como nos lembra o Salmo 39. Até que o Senhor da criação volte para fazer novas todas as coisas, nos juntamos ao salmista na oração:

“Mostra-me, Senhor, o fim da minha vida e o número dos meus dias, para que eu saiba quão frágil sou. Deste aos meus dias o comprimento de um palmo; a duração da minha vida é nada diante de ti. De fato, o homem não passa de um sopro” (Sl 39.4-5)

Essa oração contrasta com pressupostos culturais que são consenso comum hoje. Nossa tendência de construir contos sobre nós mesmos no Facebook e Instagram, por exemplo, é parte de uma liturgia cultural mais ampla — um conjunto de práticas que moldam nossos desejos — e que sutilmente leva muitos de nós a supor que estamos no centro do universo e que nossa história, não fosse pelo número real de nossos anos na terra, nunca terá fim. A crise do COVID-19 expôs a ilusão desses pressupostos. O fato de caminhões refrigerados terem sido obrigados a recolher os corpos dos mortos, em cidades como Nova York e Detroit, é um testemunho chocante de que as nações altamente desenvolvidas não são imunes a mortes inesperadas. Além disso, como revelaram os protestos por causa do assassinato de pessoas negras desarmadas, essa suposição de que “minha história nunca vai acabar” é culturalmente privilegiada. A igreja negra e outras comunidades marginalizadas estão dolorosamente conscientes da natureza fugaz da vida humana. “Partir, partir, partir para Jesus”, entoa o Negro Spiritual. Pois “não tenho muito tempo para ficar aqui”.

Nossa mortalidade não era algo tão fácil de evitar nas gerações anteriores. Além da realidade de que doenças transmissíveis, com risco de vida, eram uma ameaça sempre presente, a cultura da morte na América era mais comunitária. Os cultos fúnebres serviam como lembretes constantes da mortalidade humana, uma vez que congregações inteiras participavam deles, inclusive as crianças. O foco desses cultos tradicionalmente voltava-se para o fato de que não pertencemos a nós mesmos, mas sim a Cristo, na vida e na morte. Em contraste, hoje é mais comum ter cultos memoriais personalizados, adaptados à história de vida particular do falecido, no qual comparecem apenas familiares e amigos. Podemos nos preocupar com a morte de outra pessoa, mas apenas quando isso for significativo para a nossa própria história. Nossa história pessoal é o que mais conta. A morte é algo que acontece para outras pessoas.

O Salmo 39 põe fim a essas ilusões, embora esteja carregado de esperança. Mesmo que sejamos criaturas temporais, ainda podemos encontrar o verdadeiro florescer investindo nosso amor mais profundo naquele que é eterno, o Senhor. Peter Craigie, um comentarista particularmente perspicaz dos Salmos, observa como o valor da vida deve ser entendido à luz de sua finitude. “A vida é extremamente curta”, Craigie escreveu certa vez. “Se quisermos encontrar o significado da vida, este deve ser encontrado no propósito de Deus, o doador de toda a vida.” Na verdade, reconhecer a “natureza transitória” de nossa vida é “um ponto de partida para alcançar a sanidade de um peregrino em um mundo que de outra forma seria loucura”. Craigie escreveu essas palavras em 1983, no primeiro dos três volumes sobre o livro de Salmos, que estavam planejados para serem lançados em uma prestigiosa série de comentários acadêmicos. Dois anos depois, ele morreu em um acidente de carro, deixando sua série de comentários incompleta. Ele tinha 47 anos.

A vida de Craigie foi tirada antes do que ele e seus entes queridos esperavam, antes que ele pudesse realizar seus bons e dignos objetivos terrestres. No entanto, em sua vida transitória, ele deu testemunho desse horizonte da eternidade, de tirar o fôlego. Ele deu testemunho de que aceitar nossas limitações mortais é algo que anda de mãos dadas com ofertar nosso corpo mortal ao Senhor da vida. Não somos heróis do mundo e não podemos fazer muito. Mas podemos amar com generosidade e dar testemunho daquele que é a origem e o fim da própria vida — o Senhor eterno, o Alfa e o Ômega, o Salvador crucificado e ressurreto que realizou e realizará o que nós mesmos jamais poderíamos realizar.

O antídoto para a negação da morte

Nossa fé não deve ser usada como escudo para nos proteger da solene realidade de nossa própria mortalidade. Essa atitude de negação da morte, tão comum na atual versão “branda” do evangelho da prosperidade, na verdade é desnecessária por causa de nossa esperança em Deus para a ressurreição dos mortos. No final, uma fé incapaz de lidar com nosso desamparo fatal nem vale a pena ter. O apóstolo Paulo admite isso abertamente: “se Cristo não ressuscitou, é inútil a nossa pregação, como também é inútil a fé que vocês têm”, disse ele em seu famoso capítulo sobre a ressurreição de Cristo. “Se é somente para esta vida que temos esperança em Cristo, dentre todos os homens somos os mais dignos de compaixão” (1Co 15.14, 19). Admitir diariamente nossa impotência diante da morte pode ser uma maneira de nos entregarmos ao Senhor ressuscitado, em vez de dependermos de nossas próprias tentativas de construir uma vida terrena “próspera”.

Estranhamente, admitir nossa impotência diante da morte dessa forma pode nos libertar da escravidão ao medo da morte. Sociólogos de uma escola de pensamento inspirada no livro vencedor do Prêmio Pulitzer de Ernest Becker, The Denial of Death [A negação da morte], documentaram como as culturas tendem a idolatrar heróis políticos ou as venturas de uma nação como forma de negar suas limitações mortais. Quando nós, humanos, negamos nossa mortalidade, tornamo-nos defensivos, e confiamos apenas em nossa própria tribo política ou em nossos próprios grupos raciais ou culturais. Mas viver na esperança da ressurreição elimina a necessidade de idolatrar líderes falhos ou caiar causas ideológicas pecaminosas. Somos capazes de admitir abertamente que não podemos derrotar a morte. Em vez disso, vivemos na confiança de que, no dia final, “Quando […] o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘A morte foi destruída pela vitória’ ” (1Co 15.54). Esse dia ainda não chegou — ansiamos por ele na era vindoura, quando o reino de Cristo virá em plenitude. Nossa esperança nele, e nos propósitos de Deus, em vez dos nossos, faz uma grande diferença no modo de vivermos cada dia hoje.

À luz da esperança da ressurreição, Paulo cria que, embora “exteriormente estejamos a desgastar-nos”, a decadência do nosso corpo não terá a palavra final (2Co 4.16). Além disso, até mesmo as aflições que vivemos no corpo são integradas à realidade que nos sustenta: a nossa união com o Senhor crucificado e ressurreto. “Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal” (v. 11). Quer tenhamos visão ou mobilidade, quer vivamos 5, 40 ou 90 anos, nosso corpo pertence ao Senhor, e o processo de desgaste exterior pode ser um testemunho de amor humilde por nosso Salvador. Surpreendentemente, em sua obra no mundo, o Espírito abrange os problemas físicos. Como testemunhas de Cristo, a própria deterioração do nosso corpo mostra “que este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós” (v. 7). Dessa forma, a âncora de nossa esperança não é a libertação do processo de decadência, mas a união com o Cristo crucificado e ressurreto. Essa união com Cristo florescerá plenamente na ressurreição vindoura, quando participaremos em “uma glória eterna que pesa mais” do que nossas tribulações atuais (v. 17).

A dádiva dos lembretes da mortalidade

De acordo com Martinho Lutero, mesmo quando nosso corpo vibra e a morte parece pertencer a um país distante, devemos fazer da morte uma conhecida habitual. “Devemos nos familiarizar com a morte durante a vida”, escreveu ele em um sermão de 1518, “convidando a morte à nossa presença, quando ela ainda está à distância, e não quando está se aproximando”. Por que Lutero aconselha isso? Sua razão não é alguma tendência mórbida, mas sim o mesmo motivo pelo qual o salmista se refere à vida como meramente “o comprimento de um palmo” diante de Deus: a morte transpassa nossa arrogância, nossa sensação de que o mundo é um drama no qual somos o ponto central. Esses lembretes de nossa morte podem apontar para o Deus da vida — o Deus que revestiu de carne ossos secos — como nossa única esperança, agora e no futuro. Como Lutero nos lembra, “já que todos devemos partir, devemos voltar nossos olhos para Deus, a quem o caminho da morte nos conduz e nos dirige”.

Nos dias bons e maus, em meio à alegria e à dor, passei a aceitar esses lembretes da minha mortalidade como dádivas estranhas, mas benéficas. Eles conseguem me firmar como um mortal diante de Deus. Vivemos na esperança de que a fragilidade e a decadência de nosso corpo não sejam a medida última de nossa vida. Vivemos na esperança de que o drama central do universo não seja a história da nossa própria vida. Pelo contrário, ao vivermos como pequenas criaturas, podemos nos alegrar na maravilha e no drama do amor de Deus em Cristo.

Nossa vida presente terminará quando, assim como Jó, nós, como criaturas que somos, formos privados de família, fortuna e futuro mundano. Mas, mesmo à luz deste fim mortal — na verdade, especialmente à luz dele — podemos nos juntar ao apóstolo Paulo em estar “convencido[s] de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”(Rm 8.38-39).

J. Todd Billings é o Professor/pesquisador de Teologia Reformada da cátedra Gordon H. Girod, no Western Theological Seminary, em Holland, Michigan. Este artigo inclui material adaptado de seu último livro, The End of the Christian Life: How Embracing Our Mortality Frees Us to Truly Live [O fim da vida cristã: como aceitar nossa mortalidade nos liberta para vivermos de verdade].

Traduzido por Mariana Albuquerque

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Books

Por que pastores negros ainda permanecem na Convenção Batista do Sul

Mesmo com as polêmicas em torno de Trump e da teoria crítica de raça que instigaram a saída de alguns líderes das minorias, outros permanecem na maior denominação protestante dos Estados Unidos, pelas vantagens na área de missões.

Christianity Today April 21, 2021
Courtesy of Baptist Press

Fred Luter pertence à Convenção Batista do Sul há 35 anos. Mas os últimos quatro anos “têm sido um dos períodos mais difíceis” para ser negro na Convenção Batista do Sul (CBS), disse ele, uma vez que pastores brancos pareciam apoiar o presidente Donald Trump de forma acrítica, apesar de falhas de caráter pelas quais “teriam crucificado” o presidente Barack Obama.

Percebendo a disparidade, membros da congregação predominantemente negra que Luter pastoreia, em Nova Orleans, disseram a ele que estão “quase envergonhados” por serem membros da Convenção Batista do Sul. Eles até pediram para sair da CBS.

Mas Luter, o primeiro presidente afro-americano da CBS, não vacilou em seu apoio à convenção.

“Não estamos nesta convenção por causa de quem é o presidente dos Estados Unidos”, disse Luter. “Estamos nesta convenção por conta do nosso compromisso com a Grande Comissão e o Grande Mandamento.”

Luter compartilhou sua história como parte de uma série do YouTube intitulada Why I Stay [Por que eu fico], que apresenta testemunhos de líderes negros que permaneceram em círculos evangélicos brancos — entre os quais está a CBS — a despeito da crescente pressão para saírem. A série é apresentada por Dhati Lewis, vice-presidente do Conselho de Missões da América do Norte (CMAN) que está entre os funcionários negros de maior posição hierárquica das entidades da CBS.

“Temos que fazer tanto barulho quanto os detratores para permitir que as pessoas saibam tudo de positivo que está acontecendo na denominação”, disse Lewis aos cristãos negros e de outras raças diferentes da branca.

Essa mensagem positiva tem sido cada vez mais necessária, à medida que a saída da CBS de negros de alta hierarquia incentiva membros negros a questionarem seu próprio envolvimento na convenção. Até agora, a maioria das igrejas de minorias tem permanecido na CBS. Cristãos negros e de outras raças que encontraram um lar na convenção esperam manter as coisas assim.

O relacionamento entre a CBS e os cristãos negros “é como um casamento”, disse Marshal Ausberry, primeiro vice-presidente da CBS e presidente da Associação Nacional de Afro-Americanos (ANAA) da convenção. “No casamento, temos alguns momentos difíceis ao longo do caminho, mas não nos divorciamos.”

O ano passado foi um momento difícil. Charlie Dates, de Chicago, e John Onwucheckwa, de Atlanta, estão entre os pastores negros que anunciaram sua saída da CBS, alegando preocupações sobre o clima racial na denominação.

O pastor Dwight McKissic, do Texas, que já foi membro do conselho do Southwestern Baptist Theological Seminary e presença perene nas sessões de discussão de assuntos da CBS, disse que sua igreja está deixando a Convenção Batista do Sul do Texas (CBST) e também pode vir a deixar a CBS, se esta não deixar de apoiar uma resolução de 2019 que endossa a limitação do uso da teoria crítica de raça.

No entanto, as minorias étnicas continuam sendo uma presença marcante na CBS. Congregações compostas por pessoas que não são de origem anglo-saxônica representavam 22 por cento do total de 51.538 congregações da Convenção Batista do Sul em 2018, último ano para o qual há dados disponíveis. Isso incluiu uma alta recorde de 3.382 igrejas de maioria negra, um aumento de 90 por cento em relação a 2000. O número também incluiu 3.509 congregações hispânicas e 2.095 congregações asiáticas.

Terry Turner, pastor da região de Dallas e ex-presidente da CBST, disse que os relacionamentos ajudam a mantê-lo na CBS. O Programa de Cooperação da denominação, que financia missões e ministérios, é “a melhor maneira de edificar o reino”, disse ele, e a convenção é “inigualável” em missões, combate à fome e apoio às vítimas de desastres.

Quando liderou os batistas do sul, no Texas, Turner ajudou a lançar a iniciativa “Look Like Heaven” [Parece o céu] para incentivar a adoração e cooperação interculturais. Quando se trata de tensão racial, “eu só quero estar na vanguarda para tornar as coisas melhores”, disse ele.

Turner está preocupado, no entanto, com o fato de que os presidentes de seis seminários da CBS tenham causado uma “tensão desnecessária nas relações raciais”, no ano passado, quando emitiram uma declaração afirmando que “qualquer versão da teoria crítica de raça é incompatível com a Fé e Mensagem Batistas”, a confissão de fé da CBS.

Outros pastores negros da CBS compartilham da preocupação de Turner. Em Birmingham, Alabama, há dois anos, mensageiros da CBS adotaram uma resolução sobre a teoria crítica de raça e a interseccionalidade que provocou algumas objeções do plenário e, posteriormente, um documentário alegando uma agenda de justiça social na convenção. Os presidentes dos seminários emitiram sua declaração em parte para tratar de tais objeções.

Mas alguns dentre os afro-americanos questionaram a rejeição completa da teoria crítica de raça por parte dos presidentes, perguntando se eles haviam cedido à pressão e subvertido a vontade dos mensageiros da CBS. A teoria crítica de raça, embora seja falha como visão de mundo, tem seu uso limitado, dizem os pastores de cor, inclusive para ajudar a analisar preconceitos inconscientes nas instituições da CBS — das quais nenhuma jamais contratou um presidente-executivo que não fosse branco.

Ausberry tem dialogado com os presidentes dos seminários sobre as preocupações dos batistas de origem não anglo-saxônica. Os presidentes não minimizaram intencionalmente a opinião dos afro-americanos, disse ele, e admitiram que incluir pessoas de cor em suas deliberações sobre a teoria crítica de raça teria sido útil. ANAA e CMAN estão trabalhando em parceria com o intuito de lançar um novo esforço para alcançar as igrejas negras, cujos detalhes terão início ainda este ano.

Em março, porém, a ANAA disse estar desapontada com o fato de que os presidentes “não tenham mudado sua declaração original de incompatibilidade com a teoria crítica de raça em todas as suas formas” e reiterou que “temos forte convicção de que qualquer discussão sobre racismo sistêmico deve levar em consideração as experiências vividas pelos negros e outros grupos étnicos”.

O envolvimento contínuo com a CBS é benéfico para os cristãos de cor, disse Ausberry, por causa da “visão elevada das Escrituras” da convenção e de seu foco em alcançar os perdidos para Cristo. Ele sente “um chamado de Deus para estar na CBS”.

O pastor de Chicago, Adron Robinson, membro do Comitê Executivo da CBS e ex-presidente da Associação Estadual Batista de Illinois, sente um chamado semelhante.

Para ele, dentre as “inúmeras vantagens” de afiliação à CBS estão as oportunidades missionárias dentro e fora dos Estados Unidos, bem como o relacionamento com pastores de várias etnias. Contudo, Robinson acredita que o “apoio irrestrito” a Trump, por parte de alguns integrantes brancos da CBS que “tentaram batizar” a ideologia do ex-presidente, está fazendo com que pastores negros e latinos reconsiderem seu futuro envolvimento com a CBS.

“Alguns me disseram que estão com um pé fora da denominação”, disse Robinson. “Outros me disseram que estão avaliando as coisas e esperando para ver, e outros ainda me disseram que não têm intenção de sair neste momento.” O “caminho a seguir é a CBS voltar ao que o Senhor nos chamou para fazer. Isto é, viver a Grande Comissão e o Grande Mandamento”.

Robinson acredita que os pastores ligados às minorias estão aguardando a eleição deste ano para presidente da CBS, na reunião anual da convenção em junho, em Nashville, como um indicador do caminho que ela tomará. Os quatro candidatos anunciados até o momento são o diretor executivo da Convenção Batista do Noroeste, Randy Adams; um pastor do Alabama, Ed Litton; o presidente do Seminário Teológico Batista do Sul, Albert Mohler; e Mike Stone, ex-presidente do Comitê Executivo.

Todos os quatro falaram sobre as questões que estão sendo discutidas pelos afro-americanos e outras minorias étnicas. Adams lidera os batistas em uma das regiões com maior diversidade cultural da América. Litton assinou várias declarações sobre reconciliação racial nos últimos anos e será indicado por Luter. Mohler recebeu elogios no passado por seu trabalho em prol da reconciliação racial, inclusive por ter ajudado a inspirar um livro em 2017, Removing the Stain of Racism from the Southern Baptist Convention [Removendo a mancha do racismo da Convenção Batista do Sul]. Mais recentemente, ele recebeu críticas por apoiar Trump em 2020, depois de declarar que nunca apoiaria Trump, quatro anos antes.

Stone, membro do comitê diretor da Rede Batista Conservadora, expressou preocupação com a influência da teoria crítica de raça na convenção. Mas o pastor latino Javier Chavez, candidato a segundo vice-presidente da CBS este ano, disse que Stone “pressionou por diversidade” quando foi presidente da Convenção Batista da Geórgia, e ajudou a trazer Chavez à liderança da convenção estadual.

Embora Chavez queira ver mais hispânicos na liderança da CBS, ele está satisfeito com o alcance da convenção para integrantes de língua espanhola. Várias entidades da CBS oferecem programas e recursos em espanhol, disse ele, incluindo uma série de publicações da Lifeway Christian Resources, o braço editorial da CBS.

Para superar a tensão racial na convenção, “vamos abrir as nossas Bíblias”, disse Chavez, pastor da Amistad Cristiana, uma igreja hispânica em Gainesville, Geórgia. “Vamos sentar, conversar, e então orar e seguir em frente […] Vamos encerrar esta conversa.”

A reunião do Comitê Executivo no mês passado, em Nashville, ofereceu um vislumbre de esperança de que tal avanço seja possível. Em seu discurso presidencial, J. D. Greear sugeriu ter ouvido as preocupações articuladas por integrantes não pertencentes à raça branca, negros e de outras raças. Ele se dirigiu aos “nossos líderes negros, muitos dos quais eu sei que estão lutando para se manterem engajados em uma convenção que pensam que pouco se importa com vocês”.

“O melhor de nós é que somos Batistas da Grande Comissão”, disse ele, “e são esse evangelho e essa Grande Comissão que nos manterão unidos em tempos de provação”.

David Roach é pastor da Igreja Batista Shiloh, em Saraland, Alabama.

Traduzido por Leandro Bachega

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A fragmentação da alma evangélica

Por que estamos nos dividindo e como podemos nos unir novamente.

Christianity Today April 20, 2021
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Kimson Doan / Unsplash / imtmphoto / Getty Images

Novas fraturas estão se formando dentro do movimento evangélico americano, fraturas que não se formam, como de costume, ao longo das linhas regionais, denominacionais, étnicas ou políticas. Casais, famílias, amigos e congregações antes unidos em seu compromisso com Cristo estão agora se dividindo por causa de visões de mundo aparentemente irreconciliáveis. Na verdade, eles não estão apenas se dividindo, mas estão se tornando incompreensíveis uns para os outros.

Recentemente, um grupo de amigos meus dos tempos de faculdade, todos criados e educados em famílias e congregações evangélicas saudáveis, reconectou-se via online, na tentativa de compreender o que está acontecendo. Uma das pessoas lamentou não poder mais entender seus pais ou como suas visões de mundo haviam mudado de forma tão repentina e dolorosa. Outro rapaz descreveu amigos idênticos do ponto de vista demográfico, que já tiveram os mesmos posicionamentos que ele em praticamente todas as questões, mas que agora promoviam ideias que considerava chocantes. Outra ainda disse que sua igreja estava se desintegrando, dividindo-se por causa de suspeitas e mal-entendidos mútuos.

“Este era o meu povo”, disse um deles, “mas agora já não sei quem eles são, ou talvez não saiba mais quem eu sou”.

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O que fazer quando você sente que está perdendo as pessoas que ama para uma falsa realidade? E o que fazer com a verdade humilhante de que eles sentem exatamente o mesmo medo em relação a você?

O dilema não é exclusivo dos evangélicos. Contudo, irmãos amados que antes caminhavam lado a lado percebem agora que transformações tectônicas os dividiram, que seus continentes estão se afastando, e que não conseguem encontrar uma ponte de volta para um terreno comum. Como nossas visões da realidade podem divergir de forma tão dramática — e será que há algo que possamos fazer para nos unir novamente?

A curva de plausibilidade e a curva de informação

Entre os assuntos de interesse mais persistente em minha carreira acadêmica estava a questão de como as pessoas formam suas crenças. Não como elas deveriam formar crenças, em alguma visão idealizada de racionalidade aperfeiçoada, mas sim como elas realmente formam crenças, enquanto criaturas mergulhadas em suas comunidades e culturas. Quero apresentar uma ferramenta conceitual simples, influenciada em parte pelo trabalho de Peter Berger, que pode nos ajudar a entender o que está acontecendo.

Imagine um plano horizontal que se curva para baixo, entra em uma cavidade, desponta novamente do outro lado e retorna a um plano horizontal. A curva, que se forma de uma extremidade à outra da cavidade, representa a gama de alegações que um indivíduo considera verossímeis. Vamos chamá-la de curva de plausibilidade. Alegações que ficam no centro da curva serão percebidas como as mais plausíveis; elas requerem pouca evidência ou argumentação antes que um indivíduo consinta em acreditar nelas. As alegações que ficam perto das bordas da cavidade são cada vez mais implausíveis à medida que se afastam do centro, exigindo cada vez mais persuasão. Alegações que ficam inteiramente fora da curva de plausibilidade estão além dos limites daquilo em que uma pessoa possa acreditar em um determinado momento, e nenhuma quantidade de evidência ou lógica será suficiente para mudar isso.

O que determina a plausibilidade de uma determinada alegação é o quanto ela está de acordo ou se encaixa com o que um indivíduo experimenta na vida, já acredita e quer acreditar. O conjunto de crenças de uma pessoa é como um fotomosaico (veja um exemplo aqui): Milhares de experiências e percepções da realidade são reunidas, e delas emergem padrões e impressões mais amplas, crenças de ordem superior sobre a natureza da realidade, as grandes narrativas da história, a natureza do certo e do errado, do bem e do mal, e assim por diante. Tentativas para mudar uma única crença podem parecer infrutíferas, quando ela está entrelaçada em inúmeras outras. Por onde começar a lidar de uma só vez com milhares de divergências que estão entrelaçadas? Evidências em contrário são quase irrelevantes, quando uma afirmação “se encaixa” em toda uma rede de crenças que a reforçam. Isso é, em parte, o que dá a uma curva de plausibilidade força duradoura e resistência à mudança.

O desejo desempenha um papel particularmente complicado na curva de plausibilidade. Podemos desejar não acreditar em uma alegação porque ela nos separaria daqueles que amamos, nos confrontaria com verdades dolorosas, exigiria uma mudança em nosso comportamento, imporia um custo social etc. Nós podemos desejar acreditar em uma certa alegação porque ela estaria em alta, confirmaria nossos preconceitos, nos diferenciaria daqueles que nos rodeiam, irritaria nossos pais, ou por inúmeras outras razões. Precisaremos de uma dose maior de persuasão para aquelas alegações em que não queremos acreditar, e uma dose menor para aquelas em que acreditamos.

Como a janela de Overton na teoria política, uma curva de plausibilidade pode se expandir, contrair-se e mudar. Amigos ou familiares cujas curvas de plausibilidade já foram um dia idênticas podem descobrir que divergem com o passar do tempo. Alegações que uma pessoa considera prontamente plausíveis são quase inconcebíveis para a outra. Mas como isso acontece? É aí que entra a curva de informação.

Imagine a imagem de uma cavidade espelhada acima da curva de plausibilidade. Essa é a curva de informação e reflete as fontes externas de informação que o indivíduo tem sobre o mundo — por exemplo, comunidades, autoridades e a mídia. As fontes que ficam no centro da curva de informação são consideradas mais confiáveis; alegações que vêm dessas fontes são aceitas quase sem questionamento. As fontes de informação que ficam nas extremidades externas da cavidade são consideradas menos confiáveis, portanto, suas alegações serão submetidas a um exame mais minucioso. As fontes que ficam totalmente fora da curva de informação, ao menos para esse indivíduo, carecem tanto de credibilidade que suas alegações são rejeitadas de imediato.

O centro da curva de informação geralmente se alinha com o centro da curva de plausibilidade. A relação [entre essas curvas] se reforça mutuamente. As fontes são consideradas mais confiáveis quando fazem alegações que consideramos plausíveis, e as alegações são consideradas mais plausíveis quando vêm de fontes em que confiamos. Uma fonte de informação que faça consistentemente alegações que se situem no centro da curva de plausibilidade passará a desfrutar de credibilidade implícita.

Mudanças podem começar no nível da curva de plausibilidade. Talvez um indivíduo entre para uma comunidade religiosa e descubra que ela é mais amorosa e sensata do que ele esperava. Esse indivíduo não achará mais plausível quando uma fonte de informação afirmar que todas as comunidades religiosas são irracionais e preconceituosas, e isso mudará gradualmente sua curva de informação em favor de fontes mais confiáveis. Ou outra pessoa vive a perda de um filho e não deseja mais acreditar que a morte é o fim da consciência. Fica mais aberta a outras alegações, expande suas fontes de informação e, lentamente, suas crenças mudam.

A mudança também pode começar no nível da curva de informação. Certo indivíduo, criado em determinada comunidade com autoridades bem estabelecidas, como seus pais e pastores, vai para a faculdade e é apresentado a comunidades e autoridades novas. Se considerá-las fontes confiáveis de informação, essa nova curva de informação provavelmente mudará sua curva de plausibilidade. À medida que seu conjunto de crenças muda, esse indivíduo pode até chegar ao ponto de não mais considerar confiáveis as fontes que antes forneciam a maioria de suas crenças. Ou imagine uma pessoa que viveu toda a sua existência consumindo fontes de mídia de extrema esquerda. Então, começa a ouvir fontes conservadoras da mídia e descobre que suas alegações repercutem com sua experiência — de início apenas de leve, mas em grau crescente. Pouco a pouco, ele cada vez mais faz uso de mídia conservadora, o que vai expandindo ou mudando sua curva de informação, e isso, por sua vez, expande ou altera sua curva de plausibilidade. Ele pode chegar a um ponto em que suas percepções de mundo mais amplas — as forças mais profundas em ação na história, as formas ideais de organização social e econômica, as forças do bem e do mal no mundo — venham a ser totalmente anuladas.

Considere o Movimento da verdade sobre o 11 de setembro e o Movimento QAnon. A maioria dos americanos achará que está além dos limites de sua curva de plausibilidade, por exemplo, a alegação de que o governo Bush tenha orquestrado um ataque terrorista maciço para invadir o Oriente Médio e enriquecer seus amigos na indústria do petróleo, ou a alegação de que as elites liberais globais formariam uma rede internacional de tráfico de crianças, para fins de pedofilia e canibalismo. Outros, entretanto, acharão que uma ou outra conspiração dessas repercute com sua curva de plausibilidade, ou sua curva de informação pode mudar ao longo do tempo de tal forma a trazer consigo sua curva de plausibilidade. Alegações que antes pareciam impossíveis de contemplar passam a parecer concebíveis, e então plausíveis, e a seguir razoáveis e, por fim, evidentes por si mesmas. É claro que os conservadores sacrificariam milhares de vidas inocentes para justificar uma “guerra pelo petróleo”, porque os conservadores são gananciosos e é isso que conservadores fazem. É claro que os liberais sacrificariam milhares de crianças por mais saúde e poder para si mesmos, porque os liberais são perversos e é isso que liberais fazem.

Como nota de definição final, vamos chamar toda essa estrutura, a curva de plausibilidade e a curva de informação, de mundo informacional. O mundo informacional abrange como um indivíduo ou uma comunidade de indivíduos recebe e processa informações. Mundos informacionais diferentes terão fatos e fontes diferentes. Nosso desafio hoje é que vivemos em mundos informacionais múltiplos, os quais têm entre si pouca coisa em comum e muita hostilidade.

E o que tudo isso tem a ver com o movimento evangélico? Muita coisa.

As crises evangélicas

O movimento evangélico americano nunca foi composto por uma comunidade única. Dependendo dos critérios, as estimativas geralmente definem o número de evangélicos americanos entre 80 a 100 milhões. Mesmo se definíssemos a diferença em 90 milhões, isso tornaria a população evangélica americana maior do que todas as nações europeias, exceto a Rússia. Essa população evangélica também é diversificada, e abrange todas as regiões, raças e níveis socioeconômicos. O que sempre manteve esse movimento unido historicamente não foi apenas um conjunto compartilhado de compromissos morais e teológicos, mas uma visão de mundo amplamente semelhante e fontes comuns de informação. Suas curvas de plausibilidade e de informação coincidiam amplamente. Havia alguns assuntos em que os diferentes grupos da população evangélica divergiam, mas a base que compartilhavam no meio servia como alicerce para a comunhão e o entendimento mútuos.

Esse senso de comunalidade foi se tornando cada vez mais tenso, à medida que grupos, anteriormente não identificados como evangélicos, passaram a se integrar ao grupo, definindo a categoria “evangélico” menos em termos teológicos e mais em termos sociais, culturais e políticos. Este movimento evangélico mais amplo hoje está se fragmentando em comunidades separadas, as quais ainda têm em comum alguns compromissos morais e teológicos, mas diferem dramaticamente sobre suas fontes de informação e sua visão mais ampla de mundo. Seus mundos informacionais têm poucos pontos de coincidência. Essas comunidades só podem discutir uma gama restrita de tópicos, se não quiserem entrar em dolorosa e exasperada discordância.

Um grupo dentro do evangelicalismo americano acredita que nossas liberdades religiosas nunca foram tão firmemente estabelecidas; já o outro acredita que elas nunca estiveram sob maior risco. Um grupo acredita que o racismo ainda é sistêmico na sociedade americana; o outro crê que a insistência no “racismo sistêmico” é um programa progressista para redistribuir riqueza e poder para radicais raivosos. Um está mais preocupado com a revolta no Capitólio; o outro, com os distúrbios que se seguiram à morte de George Floyd. Um grupo acredita que a presidência de Trump foi algo geracionalmente prejudicial ao testemunho cristão; o outro, que foi algo imensamente benéfico. Um deles acredita que o ex-presidente tentou dar um golpe; o outro, que os democratas roubaram a eleição. Um grupo acredita que máscaras e vacinas são sinais do amor cristão; o outro, que a rejeição de máscaras e vacinas é um sinal de coragem cristã.

Existem inúmeros grupos intermediários, é claro, mas esses exemplos ilustram a tensão: ocupamos a mesma realidade, mas vivemos em mundos totalmente diferentes. A verdadeira questão é se esses mundos conseguem (ou deveriam) se juntar novamente. Este é um momento crítico para nosso movimento.

O que, então, pode ser feito? O próprio modelo sugere por onde começar. Se movermos as curvas de informação em direção a um centro comum, a curva de plausibilidade a acompanhará. As informações vêm por meio de três fontes: a mídia, as autoridades e a comunidade. Uma das razões para a nossa desunião é que essas três fontes estão em crise no evangelicalismo americano. Farei apenas um breve esboço desses pontos.

Primeiro, a crise da mídia é aguda. Ainda que a mídia hoje tenha se tornado mais poderosa e difundida, ela também se tornou mais fragmentada e polarizada. A dinâmica da mídia moderna recompensa o conteúdo que é imediato, raivoso e hiperbólico, transformando a mídia em uma feira para vendedores de escárnio e mercadores de ódio. Os evangélicos se encontram divididos entre plataformas de mídia social e fontes tradicionais de mídia que defendem abertamente causas progressistas e atacam vozes conservadoras e fontes de extrema direita que lançam mão de paranóia e desinformação. Resumindo, o cenário da mídia digital desenvolveu-se de modo a lucrar mais com nossos vícios do que com nossas virtudes, e se tornou incrivelmente eficaz em dividir o público em círculos herméticos de mídia que fornecem apenas informações e comentários que confirmam as ansiedades e antipatias do público.

Isso representa um desafio extraordinário para o discipulado cristão. O consumo de mídia vem subindo há anos e disparou durante a pandemia. Os membros de nossas congregações podem passar umas poucas horas por semana estudando a Palavra de Deus (que deve ser sempre a fonte mais importante de informação e autoridade do cristão), mas passam 40 horas ou mais consumindo sem reservas as animosidades do dia. Uma vez que a curva de informação começa a se desviar para a esquerda ou para a direita, os algoritmos da mídia digital e as manipulações de políticos e exploradores aceleram esse ímpeto. Em pouco tempo, comunidades cristãs que antes compartilhavam uma visão mais ampla de mundo descobrem que apenas concordam com os princípios mais básicos da fé. Será difícil tratarmos de outros pontos da curva de informação até que tenhamos trazido algum vestígio de sanidade ao nosso consumo de mídia. Quanto mais vivermos em mundos de mídia separados, mais profundas e amplas nossas divisões se tornarão. Quanto mais nos entregarmos à gula da mídia, e consumirmos pouco do alimento mais profundo que cultiva Cristo em nós, menos teremos em comum.

A crise da mídia atinge toda a sociedade, mas o movimento evangélico também enfrenta uma crise de autoridade que ele mesmo criou. Uma geração de líderes evangélicos que impunham imenso respeito, pelo menos em meio ao evangelicalismo americano, faleceu. A atual geração dos líderes evangélicos instituídos, embora seja marcantemente mais diversificada do que a de seus antepassados, luta para se erguer acima da alteridade ideológica galopante de nosso tempo. Além disso, o movimento já viu inúmeros líderes caírem em desgraça de maneiras espetacularmente destrutivas. Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão do pastor celebridade. Antigamente, uma vida longa de obediência na mesma direção, de humilde estudo e serviço rendia a uma pessoa uma dose módica de autoridade espiritual e uma vida modesta. Hoje, um perfil arrojado e talento para a autopromoção podem gerar riqueza e estrelato no mercado de celebridades cristãs.

A consequência é desilusão e divisão. Enquanto as gerações mais jovens tomam o rumo das portas de saída, aqueles que permanecem em nossas igrejas tornam-se cada vez mais entrincheirados em seus próprios campos ideológicos. Se um dia voltar a ser verdade o fato de autoridades amplamente respeitadas formarem uma parte comum importante de nossa curva de informação, isso se dará porque passamos de uma cultura de celebridades para uma cultura de santificação, na qual a liderança está mais voltada para carregar a cruz de Cristo do que para construir sua plataforma [pessoal]. Isso acontecerá porque nos lembraremos das palavras de Jesus, que nos ensina que “quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo” (Mt 20.26). Acontecerá também porque reaprenderemos a ouvir homens e mulheres de sabedoria, não só líderes mas também nossos próximos, sem crucificá-los por causa de diferenças políticas.

A terceira maneira de mudar a curva de informação é tratando a nossa crise de comunidade. A comunidade é essencial para a vida cristã. Ela aprofunda nosso conhecimento da Palavra, forja nossa identidade comum em Cristo, cultiva o caráter cristão e discipula nossos jovens. No entanto, as pressões, tentações e distrações sedutoras da vida contemporânea esticaram os laços que nos unem, substituindo o calor e a profundidade da comunidade encarnada por uma imitação digital e fria dela. A pandemia apenas aprofundou nosso isolamento, fazendo com que muitos olhassem para fora de suas igrejas, para tribos políticas ou comunidades movidas à conspiração, em busca de um senso de propósito e pertencimento. Além disso, a hiperpolitização do movimento evangélico americano levou a uma separação política. Membros de igreja que não apreciam o posicionamento de seus pastores partem para outras igrejas cujas agendas políticas são iguais às deles. Contudo, congregações compostas por indivíduos cujos mundos informacionais são quase idênticos tendem a rigidez e radicalismo crescentes — algo que Cass Sunstein chama de Lei da polarização de grupo.

Em vez de se recolher em comunidades com ódios comuns, a igreja deve oferecer uma comunidade de amor comum, um santuário que nos proteja da fragmentação e da polarização, da solidão e do isolamento do momento atual. A igreja deve ser um modelo do que significa cuidar uns dos outros, apesar de nossas diferenças em questões sociais e políticas, e afirmar nossas raízes incomparavelmente mais profundas da nossa identidade em Cristo.

Michael O. Emerson, sociólogo e estudioso de religião americana da Universidade de Illinois em Chicago, disse recentemente que tem estudado congregações religiosas por 30 anos, mas “nunca viu” um nível tão extraordinário de conflito. “O que é diferente agora?” ele perguntou. “O conflito envolve visões de mundo inteiras — questões sobre política, raça, como devemos ser no mundo, e até mesmo para que servem a religião e a fé.” O que ofereci acima é um modelo para entender como chegamos a tal ponto, bem como uma mera sugestão de como podemos começar o projeto geracional que temos diante de nós.

Não estamos, porém, como os que não têm esperança. As mentiras soam vazias ao final do dia. O ódio é uma imitação pobre de propósito; a celebridade, um pobre substituto para a sabedoria; e as tribos políticas, uma comparação sofrível diante da autêntica comunidade cristã. Somos um povo definido pela ressurreição do Filho de Deus. Somos chamados para ser redentores e reconciliadores.

Portanto, talvez possamos começar a construir pontes para nossos mundos informacionais. Talvez possamos nutrir um ecossistema de mídia saudável, que ofereça uma visão equilibrada de mundo e um diálogo generoso sobre ela. Talvez possamos restaurar uma cultura de liderança que seja definida por humildade em vez de celebridade, por integridade em vez de influência. Talvez possamos convidar aqueles que encontraram uma comunidade falsa em suas tribos políticas a redescobrirem uma comunidade em Cristo, muito mais rica e robusta. Todas essas coisas serão essenciais para reconstruirmos uma visão compartilhada do mundo que Deus criou e do que significa seguir a Cristo nele.

Timothy Dalrymple é presidente e CEO da Christianity Today. Siga-o no Twitter @TimDalrymple.

Traduzido por Marisa Lopes

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Descoberta de Manuscritos do Mar Morto revela novos detalhes sobre as primeiras traduções da Bíblia

Pequenos fragmentos dos Profetas Menores em grego mostram que os escribas adaptaram textos de maneiras semelhantes às usadas em nossas versões contemporâneas.

Christianity Today April 13, 2021
Sebastian Scheiner / AP Images

Pesquisadores e arqueólogos israelenses revelaram esta semana várias descobertas inéditas que incluem dezenas de fragmentos de pergaminhos bíblicos, os quais representam os primeiros Manuscritos do Mar Morto recém-descobertos em mais de meio século.

Os Manuscritos do Mar Morto contêm alguns dos primeiros documentos religiosos judaicos conhecidos, inclusive textos bíblicos, datados do século 3 a.C. ao século 2 d.C.

Eles foram descobertos logo após a Segunda Guerra Mundial, em cavernas próximas a Qumran e no deserto da Judeia.

Mesmo uma análise inicial dos novos fragmentos — que serão examinados e analisados mais minuciosamente nos próximos anos — mostra algumas descobertas empolgantes sobre como os primeiros textos bíblicos foram traduzidos e adaptados de maneiras semelhantes às nossas.

A descoberta chega em um momento em que a demanda por antiguidades disparou, estimulando saques e falsificações nos últimos anos, na medida em que ricos colecionadores nutrem a expectativa de adquirir fragmentos restantes dos pergaminhos de valor inestimável.

Por volta de 2002, começaram a surgir vários fragmentos de “pergaminhos do Mar Morto” amplamente divulgados, cujas histórias de origem são questionáveis.

Após uma série de tentativas ilegais de adquirir artefatos e pergaminhos, a Autoridade de Antiguidades de Israel conduziu diversas pesquisas arqueológicas para reexaminar o interior das cavernas ao longo dos penhascos do deserto da Judeia.

A partir de 2017, seus pesquisadores encontraram duas dúzias de fragmentos de pergaminhos, cada qual medindo apenas alguns centímetros de diâmetro, da chamada Caverna do Horror, perto da costa oeste do Mar Morto.

É um local onde se acredita que os insurgentes se esconderam, durante a revolta liderada por Simão bar Kokhba contra o Império Romano, em 133-136 d.C.

A caverna ganhou esse nome por causa da descoberta de 40 corpos durante as primeiras escavações, décadas atrás.

Ao contrário da maioria dos Manuscritos do Mar Morto, que foram escritos em hebraico e aramaico, os fragmentos da Caverna do Horror contêm caracteres do alfabeto grego.

Os estudiosos concluíram que esses fragmentos vieram de uma tradução grega do Livro dos Doze em hebraico, o qual muitos cristãos chamam de Profetas Menores.

A tarefa para reconstruir o documento original é semelhante a tentar montar um quebra-cabeça de mil peças com apenas um punhado delas.

O maior fragmento contém porções de Zacarias 8.16-17, e alguns fragmentos menores são identificados como Naum 1.5-6.

Essas peças parecem estar conectadas a outros fragmentos previamente descobertos da mesma caverna, ao longo do antigo desfiladeiro de Nahal Hever, e faziam parte de um único pergaminho grande que incluía todos os profetas menores.

O texto vem do pergaminho mais antigo da Bíblia grega que temos, mas provavelmente representa um desenvolvimento ou uma revisão da tradução grega padrão — frequentemente chamada de Septuaginta, LXX ou Antigo Testamento grego.

Duas características encontradas pela primeira vez nesta antiga tradução grega guardam correspondências notáveis com nossas Bíblias inglesas modernas.

Primeiro, os fragmentos recém-descobertos mostram um tratamento especial para as quatro letras do nome de Deus, o Tetragrama (veja Êx 3.14-15).

Em vez de traduzir o nome da maneira típica, com a palavra grega Kyrios, o nome de Deus é grafado em letras hebraicas, escritas da direita para a esquerda.

Seria semelhante a usarmos as letras hebraicas הוהי (YHWH) ou possivelmente o latim DOMINUS no meio de uma frase em inglês.

Essa representação é significativa, porque o uso de caracteres especiais para o nome de Deus foi algo mantido até nossas Bíblias modernas.

A maioria das Bíblias em inglês representa o nome de Deus como “o Senhor”, com letras maiúsculas em versalete, em vez de representar sua suposta pronúncia, Javé, como muitos estudiosos sugerem.

Essa substituição segue a antiga tradição de ler Adonai — uma palavra hebraica que significa “Senhor”, ou mesmo HaShem, “O Nome” —, em vez de representar o nome de Deus de acordo com os sons de sua pronúncia.

Além disso, as letras do nome de Deus não são típicas da maioria dos outros Manuscritos do Mar Morto em hebraico.

É uma escrita ainda mais antiga, às vezes chamada de paleo-hebraica, que foi quase totalmente abandonada na escrita cotidiana durante o período do Segundo Templo.

Pense nisso como a diferença entre os caracteres do latim moderno e a caligrafia Fraktur ou a escrita gótica, ou possivelmente até mesmo os caracteres gregos.

Colocar essas representações em um texto traduzido proporciona uma estranheza à escrita e um tipo de reverência pela singularidade do nome.

A segunda correlação que encontramos nos novos fragmentos é a evidência da mudança de palavras para tentar melhorar uma nova tradução.

O pergaminho dos Profetas Menores representa uma revisão de uma versão grega mais antiga da Bíblia Hebraica.

A versão original foi amplamente usada por judeus de língua grega no primeiro século, em todo o mundo mediterrâneo; porém, em algum momento, uma nova tradução tornou-se necessária.

Em Zacarias 8.17, o grego antigo traduzia a primeira palavra no texto hebraico (אִישׁ) como um termo distributivo que significa “um ao outro”, e que, colocado no final, assemelha-se a todas as principais versões em inglês.

Por exemplo, a NIV diz: “Não planejem o mal uns contra os outros”.

No novo fragmento, o mesmo termo é traduzido por uma palavra grega diferente no início.

Usando uma abordagem interlinear — de encontrar uma palavra correspondente sem levar em conta o contexto de seu uso — o versículo começa representando a mesma palavra hebraica como “homem”.

É uma tradução bem mais literal: “Quanto a um homem, não maquine o mal contra o seu próximo em seu coração.”

Parece que os esforços para traduzir a Bíblia com precisão para línguas correntes datam de nossas primeiras evidências textuais das Escrituras.

No entanto, essa diferença antecipa as várias opiniões modernas sobre a melhor forma de representar a palavra de Deus em nossas línguas.

Esses textos, sem dúvida, darão início a uma série de pesquisas nos próximos anos, e possivelmente outras características serão reveladas por meio de técnicas como imagens multiespectrais e ampliação digital.

Como estudioso da Bíblia, posso imaginar esses leitores antigos se esforçando para traduzir as Escrituras Hebraicas que lemos hoje e, assim, trazendo esses textos significativos para os momentos mais sombrios de sua história, a fim de ajudá-los a compreender melhor Deus e o mundo em que viviam.

Nossa conexão com essas pessoas por meio desse texto antigo — que agora chega até nós em minúsculos fragmentos, pedaço a pedaço — demonstra o profundo desejo humano de buscar a Deus, especialmente em nossos momentos de maior provação e incerteza.

Chip Hardy é professor associado de Antigo Testamento e Línguas Semíticas no Southeastern Baptist Theological Seminary e autor de Exegetical Gems from Biblical Hebrew: A Refreshing Guide to Grammar and Interpretation.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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Cientistas relatam sofrer hostilidade por parte de suas próprias igrejas. Por quê?

Christianity Today April 12, 2021
ThisisEngineering RAEng / Unsplash

“Como fui tratado na igreja como cientista? Puxa, essa é uma questão que mexe comigo. A resposta é simples: não muito bem. Infelizmente, meu longo histórico de experiências frequentes de rejeição ou de simplesmente ser ignorado me deixa desiludido.”

“Encontrei mais hostilidade como cientista no mundo dos cristãos do que como cristão no mundo dos cientistas.”

Dois cientistas, duas respostas sobre como são recebidos em nossas igrejas, e nenhuma delas reflete uma boa imagem do Corpo de Cristo. Não é de admirar que muitos cientistas mantenham-se de cabeça baixa e não chamem a atenção para seu trabalho diário. Mas isso não significa que eles não estejam presentes em nossas igrejas.

O Pew Research Center estima que quase 13% da força de trabalho americana se encontra em uma das 74 profissões STEM (sigla que designa as profissões ligadas a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Os sociólogos Elaine Howard Ecklund e Christopher Scheitle descobriram que cerca de 12,4% dos evangélicos e 11,9% dos protestantes de igrejas tradicionais afirmam que sua ocupação é relacionada à ciência.

O número de profissionais de áreas ligadas a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática na igreja pode crescer significativamente. O Instituto Barna descobriu que mais de 50% dos adolescentes do grupo de jovens “aspiram a carreiras ligadas à ciência”.

A questão, então, é: Como tratamos os cientistas atuais e aspirantes em nossas igrejas? E por que tantos deles relatam sofrer hostilidade ou rejeição?

O sacerdócio de todos os cientistas

Martinho Lutero lançou o fundamento para como muitas igrejas protestantes entendem o ministério. O que compõe o “sacerdócio de todos os santos” é o trabalho de todo o corpo de Cristo — não apenas o do clero profissional. Isso inclui o [trabalho] do fazendeiro e do barbeiro, bem como o do professor, do engenheiro e do neurocientista. Todos eles estão envolvidos no ministério, embora isso nem sempre seja óbvio. Pode ser preciso um pouco de imaginação para entender o trabalho sacerdotal dos profissionais de áreas ligadas a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática dentro de nossas igrejas.

Muitos deles procuram ler o livro da natureza, a outra obra que o Deus Criador escreveu para nós. Eles integram a linhagem de cristãos nas ciências, os quais buscaram entender Deus por meio das Escrituras e do mundo natural. Eles estudam a obra de Deus nos processos bioquímicos, e em como as estrelas se formam, e nas leis que governam as menores partículas imagináveis. Eles procuram entender como a vida funciona e como a natureza interage com a criação. Em uma paráfrase do astrônomo do século 17, Johannes Kepler, eles pensam os pensamentos de Deus após ele.

Outra parte desses profissionais de áreas ligadas a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática ensina o que essas investigações no livro da natureza revelaram. Eles inspiram nossos filhos (e a nós) com a magnificência da ordem criada, alimentam nossa curiosidade e abrem espaço para que mentes inquisidoras aprendam mais sobre o Deus que criou e continua a criar. Suas imagens e narrativas podem nos inspirar a adorar.

Provavelmente, o maior número deles busque glorificar a Deus aplicando a ciência para atender a necessidades reais. Eles desempenham um papel importante no esforço para curar os enfermos, fornecer comida para os famintos, construir abrigo para os desconhecidos e consertar o que está fragmentado. Eles criam tecnologias, soluções energéticas, materiais e medicamentos que ajudam a melhorar a qualidade de vida dos 7,8 bilhões de habitantes da Terra. Eles também ajudam a identificar pontos em que o progresso tecnológico está desalinhado com o bem-estar humano.

Portanto, vemos com isso que o ministério do cientista está em descobrir e ensinar sobre as glórias da obra das mãos de Deus, bem como nas maneiras como eles usam seus talentos, dados por Deus, para contribuir para o florescimento da humanidade.

E, no entanto, apesar deste ministério sacerdotal, muitos deles sofrem hostilidades ou se sentem ignorados dentro do corpo de Cristo.

Cientistas para a Igreja

Meu pai é um desses cientistas, um engenheiro de tráfego cujo trabalho é garantir que as pessoas possam entrar e sair dos estacionamentos dos shoppings. Minha mãe conta a história — eu era muito criança na época — da oferta que ele fez de seu tempo e talento. Nossa igreja estava reformando seu estacionamento. Papai não era muito atuante na igreja na época, mas se ofereceu de boa vontade para ajudar. Sua oferta foi recebida com silêncio. Não importava a intenção; o silêncio comunicava que sua vocação, sua oferta para o ministério, não importava para a igreja.

Como aquelas citações iniciais nos contam, esse tipo de experiência é bastante comum em nossas igrejas. Mas pode ter mudado para alguns. Como trabalhadores que estão na linha de frente, os profissionais da área médica (e em menor medida os professores) certamente alcançaram um perfil mais destacado desde o início da pandemia. Muitos se ofereceram para ajudar ingressando em forças-tarefa e comitês de coordenação que ajudaram a orientar nossas congregações no ano passado. Embora este trabalho tenha utilizado seu treinamento científico em benefício da igreja, eles também podem ter experimentado um aumento da hostilidade por parte daqueles que discordaram de suas recomendações, especialmente das que dizem respeito à limitação do culto presencial.

Mas não acho que a pandemia tenha mudado muito a forma que nossas igrejas tratam todos os outros cientistas que leem o livro da natureza e tentam aplicar esse conhecimento a cada aspecto da majestosa criação de Deus. No mínimo, a pandemia ocupou tanto de nossa atenção, que eles simplesmente foram ignorados.

O que é vergonhoso, pois esses profissionais de áreas ligadas a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática que temos entre nós trazem para a igreja uma infinidade de conhecimentos, habilidades e propósitos orientados para o reino. Eles procuram ser bons samaritanos com as habilidades que Deus lhes deu. Como podemos desfazer a hostilidade e a rejeição do passado? Como podemos mudar esse script e dizer a eles que são importantes para a igreja?

A congregação da minha primeira infância não transmitiu a meu pai a mensagem de que seus talentos na área da engenharia importavam. Ao longo de minha vida, ele nunca foi ativo na igreja. Não posso evitar de me perguntar o quanto as coisas poderiam ter sido diferentes, se a igreja tivesse pedido a ele que ajudasse na reforma do estacionamento.

Drew Rick-Miller é codiretor de Science for the Church (Ciência para a Igreja), um ministério que busca fortalecer a igreja engajando-a com a ciência. Antes dessa função, ele passou mais de uma década como responsável pela concessão de bolsas na Fundação John Templeton. Drew estudou literatura e física na Northwestern University, antes de estudar no Princeton Theological Seminary (M.Div.), onde conheceu sua esposa, uma pastora presbiteriana.

O ministério Science for the Church apresentará um workshop virtual com a organização Made to Flourish, a partir de 20 de abril de 2021, que abordará a ciência como vocação cristã e como as igrejas podem ministrar para os cientistas e por meio deles. Inscreva-se para esse workshop aqui.

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A igreja pode se por na brecha contra o caos

A sociedade está cada vez mais frágil. Precisamos que o progressismo e o conservadorismo cristãos trabalhem juntos, com o que têm de melhor, para fortalecê-la.

Christianity Today March 30, 2021
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Joshua Eckstein / Unsplash / Jon Cherry / Stringer / Getty

Há um ano, quando a pandemia causada pela COVID-19 começou a se espalhar para valer nos Estados Unidos, fizemos muitas piadas sobre o fim do mundo. Quem teria previsto que o papel higiênico seria tão valorizado nesse nosso cenário infernal pós-apocalíptico? Nós brincávamos. Em uma frase cinematográfica que evoca a civilização em ruínas, apelidamos de “eras passadas” tudo que aconteceu antes de março de 2020.

Por trás dessas piadas estava a verdade: não apenas a pandemia deveria ser levada a sério, como também seu impacto revelava o quão frágil nossa sociedade realmente é. Em tempos normais, pode ser difícil enxergar essa fragilidade. Estamos dominados pelo preconceito da normalidade: a suposição humana comum de que a estrutura básica de nossa vida seguirá adiante, sem sofrer alterações. Mesmo as mudanças trazidas por novas tecnologias mostram-se menos dramáticas do que o previsto. Nossa mente está preparada para uma vida de ajustes cumulativos. Não estamos prontos para revoluções.

No entanto, as revoluções acontecem, e nem sempre para melhor. A ordem social, que tomamos como algo líquido e certo, não é de forma alguma garantida. “Cada instituição humana é, à sua maneira, edificada sobre a areia”, escreveu Peggy Noonan, colunista do Wall Street Journal, em janeiro, um dia após a invasão do Capitólio. “É tudo tão frágil.” O véu “que separa a civilização do caos” é tênue, disse ela, e “temos que enfrentar cada dia a seu modo, tentando torná-lo mais resistente”.

Noonan apontou os conservadores — ou o temperamento conservador, como aqueles que se preocupam com tradição, prudência e finitude — como os arautos de longa data dessa fragilidade. “Os verdadeiros conservadores tendem a ter uma compreensão particular” sobre isso, argumenta ela. Eles veem o quanto é fino esse véu. Esta é a tensão clássica entre conservadorismo e progressismo: o progressista é otimista sobre o que a mudança pode trazer e, assim, avança com esperança, sentindo-se confortável diante do risco e da exploração. O conservador responde com cautela, apontando os méritos do que já temos e os limites de nossa própria sabedoria e capacidade de inovar.

Se feita corretamente, essa interação entre progresso e conservação gera uma tensão muito saudável, como vemos nas Escrituras.

Se feita corretamente, essa interação entre progresso e conservação gera uma tensão muito saudável, como vemos também nas Escrituras. Por um lado, muitas histórias bíblicas demonstram a fragilidade de instituições, relacionamentos e vidas humanas. O livro de Juízes — que é muitas vezes terrivelmente caótico (Jz 19–21) e repetidamente se autodenomina uma história de um tempo em que “cada um fazia o que lhe parecia certo” (Jz 17.6; 21.25) — por si só poderia ser suficiente para incutir em qualquer pessoa uma preocupação com a ordem social.

O Salmo 103 usa nossa fragilidade como contraste para explicar o amor duradouro de Deus. “A vida do homem é semelhante à relva”, diz o salmista, “ele floresce como a flor do campo; que se vai quando sopra o vento e nem se sabe mais o lugar que ocupava. Mas o amor leal do Senhor, o seu amor eterno está com os que o temem, e a sua justiça com os filhos dos seus filhos”(v. 15–17). O profeta Isaías usa essa metáfora para louvar a eternidade da palavra de Deus (Is 40.7-8), e o apóstolo Pedro utiliza o tema para chamar os cristãos a uma vida de verdade, santidade e amor (1Pe 1.13–2.3). Muito do que a humanidade é e faz agora é passageiro, diz Pedro, e por isso nós, cristãos, devemos colocar nossos olhos e esperanças na permanente e confiável “graça que lhes será dada quando Jesus Cristo for revelado” (1.13).

O tema progressista aparece com maior frequência nas passagens que envolvem a segunda vinda. Como cristãos, participamos e prefiguramos a renovação de toda a criação por Deus (Rm 8.18-25; 1Co 15). Paulo escreve, em 1Coríntios, que em Cristo temos vitória sobre a própria morte, e por isso devemos estar “dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil” (15.58). O que fazemos agora, mesmo que seja de certa forma passageiro, ainda assim possui significado eterno.

A “presente vida no corpo não é destituída de valor apenas porque morrerá”, argumenta o teólogo anglicano N. T. Wright, ao refletir sobre 1Coríntios 15, em sua obra Surpreendido pela esperança. “O que você faz no presente”, continua ele, “durará até o futuro de Deus. Essas atividades não são meras maneiras de tornar a vida presente um pouco menos brutal, um pouco mais suportável, até o dia em que a deixaremos de vez para trás. […] Elas são parte de algo que podemos chamar de edificação para o reino de Deus”. A “nova terra”, no final do Apocalipse cristão, (Ap 21.1-5) — ao contrário das visões apocalípticas sombrias da cultura pop — é esta terra renovada e bem feita, explica Wright. O antigo não é descartado, mas restaurado.

Mas ainda não chegamos lá. Deus ainda não fez “novas todas as coisas” (Ap 21.5). O ano que passou se pareceu mais com o caos de Juízes do que com o final triunfante do Apocalipse. Isso me faz pensar: o que acontece a uma sociedade que não entende sua fragilidade no presente? O que acontece quando o conservadorismo não está como o descrevi, isto é, em tensão com o progressismo, mas é como uma fúria tribal raivosa de “dominar os liberais”? E se ninguém estiver tentando tornar o véu mais resistente?

Essa é a preocupação de Noonan, que critica os autoproclamados conservadores que espalharam a mentira e estimularam a violência no Capitólio, aparentemente despreocupados com o potencial que isso tinha de remover a barreira para o caos. “Eles são como pessoas que não sabem o valor de nada”, escreveu Noonan, “que não veem fragilidade ao seu redor, que herdaram muito — um Estado construído pelo trabalho e pela riqueza de outros — e não sentem responsabilidade por manter o alicerce, porque o papai deu a eles uma casa sólida, certo?”

Os últimos meses deixaram claro que a casa herdada não é assim tão sólida. Precisa de cuidado efetivo, e os cristãos, mais do que ninguém, devem ser os que zelam por esses cuidados de forma consciente.

Digo isso em um sentido sociológico secular. Lugares em que há instituições robustas da sociedade civil — sendo que uma delas é a igreja — tendem a ser menos frágeis. Mas também digo isso como cristã. Tornar mais resistente esse véu que separa a civilização do caos é parte do que significa prefigurar o reino de Deus.

O reino não é um lugar de malícia, medo, violência e caos, pois “Deus não é Deus de desordem, mas de paz” (1Co 14.33) e “o perfeito amor expulsa o medo” (1Jo 4.18). Nosso trabalho no Senhor é progressivo e conservador ao mesmo tempo: espera o retorno de Cristo e a vitória final sobre o mal, mas também administra cuidadosamente a virtude original da criação de Deus, da qual faz parte a pacífica e ordenada sociedade humana.

Bonnie Kristian é colunista da Christianity Today.

Traduzido por Leandro Bachega

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Deus não vai escrever no céu para falar com você

Nossos apelos desesperados por um sinal claro dos céus já podem ter sido respondidos.

Christianity Today March 30, 2021
negatina / Getty Images

Todos nós já dissemos isso, em voz alta ou em pensamento: “Se Deus me dissesse o que fazer, eu com certeza faria!”

Queremos seguir a vontade de Deus e, quando estamos diante de uma grande decisão, parece que um comando audível de Deus — ou mesmo algum tipo de indicação enfática — seria extremamente útil, para não dizer eficiente.

Quando o caminho adiante parece obscuro, começamos a nos perguntar por que os céus não podem simplesmente se abrir e nos dar um pouco de direção. Afinal, Deus fez isso por pessoas na Bíblia. Ele não poderia fazer também por nós? Eu me pergunto, porém, se não estamos perdendo um pouco da direção óbvia que está bem debaixo do nosso nariz.

É verdade que a Bíblia contém vários relatos de pessoas que ouvem a voz de Deus dizendo-lhes o que fazer, de forma audível. Elas recebem exatamente o que nós dizemos querer: orientações claras da boca de Deus. Mas, em vez de se apressarem a obedecer, de forma alarmante, costumam hesitar ou ignorar a direção de imediato.

Moisés hesita, quando Deus fala com ele da sarça ardente, dizendo-lhe expressamente para resgatar Israel da escravidão. Israel ignora as trovejantes ordens de Deus no Sinai, apesar de sua afirmação inicial de “fazer tudo o que o Senhor disse”. Quando Deus fala com Gideão na eira, este hesita e pede uma série de sinais como confirmação. E vamos lembrar também os mais famosos de todos, Adão e Eva, que recebem de forma audível uma ordem a respeito de um certo fruto, a qual eles claramente ignoram.

À luz das evidências, parece duvidoso que [ouvir] a voz de Deus, de forma audível, inspiraria mais fé ou asseguraria mais obediência de nossa parte do que no caso dos que vieram antes de nós.

Mesmo assim, insistimos em buscar uma maneira de ter certeza do que Deus deseja que façamos. Nós colocamos “uma porção de lã” de certo modo na eira (Jz 6.37), pensando: “Se X acontecer até esta data, saberei que Deus quer que eu faça Y.” Fazemos um jejum de comida, TV ou das redes sociais, na esperança de obter clareza sobre uma decisão. Procuramos a solidão, na esperança de ouvir uma voz mansa e suave. Esperamos a confirmação vinda de um amigo ou do cônjuge. Apertamos os olhos para o céu, na esperança de ver aparecer nas nuvens algo escrito à mão. Por favor, Senhor — apenas me diga o que fazer.

Enquanto procuramos a vontade de Deus para as circunstâncias que vivemos, se não tomarmos cuidado, podemos negligenciar sua vontade para nosso caráter. Em nosso desejo de certeza, podemos nos fixar em fazer e nos esquecer de ser.

No entanto, Deus deixa claro que sacrifícios e ofertas (nossos feitos) nunca foram o que ele deseja; ao contrário, [ele deseja] corações (nosso ser) que o busquem, corações que anseiem por santidade (Sl 40.6-8).

Deus tem para nossa vida uma vontade que está claramente declarada: que sejamos santificados, feitos santos, conformados à imagem de Cristo (1Ts 4.3; Ef 5.1). Quando essa vontade se torna nossa primeira preocupação, conseguimos deixar de dar importância à nossa busca por pistas nas nuvens ou escritos na parede. Felizmente, esses sinais não são necessários para determinar quem Deus deseja que sejamos.

Você nunca terá que colocar um pedaço de lã na eira para saber com certeza que é a vontade de Deus que você viva de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente (Tt 2.12).

Você nunca terá que jejuar para ter 100 por cento de certeza de que é a vontade de Deus que você seja livre da ambição egoísta e da vaidade (Fp 2.3).

Você nunca terá que procurar letras escritas na parede para saber, sem sombra de dúvida, que é a vontade de Deus que você deixe de lado a impureza e a cobiça (Ef 5.3).

Você nunca terá que esperar pela confirmação de um amigo ou de seu cônjuge de que é a vontade de Deus que você seja tardio para irar-se (Tg 1.19).

Você nunca terá que ouvir uma voz mansa e suave para saber, sem reservas, que é a vontade de Deus que você pratique a ação de graças (Ef 5.4).

Você nunca terá que procurar no céu uma mensagem nas nuvens para saber, sem a menor dúvida, que é a vontade de Deus que você seja santo e irrepreensível (Ef 1.4).

Deus realmente falou conosco, e com clareza, por meio de sua Palavra.

Para a vida e a piedade, não precisamos de outro sinal senão o sinal vivificador de Jonas: Cristo ressuscitou, e a graça que recebemos como resultado disso está nos transformando à sua imagem.

Somos chamados para sermos transformados. Buscamos primeiro seu reino e sua justiça, confiando nossas circunstâncias aos seus cuidados soberanos e submetendo nosso caráter à sua graciosa vontade.

Jen Wilkin é esposa, mãe e professora da Bíblia com uma paixão por ver mulheres se tornarem seguidoras de Cristo. Ela é a autora de Women of the Word, In His Image, e None Like Him.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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