N.T. Wright: O que Jesus diria aos poderosos hoje?

Como seu novo livro, escrito em coautoria com Michael F. Bird, chama os cristãos a atuarem na esfera política.

Christianity Today August 20, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Wikimedia Commons

Em um ano em que mais de 50 países estão indo às urnas — e em que metade dessas votações podem alterar significativamente a geopolítica — o lançamento de Jesus and the Powers [Jesus e os poderes] não foi mero acaso.

Há alguns anos, N. T. Wright (autor de Surprised by Hope [Surpreendido pela esperança]) e Michael F. Bird (autor de Jesus Among the Gods [Jesus entre os deuses]) — que já haviam trabalhado em colaboração na obra The New Testament in Its World [O Novo Testamento em seu próprio mundo] — perceberam que faltava para os cristãos uma orientação bíblica clara sobre como devem se engajar na política, e decidiram fazer algo a respeito.

“Nós dois tínhamos a sensação de que não foi de fato ensinada uma visão cristã da política para a maioria dos cristãos hoje em dia”, disse Wright. “Até o século 18, havia muito pensamento político cristão, algo que ignoramos nos últimos 200 a 300 anos — e é hora de trazermos isso de volta.”

A “porta de entrada” para a teologia política, segundo Wright, é a ideia de que, até a volta de Cristo, “Deus quer que os seres humanos estejam no comando”. E embora, de acordo com as Escrituras, todos os poderes políticos tenham de certo modo sido “ordenados por Deus”, ele afirma que os cristãos são chamados a “assumir a liderança” em cobrar e responsabilizar aqueles que estão no poder.

“A igreja foi projetada para ser o modelo funcional em pequena escala da nova criação, para apresentar ao mundo um símbolo — um sinal eficaz do que Deus prometeu fazer pelo mundo. Assim, a igreja deve encorajar o mundo a dizer: ‘Olha, é assim que a comunidade humana deve ser. É assim que se faz.’”

E, à medida que a igreja global se torna “uma comunidade que adora o único Deus e pratica a justiça e a misericórdia no mundo”, isso é um “sinal para os césares do mundo de que Jesus é o Senhor, e não eles” e um “sinal para os principados e potestades de que esta é a maneira [correta] de ser humano”.

Em uma entrevista à Christianity Today, Wright discute questões como a necessidade de mais colaboração teológica em torno das questões políticas; a escatologia distorcida por trás da abdicação da esfera política por parte dos cristãos; e como a igreja global deve se engajar com as várias formas de império que estão à solta no mundo hoje.

No outono passado, na conferência da Evangelical Theological Society (ETS, Sociedade Teológica Evangélica), ouvi de algumas pessoas que não há muitos estudiosos trabalhando com teologia política no momento. Você concorda com isso?

Sim, deixe-me dar um exemplo. Quando a situação na Ucrânia surgiu, há dois anos, escrevi para dois ou três pensadores cristãos importantes nos EUA e disse: “Ok, pessoal, vocês trabalham nessa área mais do que eu. O que devemos pensar sobre isso? Se pudéssemos falar com o presidente Volodymyr Zelensky, ou quem sabe até mesmo com Vladimir Putin, o que deveríamos dizer a eles?” Pelas respostas deles ficou bastante claro que há muita cautela — que essa é uma área extremamente difícil, e não temos certeza de como abordar essas questões.

Acho que isso reflete o fato de que, mesmo entre aqueles que escreveram livros sobre teologia política, quando ocorre uma crise, não estou certo de que algum de nós tenha um roteiro claro sobre como abordar a situação. Meu ponto é que nossa reflexão sobre esses temas e a iniciativa de estruturar a política com sabedoria ainda são questões embrionárias.

Foi dito a muitos cristãos, com todas as letras, que a política é um jogo sujo. Deixamos a política para os políticos e assistentes sociais, enquanto ensinamos as pessoas a orar e a ir para o céu — e uma coisa nunca se mistura com a outra. Acho que chegamos ao ponto em que a maioria dos cristãos percebe que essa separação simplesmente não reflete a Bíblia em geral nem o testemunho cristão. Especialmente quando você começa a pensar no que Jesus quis dizer com o reino de Deus “assim na terra como no céu”.

No final do Evangelho de Mateus, quando Jesus diz “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra”, o que isso nos faz pensar sobre a autoridade de Jesus na terra? Parece, no Novo Testamento, que Jesus está delegando tarefas por meio do Espírito Santo à igreja. Não que a igreja deva governar o mundo, mas ela tem o papel vital de dizer a verdade para quem está no poder — de segurar um espelho para que os poderosos se vejam, e de ser um modelo de como a nova criação de Deus deve ser.

Em sua introdução, você mencionou que obras anteriores suas e de Mike inspiraram parcialmente este livro. Mas eu gostaria de saber se você poderia falar mais sobre os fundamentos bíblicos ou teológicos dessa obra.

Uma das coisas que realmente tem chamado a minha atenção nas últimas duas décadas é o papel dos seres humanos dentro da boa criação de Deus. A ideia em Gênesis 1 da criação dos seres humanos à imagem de Deus significa que Deus está comprometido em trabalhar no mundo através dos seres humanos.

Na teologia ocidental, muitas vezes lemos Gênesis 1–2 como se Deus estivesse preparando os seres humanos para passarem por um teste moral, no qual eles falham. Isso coloca toda a história no caminho errado, quando, em vez disso, a questão é: como Deus governará sabiamente o seu mundo através de seres humanos obedientes e sensíveis a ele, se estes erraram e estão adorando ídolos? A resposta é que ele os resgatou de sua idolatria, para que eles possam governar o mundo como seus vice-regentes, da maneira que Deus deseja.

Para mim, João 19 é um dos textos-chave que me chamou a atenção, quando comecei a trabalhar nesse livro. Nessa passagem, Jesus diz a Pôncio Pilatos: “Não terias nenhuma autoridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima”. Com isso, Jesus reconhece que esse governador romano de segunda categoria tem uma autoridade que lhe foi dada por Deus.

Em outras palavras, sim, os governantes têm uma autoridade dada por Deus, e Deus os responsabilizará pelo que fazem com ela. […] Tanto a igreja primitiva como os judeus achavam que era sua responsabilidade criticar os governantes. É como vemos no testemunho profético de João Batista dizendo a Herodes “Você está pisando fora de linha nisso aqui”, ou no próprio Jesus dizendo aos governantes e autoridades quando estavam errando.

Engajamento cristão fiel na política não é dizer aos líderes políticos: “Vocês não têm autoridade dada por Deus”. É dizer: “Vamos ser seus críticos no que diz respeito a como vocês estão usando essa autoridade que lhes foi dada por Deus”. Suspeito que a maioria das pessoas na maioria das igrejas no mundo ocidental — para não dizer em qualquer outro lugar — nunca sequer começou a conceber a questão dessa forma. Mas, até que o façamos, não entenderemos qual deve ser a responsabilidade da igreja.

Como os cristãos devem cobrar que o governo preste contas e devem garantir que os servidores públicos usem seus poderes de maneira responsável? E como você enxerga isso acontecendo em uma sociedade pluralista, onde as pessoas têm diferentes visões religiosas e podem ter padrões diferentes de justiça?

Leia, por exemplo, o Salmo 72 — ao qual volto repetidamente, o grande salmo messiânico. Algumas pessoas criticam os “salmos reais” porque “estão a serviço do império”. Mas, na verdade, se você olhar para o Salmo 72, ele diz: “Senhor, concede a tua justiça ao rei, para que ele cuide das viúvas, dos órfãos e dos estrangeiros,” etc., e esse pedido se repete várias vezes. No final, diz: “E assim a terra, toda a terra se encherá da tua glória”. É assim que Deus quer ser glorificado.

Há algo que poderíamos chamar de uma espécie de teologia natural da ética global. A maioria das tradições diria que cuidar dos fracos e vulneráveis parece uma boa ideia. Mas, infelizmente, interesses pessoais entram em jogo, porque, se esses fracos e vulneráveis forem migrantes que estão entrando no seu país, e você não quiser mais pessoas no seu país, então, diz: “Não, mande-os embora, eles que vão para outro lugar!” Contudo, também precisamos de políticas sábias e bem pensadas sobre migração, pois nem todos os países conseguem dar suporte aos milhares de pessoas que querem viver lá.

A igreja precisa treinar as pessoas para pensarem de maneira sábia sobre todas essas questões relevantes. Não devemos deixar isso apenas para economistas profissionais — ou, pelo menos, precisamos de economistas profissionais cristãos. Precisamos de cristãos que analisem questões de desenvolvimento, migração ou os enormes desafios que enfrentamos globalmente e que aconselhem a igreja de forma sábia, para que a igreja possa falar com verdade. Não apenas em frases de efeito, como estou fazendo agora, é claro, mas com profundidade e autoridade reais sobre questões sérias.

O que você diria aos cristãos que pensam “Bem, este mundo vai de mal a pior mesmo” — e àqueles que não se envolvem no governo porque acham que “a igreja é separada — é uma fortaleza afastada do mundo”?

Certo, isso é muito interessante. A transição ocorreu no início do século 18. Tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, havia quase um triunfalismo no sentido de que “Agora estamos dominando o mundo, e o evangelho vai governar” — e coisas como O Messias de Handel, “Ele reinará para sempre e sempre” —, o que soava maravilhoso na década de 1740. Mas, curiosamente, na década de 1790, algo mudou, e o epicurismo venceu — a Revolução Francesa aconteceu, as pessoas ficaram assustadas e se perguntando o que estava acontecendo.

Acredito que isso remonta ao Iluminismo, onde ocorre a separação entre religião e política. O epicurismo dos séculos 17 e 18 basicamente separou o céu e a terra, colocando entre eles uma enorme distância. Isso deixa as pessoas livres para governar a terra da maneira que desejarem — o que geralmente significa que a governarão para seu próprio benefício, mantendo qualquer coisa que seja religiosa fora da equação. E isso foi um desastre.

Depois, temos o movimento dispensacionalista, especialmente nos Estados Unidos, e outros movimentos semelhantes com uma escatologia muito negativa — no sentido de que a única maneira de algo acontecer é se Deus abandonar completamente este projeto [de mundo] e começar de novo do zero. Assim, muitos cristãos se voltaram a Platão para dizer: “Bem, na verdade, temos almas que vão escapar deste lugar de qualquer maneira e ir para outro”. Mas, como nunca me canso de dizer aos alunos, a palavra céu no Novo Testamento nunca é usada para designar o lugar de nosso destino final. E a palavra alma nunca é usada para designar os seres que seremos em nosso destino final.

As pessoas chegaram à suposição de que a história bíblica trata de como as almas humanas podem encontrar seu caminho até a visão beatífica no céu. Enquanto isso, toda a narrativa bíblica vai na direção oposta — e trata de como Deus vem habitar com os seres humanos na terra. A temática de Apocalipse 21 não é que os seres humanos habitam com Deus — e sim que Deus habita com os seres humanos.

Quanto mais envelheço, mais percebo que Atos 2, a descida do Espírito enchendo toda a casa, é uma cena de templo; ela remete diretamente a 1Reis 8 ou a Êxodo 14. É uma maneira de dizer: “Isso é o que Deus sempre pretendeu fazer. Deus, o Espírito Santo, sempre pretendeu viver com os seres humanos, nos seres humanos — e operar através deles. E, vejam só, isso está realmente acontecendo”. Essa é uma maneira totalmente diferente de fazer teologia.

A ideia arcaica de que Deus jogaria fora a criação presente — e, portanto, por que nos incomodaríamos em consertá-la? — simplesmente não faz justiça [ao que lemos na Bíblia]. Precisamos urgentemente, como comunidade global, pensar de forma mais cristã e mais bíblica sobre todo esse cenário.

N.T. Wright é professor emérito de Novo Testamento e Cristianismo Primitivo no St. Mary’s College, na Universidade de St Andrews, e Senior Research Fellow no Wycliffe Hall, Oxford. Seu livro mais recente, escrito em coautoria com Michael F. Bird, é Jesus and the Powers: Christian Political Witness in an Age of Totalitarian Terror and Dysfunctional Democracies [Jesus e os Poderes: Testemunho Político Cristão em uma Era de Terror Totalitário e Democracias Disfuncionais].

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Eu não preciso ser um ‘influencer’ para cumprir o propósito de Deus

Quero escrever para edificar o corpo de Cristo, mas construir plataformas rouba tempo da minha congregação local.

Christianity Today August 16, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty / Unsplash / Wikimedia Commons

Recentemente, conversei com um pastor de Harrisburg, na Pensilvânia. Sua congregação é pequena — tem cerca de 150 membros — e sua rotina é intensa, com deveres que se estendem muito além das paredes da igreja.

A semana típica do pastor é uma prova de sua dedicação aos irmãos e irmãs da comunidade. A maior parte de seu tempo é dedicada a visitas, orações e cuidados pastorais, geralmente em casas de repouso e hospitais. Ele reserva os sábados para a preparação do sermão e tenta manter as sextas-feiras para passar um tempo com a família.

Às vezes, o pastor recebe convites para ir mais longe: falar em conferências, contribuir para veículos de mídia cristãos ou até mesmo escrever livros —oportunidades que são atraentes e um sinal de sua mestria intelectual e da extensa rede que construiu nos círculos ministeriais. No entanto, ele normalmente os recusa, ao considerar o quanto esse trabalho e sua ausência afetariam o crescimento espiritual de seu rebanho. Ele está nutrindo uma comunidade, e não construindo uma plataforma. Ou, nas palavras da autora Jen Pollock Michel, ele está construindo vidas, e não deixando uma história.

Eu mesma tenho lutado com essa escolha. Depois de me formar no seminário, comecei a escrever e a ensinar em minha igreja local. Como não precisava ganhar dinheiro com o que escrevia, tive o luxo da flexibilidade e, logo, procurar lugares que publicassem meu conteúdo passou a ser meu trabalho. Ser convidada para ser membro de um grupo de escritores e ter outros promovendo meu trabalho era uma experiência ao mesmo tempo gratificante e que me inspirava humildade. Mas também comecei a ver que escrever regularmente para consumo de um público era complicado, difícil e insustentável, se eu quisesse continuar investindo em minha congregação.

Quero escrever para servir à igreja, mas escrever toma cada vez mais o tempo que eu dedicaria à minha igreja local. Suponha que eu passe todo o meu tempo promovendo meu material em busca de publicação, construindo minha rede de seguidores, criando conteúdo cristão e tentando fazer sucesso no “Complexo Industrial Evangélico”. Será que ainda estarei sendo Cristo para os outros? Estarei mostrando seu amor?

Em contrapartida, se eu sinto um chamado para escrever e acredito que tenho algo valioso e fiel a dizer, é errado usar meu talento para promover meu trabalho? Devo me contentar em não alcançar o reconhecimento público do meu dom e do meu trabalho, como aquele pastor da Pensilvânia que acabei de mencionar? Devo me sentar com a mulher cuja mãe morreu, cujo marido foi embora ou que recebeu um telefonema do médico sobre o laudo de sua tomografia? Muitas vezes me perguntei se tenho a inteligência, a sabedoria e a resiliência necessárias para levar a vida de uma escritora cristã.

Este discurso que foi feito para escritores cristãos sobre a dinâmica do ministério cristão e o cenário editorial sugere que não sou a única que está se fazendo essa pergunta. Toda essa conversa é moldada pela ideia de como as mudanças tecnológicas transformaram o trabalho da escrita. De certa forma, a publicação agora está mais democratizada. Entre podcasts, mídias sociais, Substack e outros boletins informativos, bem como plataformas de vídeo, como YouTube e TikTok, não há escassez de conteúdo cristão, e as barreiras mínimas de entrada permitem que muito mais vozes falem sobre teologia, crescimento espiritual e vida cristã.

O problema é o que acontece depois que entramos neste mundo. A jornada rumo ao reconhecimento envolve cultivar deliberadamente uma marca pessoal e uma rede profissional. “As editoras estão constantemente avaliando propostas de livros, não apenas com base no conteúdo do livro, mas na plataforma do autor também”, escreveu Michel no Substack, em um post sobre a decisão de parar de publicar, mas continuar escrevendo. “Essa pessoa consegue escrever? Sim, essa é a primeira coisa que perguntam. Mas eu diria que nem é a mais importante na matemática das escolhas de publicação. Essa pessoa consegue vender? Agora sim chegamos à pergunta que realmente importa.”

Você precisa construir uma presença digital robusta e expandir seu público. Também espera que outros escritores promovam seu trabalho, assim como você promove o deles — quem você conhece e marca em seus perfis sociais se torna uma espécie de moeda de troca. Não basta ser dotado pelo Espírito; você deve comercializar seus dons nas mídias sociais. Você cria conteúdo para o Instagram, escreve pepitas de sabedoria e começa a fazer reels, na esperança de que quanto mais conteúdo você criar, mais pessoas notarão.

Será que é assim que eu deveria gastar meu tempo? Onde isso deixa meu ministério? Onde isso deixa as pessoas que estão passando por divórcio, doença e dificuldades com os filhos — ou as pessoas que apenas estão buscando uma comunidade? Se eu escrever sobre Cristo, estarei negligenciando seu corpo? Como a teóloga Nika Spaulding perguntou, quando a entrevistei: “Estou deixando de lado o imperativo de priorizar as necessidades da igreja local? Preciso recalibrar minhas aspirações e ambições?”

Eu luto com isso todos os dias. Acredito que Deus me chama para servir fielmente onde vivo, para amar a Deus e amar as pessoas em minha igreja local — e não para construir uma plataforma ou para ser influenciadora em busca da validação de um público de admiradores (e de uma boa dose de dopamina). Mas também acredito que escrever é uma maneira pela qual Deus me equipou para servir, e a indústria editorial diz que devo construir uma plataforma, se eu quiser que alguém leia meu trabalho. Em minhas conversas com a jornalista e escritora Devi Abraham, ela observou que, no cristianismo americano, assim como na cultura americana em geral, parece que “permanecer no anonimato não é a resposta para o sucesso”.

Não tenho uma resposta definida para essas perguntas, mas tenho mais perguntas que podem trazer clareza — e uma história que reformulou meu pensamento.

Podemos encontrar contentamento em permanecer desconhecidos? “Falei em dois eventos bem grandes para mulheres e, pela primeira vez, não incentivei ninguém a assinar meu boletim informativo”, disse a autora e líder de ministério Sarah K. Butterfield, falando de um período em que fez uma pausa na escrita. “Compareci com o único propósito de servir as pessoas que participavam do evento, sem qualquer expectativa de aumentar meu número de seguidores. O resultado foi libertador!”

Temos condições de fazer o mesmo? Como nossos hábitos de escrita, divulgação e publicação mudariam, se não estivéssemos constantemente tentando aumentar nosso número de leitores? Existe uma dissonância em nossa alma, de modo que não podemos nos satisfazer com o pouco e constantemente nos encontramos desejando mais?

Se Deus nos deu um dom criativo, o que significa usá-lo para a sua glória? Devemos usar nossos dons para Deus e para a expansão do seu reino; mas, e se o alcance que ele quer que tenhamos em nosso ministério, seja este na igreja ou paraeclesiástico, for limitado? E se ele quiser que ministremos — ou mesmo que escrevamos — apenas para um pequeno número de pessoas, e não para termos 20.000 livros vendidos, mas sim sermos fiéis aos poucos em nosso círculo? Nossa “plataforma” pode ser uma igreja local ou um bairro.

“Servir em uma igreja, em uma comunidade local é difícil, desafiador e exaustivo”, disse-me Jen Wilkin, professora dedicada ao ensino da Bíblia. Mas também é gratificante ver, pessoalmente, as pessoas ganharem vida no conhecimento das Escrituras e no amor a Deus. Nesta cacofonia digital de vozes que competem por atenção e afirmação, nós, no ministério cristão, precisamos encontrar maneiras de construir relacionamentos substanciais e promover o crescimento em profundidade espiritual daqueles que estão literalmente [e não virtualmente] ao nosso alcance.

Tive uma longa conversa sobre isso com Al Hsu, diretor editorial associado da InterVarsity Press. Ele disse que mesmo na indústria editorial “a plataforma não é” — ou não deveria ser — “um fim em si mesma. É uma extensão da nossa missão e vocação”. Nossas plataformas devem estar alinhadas com o nosso chamado e com quem somos chamados a servir, de modo que as plataformas devem parecer diferentes para pessoas diferentes.

Podemos ser pacientes em nosso desenvolvimento? Como muitos escritores, eu aspirava ser como os líderes, mestres e autores que têm plataformas imensas e alcançaram fama. Talvez um dia eu consiga isso, mas eles não chegaram a esse nível da noite para o dia. Autoras famosas como Beth Moore e Ann Voskamp “trabalharam por anos no anonimato”, como observou a escritora Karen Swallow Prior, “e, o que é mais importante, não começaram motivadas pela esperança de conquistar as imensas plataformas que hoje têm”.

A autora Christine Caine escreve sobre como ela foi “desenvolvida, não descoberta”. Ela desejava servir a Deus desde cedo; então, quando os líderes de sua igreja pediram que ela servisse na equipe de limpeza, na sua juventude, ela concordou. Isso a levou a ter mais responsabilidade e a receber orientação, e, depois de anos na limpeza, seu sim fiel aos 21 anos a preparou para o grande ministério que ela lidera hoje. Deus desenvolveu sua fé e suas habilidades quando ela ainda era uma desconhecida.

O que realmente queremos? Talvez Deus queira que ministremos em escala pequena, local. Ou talvez ele nos ajude a escrever para milhões de pessoas. Segundo disse em nossa conversa a autora Mary DeMuth, em ambos os casos devemos prestar atenção em nosso coração. “Nós nos pegamos amando mais o nosso feed do que as pessoas que estão por trás do feed?” ela perguntou. “Deus está chamando pessoas para o contexto de amar seres humanos de carne e osso, e precisamos procurar abençoá-los, amá-los e conhecê-los”.

Deus nos chama para uma vida dedicada a conhecê-lo e a caminhar com ele, e devemos cultivar isso em primeiro lugar. Se um grande público é o que Deus quer para nós, ele pode fazer isso acontecer. Não precisamos desperdiçar nosso tempo lutando por proeminência e plataformas. Podemos crescer onde estamos plantados, crescer no conhecimento de Deus e praticar sua presença no cotidiano. A verdadeira medida do sucesso não está na quantidade de seguidores nem nos recordes de vendas, mas sim na profundidade de nossa fidelidade a Deus.

Recentemente, li uma história sobre Bertha, uma princesa do Reino dos francos que se mudou para Cantuária, no reino inglês de Kent, por volta do ano 580, para se casar com seu rei pagão, Ethelbert. O cristianismo havia sido introduzido na Inglaterra naquela época, mas ainda não estava difundido.

Bertha era uma pessoa com uma forte fé cristã. Ela se casou com a condição de ter permissão para permanecer cristã e trouxe um bispo com ela para seu novo lar. Ela trocava correspondências com o papa, que, mais tarde, lhe escreveu que suas “boas obras são conhecidas não apenas entre os romanos […] mas também em vários lugares”.

Em 597, após anos de fidelidade aparentemente “malsucedida” por parte de Bertha, um grupo de missionários liderado por um monge chamado Agostinho veio de Roma. Quando chegaram em Kent, eles pregaram o evangelho ao rei, que finalmente reconheceu a soberania de Cristo. Muitas pessoas seguiram o exemplo do rei, e Cantuária se tornou o centro do cristianismo na Inglaterra. Até hoje, é o lar espiritual de muitos cristãos.

Bertha não deixou escritos nem registros de exercício público de poder. No entanto, seus anos de fidelidade ajudaram a evangelizar a Inglaterra e muitas outras nações. Hoje, a UNESCO reconhece sua capela de oração como o local mais antigo de adoração e de testemunho cristão ininterrupto no mundo de língua inglesa. Deus usou as orações de Bertha para fazer infinitamente mais do que ela poderia ter pedido ou imaginado (Efésios 3.20).

Ele pode usar nossa fidelidade silenciosa, mergulhada no anonimato, da mesma forma. Embora “a gente prefira o espetáculo”, como disse o autor Skye Jethani, referindo-se à parábola do semeador, “Deus fica feliz em trabalhar por meio do que é sutil. E embora pensemos que os resultados são baseados em como a Palavra de Deus é proclamada, Deus sabe que os resultados são determinados por como a sua Palavra é recebida”. Nossa preocupação é construir uma plataforma para nós mesmos ou ser as mãos e os pés de Cristo, semeando onde pudermos e deixando que Deus dê o crescimento?

E. L. Sherene Joseph é uma filha de missionários e escritora que fala sobre fé, comunidade e cultura. Como imigrante nos Estados Unidos, ela compartilha suas experiências de viver entre mundos diferentes. Você pode encontrar mais do trabalho dela em www.sherenejoseph.me.

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Precisamos de uma vida de oração sem filtros

Como amigos de Deus, podemos falar com ele sem reservas.

Christianity Today August 15, 2024
Anggie / Lightstock

Às vezes falo em voz alta, quando estou sentada na poltrona perto da mesinha de livros de manhã ou quando estou sozinha no carro, dirigindo. Se alguém entra na sala, fico um pouco envergonhada com essa exteriorização da minha oração. Mas acho que falar com Deus em voz alta é algo que ajuda a me concentrar. E está se tornando um hábito entre amigos.

Como acontece com qualquer conversa entre amigos, os tópicos que compartilho com Jesus variam de tarefas práticas a esperanças específicas, bem como perguntas mais profundas. “Você pode me lembrar de passar no correio?”. “Sou muito grata pela professora da quarta série de Rhodes este ano”. “Eu estou me sentindo sozinha hoje. Você me ajudaria a saber que está aqui comigo e a acreditar nisso?”.

Eu me pergunto se Davi falava em voz alta, quando estava compondo seus salmos pela primeira vez. Ouvi dizer que os salmos foram cantados por muitas gerações, antes de serem registrados por escrito. Sou grata pelas orações escritas e pelos hinos que me dão palavras para expressar o que está em meu coração e me ensinam a orar. Mas a arte de conversar com Deus de forma espontânea e audível parece uma prática distante. Você acha que é absurdo considerar Deus um amigo que anda conosco dessa maneira tão trivial?

Acredito que exista um modesto vislumbre desse desejo de Deus em ser nosso amigo no seu generoso convite em Deuteronômio 6.6-7: “Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar”.

Austin Miles, autor de vários hinos, lançou este convite para nós de forma um pouco diferente: “Venho ao jardim sozinho / Enquanto as gotas de orvalho ainda umedecem as rosas […] E ele anda comigo, e ele fala comigo / E ele me diz que sou dele”.

Como é uma conversa cotidiana entre amigos? Meu professor de literatura da faculdade certa vez usou uma caneta vermelha, para me treinar a escrever com um ponto de vista consistente, que ajudasse o leitor a entender claramente a história. Se o objetivo é entender, então, certamente faremos bem em seguir esse conselho.

Mas, talvez, ser plenamente humano signifique admitir que nosso ponto de vista é inerentemente complexo, misterioso e está sempre mudando. Como um prisma sob a luz do sol, nossas almas e histórias refletem a luz de Deus em milhares de direções ao mesmo tempo. E, diferentemente das aulas de literatura, no caso da oração é bom lembrar que nossas palavras não são classificadas com uma caneta vermelha.

Na amizade com Deus, um ponto de vista fluido nos ajuda a enxergar além do entendimento, e vislumbrar a beleza infinita de Deus. Ao falarmos abertamente com Jesus sobre os acontecimentos, os sentimentos e os relacionamentos do nosso dia, somos atraídos para um verdadeiro companheirismo e nossos corações são movidos a adorar.

Um dos meus salmos favoritos é o Salmo 62. Nele, como em grande parte da literatura poética das Escrituras, vemos súbitas mudanças de ponto de vista na voz do autor. Davi finca sua bandeira no versículo 1: “A minha alma descansa somente em Deus”. Em seguida, relata os atos fiéis de Deus nos dois primeiros versículos e, mais adiante, no versículo 5, Davi persuade a própria alma novamente a crer e a descansar: “Descanse somente em Deus, ó minha alma”.

No versículo 8, ele se vira e exorta seu povo a fazer o mesmo: “Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame diante dele o coração”. Por fim, Davi pessoalmente reafirma Deus, nas últimas linhas: “contigo, Senhor, está o amor leal.” (v. 12).

Deus revela suas impressões digitais em nossa vida de mil maneiras diferentes. Sua redenção se estende a cada molécula do universo, e toca a ciência, a literatura, a arte, a psicologia, a matemática e a história. Todas as coisas foram feitas por ele e para ele. Nele tudo subsiste (Cl 1.16-17) e ele age em todas as coisas para o bem supremo daqueles que o amam (Rm 8.28).

A convite de Deus e com a ajuda do Espírito Santo, que possamos derramar nosso coração para ele, em todos os momentos — em voz alta no carro, ao redor da mesa de jantar ou em uma brincadeira divertida na floresta. Que nossas palavras fluam de volta para ele, honestas e sem filtros.

Embora falar casualmente e em voz alta com Deus o dia todo possa ser uma prática social um tanto estranha, Davi nos lembra que também é uma antiga tradição de sanidade do evangelho, que alinha nosso coração ao consolo eterno da amizade com Deus.

Sandra McCracken é cantora e compositora; ela mora em Nashville. Siga-a no Twitter @Sandramccracken.

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Books
Review

A hesitação em ter filhos vai além das preocupações financeiras

O que antes era uma fase comum da vida agora parece uma escolha cada vez mais complicada.

Christianity Today August 14, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Getty

Em um artigo recente do The Guardian sobre “os principais adeptos da pró-natalidade da América”, a jornalista menciona sua própria suposição de que “a principal coisa que torna [ter filhos] uma tarefa difícil [é] que hoje é incrivelmente caro criar uma criança”.

What Are Children For?: On Ambivalence and Choice

What Are Children For?: On Ambivalence and Choice

336 pages

$19.28

“Não”, responde o pai de uma família entrevistada. “De forma alguma”— e, em sentido substancial, acho que ele está certo. E assim também pensam Anastasia Berg e Rachel Wiseman, autoras do recém-lançado What Are Children For?: On Ambivalence and Choice [Para que servem as crianças?: sobre ambivalência e escolhas].

Isso não significa que Berg e Wiseman (ou que eu mesma) desconsiderem as reais dificuldades financeiras que muitos futuros pais enfrentarão. Pelo contrário, elas dedicam o primeiro dos quatro longos capítulos do livro a uma análise sóbria desses “fatores externos.”

Mas o que encanta no livro é que elas não param por aí. Berg e Wiseman também rejeitam a suposição — presente em muitas discussões superficiais sobre a criação de filhos — de que os fatores externos representam a totalidade do problema, de que toda essa hesitação desapareceria apenas com o pacote certo de políticas que estendessem a licença-maternidade e a licença-paternidade e tornassem as creches mais acessíveis.

Isso não aconteceria, e a obra What Are Children For? é uma reflexão bem-vinda que complica essa visão simplista. Como o próprio título sinaliza, Berg e Wiseman pretendem mostrar uma análise cultural e filosófica perspicaz, examinando de maneira rigorosa, porém cordial, um “mundo que é tanto pró-natalista quanto antinatalista”. Embora, no último minuto, elas abracem uma grande alegação a que parecem resistir ao longo do texto todo, o projeto delas é bem-sucedido.

Um mar de opções

Os leitores já familiarizados com o conceito de secularismo que o filósofo cristão Charles Taylor apresenta na obra Uma Era Secular estarão bem preparados para entender um dos argumentos centrais da obra What Are Children For?: o fato de ter filhos antes não era uma escolha, mas agora é, e essa mudança colossal é parte integrante da experiência moderna dessa hesitação em relação a ter filhos.

Taylor definiu o secularismo como o que acontece quando uma sociedade passa de uma visão “em que a crença em Deus é incontestada e, de fato, não problemática, para uma sociedade em que essa crença é entendida como uma opção entre tantas outras, e, frequentemente, não a mais fácil de se abraçar”. Berg e Wiseman escrevem que, da mesma forma que, antes, ter filhos era “apenas algo que as pessoas faziam”, agora, é algo que sentimos que devemos “pesar e contrastar com um mar de outras opções”, muitas delas no mínimo superficialmente mais fáceis, mais prazerosas, menos arriscadas e com maior chance de sucesso.

Uma citação que Berg e Wiseman compartilham da psicóloga Nancy Felipe Russo, escrita em 1976, expõe o caráter recente e a totalidade dessa mudança. Naquela época, ter filhos era algo tão pressuposto que “mesmo que o contraceptivo perfeito fosse desenvolvido e usado”, pensava Russo, as “forças sociais e culturais que reforçam o mandato da maternidade continuariam”. Hoje, a meu ver, o oposto é verdadeiro: mesmo que todos os contraceptivos desaparecessem amanhã, nossa agonia não desapareceria com eles.

Tampouco estaríamos mais próximos de saber como tomar essa decisão. Segundo Berg e Wiseman argumentam, para muitos de nossos contemporâneos “ter filhos está se tornando uma prática cada vez mais ininteligível e de valor questionável”. Com a ajuda da internet, noticiamos relatos sobre a maldade e o sofrimento humano, e depois duvidamos da sabedoria de prolongar a existência humana. “Carecemos de recursos para responder a tais questionamentos”, refletem as autoras. “Os antigos paradigmas, quaisquer que fossem, parecem não se aplicar mais. E os novos nos deixaram muito menos certos sobre a própria questão de ser desejável ter filhos”.

Vida, história, literatura

A obra What Are Children For? começa e termina com seções escritas por uma das autoras; Wiseman escreve no início sobre a sua escolha de buscar a maternidade; Berg, a outra autora, faz uma reflexão no final sobre a vida após a escolha de ter filhos. Nos capítulos intermediários, o capítulo que trata dos fatores externos é um mapa bem elaborado de um território já bastante familiar para quem acompanha os debates sobre natalidade: preocupações financeiras, medo de perder liberdades e de ter carreiras decepcionantes, incapacidade de encontrar um parceiro amoroso adequado, e assim por diante.

Passagens-chave sobre essa novidade de ver os filhos como escolha encontram-se aqui, assim como uma seção notavelmente sombria sobre o namoro moderno, cujos trechos aparecem em um ensaio de 2022 na The Atlantic, “The Paradox of Slow Love” [O paradoxo do amor lento. N. da T:“Slow love” vem da expressão “fast sex, slow love” (rápido para transar, devagar para amar), que tem sido usada para caracterizar a dinâmica dos relacionamentos no mundo atual]. Não tenho espaço para fazer justiça a esse tema, mas é alarmante o esboço que Berg e Wiseman fazem de uma barreira crescente entre romance e família.

O segundo capítulo, que fala sobre a história do debate feminista em torno da reprodução, fornece um contexto intelectual valioso — embora para leitores de contextos evangélicos mais conservadores o capítulo possa explicar melhor as motivações e impulsos de outras pessoas do que os nossos próprios. Alguns dos pensadores que Berg e Wiseman exploram nesse capítulo estão bem fora do mainstream, mas sua influência sobre a cultura mais ampla é clara.

Talvez a parte mais forte desse capítulo seja sua crítica à notória abdicação da responsabilidade por parte dos homens, feita em nome do progresso. “Em círculos de centro-esquerda,” escrevem Berg e Wiseman, “a convicção de que as mulheres devem ser capazes de determinar seus próprios destinos reprodutivos e exercer tanta autonomia sobre seus corpos quanto os homens se transformou, ao longo dos anos, na presunção de que a questão de se iniciar ou não uma família é prerrogativa exclusiva das mulheres”.

Às vezes, elas reconhecem que essa passividade masculina pode ser bem-intencionada: se a maternidade é algo tão custoso quanto nossa cultura passou a acreditar, “como poderia um homem pedir à mulher que ele ama que se submeta a tal destino?”. Mas, às vezes, o que “pode parecer a princípio um ato altruísta de deferência (se você quer um filho, podemos ter um) funciona mais como uma manobra evasiva”:

Ofertas mornas de cooperação podem atrapalhar uma tomada de decisão confiante e sem reservas. Quem gostaria de trazer uma criança ao mundo com alguém que, quando perguntado se quer ser pai, só responde com um fraco “se você insiste…”? A frase “faça o que você quiser — a decisão é sua” já é suficientemente irritante quando estamos tentando escolher um filme para assistir ou um restaurante para pedir comida; mas é insuportável como resposta à pergunta “você quer ter um filho comigo?”

O terceiro capítulo, que fala sobre literatura, amplia essa exploração do contexto cultural até os dias de hoje: “A ambivalência dos romancistas sobre a maternidade é profética”, conforme mostram Berg e Wiseman, “na medida em que o sentimento geral sobre maternidade/ paternidade hoje é de dúvida”.

Devo admitir que neste ponto eu já estava ficando inquieta, ansiosa para chegar ao quarto capítulo, que aborda diretamente a questão do título. Mas esta parte final da cena também foi perspicaz, oferecendo um tour por um gênero que eu sabia ser influente, mas que não li pessoalmente. Para aqueles que já leem esse tipo de literatura — talvez não de forma muito crítica — espero que seja esclarecedor.

Uma defesa da vida em si

No último capítulo antes da conclusão de Wiseman, as autoras lidam com dois argumentos primários contra a ideia de ter filhos: “que a vida é um mal imposto à humanidade” e “que a humanidade em si é uma imposição maligna ao mundo”.

Berg e Wiseman dão uma resposta simples para ambos: uma afirmação da vida. Não se trata de uma resposta simplista — elas debatem com filósofos sérios, que encontramos ao longo de séculos do pensamento clássico, judaico, cristão e pós-cristão. Mas é uma afirmação feita com ousadia e que se fundamenta, sem se desculpar por isso, na intuição e na experiência comuns ao ser humano.

Em síntese, Berg e Wiseman argumentam que a humanidade tem valor; que, ao lado da nossa capacidade para o mal, existe uma capacidade real de reconhecer e escolher o bem; que podemos perseguir objetivos bons, como “amizade e justiça”, de maneira incondicional e universal, os quais “tornam verdadeiramente valiosa a experiência de viver uma vida humana”; e que afirmar esse bom caráter não significa “fechar os olhos para as nossas lutas e falhas humanas”.

Quanto a ter filhos, Berg e Wiseman defendem que trazer uma nova vida ao mundo é afirmar sobre os outros aquilo que já afirmamos sobre nós mesmos. Na verdade, elas escrevem, perguntar “Para que servem as crianças?” é essencialmente o mesmo que perguntar: “Por que afirmar a vida?”

Afinal, o que se está querendo [com essa pergunta]? Uma lista de benefícios? Afirmar a vida não é dar-lhe uma justificativa teórica, reconhecer seus méritos e contrapor os argumentos de seus detratores. Ao decidir ter filhos, uma pessoa assume uma posição prática em um dos questionamentos mais fundamentais que alguém pode fazer: a vida humana, apesar de todo o sofrimento e da incerteza que ela implica, vale a pena ser vivida?

Essa é uma conclusão admirável e provocativa, especialmente por sua abordagem visivelmente não sectária. Eu seria convencida, se já não tivesse uma visão da humanidade que leva em conta essas tensões entre bem e mal, dignidade e sofrimento, acaso e virtude? Não tenho certeza. Como cristã, concordei com Berg e Wiseman em pontos grandes e pequenos — mas, muitas vezes, a concordância foi somente acidental. Chegamos ao mesmo lugar por caminhos aparentemente diferentes.

Às vezes, essa diferença de perspectiva foi construtiva. Eu adoraria ver as autoras em uma conversa com o escritor católico Timothy Carney, cuja análise da “tristeza civilizacional” na obra Family Unfriendly [Hostil à família] ecoa profundamente as notas finais de What Are Children For?. E ainda estou refletindo sobre a observação de Berg e Wiseman de que “de todos os milagres realizados por Cristo, ele nunca ajudou uma mulher estéril a conceber”.

Em contrapartida, posso imaginar como Berg e Wiseman provavelmente conciliariam seu chamado para “afirmar a vida” com a aprovação a vários direitos ao aborto presentes no livro — mas essa é uma conexão que eu mesma não consigo entender.

Uma pergunta que só você pode responder?

É comum dizer que uma escolha de vida tão importante quanto ter filhos é algo que cada um de nós deve fazer exclusivamente por conta própria. Berg e Wiseman apoiam essa visão, mas, ao longo da obra toda, parecem insatisfeitas com o lugar para onde essa visão leva.

Elas rejeitam a visão da decisão de ter filhos como uma busca solitária de “‘encontrar a si mesmo’ e descobrir ‘o que você realmente quer’”, em detrimento de “tudo o mais que você valoriza”. Elas repreendem os homens que fogem de seu papel no processo de tomada de decisão e lamentam um isolamento semelhante por parte de amigos e familiares. Elas se irritam com a profunda interioridade da literatura que trata dessa ambivalência sobre a maternidade, pelo modo que priva tanto personagens quanto leitores de insights sobre “as infinitas maneiras pelas quais cada um de nós pode ser opaco para si mesmo, cego para suas próprias fraquezas, iludido sobre suas motivações”. E elas elogiam o lembrete de uma escritora “de que o que está em jogo na decisão de ter filhos não é apenas uma série de experiências pessoais a serem desfrutadas e sofridas, mas sim a possibilidade da vida humana”.

No conjunto, isso me parece muito mais do que um convite ao discurso público. Soa como um apelo por comunidade, por pessoas com bons conselhos e influência real em sua vida, por pessoas que se importam com o que você se importa, que lhe dirão quando você estiver equivocado ou se iludindo, que ajudarão você a enfrentar essa questão difícil tanto quanto os desafios que virão, se a sua resposta for sim.

No entanto, apesar de tudo isso, a frase final do último capítulo escrito pelas duas autoras declara que, porque ter filhos é um compromisso de vida tão importante e afirmativo, “só você pode determinar se é a escolha certa para você”.

Em um sentido estrito, sim, isso é verdade. Certamente não tenho saudades dos velhos e maus tempos dos casamentos forçados nem de uma versão brutal e totalitária do pronatalismo. Mas estamos falando aqui de afirmar a vida. Vocês têm certeza de que a vida que estamos afirmando é uma vida que vivemos juntos?

Bonnie Kristian é diretora editorial de ideias e livros da Christianity Today.

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Nem dominar, nem se afastar: os cristãos devem unir o mundo

O testemunho da igreja primitiva nos ajuda a evitar tanto o triunfalismo quanto o isolamento.

Christianity Today August 14, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: WikiMedia Commons / Unsplash

Logo no início da minha leitura e do meu estudo sobre o cristianismo primitivo, fui impactado por uma afirmação de um autor anônimo, que escreveu para um homem chamado Diogneto, no segundo século. Esse autor, em sua Carta a Diogneto, declarou que “os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo”.

O autor estava abordando um paradoxo que reside no coração de nossa fé: os cristãos vivem no mundo; contudo, nas crenças que professam e nas virtudes que buscam modelar, eles também transcendem as coisas deste mundo. Embora Cristo e os apóstolos tenham ensinado esse mesmo princípio, a analogia que a Carta a Diogneto faz com o que a alma é para o corpo é tocante. Mesmo existindo em um corpo mortal, os cristãos estão destinados à imortalidade. Assim como a alma mantém unido todo o corpo, os cristãos são chamados a manter unido todo o mundo. Sua missão é viver de maneira que tornem o mundo melhor por causa de sua presença.

Stephen O. Presley, um estudioso do cristianismo primitivo, articula essa visão de forma brilhante em Cultural Sanctification: Engaging the World like the Early Church [Santificação Cultural: envolvendo-se com o mundo como a Igreja Primitiva]. O livro explora como os primeiros cristãos viam seu lugar em um mundo que cada vez mais se assemelha ao nosso.

Em uma era secular, as posturas e a sabedoria das vozes cristãs primitivas podem nos ajudar a resgatar uma visão de como viver em uma sociedade que não tem espaço para a exclusividade religiosa e tem pouco interesse por uma lógica moral transcendental. Ao explorar e conectar temas proeminentes do testemunho público dos primeiros cristãos, Presley canaliza a analogia apresentada a Diogneto e a amplifica, através das vozes dos primeiros pensadores cristãos.

Dualismo ativo

Presley começa nos lembrando que nosso mundo não apenas olha para a igreja com desconfiança; ele vê o cristianismo como o antagonista. Conforme ele escreveu: “O cristianismo não é marginalizado [hoje] por ser religioso, mas porque suas alegações morais frequentemente contrariam as novas expressões de progresso social e de diversidade moral.”

Como argumenta Carl R. Trueman em The rise and triumph of the modern self [no Brasil, publicado como Ascensão e triunfo do self moderno], nossa era de “individualismo expressivo” não tem necessidade de alegações teológicas transcendentais e de fundamentos éticos clássicos. Assim, o testemunho cristão no século 21 deve, cada vez mais, responder à pergunta: Isso é bom e belo? Se não convencermos o mundo de hoje de que o cristianismo é atraente e desejável, teremos de lutar muito para convencê-lo de que o cristianismo é verdadeiro.

Para ilustrar isso, Presley analisa a natureza da identidade cristã primitiva. A conversão, segundo era concebida pela igreja primitiva, não era apenas um assentimento ou uma concordância mental com proposições de verdade. Através da catequese e da participação na vida litúrgica da igreja, os novos crentes tinham suas identidades purificadas e recriadas.

A catequese, ou instrução intencional na doutrina, identificava crenças falsas e buscava substituí-las por conceitos bíblicos. Mas era uma experiência profundamente espiritual. Funcionava como uma forma de exorcismo, que limpava o coração e a mente de pressupostos satânicos e abria espaço para o alimento que dá vida. A vida litúrgica da igreja, que incluía o batismo e a Ceia do Senhor, organizava a vida inteira do cristão em torno da obra de Cristo e da história da redenção divina. Como observa Presley, “essa formação litúrgica nos lembra que a igreja primitiva não estava interessada apenas em evangelizar e em pregar, mas em formar uma comunidade”.

Embora esteja sempre implícita na fé e na prática cristãs, essa ideia de “formação litúrgica” deve ser resgatada em nossos dias. Isso não é um argumento apenas a favor do culto litúrgico, mas um apelo em prol de práticas de adoração e de formação intencionais dentro do corpo da igreja. A comunidade cristã deve ir além de um relacionamento casual com aquela outra igreja ali na esquina e, em vez disso, ser vista como uma coletividade vital composta de homens e mulheres unidos e comprometidos.

Além disso, Presley destaca o cultivo da vida intelectual entre os pensadores cristãos primitivos. Temos o privilégio de ver uma recuperação desse impulso em grande parte do evangelicalismo contemporâneo. Mas os pensadores cristãos primitivos podem nos ajudar a levar isso ainda mais longe.

Ao colocar suas vidas intelectuais em diálogo com a literatura e a filosofia, esses pensadores traziam todo o conhecimento sob o domínio de Cristo. Para os pensadores cristãos primitivos, a Escritura era a bússola orientadora; na verdade, era o próprio tecido do conhecimento. Embora os evangélicos tenham (em sua maioria) mantido alta a sua atenção às Escrituras, muitas vezes perdemos a noção de como a Palavra de Deus deve moldar a maneira como nos engajamos em todas as demais formas de conhecimento.

Como Presley observa: “A igreja reconheceu a importância do engajamento intelectual e da interação com o clima filosófico do mundo ao seu redor”. Os cristãos primitivos, mesmo sob perseguição, não consideravam o isolamento uma opção. Os líderes cristãos de hoje, em uma era de confusão moral e epistemológica, precisam revigorar a igreja para um engajamento intelectual cativante e irênico na esfera pública.

É central para o argumento de Presley, portanto, um retrato de como os cristãos primitivos entendiam seu papel na vida pública. Embora ele separe sua discussão formal desse assunto em dois capítulos distintos, um sobre cidadania e outro sobre vida pública, as ideias por trás deles são semelhantes em ambos. Em um nível, os cristãos entendiam sua lealdade a Cristo e ao seu reino. Eles também procuravam demonstrar seu serviço e seu compromisso a autoridades temporais, como aquelas que Deus lhes ordenara a servir. Os cristãos não eram “anti-imperiais”, como Presley observa; eles aceitavam a ordem estabelecida e procuravam viver obedientemente dentro de seus limites.

Presley identifica essa forma de vida pública como um “dualismo político ativo”. Ela envolvia oração pelas autoridades governamentais, compromisso em pagar impostos e esforços para promover uma vida virtuosa em prol do bem comum. Isso, é claro, não garantia a aceitação por parte dos próximos que eram pagãos. Mas esse testemunho com consistência era suficientemente convincente para conquistar alguns para a comunidade de fé. Se por nada mais, pelo simples fato de demonstrar a natureza sobrenatural da comunidade cristã.

Embora o culto cristão fosse bem menos público do que o politeísmo romano, isso não significa que os cristãos viviam nas sombras. A vida e o testemunho deles estavam sintonizados com o que acontecia à sua volta. A fé cristã primitiva sempre impactou a vida pública, quer inspirando uma presença fiel e cuidando da comunidade, quer sendo um testemunho público contra violência e atrocidades, quer adotando uma postura de oração em relação às autoridades civis. Essa postura de dualismo ativo moderava as expectativas, ao mesmo tempo que lembrava os crentes de que, em última análise, eram peregrinos a caminho de uma pátria celestial.

Presença fiel

A principal alegação de Presley, em termos simples, é que os cristãos de hoje precisam reaprender e aplicar as lições desse dualismo ativo. Ele está ciente, é claro, de que resgatar vozes do cristianismo primitivo não é um exercício de idealismo seletivo. Não devemos presumir, em outras palavras, que todos os cristãos nos primeiros três séculos da igreja fizeram essa obra de santificação cultural com perfeição. (Nesse ponto, é proveitoso lembrar a recente obra de Nadya Williamssobre a presença de cristãos culturais na igreja primitiva).

Ainda assim, o modelo de presença fiel defendido pelos pensadores cristãos primitivos e atestado por observadores não cristãos continua tendo apelo. A igreja de hoje não deve operar com uma mentalidade triunfalista, mas isso não significa que deva se encolher de medo da cultura que a cerca. Como Presley afirma, “o chamado cristão à santificação cultural é um chamado para buscar santidade e conformidade à semelhança de Cristo em todo e qualquer contexto cultural”.

O modelo geral fornecido pela igreja primitiva e transmitido a nós pela obra de Presley, Cultural Sanctification[Santificação Cultural], é consistente. No entanto, pode exigir que alguns de nós lidemos com males que ameaçam infectar nossa visão da igreja, do mundo e do nosso lugar nele. Rejeitar a cultura não é a solução. Assim como substituir nossa cultura atual por uma cultura alternativa totalmente cristianizada também não é a resposta correta. A única resposta a um mundo que rejeita a igreja é uma igreja que ame o mundo com discernimento fiel e engajamento paciente, mesmo enquanto anseia pelo mundo vindouro.

Coleman M. Ford é professor assistente de humanidades no Southwestern Baptist Theological Seminary e autor de Formed in His Image: A Guide to Christian Formation [Formado à semelhança dele: um guia para a formação cristã], bem como de um livro que será lançado em breve, Ancient Wisdom for the Care of Souls: Learning the Art of Pastoral Ministry from the Church Fathers [Sabedoria primitiva para cuidar de almas: aprendendo a arte do ministério pastoral com os pais da igreja]. Ele é cofundador do Center for Ancient Christian Studies [Centro de Estudos de Cristianismo Primitivo] e atua como membro do Center for Pastor Theologians [Centro para Pastores e Teólogos].

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Books

Um monumento teológico à unidade em meio à diversidade

Cinquenta anos atrás, a solução do Pacto de Lausanne para a divisão desenfreada nas alas evangélicas não foi uniformidade.

Christianity Today August 12, 2024
Illustration by Ibrahim Rayintakath

No filme Memento [Amnésia, no Brasil], lançado em 2000, o protagonista Leonard Shelby tem uma lesão cerebral específica que o impede de formar novas memórias de longo prazo. Ele consegue se lembrar de informações por 30 segundos a um minuto, no máximo, mas depois se esquece de tudo.

A desconexão de Leonard com seu passado o deixa em um estado perpétuo de perplexidade sobre como ele chegou a esse dilema atual: De qual inimigo estou fugindo — e por quê? Por que estou segurando uma arma? Sua confusão é decorrente da amnésia, da incapacidade de se lembrar da própria história. Se Leonard pudesse reaprender e se lembrar das partes importantes do seu passado, ele poderia finalmente voltar a ter uma existência estável, com uma compreensão íntegra de si mesmo e das pessoas ao seu redor.

Ser evangélico hoje é muito parecido com isso. Nós também estamos desconectados do nosso passado, embora por razões bem mais reversíveis do que uma lesão cerebral. Em decorrência disso, os evangélicos estão mais divididos do que nunca, com muitos de nós combatendo inimigos que antes eram amigos.

Mas, e se fizéssemos uma pausa para nos lembrar da nossa história? Não só nos lembraríamos de quem somos e de como chegamos até aqui, mas poderíamos até mesmo redescobrir o melhor do que o evangelicalismo foi, é e pode vir a ser novamente.

Evidentemente, um dos maiores problemas que temos hoje é que parece não haver quase nenhum consenso sobre o que a palavra evangélico¹ significa. Quem dera os evangélicos de todo o mundo pudessem ao menos concordar com os parâmetros básicos para o evangelicalismo — com algo que fosse minimamente suficiente para encorajar uma diversidade saudável, mas substancialmente suficiente para garantir a integridade doutrinária.

E se algo assim já existisse?

Cinquenta anos atrás, em julho de 1974, cerca de 2.700 líderes cristãos de 150 países viajaram para Lausanne, na Suíça, a convite do evangelista americano Billy Graham e do teólogo britânico John Stott.

A conferência foi oficialmente intitulada “Primeiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial”, mas veio a ser conhecida como o primeiro encontro de Lausanne de 74. E embora tenha incluído apenas parte da igreja global, a revista Time noticiou na época que o congresso foi “possivelmente o maior e mais abrangente encontro de cristãos já realizado”.

Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Foto superior: Participantes chegam ao Palais de Beaulieu, em Lausanne, Suíça, em 1974. Foto inferior: Nas cabines, as sessões plenárias de Lausanne são traduzidas para os seis idiomas oficiais do congresso.

Talvez o resultado mais importante e duradouro desse encontro tenha sido o Pacto de Lausanne, que com o tempo se tornaria um dos documentos mais influentes do evangelicalismo moderno. O propósito do documento era responder a uma pergunta-chave: o quanto devemos concordar uns com os outros para sermos parceiros na tarefa de missões mundiais?

Na época, assim como agora, o evangelicalismo estava sentindo os efeitos da controvérsia fundamentalista-modernista, que causou divisões hediondas em quase todas as principais instituições e denominações cristãs. A abordagem fundamentalista às diferenças envolvia discussões rigorosas sobre o que realmente era aceitável e sobre rigidez doutrinária. A perspectiva progressista evitava estabelecer quaisquer limites doutrinários, arriscando-se a afastamentos substantivos do cristianismo histórico.

Mas os evangélicos tomaram outro rumo.

A abordagem do evangelicalismo à diversidade, exemplificada em Lausanne, caracteriza-se igualmente por: (1) negociação cuidadosa de uma unidade em meio às diferenças, a qual se fundamenta em confissões comuns do cristianismo histórico; (2) celebração da diversidade em si como bem intrínseco e até mesmo como evidência de expressão do plano pretendido por Deus para a igreja global e universal de todos os crentes.

O Pacto de Lausanne forneceu uma definição teológica de evangélico e evitou intencionalmente associar quaisquer elementos sociopolíticos ao movimento. Também não demarcou posições sobre uma série de questões importantes, porém secundárias, relacionadas a teologia, doutrina e práxis. Por exemplo, não há no documento discussão sobre batismo, papéis de gênero no ministério ou idade da Terra e evolução.

Ao evitar questões desse tipo, o Pacto de Lausanne incluiu cristãos de ambos os lados que divergiam e que, não fosse essa postura adotada, estariam divididos. Em vez de divisão, os líderes do congresso buscaram criar uma comunidade de aliança para além dessas diferenças e a serviço de uma missão compartilhada para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

Em certo sentido, o pacto é uma declaração de fé coletiva, composta de 15 artigos, uma introdução e uma conclusão. Com pouco mais de 3.300 palavras, o documento é suficientemente curto para caber nos dois lados de uma única página. Stott, presidente da comissão de redação, explicou o pensamento por trás de cada artigo em sua exposição — apêndice de leitura obrigatória para o pacto.

Seria um erro ver este documento como uma mera declaração de fé, uma vez que ele foi concebido como um pacto, escreve Stott — como um “contrato vinculante” em que seus signatários se comprometem com um propósito e uma parceria comuns. Após 10 dias de debates, discussões e negociações, a maioria dos participantes (2.300) assinou o documento em conjunto. Como o próprio Stott explicou: “Não queríamos apenas declarar algo, mas fazer algo — comprometer-nos com a tarefa da evangelização mundial”.

Mesmo agora, a intenção é que o pacto deva ser assinado por aqueles que o leem e concordam com ele — e, ao fazê-lo, nos comprometemos a cooperar uns com os outros na missão de Deus.

Como a maioria dos evangélicos, eu nunca tinha ouvido falar do Pacto de Lausanne quando era mais jovem, e só me pediram para assiná-lo quando eu já era adulto. Sou um indiano de pele escura que nasceu no sul da Califórnia, em 1978, filho de imigrantes de primeira geração que eram ambos cristãos — meu pai, inclusive, estudou na Universidade Biola.

E, muito embora alunos de instituições cristãs às vezes tivessem contato com o Pacto de Lausanne, eu frequentei uma escola pública no ensino médio e uma universidade estadual secular. As igrejas que frequentei enquanto crescia eram não denominacionais, o que tinha seus pontos fortes, mas também gerou alguma amnésia sobre a história cristã.

Eu soube da existência do pacto pela primeira vez no final de 2000, 24 anos atrás, quando eu era aluno de pós-graduação e estava estudando para ser um médico pesquisador. Eu me inscrevi e fui aceito para a Harvey Fellowship — uma bolsa de estudos oferecida a cristãos que estão entrando em campos com baixa representatividade de cristãos —, e todos os candidatos eram obrigados a assinar o Pacto de Lausanne. No verão seguinte, fui para Washington, D.C., para participar de um evento de uma semana e me encontrar com um pequeno grupo de outros novos bolsistas da Harvey.

Este evento ampliou substancialmente minha experiência em termos de diversidade evangélica. Ben Sasse, um historiador de Yale e presbiteriano reformado, foi o primeiro cristão que conheci a defender um argumento plausível para o batismo infantil, embora ele e eu discordássemos sobre essa questão. Mac Alford, um botânico de Cornell, foi o primeiro cristão que conheci que defendia a evolução — alg o que eu rejeitava na época.

E embora essas divergências fossem incômodas, pelo menos para mim, todos nós somos signatários do Pacto de Lausanne (que não assume posição sobre nenhuma dessas questões) e, portanto, já tínhamos nos comprometido a cooperar.

O Pacto de Lausanne oferece um arrazoado teológico de nossas diferenças — com base na crença subjacente de que essas diferenças podem ser intrinsecamente valiosas. Os líderes do congresso estavam insatisfeitos com uma comunidade pequena em concordância, e buscavam, em vez disso, uma comunidade maior que fosse capaz de transpor nossas diferenças.

O pacto explica, usando o que Stott chamou de “uma tradução literal de Efésios 3.10”, que nossas diferentes visões sobre as Escrituras são um mecanismo por meio do qual a sabedoria de Deus é revelada a nós:

A revelação de Deus em Cristo e nas Escrituras é imutável. Por meio dela, o Espírito Santo ainda fala hoje. Ele ilumina as mentes do povo de Deus em todas as culturas para que percebam a sua verdade de uma forma nova, através de seus próprios olhos e, então, revela a toda a igreja cada vez mais da multiforme sabedoria de Deus.

Em vez de minimizar os limites doutrinários para alcançar uma paz falsa, o convite evangélico é para que possamos ler juntos nossas Bíblias, entender nossas diferenças e negociar — e essas disposições estavam claramente presentes na forma como o Pacto de Lausanne veio a existir.

Embora a conferência em si tenha durado apenas 10 dias, o processo de elaboração do pacto levou meses de diálogo e negociação. Mas com 2.700 delegados na conferência, quanta cooperação foi possível? Muita, como se vê. Na avaliação de Stott, “pode-se dizer verdadeiramente, então, que o Pacto de Lausanne expressa um consenso da mente e do espírito do Congresso de Lausanne”.

A elaboração do documento foi atribuída a uma pequena comissão que incluía Stott; o então presidente do Wheaton College, Hudson Armerding; e Samuel Escobar, um teólogo peruano da InterVarsity Christian Fellowship.

Meses antes da reunião de julho, os participantes receberam artigos escritos de todos os palestrantes e lhes foi solicitado que enviassem um feedback por escrito. Um esboço preliminar escrito na época por J. D. Douglas, editor da Christianity Today, baseou-se nos principais temas e insights desses artigos.

Em sua exposição, Stott explica: “Já podíamos dizer que aquele documento verdadeiramente saiu do Congresso (embora o Congresso ainda não tivesse se reunido), porque refletia as contribuições dos principais palestrantes, cujos artigos haviam sido publicados com antecedência.”

Antes da conferência, uma versão inicial foi enviada a vários consultores, cujos comentários foram usados ​​para orientar a primeira revisão do documento. Então, uma segunda revisão foi supervisionada pela comissão.

Mas os redatores também queriam se envolver com os próprios participantes, ouvi-los e aprender com eles. Então, no meio da reunião de julho, cada participante recebeu uma cópia da terceira versão do pacto e lhes foi solicitado que enviassem seus feedbacks e discutissem o conteúdo em pequenos grupos que eram organizados a cada dia.

A partir desses feedbacks, quaisquer objeções e emendas sugeridas eram enviadas à consideração da comissão de redação. De acordo com Stott, o congresso

respondeu com grande diligência. Muitas centenas de respostas foram recebidas (nas línguas oficiais), traduzidas para o inglês, classificadas e estudadas. Algumas emendas propostas cancelavam-se mutuamente, mas a comissão de redação incorporou tudo o que pôde.

No fim, essa negociação impactou substancialmente o documento final em torno de três temas principais. Primeiro, uma declaração cuidadosamente negociada sobre a inerrância bíblica foi acrescentada. Segundo, a declaração do pacto sobre responsabilidade social foi reforçada. Terceiro, várias mudanças foram feitas para refletir as preocupações e a sabedoria da igreja global de fora do mundo ocidental. Esses três temas, acredito eu, resumem as lições de Lausanne para o nosso momento atual.

I. O artigo sobre a autoridade das Escrituras foi fortalecido de modo a incluir uma declaração cuidadosamente negociada sobre inerrância, declaração essa que foi influenciada pela contribuição de Francis Schaeffer e de outros, e dizia que a Bíblia é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Essa mudança específica foi muito contestada, criando um desafio significativo para a comissão de redação.

Por um lado, as razões para incluir uma declaração sobre inerrância eram fortes. Uma visão diferente das Escrituras era a raiz de muitas divergências profundas entre evangélicos e cristãos progressistas. A alegação modernista, motivada pela alta crítica, dizia que a Bíblia era “autoritativa”, mas que sua mensagem estava sempre sujeita a mudanças, devido a seus muitos erros.

Lado a lado com essa afirmação, muitos cristãos liberais rejeitaram a crença na ressurreição, no nascimento virginal e na historicidade de Adão e Eva. E embora essas três alegações clássicas do cristianismo não sejam de igual importância, rejeitar qualquer uma delas é uma revisão importante com consequências de longo alcance.

Esclarecer a natureza dessa discordância sobre as Escrituras era algo que estava em primeiro plano na mente dos organizadores da conferência. Por um bom motivo, os evangélicos não podiam facilmente celebrar parcerias em missões mundiais com pessoas cuja compreensão do evangelho não incluísse, por exemplo, a ressurreição corpórea de Jesus — pois isso seria outro evangelho totalmente (Gálatas 1.6-9). Como disse o apóstolo Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, inútil é fé que vocês têm” (1Coríntios 15.17).

Mas também, no contexto imediato, a conferência de Lausanne foi uma resposta à Conferência de Bangkok sobre a Salvação Hoje, convocada no ano anterior (1973) pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI; em inglês, World Council of Churches, WCC). Até mesmo o local foi escolhido, em parte, por causa da proximidade entre Lausanne e Genebra, onde o CMI está sediado.

A Conferência de Bangkok incluiu delegados evangélicos, bem como cristãos liberais e de igrejas históricas mais tradicionais, muitos dos quais tinham se afastado da ortodoxia. E embora seu relatório final inclua uma concessão aos evangélicos, quando afirma com Atos 4.12 que “não há nenhum outro nome [somente o nome de Jesus] dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”, outros pedidos para fortalecer a teologia do evangelho — ecoando a Declaração de Frankfurt, de 1970, na qual os cristãos alemães se opuseram à “virada humanista” das missões no CMI — foram rejeitados como contribuições ocidentais que não falavam por todos.

Além disso, o relatório de Bangkok incluiu declarações que rotulavam qualquer libertação da opressão social como uma forma de salvação, entre elas “a paz do povo no Vietnã, a independência em Angola, a justiça e a reconciliação na Irlanda do Norte e a libertação do cativeiro do poder”. Peter Beyerhaus escreveu para a Christianity Today:

Aqui, sob uma capa aparentemente bíblica, o conceito de salvação foi tão ampliado e destituído de sua qualidade distintamente cristã que qualquer experiência libertadora pode ser chamada de “salvação”. Por consequência, qualquer participação em esforços libertadores seria chamada de “missão”.

Beyerhaus acrescentou que a conferência também apresentou o maoísmo — o comunismo da China — como uma alternativa aceitável ao cristianismo. Da mesma forma, a igreja do profeta Simon Kimbangu — que alegava ser a manifestação encarnada de Deus Pai e que seu filho era a segunda encarnação de Jesus — foi apresentada como um exemplo louvável de um ministério autóctone.

Mais do que comentários improvisados, esses foram apelos intencionais da liderança do CMI às igrejas asiáticas e africanas, e quaisquer objeções teológicas foram descartadas como tentativas inúteis de assimilar igrejas autóctones ao pensamento ocidental.

Embora ninguém possa ditar quem tem permissão para se autoidentificar com o termo cristão ou mesmo evangélico, o Pacto de Lausanne fundamenta a unidade cristã em uma missão compartilhada de proclamar “o evangelho integral ao mundo todo”. Essa missão é o motivo pelo qual nos juntamos a essa comunidade muitas vezes incômoda e conhecida como igreja, a despeito de nossas diferenças.

Sérias discordâncias sobre a natureza do evangelho podem com frequência remontar a duas maneiras fundamentalmente diferentes de entender as Escrituras. Todos neste debate podiam concordar que as Escrituras eram “autoritativas”; mas e quanto a seus ensinamentos: estavam sempre mudando e eram repletos de erros?

Por outro lado, mesmo para muitos cristãos ortodoxos, o termo inerrância ainda era o ponto de discórdia. Inerrância era um termo que já trazia consigo certa carga, pois estava sendo usado por alguns fundamentalistas como um teste doutrinário decisivo. Para agravar o problema, o termo foi mal definido, pois ainda se passaram anos antes que as declarações de Chicago sobre inerrância e hermenêutica fossem escritas, em 1978 e 1982, respectivamente. Não deveria ser surpresa, então, o fato de que muitos participantes se opuseram veementemente ao uso que o pacto fazia do termo inerrância, em sua declaração sobre as Escrituras.

A solução de Stott para esse impasse foi forjada no processo de negociação e foi sábia. Em vez de exigir o uso da palavra inerrância, ele a substituiu por uma definição concisa e destacada do termo, dizendo que a Escritura é “sem erro em tudo o que ela afirma”. Evangélicos que se opunham ao termo inerrância poderiam afirmar isso, mas muitos progressistas não o fariam.

II. O congresso também reforçou o artigo do pacto sobre responsabilidade social. Neste ponto, mais uma vez, os redatores estavam se distinguindo tanto dos progressistas no WCC quanto da reação exagerada dos fundamentalistas ao evangelho social do liberalismo.

Traçar o caminho do próprio Billy Graham na questão da justiça social nos fornece algum contexto instrutivo. Em 1953, rompendo com sua criação sulista, Graham começou a insistir que sua audiência fosse integrada, tendo negros e brancos sentados lado a lado.

Em 1960, Billy Graham falou em encontros de avivamento de amplo alcance em vários países da África — pregando o evangelho para multidões gigantescas em estádios lotados — mas ele não estava disposto a pregar o evangelho para multidões segregadas pelo apartheid sul-africano.

As ações deliberadas de Billy Graham eram declarações sociopolíticas claras sobre a integração racial na igreja — e enfureceram muitos fundamentalistas, incluindo os de sua própria denominação, os batistas do Sul.

Uma semana após Billy Graham se recusar a pregar na África do Sul, Bob Jones Sr., evangelista fundamentalista e apresentador, respondeu a isso em uma mensagem de Páscoa na rádio, intitulada “A segregação é bíblica?”. Argumentando a partir de uma leitura enviesada de Atos 17.26, Jones ensinou que a resposta era sim [ou seja, que a segregação racial é bíblica]. Os esforços para integrar as raças e acabar com a segregação, segundo ele argumentou, trabalhavam contra a ordem criada por Deus e desviavam da tarefa de compartilhar o evangelho. Nesse aspecto, Jones repercutia as opiniões de muitos cristãos do Sul.

Embora o apartheid tenha continuado até a década de 1990, Billy Graham finalmente pregou na África do Sul em 1973, apenas um ano antes de Lausanne — talvez em um dos primeiros grandes ajuntamentos no país a reunir pessoas negras, brancas e pardas sentadas lado a lado. Para uma multidão integrada por 100.000 pessoas, o pregador sulista bradou: “O cristianismo não é uma religião do homem branco […] Cristo pertence a todas as pessoas.”

Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.Courtesy of Billy Graham Evangelistic Association
Acima, à esquerda: A. Jack Dain e Billy Graham assinam o Pacto de Lausanne na cerimônia de encerramento de Lausanne, em 1974. Abaixo, à esquerda: Líderes do congresso de Lausanne durante uma coletiva de imprensa, em 1974. À direita: Martin Luther King Jr. e Billy Graham.

Billy Graham era amigo de Martin Luther King Jr., e às vezes um aliado público da causa de King; seu desejo de ver justiça racial ainda no curso de sua vida continuava a crescer. Mas ele se questionava se já tinha feito o suficiente e, em 2005, Billy Graham expressou arrependimento por não ter feito mais pressão pelos direitos civis, desejando ter protestado com King nas ruas.

Este contexto dá vida à versão final do texto do pacto, que distingue a tarefa de proclamar o evangelho — centrando a mensagem de Deus para nós especificamente na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo — da tarefa de [buscar a] justiça social:

Aqui também expressamos arrependimento tanto por nossa negligência quanto por termos às vezes considerado evangelismo e preocupação social como coisas mutuamente excludentes. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, e ação social não seja evangelismo, e libertação política não seja salvação, ainda assim, afirmamos que evangelismo e envolvimento sociopolítico são ambos parte de nosso dever cristão.

Em resposta à Conferência de Bangkok, o Pacto de Lausanne deixa claro que a libertação da opressão não é sinônimo do conceito bíblico de salvação. No entanto, o pacto também evitou o erro fundamentalista de negligenciar a justiça social, e até mesmo chamou os evangélicos ao arrependimento por dissociar o cristianismo de sua preocupação legítima com a ordem social.

Essas são lições críticas para nós nos dias de hoje. Nossas dificuldades atuais, quando falamos e pensamos sobre raça, diversidade e justiça social, não são novas. O debate teológico sobre o evangelho e a justiça social é ao menos tão antigo quanto a controvérsia modernista-fundamentalista. Os evangélicos rejeitaram corretamente o evangelho social e formas particulares da teologia da libertação que levavam a um afastamento do ensino cristão histórico. No entanto, muitas vezes fomos demasiadamente complacentes — e demasiadamente despreocupados com essa complacência — em nossa busca por justiça.

Hoje, uma batalha contenciosa se desenrola sobre a teoria crítica da raça (TCR) e iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Existem muitas maneiras de definir e implementar a TCR e as iniciativas de DEI, algumas das quais se aproximam de versões secularizadas da teologia da libertação. Mas o desejo motivador de incluir e encorajar a diversidade na sociedade é admirável e, em última análise, reflete um anseio pelo reino de Deus. É por isso que muitos apelos cristãos por justiça racial são motivados pela linguagem e por preocupações das Escrituras e até mesmo fundamentados na pessoa de Jesus Cristo.

Pelo menos em alto nível, os objetivos declarados da teoria crítica da raça e das iniciativas de diversidade, equidade e inclusão não são o problema, mesmo que temamos que muitas das abordagens comuns para esses fins sejam equivocadas ou destrutivas. Para aqueles de nós que estão preocupados com versões antibíblicas da TCR, o melhor antídoto pode ser seguir o exemplo do Pacto de Lausanne. Que possamos articular uma teologia robusta de justiça e seguir adiante em nossas ações — e que possamos ser penitentes por nossas falhas no passado em buscar justiça.

III. Ao estudar o Movimento de Lausanne, sempre fico impressionado com o orgulho, a alegria e o amor de seus participantes pela diversidade da igreja global não ocidental e com seu desejo de dar-lhe mais voz. A conferência é estruturada para incluir pessoas dos países mais remotos, com baixa representatividade e poucos recursos. Ela oferece taxas de inscrição variáveis ​​para garantir que os participantes com menos recursos possam comparecer. Mesmo que os organizadores reúnam o grupo mais diverso e global de cristãos da história a cada reunião, eles sempre expressam tristeza por aqueles rincões da igreja que não conseguem comparecer.

Dito isso, o compromisso de Lausanne com a participação global enfrentou vários obstáculos já no início de sua história — a começar por seu primeiro encontro, no qual mais de 1.000 dos 2.700 participantes vieram de países em desenvolvimento.

Antes de Lausanne, alguns líderes africanos propuseram uma “moratória” [do engajamento] de missionários ocidentais na África e de quaisquer recursos financeiros arrecadados por meio de suas organizações. Isso ocorreu, em parte, porque muitos se opuseram aos padrões paternalistas que viam nas missões, geralmente nutridos por grandes desigualdades de riqueza.

As missões ocidentais, mesmo quando bem-intencionadas, às vezes eram exploradoras e falhavam em criar relacionamentos saudáveis ​​e colaborativos que bem servissem aos países não ocidentais. E, com certeza, a associação do movimento missionário da cultura ocidental com o cristianismo distorceu o evangelho e, muitas vezes, foi um obstáculo para o resto do mundo.

Os organizadores de Lausanne convidaram cristãos de todos os lados deste debate para o congresso, entre eles o teólogo queniano John Gatu, o autor da moratória. No congresso, o grupo East Africa National Strategy, composto de cerca de 60 africanos, abordou a questão desta solicitação. Um debate robusto e razoável ocorreu entre Gatu, que defendia a moratória, e Festo Kivengere, um bispo anglicano de Uganda que argumentava contra ela. Ao fim de uma semana, ambos os lados entenderam suas diferenças o suficiente para oferecer uma declaração de consenso ao congresso:

A ideia por trás da moratória é a preocupação com a dependência excessiva de recursos estrangeiros, tanto humanos quanto financeiros, o que às vezes dificulta a iniciativa e o desenvolvimento da responsabilidade local. [Nosso] grupo sentiu que a aplicação do conceito por trás da moratória poderia ser considerada para situações específicas, e não de forma geral.

Com a decretação de uma moratória em larga escala efetivamente retirada, o restante do congresso — e a comissão de redação amplamente ocidental — poderia ter respondido de forma triunfante, evitando a questão por completo. Mas, em vez disso, a comissão reconheceu a legitimidade das preocupações dos africanos e alterou o documento, a fim de declarar: “Também reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito lentas em equipar e encorajar os líderes nacionais a assumirem suas responsabilidades legítimas”.

Em outro ponto, em seu artigo sobre “Evangelismo e Cultura”, o pacto também inclui um reconhecimento de que, embora o “evangelho não pressup[onha] a superioridade de uma cultura sobre a outra” , as missões globais “muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha”.

O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.
O pacto distribuído pelo Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial, na década de 1970.

Nessas declarações, a igreja não ocidental corrigiu com razão a igreja ocidental, e o Ocidente respondeu com arrependimento. Mais uma vez, a “ multiforme sabedoria de Deus”, para relembrar a frase usada no pacto, surgiu por causa de discordâncias que precisavam ser resolvidas, e não apesar delas.

Na raiz dessa questão estava o desejo comum dos cristãos não ocidentais de serem recebidos como iguais. E o Pacto de Lausanne saúda abertamente a beleza dessa visão:

Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente […], demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo.

Cinquenta anos atrás, os evangélicos estavam se conscientizando de como as igrejas não ocidentais sofriam quando o evangelho era intimamente vinculado a culturas e países ocidentais. Em nossos dias atuais, estamos vendo em primeira mão os perigos e danos que essa ligação causou às igrejas ocidentais também.

Sempre que identificamos o cristianismo com o Ocidente, com os Estados Unidos ou com qualquer outra entidade sociopolítica, nosso testemunho e nossa compreensão do evangelho são distorcidos. E quando ignoramos a plena diversidade de vozes na igreja global, negligenciamos a “multiforme sabedoria de Deus”.

Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.Courtesy of Wheaton Archives &amp
Acima, à esquerda: Festo Kivengere. Acima, à direita: John Stott. Abaixo: Participantes de Lausanne II, em 1989.

O Pacto de Lausanne criou um estranho tipo de movimento — uma rede de cristãos de várias denominações e organizações ao redor do mundo. E, embora o congresso em si fosse composto exclusivamente por protestantes, o pacto que eles adotaram estava intencionalmente alinhado com outros ramos do cristianismo. Pelo menos entre os bolsistas da Harvey Fellowship, muitos católicos e cristãos ortodoxos também assinaram o pacto.

Um cristão da China me contou, certa vez, que lhe pediram para assinar o pacto, o que lhe inspirou medo e preocupação reais. Na China, as assinaturas eram evidências físicas que o governo usava para identificar cristãos e persegui-los; por isso, ele fora ensinado a nunca assinar algo que lhe trouxesse implicações tão cabais. Ainda assim, após muita deliberação, ele decidiu assinar o pacto — a única declaração de fé que ele já assinou na vida. Muitos de nós nunca enfrentaremos uma perseguição como a dele, mas, ao assinar o pacto, estamos nos unindo em solidariedade a ele e a tantos outros como ele.

Particularmente fora dos Estados Unidos, a comunidade de Lausanne tem continuado a crescer e, embora continue repleta de discordâncias, manteve clara visão da missão daquele que é maior do que todas as nossas diferenças.

Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.Courtesy of Wheaton Archives & Special Collections, Wheaton College, IL
Acima: Participantes discutem o programa em Lausanne II, 1989. Abaixo: Uma das sessões principais, durante Lausanne II.

A comunidade de Lausanne continua a reunir novas gerações de líderes. Quinze anos após o congresso de 1974, em 1989, a Segunda Conferência Internacional para Evangelismo Mundial foi realizada em Manila, e ficou conhecida como Lausanne II. Este congresso teve 4.300 delegados de 173 países, incluindo a União Soviética. Em 2010, 21 anos depois, o Terceiro Congresso de Lausanne se reuniu na Cidade do Cabo, África do Sul. Desta vez, 4.000 delegados de 198 países se reuniram presencialmente, mas muitos outros participaram virtualmente.

Em setembro, o quarto congresso será realizado em Seul, onde 5.000 delegados — entre os quais eu me incluo — participarão presencialmente e outros 5.000 participarão virtualmente. Dezenas de milhares a mais comparecerão a reuniões-satélites pelo mundo todo.

Muita coisa mudou desde o último encontro em 2010. Novas guerras estão acontecendo ao redor do mundo, e rumores de guerra pairam até mesmo na Coreia, onde nos encontraremos. Os Estados Unidos estão se preparando para outra eleição presidencial contenciosa, junto com muitos outros países, e várias convenções denominacionais continuam a se dividir por causa de tensões entre fundamentalismo e progressismo.

Ainda assim, minha esperança é que os evangélicos tenham, mais uma vez, a oportunidade de lembrar quem somos, de onde viemos e por que é vital para nós trabalharmos as nossas diferenças, em vez de ignorá-las, reprimi-las ou nos dividirmos por causa delas. E talvez, ao nos reorientarmos para o trabalho da missão global de Deus, possamos recuperar a melhor versão do que já significou ser um evangélico.

Ao olharmos para Seul este ano, peço a todos os que creem — evangélicos ou não — que leiam, discutam e considerem assinar o Pacto de Lausanne. Que os líderes da igreja ensinem esse pacto do púlpito, para que as congregações possam refletir seriamente sobre o que ele exige de nós. Que ele nos lembre da bela e amada comunidade de diferenças e discordâncias para a qual somos chamados.

Vamos fazer esse pacto juntos, mais uma vez, o pacto de assumir a grande tarefa das missões mundiais, para que “a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”.

S. Joshua Swamidass é um médico pesquisador, professor associado de medicina laboratorial e genômica na Universidade de Washington em St. Louis, fundador da Peaceful Science e autor de The Genealogical Adam and Eve [Adão e Eva Genealógicos].

¹Neste artigo, o termo “evangélico” abrange todas as tradições cristãs surgidas como desdobramento das Reformas protestantes, incluindo pentecostais, neopentecostais e independentes.

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A foto mais icônica das Olimpíadas tem uma mensagem cristã

Com o dedo apontando para o céu, o surfista Gabriel Medina mostra que o sucesso nos esportes deixou os evangélicos brasileiros menos marginalizados e mais confiantes.

O brasileiro Gabriel Medina reage após pegar uma boa onda no surfe masculino durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024.

O brasileiro Gabriel Medina reage após pegar uma boa onda no surfe masculino durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Christianity Today August 9, 2024
Jerome Brouillet / Contributor / Getty

Há uma mensagem cristã por trás da que pode ser a imagem mais celebrada das Olimpíadas de 2024.

Em 29 de julho, na terceira rodada da competição de surfe de prancha curta [shortboard], o brasileiro Gabriel Medina enfrentou o japonês Kanoa Igarashi, que o havia eliminado nas últimas Olimpíadas. Em sua segunda onda, Medina emergiu de um tubo exuberante, com as palmas das duas mãos abertas e levantadas, sugerindo que os juízes deveriam lhe dar um 10 por sua performance. (Dois dos cinco juízes concordaram com ele; sua pontuação final foi 9,9).

Medina, então, girou para a esquerda, em direção à rebentação, e pulou da prancha, levantando a mão direita e apontando o dedo indicador para o céu. Esta foi a imagem que o fotógrafo da Agence France-Presse, Jérôme Brouillet, capturou.

Os evangélicos brasileiros reconheceram o sinal imediatamente.

“É como se ele estivesse dizendo: ‘Não é para mim que vocês deveriam estar olhando, é para Deus. Este momento de glória não é meu, mas sim dele’”, disse João Guilherme Züge, historiador residente no Museu Paranaense, em Curitiba.

https://www.youtube.com/watch?v=JdNDuAy-Bfo&t

Em comparação com os Estados Unidos, cujos jogadores de beisebol, após fazerem home runs, frequentemente apontam para o céu pelas mais diferentes razões — alguns para expressar gratidão a Deus, outros para homenagear entes queridos já falecidos —, entre os atletas brasileiros o gesto se tornou intimamente associado a esportistas cristãos.

O dedo levantado e apontando para o céu tem sido a marca registrada dos atletas evangélicos brasileiros por mais de 40 anos. Demonstrações públicas de fé após feitos em competições ajudaram a afirmar e a estabelecer a identidade evangélica, especialmente quando o movimento ainda estava em sua infância.

Ninguém parece se lembrar quem foi o primeiro a criar o gesto, mas este ganhou popularidade na década de 1990, principalmente por meio de jogadores de futebol, como Kaká, que levantava os dois dedos indicadores, sabendo que a câmera estaria apontada para ele depois de marcar um gol.

Apesar de sua onipresença, a intenção espiritual por trás da mensagem não necessariamente se difundiu para além dos círculos evangélicos. “[Medina] realmente tem direito e autoridade para se considerar o número um”, comentou no ar, na semana passada, Renata Vasconcellos — âncora do Jornal Nacional da TV Globo, o programa de notícias mais assistido do Brasil —, dando ao gesto de Medina uma interpretação muito diferente.

Mas a natureza discreta do gesto, quase genérica, também ajudou a torná-lo tão popular. Assim como a Copa do Mundo e outras competições internacionais, as Olimpíadas proíbem qualquer “tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial… em quaisquer locais, instalações ou outras áreas olímpicas”.

Essas regras forçaram os atletas que buscam um palco para compartilhar sua fé a fazê-lo discretamente, ou a expressar sua gratidão a Deus em entrevistas ou em postagens nas redes sociais. Medina, por exemplo, postou a foto de Brouillet acompanhada do texto de Filipenses 4.13: “Tudo posso naquele que me fortalece”.

Os atletas evangélicos brasileiros têm sido criativos em suas expressões de fé durante as Olimpíadas deste ano. Rayssa Leal, skatista e medalhista de bronze, e Caio Bonfim, medalhista de prata na marcha atlética, usaram a língua de sinais para se referir a Jesus.

Medina, após perder nas semifinais para o australiano Jack Robinson, compartilhou uma foto em preto e branco de si mesmo com a legenda “Josué 1” — uma referência ao capítulo da Bíblia em que Josué exorta os israelitas a serem “fortes e corajosos” nada menos do que quatro vezes — acompanhada da música “Ousado Amor”, cantada por Isaías Saad. Em 7 de agosto, ele postou uma foto em que aparece do lado de fora do Louvre, recriando sua foto icônica, mais uma vez apontando para o céu com o dedo indicador.

Na década de 1980, quando os evangélicos representavam apenas 6,5% da população brasileira, João Leite, o “goleiro de Deus”, e o atacante Baltazar estiveram entre os fundadores dos Atletas de Cristo, um ministério cujo objetivo era mobilizar atletas para compartilhar o evangelho ao redor do mundo. Desde o início — e espontaneamente, segundo Züge — o dedo apontando para o céu nas comemorações de gols se tornou uma marca registrada do movimento.

O ministério Atletas de Cristo preparava os atletas para se verem como embaixadores de sua fé e os encorajava a pregar e a compartilhar seus testemunhos onde quer que fossem. (Um fruto dessa estratégia foi o goleiro brasileiro Alisson Becker ter batizado Roberto Firmino, seu companheiro no Liverpool, em 2020.)

Esse ministério também foi imensamente bem-sucedido em aumentar a autoestima dos evangélicos brasileiros. Um momento-chave ocorreu durante a final entre Brasil e Itália, na Copa do Mundo da FIFA, em 1994. Quando nenhum dos dois times marcou gols durante o tempo regulamentar nem na prorrogação, o jogo foi para os pênaltis. O Brasil venceu no último chute.

“O maior símbolo daquela Copa foi quando o craque italiano Roberto Baggio perdeu o seu pênalti e o Taffarel, que já tinha defendido uma cobrança, caiu de joelhos, em posição de oração, apontando para o céu”, disse Züge.

O goleiro brasileiro Taffarel (à direita) comemora depois que Roberto Baggio, da Itália (à esquerda), erra seu chute na Copa do Mundo da FIFA.Getty / Edits by CT
O goleiro brasileiro Taffarel (à direita) comemora depois que Roberto Baggio, da Itália (à esquerda), erra seu chute na Copa do Mundo da FIFA.

Testemunhos como esse impactaram os evangélicos brasileiros.

“Quando o cristão via o jogador fazer um belo lance, marcar um gol em uma partida importante e celebrar com o dedo apontando o céu, ele se sentia representado”, disse Reinaldo Olécio Aguiar, sociólogo e pastor da Primeira Igreja Presbiteriana Unida de Vitória. “Mesmo sabendo que era parte de uma minoria, ele via a si mesmo como vitorioso”.

Jogadores como Taffarel sabiam o impacto que tinham sobre o público.

“Desde o início, os Atletas de Cristo souberam usar a mídia”, disse Züge. Os atletas eram treinados para aprender a dar um testemunho de fé em 30 segundos, para aproveitar uma entrevista ao vivo.

A vitória de 2004 também mudou a forma como os atletas evangélicos eram percebidos pelos seus companheiros de equipe.

“Antes disso, todo mundo zombava da gente”, disse Anselmo Reichardt Alves, ex-jogador que se tornou pastor e capelão da seleção brasileira. “Diziam que nós éramos bebês, porque não saíamos para beber com eles, e eles questionavam a nossa masculinidade porque nós não saíamos com várias mulheres”.

Ver essas superestrelas expressando sua fé abertamente também inspirou evangélicos que enfrentavam críticas por tentar viver a própria fé e evitavam participar de tradições populares como o Carnaval.

“Nossas ações eram como um espelho para outros cristãos; ao ver isso, os cristãos que assistiam aos jogos também aprendiam a demonstrar sua fé de um modo destemido”, disse Züge. As pessoas falavam mais abertamente sobre Deus. Se os jogadores podem, por que não eu?

Essa ousadia também pode ter inspirado atletas contemporâneos a serem ousados ​​em sua fé.

“Esportistas agradecendo a Deus por suas vitórias não é novidade, mas o grande número de atletas que estão fazendo isso nesta Olimpíada é notável — especialmente na França, que insistiu para que seus próprios atletas respeitassem as leis secularistas do país”, escreveu a comentarista do The Guardian, Emma John.

O ministério Atletas de Cristo às vezes recebia críticas por encorajar atletas vitoriosos a compartilharem sua fé de maneiras que podiam insinuar que suas conquistas resultavam do fato de terem mais fé do que outros. Alguns comentavam que eles tinham uma possível tendência a ignorar as histórias dos atletas que perdiam, muitos dos quais também tinham frequentemente um relacionamento pessoal com Deus.

“O que dizer quando há cristãos fiéis em ambos os lados?”, disse Aguiar.

Foi o que aconteceu nas Olimpíadas de Paris, durante uma disputa pela medalha de bronze no judô feminino de 52 quilos, entre a brasileira Larissa Pimenta e a italiana Odette Giuffrida. (A CT destacou a história delas em sua cobertura dos melhores momentos olímpicos.)

Depois que Pimenta venceu a luta e conquistou o bronze, ela ficou ali no tatame, chorando. Giuffrida se aproximou e a abraçou. “Levanta”, ela disse a Pimenta, conforme as duas atletas contaram mais tarde. “Toda honra e toda glória você tem que dar para Ele”

Giuffrida compartilhou mais tarde, nas redes sociais, que se lembrava da noite em que Pimenta a levou pela primeira vez a um culto na igreja, depois que começaram a treinar juntas. “Daquele dia em diante, nossas vidas mudaram. E hoje, aqui estamos, independentemente do que aconteceu naquele tatame, independentemente da vitória ou da derrota, agradecendo a Ele em uma final olímpica, na frente do mundo, por tudo”, escreveu ela.

“E essa é a beleza disso. Posso me sentir sincera, posso me sentir com Ele ao meu lado.”

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Os melhores momentos de atletas cristãos nas Olimpíadas de Paris

Como os atletas estão compartilhando sua fé e apontando para Deus.

Odette Giuffrda, da equipe da Itália (de azul), parabeniza Larissa Pimenta, da equipe do Brasil (de branco), por ganhar a medalha de bronze na categoria feminina de 52 kg no Judô.

Odette Giuffrda, da equipe da Itália (de azul), parabeniza Larissa Pimenta, da equipe do Brasil (de branco), por ganhar a medalha de bronze na categoria feminina de 52 kg no Judô.

Christianity Today August 7, 2024
Michael Reaves / Staff / Getty / Edits by CT

Para a maioria dos espectadores, as Olimpíadas são uma exibição do mais alto nível de habilidade atlética. Para muitos atletas cristãos, porém, o evento oferece uma oportunidade de expressarem sua fé tanto uns para os outros quanto para o mundo. Abaixo estão alguns dos momentos mais memoráveis de expressão da fé cristã nas Olimpíadas de Paris.

Este post será atualizado ao longo das Olimpíadas.

Rebeca Andrade: seu caráter piedoso e sua graça conquistam o amor dos competidores

https://www.instagram.com/p/C-S_OHURKhx/

Para grande parte do mundo, a ginasta americana Simone Biles tem sido o rosto mais conhecido das Olimpíadas de Paris. Em 5 de agosto, Biles e sua companheira de equipe Jordan Chiles protagonizaram uma cena olímpica memorável quando, em um gesto que comunica o verdadeiro espírito esportivo, elas se curvaram em reverência para a competidora brasileira Rebeca Andrade, no pódio de medalhas.

Andrade tinha acabado de ganhar a medalha de ouro na competição de solo, com Biles e Chiles ganhando prata e bronze, respectivamente.

As duas estrelas dos EUA se referiram a Andrade como “rainha”, “ícone” e “lenda”, enquanto ressaltavam a amizade internacional que elas têm compartilhado ao longo de anos de competição acirrada.

Andrade, aos 25 anos, já sofreu três lesões no ligamento cruzado anterior (LCA) que exigiram cirurgias de reconstrução durante sua carreira; ela não tem sido tímida em direcionar seus agradecimentos a Deus. Ela começou a cantar durante uma entrevista, depois de ganhar a medalha de prata na competição de salto.

“Deus estava me preparando para que eu conquistasse as minhas coisas”, ela afirmou. “E a música diz: ‘Eu estou te preparando para o novo tempo que já vai chegar… calma, tá chegando, é que eu estou caprichando, você vai ver.’ E é realmente isso, sabe? Ele está fazendo coisas incríveis que eu jamais poderia imaginar.”

Em uma entrevista, há dois anos, Andrade reconheceu o valor de sua educação cristã por lhe dar resiliência, e também disse que, para lidar com a ansiedade nas Olimpíadas, “eu sempre levava a Bíblia para a competição e a lia quando ia ao banheiro”.

Ela também contou como Deus a encorajou após sua terceira cirurgia, em 2019:

Eu estava no quarto com a minha amiga, ela ia competir no dia seguinte e eu não, porque tinha me lesionado, […] e eu lembro que mentalmente eu só pedia um abraço — porque eu não tinha minha mãe, meus irmãos ali comigo. A minha amiga estava dormindo, e ela dorme muito pesado. Ela acordou, levantou sem dar uma palavra e veio e me deu um abraço. Foi naquele momento que eu soube que Deus estava comigo […] e que aquele abraço foi dele, sabe. E eu falei: Eu não vou parar […] Se eu precisei passar por isso de novo é porque Ele tem algo maior, e Ele tinha.

Em Cristo, tanto os que vencem quanto os que são vencidos podem ser vitoriosos

https://www.instagram.com/p/C9-e763NjDi/

Quando a brasileira Larissa Pimenta e a italiana Odette Giuffrida se enfrentaram, na disputa pela medalha de bronze na categoria feminina de judô de 52kg, no dia 28 de julho, elas já se conheciam bem.

Muito bem, na verdade. Giuffrida se tornou cristã por influência de Pimenta, durante uma visita ao Brasil.

Pimenta venceu o combate. Em seu momento de alegria e emoção, o primeiro abraço que recebeu foi da amiga que ela havia derrotado. Como Larissa Pimenta explicou em uma entrevista:

“Ela é uma pessoa especial para mim e o que me falou foi muito significativo. Ela fala português e a gente se fala bastante. A ‘Ode’ conheceu Deus através de mim — ela veio ao Brasil e encontrou Deus. E uns dias atrás estávamos conversando… que toda honra e toda a glória a gente ia dar para ele. Então, naquele momento [sobre o qual todos estão perguntando], ela me disse: ‘levanta, porque toda a honra e toda a glória você tem que dar para ele!’”

Ela superou a falta de moradia para glória do atletismo

https://www.instagram.com/p/C9z2K36Mqpe/

“Eu sou uma filha de Deus”, diz a biografia de Shafiqua Maloney no Instagram. No entanto, essa filha de Deus lutou contra a falta de moradia recentemente, em 2023, a caminho das Olimpíadas.

Em fevereiro passado, a corredora de 800 metros, que competiu na faculdade pela Universidade do Arkansas, mas representa a nação caribenha de São Vicente e Granadinas, compartilhou que havia ficado sem um teto para morar por vários meses, durante o ano anterior.

A confissão de Maloney chamou a atenção do primeiro-ministro de sua nação, e, logo depois, ela recebeu um contrato de patrocínio de uma empresa de água caribenha.

Maloney chegou a Paris classificada na 27ª. posição em sua prova, mas atravessou as duas primeiras rodadas em tempo recorde pessoal para chegar à final, na qual ficou em quarto lugar, em 5 de agosto, atrás da medalha de bronze por apenas 0,24 segundos.

“Eu fiquei sem teto — sem ter o que comer e todas essas coisas”, disse Maloney, citada em uma matéria do jornalista esportivo Chris Chavez, depois que ela se classificou para as finais. “Deus me carregou por tudo isso e, quando cheguei aqui, tive de acreditar que ele não me trouxe tão longe só para me abandonar e que ele me conduziria até o fim.”

Medalhista no salto sincronizado diz: “Deixo Deus trabalhar”

https://www.instagram.com/p/C-GcNneitEv/

A mergulhadora britânica Andrea Spendolini-Sirieix disse: “Eu dou glória a Deus”, e citou Josué 1.9 em sua página do Instagram, após ganhar o bronze com a parceira Lois Toulson, na prova de salto sincronizado de plataforma de 10 metros, em 31 de julho.

“Isso é mais do que apenas esporte”, ela acrescentou. “Estou orgulhosa por representar meu país, minha família e por glorificar o nome de Jesus.”

Depois de encarar dificuldades nas Olimpíadas de Tóquio e de sofrer bloqueios mentais semelhantes aos enfrentados pela ginasta americana Simone Biles, Spendolini-Sirieix — filha de Fred Sirieix, uma celebridade da televisão britânica — cogitou abandonar o esporte. Mas, em vez disso, ela renovou suas forças em sua fé cristã, a qual ela compartilha sem hesitação.

Ela descreveu sua fé como uma “força estabilizadora”, dizendo que começa cada dia com uma oração e termina com um estudo da Bíblia. Questionada se ela tinha alguma superstição quando competia, a atleta respondeu: “Não, eu me solto e deixo Deus trabalhar. Eu oro e estudo a Bíblia antes da competição.”

Ele não é o skatista típico, mas ama a Deus

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“Jesus é Rei!”, gritou o skatista de 19 anos e queridinho do público, Cordano Russell, quando os locutores olímpicos o anunciaram na final masculina de skate street, na segunda-feira.

Ocupando o 16º lugar no ranking mundial, Russell, que mora em San Diego, mas compete por sua terra natal, o Canadá, acertou suas maiores manobras, mas caiu duas vezes e terminou em sétimo lugar. Ele agradeceu ao seu “Pai celestial” no Instagram e prometeu que vai continuar treinando para as Olimpíadas de 2028, em Los Angeles.

Com 1,90m de altura e 104 kg, Russell é muito mais alto e mais musculoso do que a média dos skatistas (e quebra mais skates do que seus concorrentes, que são menores). Ele começou a andar de skate aos 4 anos e convenceu sua família a se mudar para Carlsbad, na Califórnia, um polo desse esporte, quando tinha 8 anos. Russell mostrou potencial para o futebol americano no ensino médio, mas, em vez disso, escolheu o skate profissional.

“Foi preciso muita oração e muito discernimento para decidir o que fazer”, disse Russell a um periódico da Universidade de San Diego, onde ele vai se matricular neste outono. “Conversando com o Senhor, ele me mostrou que meu amor e meu coração estavam voltados para o skate.”

De acordo com a matéria publicada, Russell “atribui à sua formação religiosa o fato de ter incutido nele a ética de trabalho e a força mental necessárias para se destacar no exigente mundo do skate profissional”. Ele orienta jovens atletas — e quando erra uma manobra, pode esperar que ele vai gritar “Nuggets de frango!”, em vez de um palavrão.

Fiji: eles são grandes jogadores de rugby e grandes adoradores de Deus

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Fiji, nação insular do Pacífico com menos de um milhão de habitantes e uma área total que corresponde a cerca de dois terços do território do Havaí, levou 33 atletas para as Olimpíadas de Paris, e 24 deles são jogadores de rugby. As únicas medalhas olímpicas de Fiji sempre vieram do rugby sevens (o rugby de sete jogadores).

A equipe masculina estava invicta em Olimpíadas: foi ouro em 2016, no Rio, quando o rugby sevens foi introduzido, e ouro em Tóquio, em 2021. Mas, após 17 vitórias consecutivas, eles perderam para a França, país anfitrião, na final deste ano.

Mas essa derrota não impediu a equipe de Fiji de continuar fazendo outra coisa pela qual os atletas se tornaram conhecidos: cantar louvores a Deus.

A equipe de Fiji chamou atenção mundial por cantar hinos com belíssima harmonia, no pátio da Vila Olímpica. A jogadora australiana de polo aquático, Tilly Kearns, postou um vídeo com o comentário: “Estou no melhor lugar da Vila, ao lado do prédio da Oceania.”

Um site de música clássica compartilhou o vídeo e explicou que a equipe estava cantando “Mo Ravi Vei Jisu”, um hino fijiano. A letra do hino pode ser traduzida como “Confie no Senhor e ele guiará seu caminho.” O site acrescentou: “Quem ouve [os atletas cantando], no vídeo, pode pensar que está ouvindo um ensaio de um coral profissional. As harmonias, os ritmos, a musicalidade e a pura beleza de suas vozes ressonantes fazem parecer difícil de acreditar que eles não são músicos que receberam treinamento formal.”

Compartilhando o Evangelho na língua de sinais

https://www.instagram.com/p/C99Lfr0NswG/

A brasileira Rayssa Leal, que ganhou a medalha de prata no skate street nas Olimpíadas de Tóquio, aos 13 anos, conquistou o bronze este ano. Antes de uma rodada preliminar, ela se virou para a câmera e usou a língua de sinais para comunicar João 14.6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”

“Eu fiz isso porque faço em todas as competições”, disse Leal ao site UOL. “Para mim é importante; sou cristã, acredito muito em Deus. Ali eu pedi força e mandei uma mensagem para todos, de que Deus realmente é o caminho, a verdade e a vida.”

A maior nadadora olímpica da África do Sul também dá honra a Deus

https://www.instagram.com/p/C-Cwq3mtZ7g/

Tatjana Schoenmaker Smith anunciou sua aposentadoria da natação competitiva em 1º. de agosto, após conquistar sua quarta medalha olímpica, uma prata, nos 200 metros peito. Ela já havia vencido os 100 metros peito, três dias antes.

Após sua vitória nos 100 metros peito, Smith vestiu uma camiseta que agradecia “minha comunidade” pelo apoio. Os três primeiros nomes listados eram Deus, Jesus e o Espírito Santo.

Antes das Olimpíadas, Smith declarou em uma postagem nas redes sociais que estava “muito empolgada em nadar para a glória de Deus e representar seu país, enquanto fazia isso.”

Aos três anos, ele não conseguia andar. Agora, é medalhista na marcha atlética

https://www.instagram.com/p/C-Hp8-bxwet/

Caio Bonfim, atleta do Brasil de 33 anos, declarou: “Eu pertenço a Jesus”, após conquistar a medalha de prata na prova de 20km de marcha atlética masculina, no dia 1º. de agosto. Um grande feito para alguém que, aos 3 anos, não conseguia sequer andar.

Bonfim tornou-se intolerante à lactose, depois de ter meningite e pneumonia, quando era bebê. Depois de uma cirurgia, ficou com as pernas arqueadas engessadas, mas, à medida que crescia, ele se determinou a seguir os passos dos pais na marcha atlética.

Treinar para a marcha atlética, esporte que muitas vezes foi alvo de piadas por parte de comediantes e de comentaristas, expôs Bonfim a zombarias nas ruas de Brasília, mas ele persistiu. Ele se classificou pela primeira vez para os Jogos Olímpicos em 2012, e ficou em quarto lugar nos Jogos do Rio, em 2016.

Quando perguntado em uma entrevista após a corrida se foi difícil ganhar uma medalha, Bonfim respondeu: “Não, a parte difícil foi o dia em que marchei pela primeira vez na rua e fui insultado.” Refletindo sobre sua experiência durante a competição, ele comentou: “No meio da prova, você olha em volta e vê um, dois, três, cinco atletas ao seu redor e pensa ‘Ainda estou em décimo lugar.’[…] Mas senti a mão de Deus me segurando e dizendo, ‘Vamos lá, cara!’”

Bonfim frequenta uma igreja da Assembleia de Deus em Sobradinho, uma cidade que fica perto de Brasília.

Ele ainda é um dos melhores nadadores do mundo, mas agora serve a Deus

https://www.instagram.com/p/C-A1rxpN7Av/

Adam Peaty, detentor do recorde mundial nos 100 metros peito, que se tornou cristão em 2022 após lutar contra o alcoolismo e a depressão, quase conquistou o ouro em Paris, terminando em segundo lugar por apenas 0,02 segundos. Ele chorou depois da prova, mas não estava desapontado.

Peaty, que agora exibe uma cruz tatuada no peito, explicou: “São lágrimas de felicidade. Não estou chorando porque fiquei em segundo lugar, estou chorando porque foi necessário muito esforço para chegar até aqui. Sou um homem muito religioso e pedi a Deus para mostrar meu coração, e este é o meu coração. Eu não poderia ter feito mais.”

Peaty contou que, quando visitou pela primeira vez a igreja à qual ele agora pertence, o pastor citou os Jogos Olímpicos no sermão.

“Ninguém sabia que eu estaria [na igreja],” ele lembra. “Eu estava sentado no fundo e pensei: ‘se isso não é para mim, então, o que é?’”

Com reportagens adicionais de Annie Meldrum.

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As lições do tableau da “Última Ceia” nas Olimpíadas de Paris

Como diretor de arte, acho que as Olimpíadas cometeram a falha de não considerar seu público. Como cristão, não estou surpreso com o desdém de pessoas que não são da igreja.

Junção da "Última Ceia", de Da Vinci, e da "Celebração dos deuses", de Jan van Bjlert.

Junção da "Última Ceia", de Da Vinci, e da "Celebração dos deuses", de Jan van Bjlert.

Christianity Today August 2, 2024
Illustration by Christianity Today

Antes das Olimpíadas de Paris de 2024, Thomas Jolly parecia confiante com o que havia imaginado para as longas cerimônias de abertura e encerramento. O diretor artístico foi reservado sobre os detalhes das apresentações que vinha planejando há dois anos — porém, nos dias que antecederam os Jogos, ele revelou que esperava que o espetáculo fosse “muito significativo para os artistas que se apresentarão”.

Agora, passada a cerimônia de abertura, resta a Jolly defender sua visão.

Um segmento da abertura atraiu controvérsia em particular: um tableau — composto por ativistas LGBTQ, artistas drag e dançarinos lascivos — o qual muitos espectadores sentiram que sutilmente reencenava “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. “Minha intenção não é ser subversivo, nem zombar ou chocar”, disse Jolly, em resposta ao alvoroço criado. “Acima de tudo, eu queria enviar uma mensagem de amor, uma mensagem de inclusão e não causar divisão, de forma alguma”. E, no entanto, a cena trouxe divisão, e foi recebida com desprezo por aqueles que a interpretaram como uma paródia que zomba de Cristo e seus discípulos.

Há uma grande disparidade entre o que Jolly alega serem suas intenções artísticas e a maneira como sua arte foi percebida.

Como artista e diretor de arte, estou constantemente lutando com aquilo que o visual comunica. Quando analiso algum material enviado por nossos artistas colaboradores, avalio não apenas a execução técnica das imagens, mas também como nossos leitores podem interpretar seu significado. Em um diário, tomo notas e esboço possibilidades, enquanto procuro a maneira certa de transmitir uma ideia sem palavras. O simbolismo deve ser evidente? Esta cena pede nuance e ambiguidade? Como o uso de cores ou de formas pode oferecer uma nova perspectiva? Em todo o meu trabalho criativo, tenho intenções para o que será transmitido. E, então, olho para o futuro, tentando antecipar como essas intenções serão percebidas.

Todo criador está sujeito a seu público — está sujeito a como quem lê um romance, ouve um álbum ou vai a um museu entende e vivencia sua obra. A arte não existe em isolamento; ela é sempre comunitária. E isso é uma bênção, não uma maldição. No momento em que contamos uma história, lançamos uma música ou encenamos uma peça, ela não é mais somente nossa. É dessa maneira linda, encantadora e arriscada que toda arte é uma colaboração entre o artista e o resto do mundo.

Em sua defesa da controversa performance nas Olimpíadas, Jolly explica que suas intenções eram diferentes da ofensa sofrida por alguns espectadores. Em outras palavras, segundo ele argumentou, isso não é culpa dele. O público ofendido não interpretou a sua arte corretamente. Jolly argumenta que a cena não foi inspirada na tela de da Vinci, mas na obra Le Festin des Dieux (O banquete dos deuses), uma pintura de Jan van Bijlert que retrata um banquete no Monte Olimpo. Apolo, o deus do sol, está de frente para o espectador; um Dionísio nu come uvas em primeiro plano. É bastante plausível que esta obra tenha sido sua verdadeira inspiração.

"Le Festin des Dieux" (A festa dos deuses) é uma obra do pintor holandês Jan van Bijlert, de 1635 - 1640.
“Le Festin des Dieux” (A festa dos deuses) é uma obra do pintor holandês Jan van Bijlert, de 1635 – 1640.

Mas esta defesa — “vocês não interpretaram a minha arte corretamente” — não absolve um artista. Esse é o tipo de resposta preguiçosa e pretensiosa. Vem de um ego que assume que a perspectiva do artista é a única leitura adequada do que foi comunicado. Ao culpar o espectador por uma interpretação falha, o artista afirma que sua intenção sobrepuja o que sua arte comunicou. Ele nega a realidade objetiva de como sua arte se situa no tempo e no espaço, em seu contexto histórico e cultural. Como um historiador de arte e professor emérito disse ao The New York Times, “A ideia da figura central com uma auréola e um grupo de seguidores de cada lado — é tão típica da iconografia de ‘A Última Ceia’ que lê-la de qualquer outra forma pode ser um pouco temerário.”

Nossas intenções importam, mas não garantem como os outros reagirão. Quando Paulo adverte: “Não deixem que falem mal do que vocês consideram bom” (Romanos 14.16, ESV), ele não está instruindo os romanos a se defenderem. Ele está dizendo a eles para mudarem sua forma de agir, com o propósito de “não colocar pedra de tropeço ou obstáculo no caminho de um irmão” (v.13). Nossas intenções não definem a realidade. Somos responsáveis ​​por ter cuidado com o que criamos. E devemos ser humildes o bastante para reconhecer quando não somos bem-sucedidos nisso.

Artistas são pessoas muito perceptivas. Como diretor de arte, Jolly deve ter considerado cuidadosamente as implicações de cada detalhe desta performance. Deixar de considerar as percepções de 2 bilhões de cristãos do mundo inteiro foi, no mínimo, desleixo, falta de cuidado, e muito possivelmente falta de consideração intencional. Às vezes, a arte é feita para ser chocante e provocativa. A arte chama a atenção e rompe pressupostos por boas razões. Mas Jolly diz que esse não era seu objetivo. Se ele estava tentando comunicar inclusão, ele o fez excluindo cristãos e grupos religiosos que ficaram horrorizados com a performance. No fim das contas, sua mensagem só falou com parte de sua audiência.

Portanto, os cristãos não estão errados por se ofenderem. Mas o que fazemos com nossa ofensa também importa.

Quer Jolly e os artistas tenham se arriscado ou tenham abraçado a oportunidade de serem escandalosos, é compreensível que os cristãos achem uma cena que lembra a “Última Ceia” particularmente mordaz. Mas, decisões artísticas descuidadas à parte, será que a igreja deveria se surpreender com uma afronta como essa — e muito menos com a obscenidade do restante da cerimônia de abertura?

No meio de uma discussão sobre imoralidade, Paulo diz à igreja de Corinto que eles não podem se isolar da pecaminosidade da sociedade secular. Eles teriam que se afastar do próprio mundo para alcançar tal imunidade (1Coríntios 5.10). Sim, eles devem se esforçar para proteger a integridade do corpo de Cristo — como nós também devemos. Se houver alguém dentro [da igreja] que se recuse a abandonar sua pecaminosidade, Paulo exorta os coríntios a não se associarem a esse indivíduo, a fim de manterem um padrão moral dentro de sua comunidade.

Mas esse não é o padrão que Paulo espera do mundo que está fora da igreja. Ele lembra aos coríntios que é papel de Deus julgar “os de fora”, e não deles, inclusive no contexto de pecado sexual chocante (1Coríntios 5.13). Aparentemente, a igreja de Corinto estava se distanciando e evitando qualquer interação com os descrentes da cidade. Paulo diz a eles que isso não está certo.

Este é o mesmo padrão que levou os fariseus a questionarem Jesus, quando ele comeu com cobradores de impostos (Mateus 9.10-13). Jesus teria compartilhado uma refeição com artistas drag, com pessoas que poderiam ridicularizar a igreja e seus símbolos sagrados? Não devemos ter dúvidas de que ele teria, nem de que ele nos chama a fazer o mesmo. Também não devemos duvidar de que Jesus chama essas pessoas ao arrependimento. Sua resposta ao pecado nunca foi se afastar nem condenar, mas sim proclamar seu perdão e convidar as pessoas a segui-lo. Este é o convite que ele faz para todos nós.

Não devemos esperar que os descrentes entendam ou respeitem a grave solenidade de uma cena como a da Última Ceia. Não devemos nos surpreender com a obscenidade das apresentações durante a cerimônia de abertura. Mas também não devemos ficar indiferentes. Nossa reação deve ser de tristeza e compaixão. O nosso mundo é caído. Nós também somos caídos, e afortunados por termos ouvido e recebido a obra redentora de Jesus.

E assim, como um artista consciencioso que se debate com as implicações de sua obra, devemos considerar o que nossas ações comunicam. Qual é a mensagem que nós pretendemos passar? Quando os cristãos condenam e boicotam publicamente as Olimpíadas, em resposta à cerimônia de abertura, isso dificilmente transmite nossa crença de que Cristo morreu por nós, quando ainda éramos pecadores. E quando Barbara Butch, a DJ que estava no centro da performance do tableau, recebe ameaças de morte e assédio após a performance, nosso silêncio sobre a santidade da vida dela, como alguém que também foi feito à imagem de Deus, é revelador.

Em vez de fazer isso, será que podemos compartilhar uma refeição juntos? E, quem sabe, darmos uma volta pelos corredores de um museu e discutir o que as obras penduradas nas paredes parecem comunicar? Nesse precioso espaço compartilhado, somos capazes de expressar como nos apoiamos em uma esperança que não nos envergonha nem decepciona. Nenhuma quantidade de ridículo supera o amor real que foi derramado em nossos corações pela graça de Deus (Romanos 5.5).

Jared Boggess é o diretor de arte impressa da CT.

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Meus sonhos se realizaram. Mas os ataques de pânico continuaram.

Como descobri a paz de Deus e encontrei alívio para a ansiedade debilitante.

Christianity Today August 2, 2024
Photography by JoMando Cruz for Christianity Today

Tentando me acomodar, virei a cabeça na prancha dura. “Como está o volume?” perguntou uma voz através dos meus fones de ouvido. Fiz um sinal de positivo para o técnico que estava do outro lado da parede de vidro.

Exalei o ar e segurei o controle remoto com o botão para emergência, enquanto a prancha deslizava para dentro do estreito tubo do aparelho de ressonância magnética. Eu esperava que as múltiplas doses do remédio para ansiedade me ajudassem a evitar um ataque de pânico pelos próximos trinta minutos.

Sete anos antes, em 2008, eu tinha me formado no ensino médio e saído de casa para ir para a faculdade. Na época, eu me considerava cristão. Fui batizado aos 14 anos e frequentei a igreja de forma intermitente durante o ensino médio, mas minha fé era nominal e insuficiente para enfrentar a tempestade que eu estava prestes a criar.

Na faculdade, comecei a viver com base em uma ética cada vez mais egocêntrica. Não importava o que estivesse acontecendo — festas, aulas, trabalho — eu queria ser o melhor. Queria ser a pessoa mais bem-sucedida, interessante e importante do mundo. Quanto mais centrada em mim minha vida se tornava, mais eu me valorizava e mais acreditava nos argumentos intelectuais contra a existência de Deus.

No início dos meus 20 anos, eu era um ateu convicto. Eu achava que sabia que Deus não existia e pensava que enxergava todas as falácias do cristianismo. Ridicularizei cristãos abertamente em várias ocasiões e internamente em inúmeras outras.

Enquanto buscava a glorificação pessoal, minha saúde começou a deteriorar. Tive meu primeiro ataque de pânico aos 19 anos. Foi algo diferente de tudo que eu já havia experimentado. Meu coração disparou, meu rosto queimava, meu sangue ficou gelado e o interior do meu corpo parecia querer rasgar minha pele.

É difícil descrever o quão desesperado, sobrecarregado e irracional eu me sentia durante os ataques de pânico. Eu me lembro de um ataque que tive dentro de uma minivan, que descia pela estrada a toda velocidade. Naquele momento, pensei que estaria mais seguro se pulasse do veículo em movimento [do que dentro dele].

À medida que meus ataques de pânico se tornavam mais frequentes e menos previsíveis, uma ansiedade constante tomou conta da minha vida, e minha saúde física se deteriorou ainda mais. Eu sentia minha garganta tão congestionada que ficava difícil respirar. Minhas mãos, pés e rosto alternavam entre formigamento, queimação e dormência. Os músculos começaram a se contrair involuntariamente. Quando eu tentava dormir, minhas pernas vibravam tanto que, no meio da noite, eu ia caminhar na esteira do condomínio de apartamentos em que eu morava. Minha testosterona despencou, meus linfonodos incharam de maneira alarmante e eu tive um surto de herpes zoster.

No meu último semestre da faculdade de direito, em 2015, eu estava apavorado, desesperado por socorro e respostas, indo de médico em médico e automedicando-me para conseguir viver. Quando finalmente peguei meu exame de ressonância magnética, as imagens não mostravam nada — mais um teste inconclusivo que deixava os médicos se questionando.

Em maio daquele ano, eu me formei e comecei a estudar para o exame da ordem. Tirei folga do trabalho no verão e adotei uma rotina rígida de estudos, exercícios e sono. Esse estilo de vida regrado me manteve ocupado e encontrei algum alívio, mas apenas temporariamente. Durante os três meses de espera pelos resultados da prova, a ansiedade retomou o controle.

Depositava minha esperança em duas coisas: passar no exame da ordem e pedir minha namorada, Hannah, em casamento. Alguns meses depois, em um intervalo de oito dias, ambos os planos se concretizaram. Eu estava radiante, mas também profundamente preocupado. Minha ansiedade não havia melhorado, e um novo medo surgiu: os dois sonhos que dominavam minha vida tinham se realizado, e não me trouxeram paz; então, o que traria? Comecei a temer que eu fosse incapaz de me sentir realizado.

Então, algo estranho aconteceu.

Antes do nosso casamento, Hannah e eu morávamos no epicentro da revitalização urbana em San Antonio. Inúmeras vezes, quando íamos a restaurantes, cafés e à feira de produtos da fazenda nas proximidades, passávamos por um pequeno edifício com uma placa que dizia Pearl Street Church [Igreja da Rua Pearl]. Todo domingo, pessoas sorridentes faziam fila do lado de fora, ocupando a calçada e invadindo as ciclovias na rua.

Certo dia, sugeri a Hannah que deveríamos visitar essa igreja. Eu não tinha intenção de acreditar em nada. Esperava encontrar ali músicas comoventes e um ambiente que lembrasse um clube. Também suspeitava que Hannah queria ir à igreja, e se eu fosse com ela, isso aumentaria minha respeitabilidade como futuro marido.

Fomos ao nosso primeiro culto às 18h, em algum período no final de 2015 ou início de 2016. Quando entramos no prédio, eu nos conduzi para a seção menos lotada, no fundo, mas não consegui me esconder. Várias pessoas vieram nos cumprimentar nos minutos antes do início do culto, e o pastor principal nos recebeu com um sorriso entusiasmado. Quando ele se dirigiu ao púlpito para pregar, eu estava cético, na defensiva e pronto para criticá-lo mentalmente. Mas ele me surpreendeu.

Seu sermão explorou o texto de Gênesis 22, no qual Deus disse a Abraão para sacrificar seu único filho. Esta era uma das histórias da Bíblia que eu citava, como ateu, para desacreditar a fé e ridicularizar os cristãos. “Por que um Deus supostamente amoroso exigiria que alguém matasse seu filho como parte de um teste?”, eu perguntava.

Naquela noite, porém, enquanto o pastor pregava, meus olhos se abriram. A instrução de Deus a Abraão não era um teste sem sentido nem sádico; aquela passagem prenunciava profeticamente a obra de Jesus. Era a maneira de Deus mostrar o preço inestimavelmente alto que ele pagaria pela nossa salvação. E, no final, Deus não exigiu que Abraão pagasse esse preço, mas escolheu pagá-lo ele mesmo.

Ao sair da igreja naquela noite, percebi que meus argumentos intelectuais contra Deus e a Bíblia não eram tão sólidos quanto eu imaginava. Eu ainda era ateu — ou, pelo menos, bastante cético. Mas o evangelho que o pastor pregou não era a religião espantalho que eu estava acostumado a atacar. Era algo diferente, algo que eu não entendia, e que deixou em mim uma impressão inefável da verdade. Eu precisava aprender mais.

Nos meses seguintes, li o Novo Testamento e vários livros de apologética, e Hannah e eu começamos a frequentar o mesmo culto, todos os domingos. Durante todo esse tempo, a ansiedade continuou a me atormentar, e senti que estava chegando ao meu limite.

Esse limite chegou em abril de 2016, cerca de quatro meses depois de começarmos a frequentar a igreja. O relógio marcava 2 horas da manhã e eu estava passando mais uma noite em claro, sem dormir. Levantei-me da cama e estendi o tapete de yoga no chão da sala. Tentei alongar as pernas que formigavam e se contorciam, mas não houve melhora. Depois de vários minutos, desisti e me deitei de bruços no tapete.

Eu estava física, mental e emocionalmente exausto. Estava cansado de tentar e não conseguir carregar o fardo esmagador das minhas próprias expectativas. Estava cansado daquele desfile sem fim de doenças físicas e do gélido fluxo de ansiedade. Estava cansado do medo e, acima de tudo, estava cansado de me sentir cansado. Naquele momento, deitado de bruços no meu tapete de yoga, no meio da noite, eu estava prostrado em todos os sentidos da palavra.

Então, pela primeira vez em anos, eu orei. Falei as únicas palavras nas quais consegui pensar: “Seja feita a tua vontade”. Repeti essas palavras por várias vezes, até encontrar energia para orar de forma mais detalhada. Até orei para que, se fosse da vontade de Deus que eu morresse, então que sua vontade fosse feita.

Tudo mudou naquela noite. Filipenses 4.6-7, passagem que encontrei meses depois, captava essa mudança:

Não se preocupem com nada; em vez disso, orem sobre tudo. Digam a Deus o que vocês precisam e agradeçam a Ele por tudo o que já fez. Então vocês experimentarão a paz de Deus, que excede qualquer coisa que possamos entender. Sua paz guardará seus corações e mentes enquanto vocês viverem em Cristo Jesus. (NLT)

A paz de Deus mudou minha vida. Ela me deu poder sobre a ansiedade e o medo, e meu corpo começou a se curar, à medida que a depressão e o desespero davam lugar à alegria e à esperança. Três anos depois, meu pai foi diagnosticado com câncer de esôfago, aos 55 anos. Se isso tivesse acontecido quando eu era ateu, teria me destruído. Mas eu estava blindado com a paz de Deus, e ele me deu a coragem necessária para apoiar meu pai e encorajá-lo com as Boas-Novas.

Kyle Zunker é autor de Amazing Courage: Letters to My Father on Conquering Fear through Faith [Maravilhosa Coragem: Cartas para meu pai sobre como vencer o medo por meio da fé] e de um blog dedicado a ajudar as pessoas a entender a fé.

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