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Ira santa ou pecado? “Irai-vos, mas não pequeis”.

O conselheiro cristão Brad Hambrick fala sobre como lidarmos com nossa própria fúria em tempos acalorados.

Christianity Today October 4, 2024

Brad Hambrick supervisiona ministérios de aconselhamento na Summit Church, uma igreja da Carolina do Norte com 14 câmpus e cerca de 13 mil frequentadores. Ele também ensina aconselhamento bíblico no Seminário Teológico Batista do Sul e é autor de livros como Angry with God [Com raiva de Deus].

Como você diferencia a raiva boa da ruim?

Toda raiva diz duas coisas: “Isso é errado, e eu me importo com isso”. No espaço interpessoal, a raiva pecaminosa diz uma terceira coisa: “Isso é errado e é mais importante do que o meu próximo”. É possível estarmos certos sobre as duas primeiras coisas, ou seja, isso “é algo que você não deveria ter feito” e “é algo com que me importo”. No entanto, quando estou disposto a pecar contra meu próximo, ainda que meu pressuposto seja correto do ponto de vista teológico e moral, isso não significa que a expressão da minha raiva seja justa. Quando voltamos esse sentimento para as mídias sociais e a política, de várias maneiras esse “próximo” se torna muito distante ou muito ambíguo. E as pessoas sentem muito mais liberdade para descarregar [sua raiva] ou se enfurecer, porque não veem uma pessoa do outro lado. Elas apenas expressam seus sentimentos por uma causa.

Onde vemos esse tipo de raiva destrutiva?

A raiva aparece mais em contextos privados. Se alguém, por acaso, explode de raiva no supermercado, [isso significa que] seu sistema de controle e seus filtros sociais estão significativamente deteriorados.

Quero usar um teste bem simplificado para detectar a ira santa [ou a raiva boa]. “Se eu estiver certo, e se isso de fato importar, não vejo problema [em expressar minha ira]. [Se você achar que estou errado] Diga-me onde estou errando”. Normalmente, quando achamos que a nossa indignação tem uma motivação justa, amamos aquela imagem de Jesus virando as mesas no templo. E sentimos que estamos fazendo justamente isso.

Mas, se observarmos a passagem de Mateus 21, depois que Jesus termina de virar as mesas no templo, o texto diz: “Os cegos e os mancos aproximaram-se dele”. Na imagem dessa cena em minha mente, quando penso em Jesus no templo, penso em alguém que virou o Incrível Hulk. Ele ficou verde [de fúria]. Está olhando para as pessoas e vendo o íntimo de cada uma, e todas se afastam dele, pois erraram, pisaram no tomate. No entanto, nesse momento em que Jesus expressa sua ira com mais intensidade, os mais vulneráveis ​​se sentiram protegidos e atraídos [por ele]. Não ficaram assustados.

Será que eu estou expressando a minha raiva como Cristo expressou a dele? Não estou dizendo que Jesus não tenha ficado bravo. A ira é um dos atributos de Deus, o que significa que podemos nos irar do jeito certo. Pode haver beleza na ira. Ela não está inerentemente fora dos limites para os cristãos, como se fôssemos estoicos. Mas se vamos nos irar como Cristo fazia, então, deve haver um claro senso de atração e de proteção em torno do que estamos fazendo, por parte daqueles que estão vulneráveis e precisam de cuidado.

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Que ferramentas podem ser utilizadas para estes tempos de fúria que estamos vivendo?

Uma categoria que acho útil é a alocação de responsabilidades — perceber o que [realmente] está dentro de sua área de influência. Quando sinto uma raiva mais intensa a respeito de algo sobre o qual tenho pouquíssima influência, minha raiva não leva a nada de bom. À medida que começamos a nos sentir mais impotentes, começamos a contar com a ira para tentar recuperar parte do [poder] que sentimos que perdemos.

No discurso adotado pela cultura, todo mundo diz: “Precisamos nos acalmar e apaziguar a retórica”. Mas ninguém está fazendo isso. Mesmo que isso não esteja acontecendo de cima para baixo, deveria acontecer de baixo para cima, e a cultura deveria exigir esse posicionamento de seus líderes, se os líderes não estiverem liderando a cultura [dessa forma].

Na questão da raiva, devemos aplicar príncípios diferentes a eventos diferentes, se compararmos, por exemplo, a raiva motivada por traição em relacionamentos pessoais à raiva motivada por razões de outro tipo?

Existe raiva egoísta. Também existe raiva sofredora. Se você observar o Salmo 44, nos primeiros versículos, a vida está correndo muito bem. Então, você se depara com um selah. Você não sabe o que aconteceu. Mas foi algo muito grave. Nos próximos 12 versículos, o salmista dá tanto crédito a Deus pelas coisas ruins que aconteceram quanto deu pelas coisas boas, na primeira parte do salmo.

Ele se acha coberto de razão em sua ira. Há heresia ali. O salmista está pedindo para Deus despertar, quando sabemos que Deus nunca dorme. Mas não há ali um senso de que o salmista precisa se arrepender [do que está falando]. Ele está passando por um período de sofrimento na vida, um sofrimento que não faz sentido [para ele], e a equação moral não está equilibrada. Eu acredito que [ali] há uma tristeza-raiva inocente, em resposta ao sofrimento.

Então, os Salmos são um bom lugar para ir, quando estamos com raiva?

Uma característica comum da raiva é que não nos sentimos ouvidos e não nos sentimos compreendidos. E, por isso, aumentamos o volume para ter certeza de que estamos sendo ouvidos, e aumentamos a contundência de nossas palavras na tentativa de sermos compreendidos. E quanto mais irritados ficamos, mais as pessoas se afastam de nós.

A coisa não funciona assim, como se buscássemos os Salmos e necessariamente tivéssemos algum insight profundo e penetrante que explicasse a nossa situação, e pensássemos: “Oh, não tenho razão para ficar com raiva”. O que frequentemente descobrimos é que, quando sentimos que algo “passou dos limites”, e todos se afastam de nós — podemos levar essa situação para Deus e saber que ele se importa e nos ouve.

Um exemplo disso é Moisés na sarça ardente. Moisés tinha um problema com a ira. Ele tinha matado um homem em um momento de raiva. Quando fizeram o bezerro de ouro, ele o moeu até virar pó e fez as pessoas beberem aquele pó misturado na água. Em Números 20, ele teve um ataque de fúria e começou a bater na rocha e a repreender [o povo].

Uma das primeiras coisas que Deus diz a Moisés na sarça ardente, depois de ter dito “Tire as sandálias dos pés”, foi “tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, […] e sei quanto eles estão sofrendo”. Pense em como seria poder estar no lugar de Moisés, e dizer para Deus “ok, eu não deveria ter matado aquele homem. Foi um lampejo de raiva. Foi uma atitude má. Mas pelo menos eu fiz alguma coisa. Puxa, Deus, você não faz nada”, e escutar Deus lhe responder “Eu ouvi o clamor, eu vi o sofrimento, estou prestando atenção”. A verdade, porém, é que normalmente não temos uma sarça ardente só para nós — essa não é uma experiência humana comum —, mas os Salmos são um lugar onde podemos ter essa interação com Deus.

Esta entrevista foi editada para maior clareza.

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Contra a cultura da demonização

President & CEO

O problema não é quando o conflito está fora, mas sim dentro do cristão.

Christianity Today October 3, 2024
MidJourney / Christianity Today

Cresci em uma pequena igreja evangélica, que fica no Vale Central da Califórnia, na qual havia mais operários do que executivos, empresários e profissionais liberais. Cerca de 25 famílias se aglomeravam nos bancos todos os domingos; eram pessoas amorosas, generosas e atenciosas. Acampamos na Sierra Nevada, fizemos mochilões no parque Yosemite e montamos armadilhas para caranguejos em Half Moon Bay. Estudávamos a Palavra, compartilhávamos alimentos, quando o infortúnio nos atingia, e fomos mais vezes ao Taco Bell depois do culto do que qualquer ser humano seria capaz de suportar. Vivemos uma espécie de evangelicalismo ensolarado da Califórnia, que exibia seu conservadorismo em camisetas, shorts de surfista e um humor alegre e despreocupado.

Quando penso naquela igreja, por mais imperfeita que fosse, eu me sinto imensamente grato. Ela me vacinou contra a caricatura tóxica sobre a qual eu ouviria com tanta frequência nos anos seguintes — especialmente em universidades seculares — de que as igrejas evangélicas eram bastiões da ignorância e do preconceito.

Quando deixei a academia, em 2009, foi em parte por desilusão. Os departamentos da área de humanas pareciam mais interessados em conformidade ideológica do que em investigação intelectual. Lembro-me como se fosse hoje de um seminário de doutorado em que uma das minhas colegas jogou fora toda a história das missões cristãs, como se não tivesse passado de um voraz colonialismo. Concordo que há muita coisa a se lamentar nessa história, mas com certeza parte dela também teve missionários que tinham boas intenções, não?

Por uma questão de honestidade intelectual, parecia que o mínimo que minha interlocutora deveria fazer era admitir tal fato. Em vez disso, ela me denunciou ao nosso professor pelo suposto crime de “defender uma instituição maligna”.

Este episódio foi apenas um de uma longa série de experiências desse tipo. Muitas aulas mais pareciam recrutamento para programas políticos; muitos seminários poderiam ser considerados competições para ver quem seria o primeiro a se ofender. Se você apresentasse uma tese que desafiasse as tendências predominantes nos departamentos da área de humanas, não haveria evidência ou argumentação no mundo que bastasse para defendê-la; em contrapartida, se você apresentasse uma tese que servisse a alguma causa que tivesse a simpatia dos departamentos, pouquíssimas evidências e argumentos seriam necessários. Afinal, uma vez que abandonarmos o conceito de que há uma verdade unitária, por que cada um de nós não pode escolher a história que mais convenha à nossa própria tribo? Quem se importa com precisão, quando se pode fazer “justiça”?

Então, deixei a academia para ajudar a lançar um novo empreendimento de mídia. Hoje é até irônico me lembrar do idealismo que acompanhou o surgimento da blogosfera e das mídias sociais naqueles anos. O cenário digital era um espaço aberto onde poderíamos reimaginar um diálogo público que fosse compassivo, informado e disposto a desafiar convicções partidaristas. Talvez os cristãos pudessem dar o exemplo de uma forma de engajamento público que simultaneamente defendesse valores cristãos e exibisse virtudes semelhantes às de Cristo. Talvez as mídias sociais pudessem ser o que a universidade deveria ser: um espaço aberto de ideias onde os melhores argumentos vençam por mérito próprio.

No entanto, ao longo dos anos seguintes, novos negócios de mídia criaram modelos financeiros que incentivavam o que há de pior no comportamento humano. O caminho para a riqueza e a influência passava pela viralização, e o caminho mais seguro para a viralização era incitar animosidades tribais. Tristan Harris, especialista em ética da tecnologia, chama isso de “corrida para o fundo do tronco cerebral”. Reafirme os preconceitos e pressupostos do seu público, alimente seus medos, despreze a outra tribo e você conquistará seguidores apaixonados e em número cada vez maior, os quais você pode monetizar por meio de engajamento com palestras [em vídeos] e textos.

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Em outras palavras, a maneira mais rápida de construir um público não era consolidando expertise e credibilidade durante uma longa carreira de trabalho sério, mas sim alcançando fama viral ao jogar com as antipatias tribais de um grupo ou de outro. O que começou como um esforço para colher a atenção [do público] se transformou em empenho para plantar a ira [no coração desse público].

Nos primeiros anos da cultura da viralização, as linhas divisórias separavam grandes grupos de pessoas, como evangélicos conservadores e progressistas históricos. Com o passar do tempo, ficou claro que as plataformas de mídia social poderiam aumentar ainda mais o engajamento e trazer publicidade mais bem direcionada (ou seja, ganhar mais dinheiro), canalizando leitores para subcategorias cada vez mais estreitas. Comunidades mais amplas com uma convicção comum se dividiram e se subdividiram em campos de guerra; cada campo era alimentado por fontes de informação próprias e se unia em torno dessa hostilidade compartilhada com aqueles ao seu redor. A raiva que sentimos pelos chamados traidores da nossa tribo é muito maior do que a raiva que sentimos por aqueles que nunca pertenceram à nossa tribo.

E assim chegamos ao ponto em que estamos hoje, no qual evangélicos são comprados e vendidos nos mercados do desdém e jogados uns contra os outros na busca por lucro. No qual escritores e leitores estão igualmente viciados na dopamina da divisão. Essa realidade é bem parecida com a dos departamentos das áreas de humanas nos quais convivi e trabalhei.

Tudo se reduz à política. Os fatos não importam se a história convier à sua tribo. Carreiras são construídas não com base em amar e entender os outros, mas com base em zombar deles e distorcê-los.

Para que fique bem claro, a Christianity Today jamais defendeu que os cristãos deveriam se retirar da vida política. Embora os mortos não sejam ressuscitados pela política, os vivos são auxiliados por ela.

O problema não é quando o conflito está fora do cristão. O problema é quando o conflito está dentro do cristão. Nosso engajamento de uns com os outros e com a sociedade em geral deve seguir o padrão de Cristo, e não a cultura.

A Christianity Today nunca se encaixou perfeitamente na agenda política de ninguém, porque estamos mais comprometidos com o reino de Deus do que com os interesses de qualquer partido ou país. Isso frustra aqueles que patrulham as linhas divisórias da conformidade política, mas vemos essa postura como algo essencial para o nosso chamado. E nos recusamos a participar do ciclo de insultos.

Nosso chamado é para promover as histórias e ideias do reino de Deus. Contamos essas histórias quando são encorajadoras e quando são difíceis. Convidamos vozes cristãs ortodoxas a apresentar seus argumentos para pontos de vista contrários. Buscamos entender e exemplificar o que significa seguir a Jesus em nosso tempo. A CT é composta por diretores, executivos, funcionários, escritores e leitores que possuem diferentes posições políticas. E vemos isso como uma força, não como uma fraqueza.

Um dos cânticos que cantávamos naquela igreja no Vale Central da Califórnia era “Eles Saberão Que Somos Cristãos Pelo Nosso Amor”. Experimentar esse amor do corpo de Cristo deixou sua marca em minha alma. Como Jesus disse em João 13: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (v. 35). E como ele orou ao Pai, em João 17, é por causa da unidade da igreja que “o mundo [sabe] que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste.” (v. 23)

Isso é algo sério. O amor que demonstramos uns aos outros, a unidade que mostramos ao mundo, tudo isso dá testemunho da divindade de Cristo e da realidade do amor de Deus. A Igreja carrega em si a imagem de Cristo para o mundo; no entanto, hoje essa imagem é controversa e fragmentada.

O reino de Deus está sempre confundindo as expectativas do mundo. Ele pega aquilo que o mundo virou de cabeça para baixo e vira de cabeça para cima, de volta à sua posição correta. Ele eleva os humildes acima dos arrogantes, os mansos acima dos fortes, os impotentes acima dos poderosos. O reino de Deus é profundamente contracultural.

Talvez a coisa mais contracultural que os cristãos possam fazer neste momento que vivemos é se recusarem a demonizar uns aos outros. Cristãos com corações e mentes sadios chegarão a conclusões diferentes sobre o que o amor exige deles na próxima eleição. Apoie quem sua consciência lhe disser para apoiar. Mas que seu primeiro amor seja o seu primeiro amor, e que nosso amor de uns pelos outros seja nosso testemunho ao mundo de que Cristo está vivo e operando entre nós.

Timothy Dalrymple é presidente e CEO da Christianity Today.

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Ideas

A epidemia das apostas esportivas: um problema que os cristãos não podem ignorar

Jogos de azar online não são necessariamente pecaminosos, mas certamente não são um uso cuidadoso da riqueza que Deus nos deu.

Christianity Today October 3, 2024
Ilustração de Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Nota da edição em português: este artigo foi escrito com base na realidade estadunidense, mas acreditamos que ele traz reflexões importantes também  para a igreja brasileira.

É bem provável que você conheça alguém que faz apostas esportivas. Com o aumento das apostas esportivas online, essa indústria agora fatura mais do que todas as principais ligas esportivas profissionais dos EUA somadas. Espera-se que os americanos apostem US$ 35 bilhões somente em jogos da NFL nesta temporada.

Essa não é uma tentação nova, mas acredito que o advento das apostas esportivas online aumenta consideravelmente o grau da seriedade com que os líderes cristãos devem abordar questões sobre a natureza moral e teológica dessas apostas.

As empresas de apostas esportivas online patrocinam as transmissões e a mídia esportiva, de modo que incentivos para apostar estão por todo lado, e é fácil participar. As pessoas podem se registrar e pagar [as apostas] com uns poucos toques no celular. Além disso, vinculá-las aos esportes faz com que pareçam algo mais inocente do que pôquer e blackjack.

Embora apostas esportivas em qualquer formato sejam atualmente ilegais em alguns estados norte-americanos de expressão — como a Califórnia, o Texas e a Geórgia — as apostas esportivas online agora são legais e estão disponíveis em grande parte do território norte-americano. Para estados como o Texas, onde moro e pastoreio uma igreja, parece provável que, com o passar do tempo, as apostas [offline] acabem sendo legalizadas também.

Quando falo com líderes cristãos e membros da igreja sobre apostas, frequentemente encontro hesitação. Há uma certa relutância entre os cristãos em tolerá-las, mas não há oposição suficiente para condená-las de forma aberta e direta. Acho que muitos cristãos não sabem bem o que fazer quanto à moralidade das apostas.

Para ser justo, as Escrituras não falam sobre apostas com o mesmo grau de clareza e de ênfase com que abordam outros males, como o adultério, a embriaguez e o roubo. Isso nos deixa com a seguinte pergunta: “É pecado apostar?”

Em Provérbios 13.11, vemos uma advertência contra a busca por riqueza fácil: “A riqueza que se ganha rápido diminuirá, mas a de quem ajunta pouco a pouco aumentará” (ESV). Somos repetidamente alertados sobre o amor ao dinheiro no Novo Testamento: “Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: ‘Nunca o deixarei, nunca o abandonarei’” (Hebreus 13.5).

Em Eclesiastes 5.10 é dito que dinheiro não satisfaz. E 1Timóteo 6.9-10 alerta que “ Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos”

Embora 1Timóteo chegue um pouco mais perto, ainda assim não é um comando direto para o cristão não apostar. No entanto, há muitas coisas que a Bíblia não proíbe especificamente, mas que cristãos de bom senso e comprometidos com as Escrituras reconhecem como coisas que são moralmente erradas. A Palavra de Deus não proíbe o uso de cocaína, mas não acredito que muitos cristãos tratariam o consumo de cocaína como algo moralmente neutro. As Escrituras não condenam explicitamente a rinha de cães [luta de cães], mas se alguém do seu pequeno grupo o convidasse para assistir seus cachorrinhos salsichas se enfrentarem no quintal, acredito que você não teria problemas em se opor a esse tipo de evento.

Embora todos os tipos de jogos de azar incluam risco, aposta e certa habilidade no jogo, nem todos os jogos de apostas devem ser medidos da mesma forma. Os casos extremos de disparate no jogo podem equivaler a pecado, mas será que é perverso apostar um sorvete com a minha filha quando jogamos Uno? Em especial quando não temos na Bíblia advertências claras a favor ou contra determinada coisa, a beleza da sabedoria que encontramos nas Escrituras é que elas nos fornecem princípios para vivermos com prudência.

A ética quanto ao jogo de apostas pode parecer nebulosa nas Escrituras, mas as considerações da Bíblia sobre explorar a situação dos pobres nada têm de nebuloso. Além da questão da moralidade individual, devemos ser honestos sobre a natureza predatória das apostas.

Os profetas de Israel rotineiramente castigam o povo de Deus por não cuidar dos pobres e por explorá-los. Muitos dos códigos de Israel sobre empréstimo de dinheiro são dados explicitamente para evitar que pessoas com muitos recursos lucrassem injustamente explorando pessoas com poucos recursos. E é para isso que a indústria das apostas foi criada: para explorar aqueles que estão ansiosos para ganhar dinheiro rápido, particularmente aqueles que sentem que não têm uma alternativa viável.

As grandes empresas do ramo têm sistemas em vigor que limitam os apostadores espertos (aquelas pessoas que fazem apostas excelentes), mas intencionalmente não limitam as pessoas que fazem apostas muito ruins. A expressão “a casa sempre ganha” não é meramente uma realidade estatística; é um sistema de “jogatina” que mantém o jogo lucrativo para quem paga as apostas.

Alguns leitores de hoje podem sugerir que a Bíblia não só é apática em relação à questão da aposta, como, na verdade, apoia o empreendimento. Provérbios 16.33 diz: “A sorte é lançada no colo, mas a decisão vem do Senhor”. Lemos que o sacerdote Zacarias foi escolhido por sorteio para queimar incenso (Lucas 1), e que também por sorteio foi escolhido o apóstolo que substituiu Judas — depois que os discípulos oraram para que o Senhor dirigisse essa seleção apostólica (Atos 1).

Essas passagens estão aprovando de forma implícita práticas como fazer apostas, assumir riscos ou qualquer outro tipo de jogo a dinheiro?

Presume-se erroneamente que lançar sortes no antigo Israel fosse um tipo de jogo aleatório voltado para algum ganho. Embora a prática continue envolta em certo mistério, sabemos que lançar sortes envolvia alguma forma de jogo com pedras. Alguns estudiosos sugerem que o Urim e o Tumim que o sumo sacerdote carregava eram usados ​​para lançar sortes, a fim de determinar a vontade de Deus. Vemos, no Antigo Testamento, que os sacerdotes eram selecionados e alguns deveres sacerdotais eram atribuídos por meio da prática de lançar sortes (1Crônicas 24.5, 31; 25.8; Neemias 10.34).

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O lançar sortes nunca foi acompanhado por apostas ou por lucro de qualquer tipo. Fica claro, então, que o sorteio entre o povo de Deus não era um jogo de azar para conquistar algum tipo de ganho financeiro, mas sim uma maneira prática de confiar no Senhor.

O lançar sortes não era uma prática imprudente, temerária, nem algo que visasse diversão ou riqueza; era uma forma simples e ligada à tradição de reconhecer que as decisões pertencem a Deus. No entanto, essas práticas descritivas nunca são prescritas como uma abordagem normativa para discernir a vontade de Deus, e não devem ser tratadas como tal. Muito menos devem ser tratadas como passagens em favor de apostas.

Apostar é pecado? Não acredito que os cristãos possam ver todos os exemplos de apostas como pecado. Apostar é um ato sensato? Raramente. Os cristãos devem fazer apostas? Como norma, acredito que eles devam evitar isso. Por quê? Bem, nem tudo que é lícito nos convém. Há coisas que não violam os ditames das Escrituras, mas não são sábias.

O jogo de apostas trata aquilo que Deus confiou aos nossos cuidados com atitude descuidada. Sua lógica é a exploração, e seu objetivo final é a aquisição rápida de riqueza, seja ganhando-a ou tomando-a. Os cristãos devem relutar em participar e apoiar jogos de azar de qualquer tipo, e acredito que os líderes cristãos devam começar o quanto antes a falar das apostas esportivas online com clareza e precisão.

Para colegas líderes de ministério, aqui estão cinco maneiras práticas de abordar esta questão:

1. Fale sobre dinheiro.

É simplesmente uma falha na estratégia de discipulado da igreja o fato de que a maioria dos cristãos não tem uma concepção positiva de riqueza. Se não fornecermos um relato coerente do que é riqueza, de como ela é obtida e de como ela pode ser administrada para o bem das famílias, comunidades e igrejas, não deveríamos nos surpreender se as pessoas a desperdiçarem.

A maioria dos cristãos em nossas igrejas recebeu aparentemente duas mensagens sobre dinheiro: a riqueza corrompe o homem e você deve dar com generosidade. Além da simples contradição entre essas duas mensagens, há uma falta de propósito e de visão em buscar, administrar e preservar a riqueza.

O cristão não deve adorar a riqueza, mas também não deve desperdiçá-la.

2. Ofereça oportunidades para a competição saudável e fraterna.

Muitos homens são atraídos por apostas esportivas por causa da natureza competitiva e comunitária dos esportes. Em uma era digital de solidão exacerbada, os homens estão migrando para apostas esportivas online para sentir o perfume de algo do qual sentem falta: a competição fraterna. 

Líderes cristãos de todos os tipos podem ajudá-los a se envolverem num discipulado holístico trazendo de volta meros convites para competições fraternas, que beneficiem os homens em suas igrejas e comunidades. Organize um torneio beneficente de algum esporte, monte um time de futebol ou crie uma liga esportiva na igreja. À medida que esses grupos forem integrados por homens envolvidos em uma comunidade movida pela competição saudável, você estará proporcionando a eles uma chance de colocar em prática algo melhor do que aquilo que as apostas esportivas online oferecem.

3. Fale profeticamente sobre vícios que são considerados respeitáveis ​​e “divertidos”.

Uma razão pela qual a igreja permanece em suspeito silêncio sobre jogos de azar é por eles não serem um dos nossos “vícios cruéis”. Não sentimos a mesma pressão para abordar as apostas que sentimos para abordar os vários tipos de gula ou a preguiça ou a amargura — por estes serem vícios de abdicação. Quando chega ao ponto de pecado, é algo próximo a um “pecado por omissão”. A gula consiste em abdicar do autocontrole, a preguiça consiste em abdicar de trabalhar e a amargura consiste em reter o perdão; já a aposta pode muitas vezes se tornar uma renúncia à mordomia.

Temos de considerar que a santificação inclui não só amadurecer para deixarmos de fazer aquilo que não deveríamos [fazer], mas também trabalhar para fazer aquilo que preferiríamos não fazer.

Como o Livro de Oração Comum confessa: “Deus misericordioso, confessamos que pecamos contra ti em pensamento, palavra e ação, pelo que fizemos e pelo que deixamos de fazer.”

O jogo de apostas, em suas piores formas, é deixar de exercer a mordomia. É “deixar de cuidar” daquilo que Deus confiou a nossas mãos.

4. Ajude as pessoas a verem que o sistema que permite a “indulgência inofensiva” em relação a uma pessoa é o mesmo que permite a exploração escravizante em relação a outra.

O cálculo dos apostadores e das empresas de jogos de azar é oferecer a ilusão de oportunidade, para que eles possam, eventualmente, tirar tudo dos participantes. Para alguns, perder 1.000 dólares no Super Bowl pode ser uma perda insignificante. Mas o mesmo sistema que permite a alguns essa brincadeira inofensiva tirará os últimos 100 dólares que um viciado em jogo deveria usar para suas compras de supermercado.

Existimos no contexto de comunidades. A busca por sabedoria e retidão frequentemente significará abrir mão de nossas liberdades de nos entregarmos a atividades que não são prejudiciais para nós, especificamente porque prejudicam e atrapalham os mais fracos entre nós.

5. Diga a seus líderes municipais, estaduais e nacionais que você não quer viver em lugares em que o vício é apoiado pelo Estado.

Mesmo que você não esteja convencido da imoralidade e do disparate dos jogos, é fato que o jogo gera força centrífuga para o vício. A prostituição, o tráfico e a venda de drogas ilícitas, bem como seu uso abusivo, e a violência são atividades que surgem a partir de centros de apostas. Onde quer que seja permitido que as apostas cresçam sem controle, a erva daninha da iniquidade crescerá de forma abundante.

Se realmente devemos “buscar a paz e a prosperidade da cidade” (Jeremias 29.7), então, devemos nos opor a que em solo fértil sejam cultivadas coisas que são obviamente perversas, malignas e desumanizantes. O jogo de apostas pode estar em uma zona cinzenta [e mais complexa] do ponto de vista ético, mas serve como um solo propício para vícios cuja pecaminosidade é flagrante e simples.

Para aqueles que possam acreditar que isso não passa de um moralismo do passado, e que estão convencidos de que esse mesmo tipo de raciocínio já foi invocado para reclamar de os “jovens dançarem” nas igrejas tradicionais da nossa juventude, eu digo: “Vocês podem estar certos”.

Mas eu, por exemplo, acho que poderíamos tirar mais proveito da moralização do evangelho nestes dias imorais em que vivemos. Continuo não convencido de que seja bom para nós fazermos de conta que questões da nossa vida cívica de caráter público, econômico e cultural estão melhores sem os princípios das Escrituras para guiá-las.

Se você estiver inclinado a discordar de mim, então, acho que tudo o que tenho a dizer é “que a sorte esteja sempre a seu favor”.

Kyle Worley é pastor na Mosaic Church em Richardson, Texas, e apresentador do podcast Knowing Faith [Conhecendo a Fé], com Jen Wilkin e J. T. English. Ele é o autor de Home with God: Our Union with Christ [Em casa com Deus: Nossa união com Cristo] e Formed For Fellowship [Formado para a comunhão].

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Ideas

24 preceitos para estas eleições (e todas as outras)

Sobre discordância, fidelidade, tolerância e votos.

Christianity Today October 1, 2024
Ilustração de Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Este artigo foi adaptado para ser contextualizado à realidade brasileira.

Estamos, mais uma vez, na temporada de eleições. Ficamos com o estômago embrulhado. As intenções de voto oscilam. Os debates entre candidatos esquentam.

E quanto à igreja? Muitos de nós também estamos tremendo: de medo, de raiva, de antecipação pelo que quer que esteja reservado para nós nos centros políticos do país — e em nossas próprias casas e templos.

Algumas semanas atrás, um colega meu aqui na CT escreveu um artigo sobre política, e a reação que teve online foi furiosa. As reações nas redes sociais cruzaram todas as linhas da prudência que aprendemos em Provérbios, e teriam feito Martinho Lutero corar.

E os comentários não vieram de bots de redes sociais, de máquinas programadas para automatizar a desumanidade. Muitos dos nomes nos comentários são conhecidos. Eles não são computadores, não; eles são cristãos. São pessoas como nós.

Quando digo “nós”, não quero dizer que você, pessoalmente, está criticando alguém nas mídias sociais; sei que eu não estou. Em vez disso, quero dizer que os preceitos que proponho a seguir não são — nem podem ser, se pretendemos que sirvam para alguma coisa — reflexões e orientações que dirigimos com altivez para aquelas pessoas lá, para aqueles cristãos que nos envergonham, nos frustram e nos confundem.

A maneira de atravessarmos este próximo mês e os meses que vierem com a mais vaga semelhança que seja de amor e de unidade cristãos é copiando a atitude de Paulo em 1Timóteo: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior” (1.15). E não basta só dizer isso, é preciso realmente acreditar no que dizemos.

Por isso, gostaria de sugerir estes 24 preceitos para um ano de eleições:

  1. A oposição de um cristão ao candidato X não implica que ele apoie o candidato Y. Não implica esse apoio nem de forma prática, nem por inferência. Insistir no contrário, refutando os protestos de seu irmão em Cristo, é fomentar a discórdia e a calúnia.
  2. Você pode criticar a visão política de um colega cristão sem questionar a fé dele, e vocês dois devem ser capazes de ouvir as discordâncias um do outro.
  3. Sua crítica à posição política de um colega cristão pode muito bem incluir lembrá-lo de compromissos e obrigações de sua fé.
  4. Sua crítica à posição política de um colega cristão pode nunca persuadi-lo [a mudar]. Em caso de impasse político com um irmão em Cristo, a tolerância e a graça mútuas geralmente são um caminho melhor do que a discussão contínua. Será que não existem coisas melhores que vocês dois poderiam fazer com seu tempo?
  5. Há uma linha na posição política de um cristão que, se cruzada, justifica que se lancem dúvidas sobre sua profissão de fé. Essa linha pode não estar onde nós supomos que esteja.
  6. Essa linha pode até mesmo ser diferente para diferentes cristãos em diferentes épocas, lugares e estágios do processo de santificação, pois Deus não trata todos os nossos pecados, erros e fraquezas de uma só vez.
  7. Alguns de nós podem precisar de mais coragem para expressar suas convicções, especialmente quando fazem parte de uma minoria religiosa, política ou cultural em suas igrejas e comunidades mais amplas.
  8. Mas, nesta cultura impetuosa e precipitada em que vivemos, o mais provável é que a maioria de nós precise de tolerância e graça para com aqueles que supomos serem menos preparados do ponto de vista espiritual, moral, da inteligência ou menos informados do que nós.
  9. Tolerância não é complacência. Graça não é condescendência.
  10. Tolerância e a graça também não são indecisão e covardia.
  11. Lembre-se de 1João 4.20: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar o seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.”
  12. Discordâncias políticas duradouras entre cristãos não são, por si só, evidências de pecado, de falta de fé ou de qualquer outro fator disfuncional. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem, de boa fé, chegar a conclusões diferentes. Todos eles podem ter uma sólida base bíblica para suas opiniões; todos eles podem buscar o bem comum; todos eles podem buscar amar seus próximos; e todos eles podem discordar [entre si].
  13. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir considerar seriamente apenas candidatos viáveis.
  14. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir que a viabilidade é menos importante do que o alinhamento ético e político.
  15. Cristãos sensatos ​​e fiéis podem decidir votar em branco ou anular o voto: “Não confieis em príncipes, nem em filhos de homens, em quem não há salvação” (Salmo 146.3, KJV).
  16. Ter esperança é uma virtude cristã; iludir-se não.
  17. A sabedoria é um chamado cristão; o cinismo não é sábio.
  18. Seu voto não pertence a nenhum candidato. Nem mesmo se você acredita que tem o dever de votar. Ainda que você faça parte de um partido específico.
  19. Com algumas exceções, o voto em eleições municipais e estaduais — especialmente para vereadores, prefeitos, deputados e governadores — terá efeitos mais frequentes e tangíveis em sua vida e na de seus vizinhos do que os votos para presidente.
  20. Esta provavelmente não é a eleição mais importante da sua vida. E se for a eleição mais importante da sua vida, você não conseguirá saber isso em tempo real. Você só será capaz de fazer essa avaliação com lucidez daqui a 5, 10 ou 20 anos, mas não tem como saber isso agora.
  21. Seu voto não chega às mãos dos candidatos com uma nota explicativa. Os candidatos não sabem que você estava em conflito ou que votou de forma estratégica para mudar os rumos do partido adversário. Eles só sabem que venceram com o apoio de milhares ou milhões de cidadãos, e agirão em nome desses eleitores — ou seja, em seu nome.
  22. O que você faz na privacidade da cabine de votação é problema seu e pode ser mantido em segredo. Mas se você se sentir hesitante ou envergonhado em relação a compartilhar como votou, pergunte a si mesmo porque está se sentindo assim.
  23. No geral, seu voto individual tem importância ínfima para determinar o resultado de uma eleição ou o futuro do país. No entanto, pode ser que tenha uma importância espiritual substancial para você.
  24. “Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 8.38-39)

Bonnie Kristian é a diretora editorial de ideias e livros da Christianity Today.

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News

Teólogos de Lausanne explicam a Declaração de Seul, que surpreendeu delegados do Congresso

Líderes do Grupo de Trabalho de Teologia, com 33 membros, oferecem insights sobre sua declaração de 97 pontos e 13.000 palavras.

Ivor Poobalan, diretor do Seminário Teológico Colombo, e Victor Nakah, diretor internacional da "Mission to the World' da África-subsaariana, atuaram como copresidentes do comitê de redação da Declaração de Seul

Christianity Today September 27, 2024
Photography by Morgan Lee

A decisão do Movimento de Lausanne de lançar uma declaração teológica com 97 pontos e 13.000 palavras, no dia de abertura de quarto congresso mundial, desencadeou uma semana de debates e conversas.

O tratado de sete partes, que afirma posições teológicas sobre o evangelho, a Bíblia, a igreja, a “pessoa humana”, o discipulado, a “família das nações” e tecnologia, foi publicado online pouco antes do início do evento, na noite de domingo.

A Declaração de Seul “foi elaborada para preencher algumas lacunas, para ser um complemento em sete tópicos-chave sobre os quais não pensamos o suficiente, ou não refletimos ou não escrevemos o bastante dentro do Movimento de Lausanne”, disse David Bennett, diretor-associado global de Lausanne, na tarde de domingo, quando se encontrou com a mídia para explicar a visão e o propósito da declaração.

“Não estávamos tentando criar um quarto documento que substituiria ou tornaria obsoletos aqueles três documentos anteriores”, ele acrescentou.

Os organizadores do congresso também explicaram, em uma coletiva de imprensa, na segunda-feira, que esta era a versão final do texto.

No entanto, dois dias depois, o Christian Daily International relatou que, após a divulgação do documento, uma seção que aborda a homossexualidade havia sido alterada. Essas edições deveriam ter sido feitas antes da publicação da Declaração de Seul, disse um porta-voz de Lausanne, na terça-feira.

Na quinta-feira, em resposta à divulgação da declaração, Ed Stetzer, diretor regional de Lausanne para a América do Norte, veio a público insistir para que a organização “declarasse enfaticamente que o evangelismo é ‘central’, ‘uma prioridade’ e ‘indispensável’ para a nossa missão”. Enquanto isso, na manhã de sexta-feira, 235 delegados assinaram uma carta aberta, organizada pelo grupo Korean Evangelicals Embracing Integral Mission, pedindo ao Lausanne Theology Working Group (LTWG, Grupo de Trabalho de Teologia, do Movimento de Lausanne), o órgão que compôs a Declaração de Seul, para revê-la e revisá-la, dedicando atenção especial a 10 pontos específicos.

Até a noite de quinta-feira, nenhum líder de Lausanne se pronunciou de palco [no próprio congresso], oferecendo uma explicação mais aprofundada da Declaração de Seul, ou do motivo pelo qual o documento foi finalizado antes do congresso — uma ação que surpreendeu aqueles que, com base em congressos anteriores, haviam antecipado um documento ainda aberto à revisão, com base no feedback dos delegados.

Na manhã de sexta-feira, Mike du Toit, diretor de comunicações e conteúdo de Lausanne, enviou um e-mail em massa aos delegados, explicando que a Declaração de Seul “foca em certos tópicos teológicos que o Grupo de Trabalho de Teologia, do Movimento de Lausanne, identificou como questões que necessitavam de maior atenção por parte da igreja global, e [o documento] reflete sobre esses tópicos com base no evangelho, a história bíblica que vivemos e contamos.”

“Reconhecemos que, ao apresentar a Declaração de Seul, deveríamos ter sido mais claros em explicar seu propósito e a maneira como os participantes são convidados a se envolver com ela”, ele escreveu. O e-mail também colocou um link que direciona para um formulário de feedback.

O e-mail de Du Toit também observou que os delegados seriam convidados a assinar um documento chamado Compromisso de Ação Colaborativa, durante a sessão de encerramento de sábado, e que esse documento não estava relacionado à Declaração de Seul.

Mais tarde, na mesma manhã, Philip Ryken, presidente do Wheaton College e palestrante de plenária, mencionou a Declaração de Seul e encorajou os delegados a fornecerem feedback.

Enquanto isso, a CT ouviu de dezenas de delegados — cuja compreensão do propósito da declaração diverge daquela apresentada por Bennett, em suas coletivas de imprensa no domingo e na segunda-feira — que eles estavam confusos e frustrados pela falta de canais formais para feedback.

O processo que redundou na Declaração de Seul começou no final de 2022, quando o conselho de Lausanne escolheu como copresidentes de um comitê de redação Ivor Poobalan, do Sri Lanka, diretor do Seminário Teológico de Colombo, e Victor Nakah, do Zimbábue, diretor internacional para a África Subsaariana junto à Mission to the World. Poobalan e Nakah trabalharam com 33 teólogos da África do Sul, Índia, Etiópia, Noruega, Vietnã, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos, Reino Unido, Brasil, Austrália, Nova Zelândia, Irã, Palestina, Suécia, Cingapura e Zâmbia.

“Não estamos surpresos com as discussões geradas”, disse Nakah. “Afinal de contas, é um documento teológico, e os tópicos desta declaração são questões reais.”

Poobalan e Nakah se encontraram com Morgan Lee, editora-chefe global da CT, para falar sobre a Declaração de Seul, na tarde de quinta-feira.

Esta entrevista foi editada por motivos de extensão e clareza.

Como foi articulada essa tarefa de elaborar a Declaração de Seul?

Poobalan: Nós nos perguntamos: precisamos de outra declaração? Não havia a menor necessidade de escrevermos um documento simplesmente porque o Congresso deveria produzir um documento. Os documentos de Lausanne que já temos são excelentes por si só.

Mas a liderança de Lausanne sentiu que, à medida que o cristianismo global cresce em novos lugares, há uma nova geração de cristãos que não está ciente do Pacto de Lausanne, do Compromisso da Cidade do Cabo ou do Manifesto de Manila e, talvez, não esteja muito interessada em resgatá-los. Em vez disso, eles estão preocupados com questões atuais.

Por exemplo, a antropologia só se tornou uma grande questão no século 21, e, nos últimos anos, adquiriu proporções ainda maiores. Por isso, era importante que falássemos sobre algumas dessas questões. Não estamos substituindo os documentos anteriores, mas estamos tentando encontrar maneiras de agregar mais valor ao que Lausanne representa, fornecendo algumas diretrizes específicas que ajudarão a igreja global a navegar por questões difíceis.

Qual foi o processo de criação da declaração?

Poobalan: Ao longo desses 50 anos, já falamos sobre a autoridade, a infalibilidade e a utilidade das Escrituras, mas não abordamos realmente como interpretá-las. Nosso propósito era abordar questões que foram um tanto negligenciadas ou estiveram sob pressão, como o grande desafio do discipulado ou a questão do que significa ser humano. Foi assim que chegamos a esses sete assuntos, embora muitos outros pudessem ter sido abordados.

Nakah: Para aqueles que se perguntam por que começamos de novo pelo evangelho, foi porque agora existem muitos “evangelhos” diferentes em circulação. Se os evangélicos não chegarem a um acordo sobre a maneira de ler, estudar e interpretar as Escrituras, como encontraremos respostas para as questões que a igreja enfrenta hoje? Se não atentarmos para a hermenêutica, o que nos resta, então, é apenas o evangelho segundo Ivor ou segundo Victor.

Por que a declaração foi finalizada antes do Congresso?

Poobalan: Porque são possíveis diferentes abordagens. O Pacto de Lausanne foi finalizado durante o Congresso. Na Cidade do Cabo, não havia um documento final quando o Congresso terminou; ele saiu muito depois, mas houve uma escuta na Cidade do Cabo, e, então, a equipe usou essas informações para completar o documento mais tarde.

Assumimos a postura de que poderíamos concluir este documento, apresentá-lo no Congresso e ter uma ideia das discussões [geradas]. Não decidimos o que faremos em consequência disso, mas discutiremos a reação juntos, como liderança de Lausanne, e veremos como faremos a partir daí.

Nakah: A maneira como as pessoas reagiram ao documento nos dá um retrato mais preciso da diversidade teológica do mundo evangélico global. Mas toda essa discussão que foi gerada é um bom feedback.

Quer isso tenha sido certo ou errado, o documento não foi concebido para ser algo que apresentamos, obtemos um feedback e depois refinamos. Se quiséssemos fazer isso, teríamos feito. É por isso que esse feedback se justifica. Ninguém apresenta um documento teológico e vê todo mundo bater palmas para ele.

Ouvi críticas sobre a falta de canais formais para feedback. Isso não impediu alguns delegados de darem seu feedback. Mas, se esse feedback influenciar alguma mudança, posso imaginar outros delegados se sentindo frustrados por não ter havido uma maneira mais formal de dar suas opiniões.

Poobalan: Acho que amanhã [27 de setembro], isso será abordado, e acredito que as pessoas terão a oportunidade de dar seu feedback. Esse feedback, evidentemente, viria de qualquer maneira, e, uma vez que você o formaliza, então, gera uma expectativa sobre o que se fará com o feedback, e é com isso que o conselho de Lausanne se debaterá.

Nakah: Somos muito gratos ao conselho por ter aceitado este documento e, então, ter prosseguido a partir daí. Mas, no final das contas, o documento é de Lausanne [não nosso]. É preciso que a liderança do movimento explique suas diretrizes de como seguir em frente.

Provavelmente não há outras declarações teológicas em circulação cujo processo tenha sido liderado por teólogos do Zimbábue e do Sri Lanka. Como a formação e o contexto de cada um de vocês podem ter influenciado esta declaração?

Poobalan: Fiquei surpreso quando Victor e eu fomos convidados para compartilhar a presidência do TWG, porque este grupo desempenha um papel crítico e sempre teve líderes provenientes do mundo ocidental. A ousada disposição do conselho de pensar diferente e convidar dois copresidentes do Sul Global foi surpreendente, mas também incentivadora e encorajadora. Em contrapartida, queríamos garantir que o documento não se tornasse apenas uma questão do Sul Global.

Com esse fim, ao montar nossa equipe, procuramos pessoas que pudessem representar diferentes partes da igreja. Muitos desses 33 teólogos são bem conhecidos, mas formaram um grupo incrível, que colaborava entre si.

Em toda reunião com eles, eu tinha dois sentimentos: um senso de que havia na sala uma grande expertise e a mais pura humildade.

Nakah: Houve outros momentos neste processo em que percebemos que precisávamos de expertise. Em mais de uma ocasião, percebemos que faltava alguém, e tivemos que entrar em contato com pessoas que tinham feito pesquisas naquela área, porque sabíamos que não éramos especialistas no assunto. Acabamos trabalhando com pessoas que são muito mais preparadas do que nós e muito mais espertas também. Foi uma alegria.

Você pode apontar uma ou duas seções da Declaração de Seul que realmente evidenciam a presença do Sul Global neste documento?

Nakah: Como sabemos, a África se tornou um terreno fértil para o evangelho da prosperidade. À luz disso, a seção sobre o evangelho foi importante, porque há uma impressão de que podemos falar de muitos evangelhos no continente africano. Queríamos estruturar o documento de tal forma que qualquer um que o leia saia com uma compreensão do evangelho que seja revigorante e desafiadora.

O segundo grande desafio para a igreja do mundo majoritário atualmente é o discipulado. Alguns teólogos africanos ainda resistem, quando a igreja na África é descrita como uma igreja extensa, difundida, mas pouco profunda. Contudo, essa ainda é a realidade.

Então, se há uma seção mais crítica para a caminhada da igreja africana daqui para frente, é esta. Esperamos que ela desafie os líderes eclesiásticos e paraeclesiásticos a levar o discipulado a sério.

Poobalan: Este documento fala sobre a questão da antropologia teológica. Na igreja, há um senso de confusão sobre o que significa ser um ser humano redimido. Algumas pessoas às vezes reivindicam para a pessoa humana redimida um status divino ou um poder que vai além do que a Bíblia oferece.

Mas, também na área de gênero e sexualidade, às vezes o Sul Global se pergunta: “Por que o cristianismo está falando apenas a partir da perspectiva do Norte Global?” Nesse sentido, falar sobre sexualidade e gênero foi importante para esclarecer que nossas convicções não são meras reações ao que está acontecendo no Ocidente, mas expressam a posição bíblica.

Consequentemente, há uma seção inteira que trata do que as Escrituras ensinam sobre sexualidade e gênero. Há um pouco mais de exposição bíblica nela, pois a igreja global tem necessidade de clareza sobre o que as Escrituras ensinam.

Além disso, a seção “família das nações” fala sobre a importância da paz e o que significa ser uma nação, tanto no sentido bíblico quanto no moderno. Por exemplo, podemos simplesmente equiparar nomes históricos de povos e países, sem um contexto? [Nota do editor: veja a Seção 84 da Declaração de Seul.] Estamos tentando abordar situações atuais, nas quais os cristãos às vezes encontram uma base teológica para posições particulares, quando abordam uma guerra ou um conflito.

E, ainda assim, às vezes há contradições em nossa abordagem. Os cristãos podem às vezes denunciar toda forma de violência contra civis, mas, em outras vezes, podem encontrar razões teológicas para justificá-la.

Estou ciente de que alguns delegados de Lausanne, por causa do contexto de seu país e daqueles a quem ministram, acharam as seções sobre questões LGBT muito brandas ou muito rígidas.

Nakah: Para o grupo que trabalhou nesta seção, sentimos que a hermenêutica era um bom ponto de partida. Então, começamos pela pergunta: “O que a Bíblia ensina?” Em nosso grupo, havia consenso sobre o que a Bíblia dizia, e as discordâncias eram todas relacionadas à aplicação a contextos da vida real.

Para aqueles líderes que acham que nossa abordagem foi um pouco branda, eu perguntaria: É bíblico insultar gays e lésbicas? Se voltamos às Escrituras, a Bíblia nos ajuda a entender que Deus ama os pecadores. E isso é totalmente diferente de uma posição cultural que os rebaixa.

Como vocês escolheram quais conflitos mencionar pelo nome, na seção “família das nações”?

Poobalan: Reconhecemos que nem todo conflito poderia ser mencionado, porque esse não era o ponto. Alguns conflitos foram tratados com base na medida em que o país avançou, como a África do Sul, o Sri Lanka ou a Irlanda do Norte. Os exemplos de conflitos atuais servem como pontos de referência para discutir a posição bíblica sobre o conflito e onde os cristãos devem se posicionar. Entendemos quando as pessoas ficam sensíveis e tristes porque um conflito específico que vivenciaram não é mencionado.

Com relação a Gaza e Israel, essa situação é única, porque a igreja está fortemente dividida, com base em sua teologia sobre Israel.

De certa forma, gostaríamos de ver a igreja global colocar essa questão sobre a mesa e dizer: “Vamos conversar sobre isso. Qual é a teologia bíblica real sobre Israel? Como isso se encaixa em nossa compreensão da igreja” (que discutimos no terceiro capítulo da declaração)? É importante discutir detalhes da Declaração de Seul, mas realmente gostaríamos que a igreja voltasse a perguntar: “De onde vem a nossa base teológica?”

Esperamos muito que este trabalho incentive a igreja a se engajar em diálogos. Isso não será fácil, porque, no momento, há muita emoção envolvida, mas esperamos que a igreja assuma essa tarefa, pois é doloroso que ela fique polarizada nessa questão com base na teologia.

Se eu sou um delegado que lê a Declaração de Seul e concorda com grande parte dela, mas não com tudo, ainda devo sentir que posso fazer parte do Movimento de Lausanne?

Nakah: Volto à questão do que une os evangélicos. Quais são os fundamentos ou bases essenciais ​​da fé cristã que não são negociáveis?

Quando se trata de questões atuais, a maioria dos evangélicos não entende muito bem a avassaladora diversidade do corpo evangélico global. Se alguém decidir se está dentro ou fora do Movimento de Lausanne com base nesta declaração, isso é lamentável.

Poobalan: É ingênuo pensar que todos os evangélicos, mesmo os que são de um mesmo país, concordarão em tudo. Mas praticamos essa disciplina da amizade, da camaradagem, e reconhecemos que os fundamentos da fé não devem ser comprometidos.

Até mesmo John Stott e Billy Graham, os fundadores do Movimento de Lausanne, discordavam em certos aspectos, mas puderam permanecer amigos. Eles se aproximaram. Da mesma forma, neste Congresso, nossa ideia de colaboração não se baseia em todos nós pensarmos de forma idêntica. A colaboração envolve uma disposição de estender a mão a outros que tenham as mesmas convicções fundamentais.

O que você quer que as pessoas saibam sobre a maneira como esta declaração discute o evangelismo?

Poobalan: A declaração é muito clara quanto ao evangelismo ser absolutamente importante. Estamos trabalhando para nos afastar de velhas dicotomias que separam a mensagem que proclamamos das vidas que vivemos. Ao longo da declaração, há muitas referências à importância da proclamação verbal; contudo, a proclamação verbal feita por pessoas que não demonstram a realidade do que proclamam acabará por minar a verdade da mensagem.

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Relatório de Lausanne: A maioria dos missionários está alcançando povos já alcançados

O Relatório de Status da Grande Comissão examina desafios e oportunidades em um cenário missionário em transformação.

Christianity Today September 26, 2024
Courtesy of The Lausanne Movement / Photography by Grace Snavely

Nos dias de hoje, mais de 40% do mundo ainda não foi evangelizado. No entanto, do total global de 450 mil missionários cristãos que temos hoje, cerca de 97% são enviados para povos que já têm acesso ao evangelho.

Outro fato surpreendente: em 1900, mais de 80% dos cristãos do mundo viviam na Europa ou na América do Norte, mas hoje, apenas cerca de 25% vivem nessas regiões. O restante reside no Sul Global, que inclui África, Ásia, América Latina e Oceania.

A mudança geográfica no cristianismo também significa uma mudança nos países de origem dos missionários. Os Estados Unidos ainda enviam o maior número de missionários, mas os próximos quatro países [na lista dos que mais enviam] são Brasil, Coreia do Sul, Filipinas e Nigéria.

Estas são algumas das descobertas do Relatório de Status da Grande Comissão, divulgado pelo Movimento de Lausanne no início deste ano, antes do Quarto Congresso de Lausanne em Incheon, Coreia do Sul. O relatório se baseia em pesquisas de organizações internacionais cristãs e sem fins lucrativos, e apresenta insights de 150 especialistas em missões globais.

“A Grande Comissão não é um fim em si mesma; é um meio para um fim”, escreveram Victor Nakah e Ivor Poobalan em um dos ensaios do relatório. “O futuro é a presença de todas as tribos, línguas, nações e idiomas adorando o Rei no fim dos tempos.”

O sucesso e a tarefa inacabada das missões globais

Devido ao trabalho de missionários e movimentos de cristãos locais, o evangelho já alcançou cerca de 4,57 bilhões de pessoas, enquanto 3,34 bilhões ainda não ouviram o evangelho, de acordo com dados do Projeto Josué.

No entanto, a maioria dos missionários hoje não está indo para países com grupos de povos não alcançados. “A maioria dos missionários vai para contextos predominantemente cristãos ou pós-cristãos, o que leva a uma falta de conexão e de compreensão dos adeptos de outras religiões”, observou o relatório. Mais missionários vão para a Europa do que para a Ásia, embora 60% do mundo viva na Ásia e o envio de missionários para a Europa custe dez vezes mais.

O principal país que envia — e o principal que recebe — missionários são os Estados Unidos, com 135.000 missionários enviados para outros países e 38.000 vindos do exterior, de acordo com os números de 2020 do World Christian Database. A população cristã dos EUA ainda é a maior do mundo, já que cerca de um décimo de todos os cristãos são americanos. O Brasil vem em seguida, com quase 8% dos cristãos do mundo, devido em grande parte à rápida disseminação do pentecostalismo. O Brasil também envia o segundo maior número de missionários, um total de 40.000.

A Coreia do Sul, com 35.000 missionários, caiu do segundo para o terceiro lugar entre 2015 e 2020. O envelhecimento de sua força missionária e a diminuição do envolvimento dos cristãos mais jovens contribuíram para esse platô. Os ​​25.000 missionários enviados das Filipinas são, em sua maioria, católicos, e esse número não inclui os filipinos que trabalham no exterior e que atuam como missionários bivocacionados.

Na Nigéria, algumas igrejas estão deixando de lado as agências missionárias e enviando diretamente seus missionários para os não alcançados. Um ensaio do relatório de Lausanne citou um livro de Yaw Perbi e Sam Ngugi: “A história do movimento cristão mundial é a história da colaboração entre igrejas locais e agências missionárias [que] Deus usou… para promover o avanço do evangelho desde o primeiro século até hoje.”

Crescimento do cristianismo na África

No século passado, a África Subsaariana viu o cristianismo crescer mais rápido do que em qualquer outro lugar do mundo. Essa região e a América Latina são as áreas onde o pentecostalismo cresceu com mais pujança. Em 1970, a África Subsaariana tinha cerca de 20 milhões de pentecostais; hoje, esse número disparou para 230 milhões, de acordo com a World Christian Encyclopedia.

O Pew Research Center fez projeções de que, até 2060, mais de quatro em cada dez cristãos chamarão a África Subsaariana de lar. Grande parte dessa mudança é atribuída à demografia, uma vez que a região tem a população mais jovem do mundo. Atualmente, em média, a idade dos cristãos de lá é de 19 anos, em comparação com 39 anos, na América do Norte, e 42, na Europa.

A África Subsaariana também é mais religiosa. Na Nigéria, cerca de 90% dos adultos frequentam cultos religiosos semanalmente, em comparação com menos de 40% nos EUA. Embora, no mundo inteiro, pessoas de 18 a 39 anos frequentem os cultos semanais das igrejas com menos frequência do que pessoas com mais de 40 anos, a lacuna é menor na África Subsaariana, de acordo com o Pew.

“Toda pessoa que pensar em missões não deve apenas considerar como a África participa, mas os próprios africanos devem estar prontos a entrar na linha de frente da força missionária”, escreveram Ana Lucia Bedicks, Menchit Wong e Maggie Gathuku em um ensaio do relatório de Lausanne.

Os não alcançados na Índia e no Paquistão

Enquanto isso, a maioria dos grupos de povos não alcançados do mundo, definidos como grupos que não têm “uma igreja autóctone local capaz de evangelizar seu próprio povo”, reside no sul da Ásia, especificamente na Índia de maioria hindu e no Paquistão de maioria muçulmana. Aproximadamente 3.000 grupos de povos não alcançados — ou cerca de três quintos do total mundial — estão nesses dois países.

Atualmente, mais de 60% dos 30.000 missionários indianos trabalham no próprio país, de acordo com a Operation World. Os cristãos na Índia estão enfrentando maior perseguição, pois um governo nacionalista hindu está no poder e a ideologia Hindutva se torna arraigada na sociedade.

A classe média, em expansão na Índia, oferece barreiras e oportunidades para o evangelho florescer, segundo um ensaio de Carl Ebenezer, Ted Esler e James Patole. “As estruturas religiosas da Índia e suas estruturas sociais profundamente baseadas em castas combinadas com este contexto secular e pluralista representam um enorme desafio para a apresentação da singularidade de Jesus Cristo”, escreveram eles.

No entanto, ao mesmo tempo, os autores notaram que muitos integrantes da classe média da Índia “não estão necessariamente convencidos dos ensinamentos de sua religião nem os praticam. Muitos estariam abertos a ouvir e a mudar sua visão, se fossem convidados a fazê-lo de uma forma que falasse a suas experiências e necessidades”.

Entre os países de maioria muçulmana, o Paquistão tem a legislação contra blasfêmia mais rigorosa, que pode levar à prisão e até à morte. Os cristãos que vivem nos centros urbanos também são forçados a trabalhar em empregos mal pagos na área de saneamento.

O relatório observou que o Sul da Ásia “provavelmente permanecerá como a região menos evangelizada por muitas décadas”.

Missões policêntricas

À medida que os centros do cristianismo se afastam do Ocidente e se voltam para o Sul Global, a atividade missionária agora é policêntrica, termo que significa “de todas as nações para todas as nações”, de acordo com Patrick Fung, embaixador global da OMF International.

Um ensaio intitulado “Polycentric Global Missions” [Missões Globais Policêntricas] argumentou que “a missão tem sido policêntrica desde o início”. Embora a igreja primitiva tenha começado a evangelizar em Jerusalém, a perseguição a forçou a se espalhar pelo mundo romano e a pregar para os judeus da diáspora. Então, os cristãos foram para Antioquia para pregar aos gentios; de lá, Paulo começou suas viagens missionárias e plantou igrejas, e essas igrejas continuaram a levar o evangelho ainda mais longe.

O relatório observou que, com exceção da Europa, todas as regiões do mundo “enviam e recebem mais missionários do que há 50 anos”. Mais missionários estão vindo de países onde os cristãos são minoria, o que muitas vezes os ajuda a se relacionarem com as pessoas que estão tentando alcançar.

No entanto, um desafio é que a riqueza cristã está concentrada na América do Norte, o que demanda discussões sobre como as igrejas policêntricas podem encorajar a generosidade, criar “canais saudáveis” entre os cristãos mais e menos ricos, e identificar novas fontes de financiamento.

“Se toda cultura recebeu a Grande Comissão, então, toda cultura tem o privilégio de apoiar a Grande Comissão”, disse Scott Morton, dos Navigators, que é citado em outro ensaio.

Missões da diáspora

Uma maneira pela qual o evangelho está se difundindo é por meio do deslocamento de pessoas que deixam seus países de origem por causa de fatores como fome, guerra, perseguição, melhores oportunidades de emprego ou para proteger sua família. Em 2020, havia 281 milhões de migrantes internacionais no mundo, um aumento de 60 milhões em relação à década anterior, de acordo com o Relatório Mundial de Migração. Quase a metade desses migrantes são cristãos.

Esse padrão se encaixa nas missões policêntricas, pois os migrantes cristãos estão se mudando para novos locais onde possam testemunhar e plantar sementes. Ao mesmo tempo, os cristãos nos países de destino podem evangelizar migrantes recém-chegados, que geralmente estão mais propensos a aceitar uma nova fé, por estarem longe das tradições e religiões de sua terra natal.

“Deus é soberano sobre a história humana e a dispersão humana”, escreveu Sam George no ensaio “People on the Move” [Pessoas em deslocamento]. Segundo ele afirmou, uma decorrência disso é que “o cristianismo no Ocidente não está em declínio, mas os imigrantes da Ásia, África e América Latina estão revivendo-o e transformando-o com um ímpeto missionário renovado”.

Por exemplo, a restrição de liberdades em Hong Kong levou a um boom de igrejas chinesas na Grã-Bretanha, à medida que cidadãos da antiga colônia britânica encontram refúgio no Reino Unido. Na Bélgica, os cristãos africanos estão cada vez mais dando aulas nos cursos de educação religiosa. Nos EUA, as igrejas butanesas-nepalesas estão crescendo, pois se reúnem em prédios de igrejas cuja congregação local está morrendo.

“O cristianismo é uma fé missionária por excelência, pois é uma fé que nasceu para peregrinar”, ​​observou George.

A igreja se opondo à injustiça

Em termos globais, o número de pessoas que vivem na extrema pobreza caiu de dois bilhões em 1990 para um bilhão em 2019, de acordo com o Banco Mundial. O relatório de Lausanne conectou essa tendência com a importância da missão integral, que aborda não apenas as necessidades espirituais de uma pessoa, mas também questões de ordem física, social e econômica.

Os direitos humanos estão hoje mais protegidos do que nos séculos anteriores. No entanto, as restrições governamentais à religião aumentaram globalmente. O Norte da África, o Oriente Médio e a Ásia têm visto a maior porcentagem de uso da força por parte de governos contra grupos religiosos, de acordo com o Pew.

Hoje, estima-se que 40 milhões de pessoas sejam vítimas de alguma forma de escravidão moderna, entre as quais estão o trabalho forçado, a exploração sexual e o casamento forçado. A quantidade de mulheres e meninas afetadas é desproporcional, representando 70% das vítimas de exploração e 99% das vítimas da indústria do sexo.

“Embora a igreja se pronuncie em certos setores a favor dos oprimidos, em muitos desses casos ela se limita a declarações da liderança que não se convertem em ações”, escreveram Christie Samuel, Jocabed Solano e Jenny Yang, em um ensaio do relatório de Lausanne. Eles pediram que a igreja “assumisse seu papel profético, trabalhando mais prontamente na denúncia da injustiça, na libertação dos oprimidos e se levantando contra a liberdade irrestrita dos opressores”.

A inteligência artificial traz perigos e possibilidades

Outra mudança sísmica que a comunidade missionária precisa levar em conta é como a Internet está mudando todas as facetas da vida humana. O relatório declarou que “o aumento da mídia digital é potencialmente tão transformador para o engajamento com as Escrituras quanto o advento da imprensa no início da Europa Moderna”.

Com cerca de 60% do mundo conectado à Internet, há novas oportunidades para aplicativos da Bíblia que permitem que as pessoas leiam e ouçam com facilidade a Palavra de Deus em seu próprio idioma. Os aplicativos da Bíblia também fornecem uma nova maneira para as pessoas acessarem as Escrituras, especialmente em países onde a segurança é uma preocupação. Softwares de tradução, ferramentas de colaboração online e crowdsourcing [financiamento coletivo] também agilizaram o processo de tradução da Bíblia.

Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos apresentam desafios para a igreja, particularmente em torno da inteligência artificial (IA) e do que significa ser humano.

“A proclamação do evangelho não é simplesmente uma transferência de informações, mas sim uma transformação da pessoa por inteiro, pelo poder do Espírito Santo”, escreveram os autores do ensaio do relatório sobre IA. Eles acrescentaram que “muitos estão buscando tirar proveito do imenso poder das ferramentas de IA em prol do avanço da mensagem do evangelho para todos os povos, tribos e nações”.

Os autores reconheceram que Deus usa tais ferramentas para ajudar a igreja, mas alertaram que seu uso deve ser “guiado pela natureza singular da humanidade e pelo reconhecimento de que as máquinas são fundamentalmente diferentes dos seres humanos”.

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News

O Quarto Congresso de Lausanne acolhe líderes mais jovens, cristãos do ‘mercado’ e tecnologia

Mais de 5.000 evangélicos de mais de 200 países se reúnem na Coreia do Sul para celebrar e elaborar estratégias para o evangelismo.

Em 24 de setembro de 2024, participantes dos painéis falam sobre a influência que o Movimento de Lausanne teve em seus ministérios.

Christianity Today September 25, 2024
GOY

Steve Oh pode traçar a herança cristã de sua família até a chegada de missionários protestantes à Coreia, nos anos 1800.

“Minha família foi abençoada pelo movimento missionário global”, disse Oh, um pastor coreano-australiano que lidera a Sydney Living Hope Community Church.

Esta semana, Oh é um dos 5.200 cristãos de mais de 200 países que estão em Incheon, Coreia do Sul, para o Quarto Congresso de Lausanne. O encontro acontece como um “momento em que se completa um círculo”, pois comemora os frutos, tanto pessoais quanto coletivos, do evangelismo global nos últimos 50 anos.

Cinquenta anos depois que Billy Graham e John Stott fizeram história, reunindo 2.700 evangélicos de 150 países, os líderes do movimento acreditam que essa colaboração pode ir ainda mais longe.

“As quatro palavras mais perigosas para a igreja global de hoje são: ‘Eu não preciso de você’”, disse o diretor-executivo global e CEO do Movimento de Lausanne, Michael Oh (que não tem parentesco com Steve Oh). Colega da diáspora coreana, Oh usava um hanbok [tradicional traje coreano] durante sua fala de abertura, no domingo.

Nesses 15 anos desde que Lausanne convocou seu último congresso, na Cidade do Cabo, África do Sul, o movimento buscou ampliar o perfil de quem ele inclui como parceiros essenciais na Grande Comissão. Foram organizados eventos para líderes com menos de 40 anos, na cidade de Jacarta, em 2016, e para cristãos do “mercado”, ou seja, aqueles que não trabalham no ministério profissional, na cidade de Manila, em 2019.

Desde seu evento inaugural, em 1974, Lausanne aprofundou a cooperação entre evangélicos ao redor do mundo, segundo disseram os líderes que a CT entrevistou no local, durante Lausanne 4. Como o movimento presta atenção ao desenvolvimento de líderes mais jovens e à expansão de suas redes, foram lançados um enorme Relatório de Status da Grande Comissão e a Declaração de Seul, dois documentos que reafirmam o compromisso do movimento em servir como líder na reflexão sobre evangelismo e teologia.

Na preparação para o evento, Lausanne começou a desafiar igrejas locais a adotarem uma postura de cooperação.

Muitas congregações coreanas têm historicamente lutado para corresponder nesse sentido; em 2014, a Aliança Evangélica Mundial cancelou sua assembleia geral, programada para acontecer na capital sul-coreana, por causa de divisões entre os evangélicos do país.

No início do processo de planejamento para o Congresso de Lausanne deste ano, a Igreja Onnuri, uma das maiores congregações presbiterianas da Coreia, reuniu mais de 430 igrejas para orar. Cerca de 200 congregações começaram a pregar coletivamente sobre o livro de Atos. Muitas levantaram fundos para cobrir os custos da conferência. Cerca de 4.000 cristãos locais estão orando pelo evento.

A igreja coreana fez uma contribuição financeira significativa para custos como o centro de convenções, refeições, transporte e outros custos de produção.

Forjar esse elo de confiança entre líderes cristãos coreanos não tem sido fácil, de acordo com Yoo Kisung, um organizador local que lidera a Igreja Bom Pastor, em Seul. Mas ele reconhece essa preparação como uma oportunidade para fazer uma reflexão e para inspirar a próxima geração: “Os jovens que trabalharam com Lausanne são os futuros líderes da igreja coreana.”

Líderes de Lausanne que viajaram para o evento, como Menchit Wong, que é membro do conselho e veio das Filipinas, também enfatizaram o impacto geracional.

“Agora que já sou bem mais sênior, minha tarefa é ver líderes cada vez mais jovens assumirem seu lugar em levar filhos a Jesus”, disse ela.

O Congresso de Seul apresenta uma porcentagem histórica e recorde de delegadas mulheres (29%) e de delegados com menos de 40 anos (16%). Mais de 1.450 participantes trabalham em áreas que não são ligadas ao ministério de tempo integral. Na terça-feira, foi realizado um jantar para líderes mais jovens que lotaram um enorme salão de baile do centro de convenções e, no final desta semana, Lausanne terá uma cerimônia de comissionamento específica para os participantes que são cristãos “do mercado” (28%).

Embora os organizadores do Lausanne 4 tenham buscado, a princípio, que os norte-americanos constituíssem cerca de 5% do grupo geral de delegados presenciais, os delegados que vivem nos EUA representaram, no final, 25,5% do total de participantes. (As estatísticas de Lausanne são baseadas no local de residência do delegado.) Junto com os europeus (13%), os ocidentais compõem 38,5% do total de delegados.

Cerca de um terço (36,9%) dos delegados residem em países asiáticos, em comparação com 12,8% que vivem na África e 7,7%, na América Latina. Representantes que vivem na Oceania compõem 3% e os que vivem no Caribe compõem 1,1%.

Passar a semana com essa audiência tão diversa e heterogênea lembra ao ganês Casely B. Essamuah, secretário do Fórum Cristão Global que atualmente mora nos EUA, que “a igreja é mais grandiosa, maior e mais abrangente do que qualquer uma de nossas denominações ou do que qualquer um de nossos redutos”.

“Quem vem aqui não tem como deixar de sair inspirado por ver o que Deus está fazendo ao redor do mundo”, ele disse. “Também ficamos com o coração partido pela perseguição que outros estão sofrendo, e isso informa a nossa vida de oração. Vemos pessoas e somos capazes de nos conectar com elas, pelo bem maior da igreja global”.

Ouvir, em primeira mão, cristãos do mundo inteiro contando histórias sobre a perseguição e sobre a graça de Deus é uma experiência sem igual, diz Christian Maureira, diretor e professor do Seminário Martin Bucer no Chile. “Ouvir o que Deus está fazendo em lugares como Paquistão, Malásia, Europa ou o mundo muçulmano […] é muito impactante.”

Para Claudia Charlot, reitora da área de business da Université Emmaüs, em Cap-Haïtien, no Haiti, a conferência possibilitou que ela se conectasse com missionários asiáticos da One Mission Society, a organização que fundou a escola em que ela trabalha.

“Eu jamais teria conhecido essas pessoas se não fosse neste evento de Lausanne”, ela disse.

Todos os congressos de Lausanne anteriores lançaram um documento evangélico histórico: o Pacto de Lausanne (1974), o Manifesto de Manila (1989) e o Compromisso da Cidade do Cabo (2010). Mantendo a tradição, Lausanne anunciou, no domingo, que havia lançado a Declaração de Seul, um tratado com sete partes que afirma publicamente posições teológicas sobre o evangelho, a Bíblia, a igreja, a “pessoa humana”, o discipulado, a “família das nações” e a tecnologia.

A Declaração de Seul “foi elaborada para preencher algumas lacunas, para ser um complemento em sete tópicos-chave sobre os quais não pensamos o suficiente, ou não refletimos ou não escrevemos o bastante dentro do Movimento de Lausanne”, disse David Bennett, diretor-associado global de Lausanne.

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“Não estávamos tentando criar um quarto documento que substituiria ou tornaria obsoletos aqueles três documentos anteriores”, ele acrescentou.

A declaração — um texto com 97 pontos e 13.000 palavras — foi apresentada no domingo. Sua divulgação surpreendeu alguns delegados, cuja expectativa era de que teriam chance de oferecer suas contribuições, já que nos congressos anteriores as declarações haviam sido elaboradas coletivamente, ao longo da semana.

“Baseada em uma história rica e diversa, esta declaração do @LausanneMovement tem muita coisa boa, e sou grato por sua clareza teológica para este momento”, escreveu no Instagram Ed Stetzer, diretor regional de Lausanne para a América do Norte. “No entanto, gostaria que tivesse um chamado maior para priorizar o evangelismo.”

Ao menos um grupo, o Korean Evangelicals Embracing Integral Mission (KEEIM, Evangélicos coreanos que abraçam a missão integral ), organizou uma reunião, na terça-feira, para que os delegados compilassem suas preocupações.

Partes da Declaração de Seul sobre o tópico da homossexualidade foram alteradas após sua divulgação, segundo observou uma matéria do Christian Daily International.

Líderes cristãos coreanos manifestaram objeções às versões originais, particularmente pelo modo como elas podem ter colocado que “muitas igrejas locais e comunidades cristãs agiram errado, embora a maioria das igrejas locais e das comunidades cristãs não tenham agido assim”.

No parágrafo 69, em vez de descrever como os cristãos que são atraídos por pessoas do mesmo sexo enfrentam desafios “em muitas igrejas locais, devido à ignorância e ao preconceito”, o texto do documento agora afirma que isso ocorre “mesmo em comunidades cristãs”. Em vez de dizer que a igreja se arrepende de suas “falhas”, o texto agora diz que ela se arrepende de “nossa falta de amor”.

A palavra “fieis”, que fora usada para descrever crentes que sentem atração por pessoas do mesmo sexo, também foi cortada no parágrafo subsequente. O plano era que essas edições tivessem sido feitas antes da publicação da Declaração de Seul, disse o porta-voz de Lausanne, na terça-feira.

Ivor Poobalan, diretor do Seminário Teológico de Colombo, no Sri Lanka, e Victor Nakah, diretor internacional da Mission to the World para a África Subsaariana, lideraram conjuntamente o grupo de trabalho de teologia de Lausanne, que passou cerca de 18 meses trabalhando nessa declaração.

Segundo Bennett, as pessoas que redigiram o documento estavam se perguntando:

• O que precisa ser feito?

• Existem áreas do pleno desejo de Deus para as nações, de seu desejo para a igreja, áreas em que não ouvimos com atenção suficiente, ou nas quais nosso mundo em transformação está levantando novas questões, que não foram respondidas por completo e a contento em nossos três documentos fundacionais anteriores?

Este documento veio na esteira do relatório do Status da Grande Comissão, lançado há algumas semanas. O relatório de 500 páginas explorou o status atual da evangelização mundial por meio de dados e pesquisas, e sugeriu ideias e oportunidades para líderes continuarem ministrando com eficácia em várias regiões.

“Existem centenas de milhares de congregações de igrejas com centenas de milhões de seguidores de Jesus Cristo”, escreveram na introdução Poobalan e Nakah, que também trabalharam neste relatório. “Mas, para executar com sucesso a Grande Comissão, precisamos de uma igreja que esteja à altura, que combine corações e mentes voltados para a Grande Comissão.”

Esse compromisso com o trabalho teológico profundo atrai Tom Lin, presidente do braço da InterVarsity Christian Fellowship sediado nos EUA.

“Pode ser apenas um conceito, que sai de um encontro de Lausanne e vai se espalhando, ao longo de muitos anos, para muitos lugares ao redor do mundo”, ele disse.

Kim Jongho, da KEEIM, tomou conhecimento dos documentos de Lausanne quando ainda era um calouro na faculdade. “O compromisso deles com a missão integral me inspirou a ser um cristão responsável na sociedade”, disse ele. “Eles foram um sinal de esperança para mim.”

Embora Lausanne tenha demonstrado essa extensa influência no mundo evangélico, durante 50 anos, um movimento como esse tem que ter cuidado para não viver apenas de sua história, de seu passado, diz Ruslan Maliuta, estrategista de rede da OneHope, na Ucrânia.

“Nos anos 70, reunir [milhares de] pessoas de todo o mundo, foi, por si só, uma façanha incrível e imensa”, disse ele. “Ainda é uma façanha, mas uma rede de megaigrejas pode fazer o mesmo. Embora ainda seja um grande esforço, não é algo que se destaque.”

Em vez disso, neste mundo em transformação, as organizações com esse nível de capacidade para reunir pessoas devem refletir sobre o tipo de reuniões que organizam.

 “Todo grupo global de expressão, incluindo Lausanne, precisa ser muito intencional no que diz respeito a se reinventar neste tempo e nesta era”, disse Maliuta.

Para esse fim, Lausanne criou um Digital Discovery Center [Centro de Descoberta Digital], uma série de exibições interativas para ajudar os participantes a aprenderem mais sobre onde o evangelismo e a tecnologia estão colidindo. As sessões vespertinas tratam de tópicos como inteligência artificial e transumanismo.

Durante seu discurso de terça-feira à noite, que comemorou o 50º aniversário de Lausanne, Michael Oh lembrou aos delegados que o movimento estava “apaixonadamente comprometido com três Ds: fazer discípulos no mundo, amadurecer discípulos da igreja e com o digital”.

“Estamos em um momento decisivo para o corpo de Cristo”, disse Paul Okumu, do Kenya Center for Biblical Transformation. “Por um lado, há muito entusiasmo e muita comemoração pelo que Deus está fazendo. Mas, por outro lado, há uma preocupação excepcional por causa da perseguição e da intolerância religiosa que estão surgindo”.

 “Estou aqui para me solidarizar com a igreja evangélica global — abraçando tanto sua beleza e resiliência, quanto suas imperfeições e seu lado caótico”, disse Lisman Komaladi, que serve em Cingapura como secretário regional da IFES para a Ásia Oriental. “Acredito que, todos juntos, possamos nos tornar uma testemunha mais fiel de Cristo para o mundo, onde quer que estejamos.”

News

Os evangélicos brasileiros estão divididos sobre o legado de Lausanne

Cristãos da América Latina desenvolveram a teologia da missão integral. Agora não sabem o que fazer com ela.

Christianity Today September 21, 2024
Ingo Roesler / Getty

Por anos, a missão integral — corrente teológica que vê o evangelismo e a justiça social como componentes indissociáveis ​​da vida cristã, ou como as “duas asas de um avião”, conforme escreveu certa vez o teólogo equatoriano René Padilla — tem sido um legado do Movimento de Lausanne no Brasil. Desenvolvido na década de 1970, por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana, esse conceito motivou os evangélicos brasileiros a combaterem a violência nas ruas do Rio, o abuso de álcool em reservas indígenas e a livrarem moradores de rua do vício em drogas, entre muitas outras conquistas.

Recentemente, no entanto, o legado da teologia da missão integral (TMI) tem sido alvo de escrutínio no Brasil, por fatores geracionais, demográficos e teológicos.

Em junho, o movimento de Lausanne realizou uma conferência em São Paulo para apresentar seu relatório da Grande Comissão, uma pesquisa exaustiva de tendências que afetam os esforços de missões em nível global. Antes do encontro, evangélicos debatiam nas mídias sociais se o evento se tornaria uma espécie de “funeral da TMI”.

A maioria dos preletores da conferência era jovem e tinha aderido ao movimento nos últimos anos. E ninguém sequer mencionou algo sobre “missão integral” no palco principal.

Essa realidade não escapou à observação dos líderes de longa data de Lausanne, cujos olhos estão voltados para o 50º aniversário da conferência inaugural. A data certamente será lembrada na conferência deste ano, que começa na próxima semana em Incheon, Coreia do Sul.

“Alguns de nós estão indo para Lausanne 4 com esta pergunta em mente: o que será da missão integral?”, disse Valdir Steuernagel, um dos nomes mais proeminentes do evangelicalismo brasileiro e consultor-executivo sênior do Movimento de Lausanne.

Embora a controvérsia sobre esse conceito possa ter se acirrado no Brasil, ela remonta a décadas.

Quando a missão integral foi inicialmente concebida, na década de 1970, tendo emergido do primeiro congresso de Lausanne, em 1974, alguns evangélicos expressaram preocupação sobre as implicações de um evangelho que abordava as necessidades materiais e espirituais das pessoas. Os evangélicos favoráveis ​​a Lausanne eram frequentemente acusados ​​de serem influenciados pelo pensamento marxista ou de estarem meramente adotando uma versão protestante da teologia da libertação.

Essas críticas se mantiveram ao longo do tempo. Em um vídeo de 2015, o reverendo Augustus Nicodemus, antigo líder de alto escalão da Igreja Presbiteriana do Brasil, descreveu a missão integral como “uma leitura corrompida ou, no mínimo, incompleta da realidade”. Com o tempo, a divisão sobre a teologia da missão integral surgiu também dentro da própria rede nacional do movimento de Lausanne.

E o crescente tribalismo dentro da política doméstica brasileira intensificou os conflitos.

Em abril de 2018, o pastor Ariovaldo Ramos compareceu a um comício político, no qual orou pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que na época estava no centro de uma crise política. Pouco depois disso, o líder de esquerda foi preso por acusações de corrupção.

No mesmo dia, Yago Martins, um YouTuber e podcaster influente na área da teologia, lamentou no Facebook a presença de Ramos nesse evento, aproveitando a situação para criticar a missão integral. Em suas palavras, essa teologia “é nada mais que missiologia marxista e esquerdismo teológico”.

Dezoito meses depois, Lula foi solto e voltou à presidência nas eleições de 2022. O impacto da presença de Ramos naquele evento de 2018, no entanto, continua a repercutir na igreja brasileira e no Movimento de Lausanne.

Ramos — ex-presidente da Visão Mundial no Brasil e fundador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, a qual se descreve como um movimento cristão que promove a justiça social e os direitos humanos — há tempos é um dos principais nomes da missão integral no Brasil. Aos olhos dos oponentes da missão integral, o apoio de Ramos a Lula foi visto como evidência de que essa teologia era um movimento político de esquerda, uma afirmação que Ramos rejeita.

“A teologia da missão integral não tinha compromisso partidário, em hipótese alguma”, disse ele. “Quando eu fui àquele evento, eu o fiz pelas minhas convicções como cidadão. E quando eu visitei o presidente Lula na cadeia, foi porque eu fui convidado para uma visita pastoral. Nenhum pastor pode negar uma visita a alguém que está preso.”

Nos anos seguintes, a polarização política piorou entre os evangélicos, exacerbada pelas contenciosas eleições presidenciais de 2018 e 2022. Críticos da direita observaram adeptos da missão integral defendendo abertamente um presidente (Lula) que estava sendo acusado de haver infringido a lei. Adeptos da esquerda perguntavam por que os evangélicos estavam apoiando um candidato (Jair Bolsonaro, eleito em 2018) que, na visão deles, fazia comentários misóginos e preconceituosos.

“Essa foi uma época muito difícil. Deixou feridas que ainda não foram curadas”, disse o líder de uma organização cristã de serviços sociais, que pediu para não ser identificado, a fim de não impedir a capacidade de seu grupo de colaborar com outros ministérios. “Pessoas excelentes, incluindo teólogos e missiologistas, deixaram de conversar uns com os outros e até trocaram acusações por causa de paixões políticas.”

Essa polarização teve consequências inacreditáveis.

 “Hoje, poucos são os pregadores que usam o termo missão integral. Podem até tratar do tema, mas não usam essas palavras para não serem cancelados, rotulados, excluídos,” disse Ramos.

Embora a força-tarefa da missão integral do movimento de Lausanne Brasil ainda exista, e a rede nacional de Lausanne não tenha sofrido nenhuma renúncia de membros de alta projeção, Ziel Machado, que participou do segundo encontro global de Lausanne, realizado em Manila, em 1989, e que atualmente atua como vice-chanceler do Seminário Servo de Cristo em São Paulo, reconhece que a situação política divisiva no Brasil minou uma comunidade que antes se caracterizava pela cooperação e pelo companheirismo.

“O nome ‘missão integral’ está manchado e agora faz parte do conflito”, disse ele. “Lausanne nos ensina a pensar em reconciliação. Mas não podemos aplicar esse princípio, se não lidamos com os nossos problemas. Precisamos entender quais são as áreas afetadas e quais são as reconciliações que precisam ser feitas.”

Cerca de um ano atrás, o diretor de Lausanne para a América Latina, Daniel Bianchi, perguntou se não era hora de aposentar o termo. “Neste momento, é necessário reconhecer que o termo ‘missão integral’ se tornou uma espécie de clichê e tem sido usado para muitas coisas, a ponto de quase perder seu significado”, escreveu Bianchi, que vive na Argentina e assumiu seu papel no movimento de Lausanne em 2017.

Fernando Costa, coordenador do comitê executivo do Lausanne Brasil e diretor-executivo do Centro Evangélico de Missões, disse que a missão integral enfraqueceu, após a morte de muitos de seus pioneiros, como Padilla e o porto-riquenho Orlando Costas. “Isso virou algo como um palavrão. Tudo o que não é muito saudável para a igreja é rotulado como missão integral”, disse Costa. “É injusto com a missão integral, mas ninguém vai meter a cara para defendê-la.”

Essas tensões em torno do conceito de missão integral e no âmbito de Lausanne ocorreram concomitantemente com o crescimento explosivo de evangélicos no país. De acordo com o censo de 1970, o Brasil tinha 4,8 milhões de evangélicos, o que representava 5,2% da população. Hoje, há 3,5 milhões de evangélicos apenas em São Paulo. No geral, 63 milhões de brasileiros, ou seja, 31% da população total, são evangélicos, de acordo com uma pesquisa do Datafolha.

A maioria deles são convertidos — apenas 7% dos evangélicos disseram ao Datafolha que frequentavam a igreja desde que nasceram. Em contraste com os evangélicos da década de 1970, esses recém-chegados estão se juntando a um movimento que desfruta de crescente influência na cultura pop e na política.

Muitos desses novos convertidos são pentecostais, os quais representam cerca de 65% dos evangélicos no país. Esses grupos foram sub-representados no Movimento de Lausanne, em parte porque não tinham seus próprios seminários ou faculdades, e, em vez disso, confiam em estruturas menos formais para treinar seus pastores e missionários ou usam para isso instituições operadas por outros grupos, como batistas, presbiterianos e luteranos. Essa carência de acadêmicos, por sua vez, significou que as posições pentecostais sobre teologia e missiologia ficaram menos visíveis.

De fato, a maior denominação evangélica do país, as Assembleias de Deus, era, até alguns anos atrás, avessa à erudição teológica e resistente a ambientes acadêmicos. Mais recentemente, muitos membros das Assembleias de Deus buscaram treinamento teológico. “Isso os aproximou de grupos como Lausanne”, disse Marcos Amado, que liderou o Movimento de Lausanne na América Latina de 2011 a 2016. Mas também criou o desafio de integrar um tipo diferente de tradição teológica em um ambiente de cooperação.

Muitos pentecostais compareceram ao evento da Grande Comissão de Lausanne, em junho. “O que eu vi foi uma galera jovem muito interessada em servir a Jesus. Querem fazer muita coisa, pôr nas redes sociais, transmitir para o maior número possível de pessoas”, disse Amado.

Costa disse que muitos líderes que estão fortemente envolvidos no trabalho missionário tinham conhecimento limitado da história de Lausanne. “Estamos trabalhando com essas pessoas que estão fazendo o movimento missionário brasileiro, para aproximá-las do conhecimento teórico-teológico da missão”, explicou. “Eles estão descobrindo o que é Lausanne no caminho.” Para fazer isso, eles contam com a orientação de um grupo de missiologistas experientes, que têm parceria com Lausanne há décadas — participantes mais velhos e experientes como Valdir Steuernagel, que compareceu ao evento global de Lausanne, em 1989, realizado em Manila.

Mas será que há alguma chance de restaurar a imagem da missão integral em Lausanne, no Brasil ou em qualquer outro lugar?

“A injúria que a teologia da missão integral sofreu só será tratada se houver arrependimento. Pode ser que venha.”, disse Ramos. “Eu acredito no poder do Espírito Santo para convencer as pessoas do pecado, da justiça e do juízo.”

Para Steuernagel, esse conflito faz parte do processo de amadurecimento do Movimento de Lausanne: “Sempre há tensão nesses encontros. Se tirar a tensão, acho que você também mata o espírito de Lausanne.”

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Theology

Sim, o carisma importa, mas não é tudo

Não se pode confundir a capacidade de cativar pessoas com o chamado.

Christianity Today September 20, 2024
Ilustração de Tim McDonagh

O carisma tem passado por momentos difíceis na igreja. Ou alguns de nós, ao menos, começaram a olhá-lo com suspeita. As rachaduras em sua superfície já são visíveis há algum tempo. Nove anos atrás, muito antes de a Oxford University Press [Imprensa da Universidade de Oxford] coroar o termo rizz (uma gíria para designar o tipo de carisma que inspira a atração romântica) como sua palavra do ano, em 2023, Rick Warren observou: “Carisma não tem absolutamente nada a ver com liderança”.

Mas todos nós sabemos que tem, sim, não é mesmo?

Gostamos de líderes com personalidades dinâmicas. Somos atraídos por eles, na igreja e na política. Para o bem ou para o mal, o carisma é levado em consideração. O líder carismático é uma característica em comum nas histórias de como nasceram muitas organizações e denominações cristãs (e não cristãs). Muitos movimentos têm seus primórdios ligados a uma grande figura humana com uma grande ambição por Deus, e cuja eficácia parece dever-se tanto à sua personalidade quanto ao chamado de Deus.

Por exemplo, a Escritura diz que Saul, o primeiro rei de Israel, era um “jovem de boa aparência, sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros.” (1Samuel 9.2). A impressão causada pela aparência física de Saul sugeria que ele seria um rei ideal.

A experiência subsequente provou o contrário. Quando o profeta Samuel procurou o sucessor de Saul entre os filhos de Jessé, o Senhor o alertou para não se deixar levar por tais coisas. “O Senhor não vê como o homem”, ele disse. “O homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Samuel 16.7).

No entanto, quando Davi foi trazido diante dele, o texto de 1Samuel 16.12 observa que ele era “corado de saúde e tinha uma bela aparência e belas feições” (NIV).

O carisma, assim como a beleza, está nos olhos de quem vê. Portanto, há uma dimensão cultural no carisma. Uma razão pela qual 1Samuel enfatizou a aparência física de Saul e Davi é porque o rei também era um guerreiro. As pessoas viam o rei como um libertador (1Samuel 8.19-20). A altura de Saul e a aparência saudável de Davi contribuíram para suas proezas na batalha e fizeram com que eles parecessem ser da realeza.

No entanto, as Escrituras são claras: qualquer sucesso que eles tiveram foi devido a mais do que seus dons naturais. Foi, em última análise, em função do carisma no mais verdadeiro sentido teológico. Eles tiveram sucesso porque o Espírito Santo veio sobre eles em poder (1Samuel 10.10; 11.6; 16.13).

E então, ambos pecaram, de forma bastante notória. Falhas semelhantes de líderes carismáticos de hoje foram parar nas manchetes dos jornais e se tornaram fonte de suprimento para podcasts e documentários. Suas histórias são um lembrete contundente de que, às vezes, o carisma, assim como a beleza, é algo apenas superficial.

Mas a trajetória familiar de suas histórias também prova que o carisma confere à pessoa uma espécie de poder, quer queiramos, quer não. Só não temos certeza de qual tipo de poder. É uma autoridade que vem de Deus? Ou é meramente uma obra da carne?

Líderes carismáticos têm marcado presença ao longo da história. Mas o ideal do líder carismático ganhou evidência pelas mãos de Max Weber, sociólogo do século 20.

Baseando-se na ideia bíblica de liderança como um dom de Deus (Romanos 12.8), Weber definiu carisma como “certa qualidade da personalidade do indivíduo, em virtude da qual ele é separado dos homens comuns e tratado como alguém dotado de poderes ou de qualidades sobrenaturais, super-humanos ou, ao menos, especificamente excepcionais”. Para Weber, a essência do carisma era a personalidade forte do líder, que compelia os outros a segui-lo.

Uma personalidade forte, no entanto, não era a única coisa que tornava esses líderes carismáticos, de acordo com Weber. O carisma é resultante de uma porção de características, entre elas, a santidade de caráter. Pela definição de Weber, a combinação que compõe o carisma é rara.

Se por uma definição sociológica o carisma é “poder por meio da personalidade”, o conceito bíblico de carisma situa o poder em outro lugar. Carisma, segundo as Escrituras sugerem, é o poder do Espírito Santo concedido pela graça de Cristo. Esse poder dado por Deus é exibido por meio da personalidade (e, algumas vezes, apesar dela). Por essa definição bíblica, a personalidade é um meio através do qual o poder de Deus é exibido, não é a fonte desse poder.

Nesse aspecto, toda liderança é carismática porque liderança é um dom de Deus (a etimologia do termo carisma denota um dom de Deus). A capacidade de exercer liderança não só é um dom concedido a certos indivíduos, mas os indivíduos em si são dons dados à igreja (Efésios 4.7-13).

Esse carisma espiritual não é apenas para um punhado de pessoas na igreja. Deus dá o Espírito “a cada um […] visando ao bem comum” (1Coríntios 12.7). Sim, a igreja tem líderes, mas sua saúde e seu êxito não dependem somente deles.

Os líderes da igreja — aqueles que exercem dons espirituais em seu meio, bem como aqueles que desempenham as funções e tarefas necessárias que capacitam a igreja a cumprir sua missão — todos contribuem para a liderança carismática do Espírito Santo sobre a igreja.

O fracasso público de muitos líderes dinâmicos é um lembrete do perigo de confiarmos demais em qualquer indivíduo que seja — incluindo nós mesmos.

Quando o sogro de Moisés, Jetro, viu seu genro cercado pelo povo, enquanto julgava seus litígios de manhã até a noite, ele rapidamente percebeu a insanidade daquele modelo de liderança. “O que você está fazendo não é bom”, disse Jetro.

“Você e o seu povo ficarão esgotados, pois esta tarefa lhe é pesada demais. Você não pode executá-la sozinho” (Êxodo 18.17-18). A solução de Jetro foi distribuir a carga, compartilhando a responsabilidade de julgamento com outros.

Deus parece ter confirmado o conselho de Jetro com uma dispersão semelhante do Espírito Santo, quando tomou “parte do poder do Espírito” que estava sobre Moisés e o colocou sobre os anciãos de Israel (Números 11.17).

Essa ação não apenas antecipou o fardo compartilhado da liderança que encontramos na igreja do Novo Testamento; ela também prenunciou o derramamento mais amplo do Espírito, no Dia do Pentecostes. Nem todos na igreja são chamados a ser um líder. Mas todos recebemos o dom do Espírito que habita em nós (Romanos 8.9).

Se o poder de liderar é, em última análise, atribuído ao Espírito Santo, qual é, então, o papel da personalidade? Ela é um trunfo ou um estorvo?

Uma visão comum afirma que o melhor estilo de liderança é aquele em que a personalidade desaparece. Como escrevi no Preaching Today, ouvimos ecos dessa ressalva em uma oração que já ouvi muitas vezes ser proferida antes de um sermão. É mais ou menos assim: “Que minhas palavras sejam esquecidas, para que somente o que vem de ti seja lembrado.” Orações como essa são bem-intencionadas, mas não percebem o mais importante, sobretudo porque dificilmente precisamos de um ato de Deus para esquecermos o que um pregador diz.

Em uma série de palestras proferidas para alunos em Yale, Phillips Brooks, o mestre do púlpito do século 19, definiu a pregação como a comunicação da “verdade por meio da personalidade”. Brooks entendia a personalidade como algo mais do que estilo pessoal. Ela inclui o caráter, as afeições, o intelecto e o ser moral do pregador. É uma questão de Deus trabalhando por meio da pessoa inteira.

A liderança é mediada da mesma forma. As qualificações para a liderança, descritas em 1Timóteo 3 e em Tito 1, concentram-se mais no tipo de pessoa que está sendo considerada do que nas tarefas que esta deve desempenhar.

A personalidade importa na liderança. Um estudo sobre as maiores igrejas dos Estados Unidos, feito por Warren Bird e Scott Thumma, afirma que, “em geral, os pastores de megaigrejas são servos de longa data de suas igrejas” — e não os abusadores ou criminosos que manchetes atuais nos condicionaram a observar. “Tendo um propósito claro e vivendo essa missão, eles mantêm o foco da igreja na vitalidade espiritual.”

A maioria dessas igrejas experimentou um crescimento significativo por meio do ministério de um pastor carismático, que serviu a igreja por uma média de 22 anos.

Outras pesquisas sugerem que certos fatores da personalidade — capacidade de inspirar, assertividade e amabilidade — aprimoram o trabalho de plantação de igrejas.

Deus trabalha por meio da natureza das pessoas, assim como trabalha por meio dos processos naturais. Ele pode enviar pão do céu, mas fornece comida principalmente através do plantio e do cultivo. Ele pode curar instantaneamente através de um milagre, mas com mais frequência ele cura através do tratamento de médicos e remédios. Cristo proveu a igreja de personalidades com dons, as quais ensinam, lideram e administram, e esta é a maneira como ele habitualmente trabalha.

No entanto, não se pode negar que o carisma pessoal pode ser uma desvantagem assim como uma vantagem. Um estudo de 2018 mostrou que quanto mais carisma os líderes possuem, mais são vistos como eficientes por seus seguidores. Mas isso só é verdade até certo ponto. A dificuldade está em determinar a partir de que ponto o carisma passa a ser excessivo.

Como os líderes podem saber quando passaram da autoconfiança para o excesso de confiança? Infelizmente, essa parece ser uma lição que geralmente se aprende por meio de fracassos.

Personalidades carismáticas podem ser egoístas e narcisistas. No entanto, nenhuma igreja que procura um pastor diz: “Vamos contratar um idiota presunçoso!” Da mesma forma, ninguém procura uma igreja pensando: Onde posso encontrar um pastor abusivo hoje? Somos atraídos por líderes narcisistas porque eles são atraentes.

Líderes narcisistas têm presença. Eles são entusiasmantes. Eles prometem grandes coisas. Muitos produzem resultados impressionantes, ao menos por um tempo. Igrejas que esperam ter um líder messiânico podem achar atrativo esse estilo narcisista que frequentemente acompanha a liderança carismática. E toleram abuso, na esperança de que o pastor os guie até a terra prometida do sucesso ministerial.

Como acontece em todo relacionamento de codependência, este também é construído sobre um sistema disfuncional de recompensas. As congregações permitem o comportamento narcisista porque recebem algo em troca dos líderes. Talvez seja a descarga de adrenalina de uma personalidade inflada, expressada por meio da pregação. Frequentemente, é uma habilidade de atrair multidões.

Igrejas que toleram abusos de líderes narcisistas geralmente temem que ninguém mais consiga produzir resultados semelhantes. Ou demonstram a preocupação de que a saída do pastor possa prejudicar a frequência dos membros. Quanto maior a igreja, mais difícil pode ser se libertar [dessa codependência], porque parece haver muita coisa em jogo. Esses líderes frequentemente também acabam por desenvolver sistemas sociais que reforçam o abuso.

Os narcisistas se cercam de pessoas que os fazem se sentir especiais. Esse círculo interno sente uma emoção vicária por se associar ao líder. Essa associação geralmente vem com privilégios ou tratamento especial, mesmo que tudo isso seja apenas o acesso a alguém que é tido como uma celebridade. O resultado é um ciclo de codependência que cega aqueles que deveriam responsabilizar o narcisista, levando-os a serem cúmplices do abuso.

Os líderes narcisistas geralmente são intimidadores. Desenvolvem culturas organizacionais marcadas por medo e punição. Eles usam o poder de sua posição espiritual para calar qualquer um que os desafie. Criam uma cultura que silencia objeções e penaliza opositores.

Sempre há um preço a pagar para aqueles que desafiam os líderes narcisistas. Membros da igreja que questionam suas agendas ou suas práticas são acusados ​​de serem divisivos e minar o plano de Deus. Em uma aplicação distorcida de 1Samuel 26.9 e 11, alguns alertam aqueles que criticam o pastor para não “levantar a mão contra o ungido do Senhor”. Ameaças e retaliações são explicadas como “disciplina da igreja”.

Weber descreveu o processo desta forma: “As pessoas escolhem um líder em quem confiam. Então, o líder escolhido diz: ‘Agora, calem a boca e me obedeçam.’” Essa abordagem soa incomodamente parecida com a filosofia de muitos líderes de igreja famosos, cujas personalidades fortes os tornaram proeminentes, mas cujo estilo intimidador posteriormente os levou à desgraça.

Onde, então, devemos procurar, para encontrarmos a personalidade ideal de liderança? Esta parece uma daquelas perguntas da escola dominical cuja resposta é sempre “Jesus”. Embora a Bíblia descreva padrões de caráter para líderes da igreja, nela não encontramos um único tipo de personalidade sequer que seja considerado o ideal, quer seja nos exemplos de sua narrativa, quer seja em comandos explícitos.

As representações bíblicas de grandes líderes (ainda que evidentemente falhos, imperfeitos) oferecem um retrato bastante variado. Moisés não é como Davi, que, por sua vez, não é como Paulo. Não se tem a sensação de que o Espírito molda aqueles que Deus usa como líderes segundo um único tipo de personalidade. Extrovertidos, introvertidos, planejadores detalhistas, pessoas que reagem de forma mais intuitiva, personalidades dinâmicas e tipos retraídos, todos parecem ter seu lugar.

De forma semelhante, a escolha dos apóstolos por Jesus dificilmente revela um único tipo apostólico. Tomados em conjunto, seus discípulos parecem um grupo improvável, proveniente de origens radicalmente diferentes, com valores e ideais conflitantes — exceto, talvez, por uma propensão comum de não perceber o que de fato importava. Eles eram pescadores, zelotes, separatistas e colaboradores do governo romano. Isso desmente a uniformidade que frequentemente vemos em perfis que descrevem a personalidade de liderança ideal.

Mesmo que exista um perfil de personalidade comum para líderes carismáticos, a maioria dos líderes na Bíblia não se enquadra nessa categoria.

Considere Paulo e Apolo. Hoje, conhecemos muito melhor o trabalho de Paulo do que o de Apolo. Mas, quando ambos estavam vivos, o poder de celebridade parece ter estado do lado de Apolo. Por todos os relatos, deduzimos ele tinha carisma. Natural da grande cidade de Alexandria, Apolo era um “homem culto e tinha profundo conhecimento das Escrituras”, bem como alguém que “falava com grande fervor” (Atos 18.24-25). Essas características renderam a Apolo seguidores na igreja de Corinto (1Coríntios 3.4).

Paulo também tinha seguidores em Corinto. Mas, para alguns daquela igreja, o carisma de Paulo estava limitado às suas cartas. De acordo com 2Coríntios 10.10, eles reclamavam: “Suas cartas são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona e a sua palavra é desprezível.”

Aqueles que são chamados para uma mesma tarefa podem não executá-la da mesma maneira. Os exemplos de líderes como Moisés, Pedro e Paulo indicam que Deus prepara as personalidades distintas dos líderes para as tarefas às quais são chamados. Estou convencido de que essa preparação inclui os pontos fracos e também os pontos fortes. Deus chama os tolos, os fracos, os impetuosos e os tímidos (1Coríntios 1.26-29).

A liderança bem-sucedida depende do carisma em seu sentido bíblico e mais amplo da palavra. É um dom que Deus concede por meio de seu Espírito. As habilidades de liderança, assim como os próprios líderes, são hoje dados por Deus, assim como eram na Bíblia. Eles são tão diversificados em termos de personalidade quanto quaisquer dos líderes sobre os quais lemos na Bíblia, e igualmente imperfeitos.

Provavelmente preferiríamos ter somente Jesus como nosso líder. Minha impressão é que ansiamos por um movimento cujo único ímpeto venha do Espírito, em vez de vir em resposta à personalidade de alguém.

Tal coisa certamente é possível, mas não é a norma. Na maioria das vezes, Deus trabalha por meio de pessoas. Onde há pessoas, a personalidade é sempre um fator. O Verbo que “não abominou o ventre da Virgem”, como declara o antigo hino, não hesita em se revelar por meio da personalidade de seus servos.

O fracasso espetacular de tantos líderes de alto nível deveria fazer nós, cristãos, sermos cautelosos em dar muito crédito à personalidade de qualquer indivíduo. Na igreja não há espaço para cultos à personalidade. Há apenas um Messias para o povo de Deus, e seu nome é Jesus.

Mas isso não deveria nos deixar com medo da personalidade em si. A personalidade das pessoas pode ser distorcida pelo pecado, mas também é o principal meio que Deus usa para refletir sua imagem em nossas vidas. A personalidade não é uma desvantagem na liderança. Ela é o rosto da alma.

John Koessler é escritor, podcaster e professor emérito aposentado do Moody Bible Institute [Instituto Bíblico Moody]. Seu livro mais recente, When God Is Silent [Quando Deus está em silêncio], foi publicado pela Lexham Press.

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Church Life

Uma nova arquitetura para igrejas chinesas: além dos muros

Em uma China em rápida urbanização, algumas congregações veem na arquitetura a oportunidade de falar sobre o evangelho e a tradição local.

Shikai / INUCE

O átrio da Igreja Julong.

Christianity Today September 17, 2024

Uma torre de sinos em forma de pergaminho. Um átrio imponente em formato de arca. Um órgão de tubos que remete às igrejas metodistas da América do Norte do século 19.

Esses são alguns dos elementos mais marcantes nas igrejas do Movimento Patriótico das Três Autonomias, que o arquiteto germano-brasileiro Dirk U. Moench projetou na China. Moench, que é luterano, fundou o escritório de design INUCE em 2011, com sedes em Fuzhou, na China, e Münsterlingen, na Suíça, onde atualmente reside.

Moench projetou quatro igrejas na China. Duas igrejas, uma em Fuzhou e outra em Luoyuan, foram concluídas em 2018 e 2021, respectivamente, enquanto uma em Julong foi finalizada neste ano. Outro projeto em andamento em Jinshan atraiu atenção nacional e recebeu dezenas de milhares de curtidas em plataformas de mídia social, como Weibo e Xiaohongshu [que significa Pequeno Livro Vermelho], segundo Moench.

A CT entrevistou Moench para discutir sobre como o design de igrejas na China se conecta com os princípios arquitetônicos ocidentais e como a estrutura física de uma igreja pode interagir e participar do rápido desenvolvimento urbano do país.

Quando você foi convidado para projetar uma igreja no distrito de Jinshan, em Fuzhou, autoridades e políticos chineses disseram que queriam “uma igreja moderna para uma China moderna”. Como você interpretou isso?

Em muitos sentidos, essa é uma frase política. Você precisa dar-lhe significado como arquiteto e como cristão. Os arquitetos gostam de se referir ao termo em latim genius loci, ou o “espírito do lugar”, no sentido de que um edifício é uma reação ao respectivo ambiente construído imediato, como edifícios históricos, estradas específicas, características da paisagem e também a tradição arquitetônica — a percepção filtrada e amplificada de um arquiteto sobre a essência de um lugar.

Desde as reformas empreendidas pelo líder comunista chinês Deng Xiaoping, em 1979, o país foi transformado, e as cidades de hoje não têm muitas tradições como lugar. Construídos ao longo de vias modernas, temos edifícios modernos, como empreendimentos residenciais, escritórios, fábricas, e assim por diante. Não há um “espírito do lugar”, por assim dizer, ao qual você possa reagir.

Mas o que sempre foi muito importante para mim é entender o espírito de uma comunidade, o espírito da congregação individual. Aprendi que os cristãos chineses estão se fazendo grandes perguntas: Como esse novo edifício vai expressar quem somos? Como ele vai se relacionar com este lugar e atender às nossas necessidades?

As tradições arquitetônicas chinesa e ocidental muitas vezes dialogam entre si nos meus projetos, e eu procuro criar uma síntese artística entre elas. Isso não ocorre em escala universal, mas em termos mais específicos, como: Qual é o ambiente físico em que essa igreja vai crescer? Quais são as preocupações da comunidade local? Quais são os interesses que eles têm em elementos europeus e ocidentais do cristianismo, se é que têm?

Alguns anos atrás, autoridades removeram cruzes de prédios de igrejas na China. Como as igrejas que você projetou incorporam a cruz?

A China é um país vasto, praticamente um continente. É difícil dizer que o que acontece em uma área ocorrerá em outra parte do país. A cultura local, a política religiosa e a relação entre as igrejas cristãs e o Bureau Religioso [secretaria governamental para assuntos religiosos] podem variar muito de um lugar para outro.

Ouvi dizer que existem regiões onde a relação entre as autoridades e as congregações cristãs é mais difícil. Mas nunca precisei considerar ou comprometer minhas atividades artísticas e arquitetônicas.

As cruzes que projetei envolvem considerações estéticas e situacionais. Por exemplo, a cruz da igreja de Jinshan tem 70 metros de altura e parece uma simples cruz de proporções clássicas. A surpresa para os cristãos chineses está em sua cor.

Quase todas as igrejas protestantes de hoje têm uma cruz vermelha no topo da torre — geralmente bem robusta e feita de plástico para ser iluminada à noite. Para os ocidentais, essa imagem pode remeter à Cruz Vermelha ou a placas de hospitais. Então, optei por não usar essa cor nem a iluminação com neon; no meu projeto, propus que a cruz fosse branca para complementar a pureza do edifício da igreja abaixo dela.

Dirk U. Moench
Dirk U. Moench

Quais foram alguns dos princípios arquitetônicos orientais e ocidentais que influenciaram as igrejas que você projetou?

Uma das grandes ideias que tento transmitir é a noção bastante europeia de que a igreja é uma peça da infraestrutura pública. Ela faz parte da cidade, e está lá para servi-la tanto do ponto de vista visual quanto espacial e funcional. Embora o cristianismo seja uma religião minoritária na China, o edifício de uma igreja ainda pode ser admirado por um público mais amplo. Essa ideia foi muito bem recebida pelas congregações locais.

No Ocidente, pensamos em belos telhados curvos como um ícone da arquitetura chinesa. Mas o que é mais genuíno e central para a ideia de organização espacial na China é o muro.

Tradicionalmente, a cidade chinesa é composta por casas com pátios, que são totalmente cercadas por um muro. Há um portão principal, geralmente no centro da faceta sul do muro, que possui características decorativas e um pequeno telhado individual, cuja função é representar essa unidade, essa casa, essa família, para o mundo exterior. O muro não é [colocado por] uma questão de segurança; é uma tradição milenar.

Quando os missionários que vieram para a China começaram a construir igrejas lá, muitas vezes adquiriam terrenos no meio de uma cidade chinesa, onde antes ficava uma casa com pátio. Então, a ideia de um muro ou de um tapume ao redor de uma igreja “ocidental” não é completamente estranha, e esse princípio foi mantido.

Por isso, as primeiras igrejas contemporâneas que temos na China estão todas atrás de muros e também têm portões. A lógica espacial é bem chinesa, enquanto a igreja em si é mais inspirada no Ocidente.

Hoje quero desafiar isso, porque as comunidades cristãs chinesas com as quais conversei não se veem mais como uma minoria que precisa de proteção. Elas se veem como um elemento vital da sociedade, capaz de contribuir e ajudar a construir uma cidade melhor, não apenas por meio de obras de caridade, mas também fazendo parte da vida pública e urbana.

Como você traduziu para a realidade essa nova compreensão da comunidade cristã?

A igreja Hua Xiang, em Fuzhou, é um exemplo. As pessoas a chamam de “a igreja rosa” de Fuzhou. Ela está cercada por arranha-céus e shoppings, e fica ao lado de uma antiga igreja construída por missionários metodistas, na década de 1930.

Entrada principal da Igreja Hua Xiang.
Entrada principal da Igreja Hua Xiang.

Eu não fui o primeiro arquiteto que a comunidade consultou para este projeto. Já havia vários designs — uma igreja gótica com duas torres de pináculo e outra com um visual mais de basílica românica. A congregação não ficou muito satisfeita com essas ideias, porque pareciam “perdidas” e não tinham uma relação harmoniosa com a cidade. Ao mesmo tempo, eles se perguntavam sobre sua missão e se o novo edifício deveria atender aos membros mais antigos ou atrair os jovens. O que eu disse foi que a resposta não é uma coisa ou outra; é ambas as coisas. Para atrair os jovens, você precisa dar a eles um senso de profundidade histórica. Eles precisam conhecer a fundação sobre a qual estão construindo.

Tivemos que abandonar a ideia de um ideal de igreja inspirado na Europa, como uma igreja em formato de cruz com uma torre, e, em vez disso, buscar inspiração na situação heterogênea e caótica da cidade. Talvez essa nova igreja pudesse ajudar a criar relações positivas com o horizonte da cidade ou estar em continuidade com a temática do telhado inclinado, característico da arquitetura chinesa.

Em vez de muros altos e portões de entrada formais, como na arquitetura tradicional chinesa, instalamos barreiras retráteis nos pontos de acesso à igreja, que são quase invisíveis e permanecem abertas até tarde da noite. Há bastante área verde proporcionando sombra e assentos ao ar livre para fiéis e turistas.

Seus outros projetos de igreja também se inspiram no ambiente ao redor. Por que isso é importante para você, como cristão e como arquiteto?

Nas cidades chinesas, você vê lojas abrindo e fechando, fachadas sendo redecoradas para parecerem mais sofisticadas, mais chamativas e mais atraentes do que as dos vizinhos. Mas o design de uma igreja é mais atemporal e estável. É um mediador arquitetônico que pode ajudar a harmonizar desequilíbrios no ambiente construído ou trazer a beleza do lugar à tona.

Dessa forma, um edifício de igreja tem uma relação dialética com seu ambiente: ele se destaca e se integra.

Por exemplo, Julong é uma cidade recém-criada que fica nos arredores de Quanzhou, uma cidade portuária na província sulista de Fujian. As pessoas que moram lá vieram de toda parte do país. Transformar a igreja de Julong em uma arca ou um refúgio, inspirada na ideia de Pedro como a rocha sobre a qual Jesus construirá sua igreja (Mateus 16.18), envia uma mensagem de estabilidade em meio às tormentas de um mundo em [constante] mudança.

Sua localização ao pé da montanha de Julong também permite não só que as pessoas contemplem a beleza da natureza; é uma referência visual ao Sermão do Monte, no qual Jesus subiu em um monte para pregar e ensinar.

Você acha que a beleza arquitetônica das igrejas contribui para práticas espirituais como o culto ou a oração? Ou é uma distração?

Essa é a velha questão protestante: A beleza formal inspira e aproxima a pessoa de Deus ou a distrai? Essa questão precisa ser respondida pela congregação. Como arquiteto, você não pode criar um lugar de culto que se adeque às suas inclinações ou crenças pessoais. Você tem que ouvir o que a comunidade deseja.

O interior da igreja Hua Xiang é um espaço branco muito simples, com galerias superiores levemente onduladas, um teto plano e um número reduzido de luminárias. É uma concepção muito clássica, quase reformada, de como um espaço litúrgico deve ser.

Mas um grande órgão de tubos, popular nas igrejas norte-americanas na segunda metade do século 19, funciona como o principal elemento do palco. Esse foi um desejo da própria congregação, que queria um elemento que desse continuidade à sua herança metodista.

Esse órgão de tubos inspira o sermão ou inspira a oração? Eu não sei. Mas acredito que a música que ele cria restabelece laços com as formas cristãs de convivência. A igreja aprecia o fato de se sentir mais próxima de sua própria tradição por meio dele.

Há algo que você espera que as pessoas que visitam essas igrejas aprendam sobre Deus e sobre o cristianismo chinês?

Como arquiteto, não me imponho no que diz respeito ao que as pessoas devem pensar sobre Deus. Não estou aqui para proteger uma compreensão específica ou única de Deus. Eu planejo e projeto a igreja física, mas a verdadeira igreja são as pessoas dentro dela, os pastores e os irmãos e as irmãs que pregam, projetam e ensinam o cristianismo.

Se eles acham que minha arquitetura os ajuda a fazer tudo isso, então, fico feliz. Não acho que seja apropriado eu pensar algo que vá além disso.

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