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Esperança radical em uma era de apocalipse climático

A atual crise ambiental está avançando rápida e furiosamente. Como evitarmos o desespero?

A picture of a forest fire being peeled away revealing a green forest
Christianity Today November 13, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty / Unsplash

Um dos piores sentimentos do mundo é ver um desastre que você não consegue impedir se desenrolando. Um acidente de carro que você vê que vai acontecer uma fração de segundos antes do impacto. Uma pessoa cuja doença você consegue diagnosticar, mas não consegue curar. Uma avalanche descendo montanha abaixo, quando você sabe que nada pode ser feito para detê-la. Um furacão de categoria cinco que está vindo em sua direção e promete provocar uma destruição incalculável.

Para um número crescente de pessoas, as mudanças climáticas evocam esse mesmo sentimento. À medida que novas máximas de temperatura são batidas a cada dois anos (com o ano de 2023 superando todas as médias globais anteriores de temperatura nos últimos 100.000 anos), assistir à mudança climática da Terra se parece com assistir a um desastre de trem que está acontecendo em câmera lenta.

Inundações, incêndios florestais e tempestades recordes, sem precedentes, chocam-se de frente com a indecisão de governos, a apatia (ou negação) política e as prerrogativas individuais. Só no mês passado, dois furacões monstruosos, Helene e Milton, devastaram os estados do Sul dos EUA, deixando comunidades inteiras destruídas. A crescente disparidade entre a escala dos desafios que enfrentamos e a pequena quantidade de poder que qualquer pessoa comum possui já é capaz de fomentar uma sensação de desespero e ansiedade.

As pessoas processam desastres de grandes proporções de maneiras diferentes. Muitas optam por uma postura de negação, ignorância ou apatia (“não há nada que eu possa fazer mesmo, então, por que tentar?”) — e há pouco a ser feito em relação a essas pessoas, exceto continuar a disseminar conscientização e educação.

Mas aqueles que acreditam em alertas têm duas maneiras comuns de reagir. Os mais otimistas querem acreditar no melhor cenário; querem acreditar que há uma solução plausível que pode ser alcançada — que, com a quantidade certa de esforço coordenado, podemos fazer o que é preciso e mudar o mundo, talvez até mesmo no intervalo de uma ou duas gerações. Enquanto isso, os mais pessimistas querem ficar a par do pior cenário possível, para que possam gastar energia e esforço com cautela, tendo em mente a longa estrada que têm pela frente — eles sabem que é tolice correr o máximo que podem no início de uma maratona.

Notei essas duas reações diferentes no início dos lockdowns da COVID-19, lá na minha faculdade, em Oxford. Algumas pessoas nos diziam com confiança: “Isso tudo acabará em três meses — voltaremos ao normal em setembro!”. E eu circulava por aí com meu jeito pessimista, dizendo: “Bem, dados históricos sugerem que vai levar pelo menos um ano, talvez dois, antes que qualquer coisa parecida com a vida normal seja retomada. É melhor nos acostumarmos com isso.”

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Eu realmente achava que estava ajudando as pessoas, quando estabelecia uma meta razoável, para que elas não tivessem a sensação — que eu odeio mais do que qualquer coisa — de que a linha de chegada ficava sempre mudando mais para a frente, cada vez que nos aproximávamos dela. Mas muitos dos meus amigos, que eram do tipo mais otimistas, sentiam que eu estava esmagando suas esperanças. Minhas tentativas de sempre considerar o pior cenário realista acabaram me rendendo o apelido carinhoso de “profeta do apocalipse”.

Em relação às mudanças climáticas, aqui está minha opinião de “profeta do apocalipse”: em certo sentido, a ansiedade que as pessoas sentem se justifica pelos fatos sombrios. O mundo está passando por mudanças rápidas e generalizadas, que trarão sofrimento intenso a centenas de milhões, se não bilhões, de pessoas.

Estamos presos nas garras de um sério vício global em combustíveis fósseis. A dura verdade a se encarar é que já queimamos petróleo e gás natural suficientes para colocar o clima em novos parâmetros. Quanto mais queimamos combustíveis fósseis, principalmente a essas taxas altíssimas às quais nos acostumamos, mais pioramos a situação.

Os combustíveis fósseis nos trouxeram muitas coisas boas. Aumento da expectativa de vida e melhoria das condições de nutrição. Diminuição da mortalidade infantil. Viagens rápidas e baratas. Não queremos perder os muitos benefícios da nossa cultura movida a combustíveis fósseis. Mas também não queremos ver nosso futuro sendo queimado pelo consumismo desenfreado ou pela ganância imprudente.

Como acontece com qualquer vício grave, a abstinência é dolorosa, custosa e, quando mal feita, pode ser fatal. Na verdade, as mudanças drásticas que são necessárias para conter nosso vício provavelmente significariam um sofrimento tremendo e prováveis perdas de vidas.

Pense nisto: construímos todo o nosso mundo desenvolvido para depender da agricultura em larga escala, do transporte rápido e eficiente de alimentos e mercadorias, e de casas dependentes de sistemas de aquecimento e de resfriamento que consomem muita energia. Se cortarmos o petróleo, que é a força vital desses sistemas, pessoas podem morrer.

À medida que o clima esquenta, esses eventos ligados ao aquecimento se tornarão mais frequentes, embora a maneira mais eficaz de diminuir o número de mortes que eles provocarão seja consumindo ainda mais energia para gerar espaços mais frescos. É um ciclo vicioso, que não para nas mudanças de temperatura.

Da mesma forma, os alimentos básicos da nossa dieta vêm de um sistema agrícola insustentável. Um estudo descobriu que 1,78 bilhão de pessoas são alimentadas por plantações que dependem diretamente de fertilizantes gerados por combustíveis fósseis, os quais, quando usados ​​em excesso, podem envenenar cursos d’água e prejudicar a produtividade do solo com o passar do tempo.

Tudo isso mostra o quão perversamente complexo é o problema da mudança climática. Cientificamente falando, envolve perda de biodiversidade, poluição da água e do ar, acidificação dos oceanos, ciclos biogeoquímicos e colapso do sistema ecológico. Socialmente falando, envolve uso de tecnologia, metas de desenvolvimento sustentável, normas culturais, crescimento populacional, sistemas econômicos e políticos, crenças religiosas e limitações psicológicas e físicas.

A razão pela qual é tão difícil falar sobre mudança climática é que levantar qualquer questão é como puxar um fio em uma teia de aranha: todos os outros fios da teia são atingidos. Nós nos sentimos impotentes para efetuar as mudanças que gostaríamos de ver, quando simplesmente atender às necessidades de cada dia parece uma batalha dificílima. E, com isso, a ansiedade aumenta, até o ponto em que a própria ansiedade parece fazer parte da avalanche que ameaça desabar sobre nós. Será que existe alguma esperança?

A resposta curta é sim, existe. Na verdade, acho que este é o momento para uma esperança radical. Encontrei esse termo pela primeira vez no excelente livro de Jonathan Lear, Radical Hope: Ethics in the Face of Cultural Devastation [Esperança radical: ética diante da devastação cultural]. Lear explora a história da tribo Crow, em meados de 1800, conforme eles respondiam às mudanças trazidas pela colonização ocidental de seus territórios em Montana.

A figura-chave no livro é Plenty Coups, Chefe da tribo Crow que passou a vida liderando seu povo, em meio a essas mudanças frequentemente traumáticas, com uma percepção fundamental: o antigo estilo de vida nômade de correr atrás dos búfalos estava inevitável e irrevogavelmente liquidado. Como seu povo poderia ter esperança, quando a própria possibilidade de viver como um Crow de forma significativa estava sendo destruída? Eles tiveram que aprender um novo estilo de vida. Até mesmo seus valores essenciais, como o que significava ser corajoso, tiveram que ser reformados em uma cultura na qual os atos tradicionais de coragem dos guerreiros eram ilegais.

A esperança radical, então, é a esperança que se forma quando todas as esperanças que tínhamos antes se acabam. A esperança radical foi o tipo de esperança que Deus proporcionou aos exilados israelitas na Babilônia, quando disse:

Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam de seus frutos. Casem-se e tenham filhos e filhas; […]Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei […] Não deixem que os profetas e adivinhos que há no meio de vocês os enganem. Não deem atenção aos sonhos que vocês os encorajam a terem. (Jeremias 29.5-8)

Esta passagem vem antes das famosas palavras no versículo 11: “‘Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês’, diz o Senhor, ‘planos de fazê-los prosperar e não de lhes causar dano, planos de dar-lhes esperança e um futuro.’” No entanto, os bons planos de Deus não eram para que aquela geração voltasse para casa e vivesse como sempre tinham vivido. Em vez disso, a esperança e o futuro deles estavam em investir no exílio. Como a tribo Crow, eles aceitaram a realidade de que sua antiga vida não existia mais e precisava ser refeita.

Da mesma forma, para nós, a esperança radical significa criar raízes em nosso exílio pessoal e esperar que a promessa de Deus seja cumprida além do alcance da nossa própria vida.

Estamos apenas começando a ver as consequências de uma crise que caracterizará o mundo nas próximas décadas, e percebendo que toda a nossa boa vontade — toda a nossa reciclagem, os nossos canudos de papel e as nossas escovas de dentes de bambu — não conseguirá impedir o gigante da mudança climática. Os rolos compressores da economia e da política são simplesmente fortes demais para que nossos pequenos atos façam muita diferença.

Em 2016, 195 países aderiram ao Acordo de Paris, um tratado para tentar evitar que a mudança climática ulltrapassasse 1,5 grau Celsius (2,7 graus Fahrenheit). Essa esperança de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 grau já se foi, mas ainda há lugar para a esperança radical.

Mas como viver essa esperança radical em nossa vida cotidiana?

Para mim, ela lembra muito a antiga oração da serenidade: “Senhor, dá-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para saber a diferença [entre elas]”. Na prática, significa fazer planos para usar minha energia de forma a tentar fazer a máxima diferença que eu puder com as escolhas que faço e as ferramentas que tenho.

Uma ferramenta que me ajuda a calcular bem meu foco de atenção e minha energia é a chamada “teoria das colheres” — que ouvi de meus amigos portadores de deficiências crônicas. É uma maneira de medir o esforço que você tem que despender, quando tem uma doença que o impede de fazer tudo o que deseja em um dia. Em suma, a teoria das colheres pede que você imagine seu nível de energia diário como se fosse um certo número de colheres. Então, você divide suas tarefas diárias com base em quanta energia cada uma delas consome: duas colheres para levantar e se vestir, seis para fazer compras, três para preparar uma refeição, e assim por diante.

Eu faço algo parecido com isso para a questão do cuidado com a criação. Geralmente uso metade das minhas colheres de energia ambiental para advocacy e para tentar mudar instituições sistêmicas e políticas: votando, escrevendo cartas para líderes políticos, mobilizando e educando pessoas. A outra metade das minhas colheres eu uso em trabalhos menores, mais gratificantes psicologicamente, embora menos impactantes: recuperando uma margem de riacho, pesquisando e substituindo produtos por outros melhores em minha vida, vasculhando brechós.

O esforço que dedico a essa minha pequena parcela de influência democrática para buscar uma mudança sistêmica, em vez de tentar viver uma vida privada perfeita, significa que minha escova de dentes ainda é de plástico, e que meu carro, que raramente uso, ainda é movido a gasolina — mas [também significa que] tenho uma chance maior de fazer diferença em larga escala do que se eu dedicasse todos os meus esforços para tornar minha vida individual perfeita.

Enquanto os modelos culturais negam as mudanças climáticas ou abrem mão de todos os bens da sociedade moderna para viver uma vida ideal e fora do sistema em alguma fazenda orgânica, eu descobri que a teoria das colheres me ajuda a administrar o perfeccionismo que poderia sobrecarregar e matar a possibilidade de fazer um bem real e concreto, sem sentir uma culpa avassaladora a respeito de tudo o que não posso fazer.

A cultura ocidental vive em profunda negação de algumas das realidades básicas da vida, como doenças, sofrimento e morte. Uns tentam dribar essas realidades fazendo usos cada vez mais elaborados de energia movida a combustíveis fósseis, como o congelamento criogênico.

Como cristãos, porém, nossa fonte última de esperança radical encontra-se na história da Páscoa. Jesus não evitou o sofrimento intenso nem a morte, mas os aceitou, suportou e venceu. E, ao fazê-lo, ele abriu caminho para a esperança radical da vida ressuscitada. A esperança cristã não está em evitar ou em driblar a morte ou o sofrimento, mas em atravessá-los com coragem e virtude, enquanto antecipamos a esperança da ressurreição e da vida eterna na nova criação de Deus.

À medida que desastres naturais acontecem, à medida que a insegurança alimentar aumenta, à medida que a migração humana se intensifica, lembramos das palavras de Jesus: “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (João 16.33). E é por causa dessa vitória que podemos viver nossa esperança radical amando a misericórdia, agindo com justiça e caminhando humildemente com Deus nos tempos difíceis.

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Bethany Sollereder faz preleções sobre ciência e religião na Universidade de Edimburgo. Ela é especialista em teologia do sofrimento e escreveu Why Is There Suffering?: Pick Your Own Theological Expedition [Por que o sofrimento existe: escolha sua própria expedição teológica], o primeiro livro teológico do mundo do tipo “escolha sua própria aventura”.

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O que é (e o que não é) perseguição de cristãos

Nove verdades que os crentes precisam entender para saber orar pelos que sofrem no corpo de Cristo.

Jesus' hand and his feet with holes from the nails
Christianity Today November 12, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons / Getty

Recentemente, conversei com um líder de igreja nigeriano que me mostrou um vídeo assustador, o qual não consigo tirar da cabeça. Militantes do Boko Haram — grupo terrorista que há anos ataca brutalmente igrejas na Nigéria — filmaram a si mesmos subjugando um pequeno grupo de cristãos e dizendo a quem quisesse ouvir que pretendiam matar todos os cristãos, se eles não se submetessem ao islamismo. Então, decapitaram nossos irmãos e irmãs em Cristo.

Um horror como esse foi o que me levou a orar e a trabalhar por anos em favor daqueles que sofrem por sua fé. Como parte do meu ministério com a Radical, tive a oportunidade de falar com cristãos que enfrentaram violência, pressão social ou até mesmo prisão por anunciar o evangelho, plantar igrejas ou simplesmente por se manterem firmes em sua fé.

Ao mesmo tempo, reconheço que, para muitos cristãos, esses casos de perseguição podem parecer distantes, abstratos, incompreensíveis ou avassaladores. Muitos cristãos perseguidos vivem em países que nunca visitamos e em lugares cujo nome mal conseguimos pronunciar. Também vivemos em um ciclo de notícias constante, 24 horas por dia, que nos inunda com histórias de guerra e terror, o que nos insensibiliza para o custo que nossa família da igreja global paga por seguir Jesus.

Mas, pelos próximos dois domingos de novembro, designados pela Aliança Evangélica Mundial como Dia Internacional de Oração pela Igreja Perseguida — e também para além deles — quero convidá-lo a se juntar a outros crentes ao redor do mundo para interceder por aqueles que professam a Cristo e sofrem por isso. Também quero dissipar alguns mitos sobre perseguição e ajudá-lo a entender o que ela realmente significa e como acontece no mundo. À luz da ordem de Deus para que nos lembremos daqueles que são perseguidos como se estivéssemos fisicamente com eles (veja Hebreus 13.3) e oremos por eles, espero que aprender mais sobre perseguição nos ajude a ser o corpo global de Cristo que ele nos chamou a ser.

Perseguição é assédio ou oposição por seguir a Jesus. No Sermão do Monte, o termo que Jesus usa para “perseguido” significa “perseguido com hostilidade”. E ele continua descrevendo como o termo pode significar tudo, desde pessoas ridicularizando, envergonhando, excluindo ou mentindo sobre você até restringindo a sua liberdade, aprisionando você e acabando com a sua vida (veja Mateus 5.10-12;10.16-33; Lucas 6.22-23). É digno de nota que a perseguição se dá quando essas formas de resistência acontecem especificamente porque alguém está seguindo a Jesus. Em Mateus 5, Jesus diz que devemos esperar essa hostilidade, a qual ocorre “por causa da justiça” e “por minha causa”.

Perseguição não pode ser definida como qualquer coisa difícil que acontece a um cristão. Os seguidores de Jesus enfrentam todos os tipos de tribulações neste mundo, justamente como o próprio Jesus prometeu que enfrentariam (João 16.33). Muitas vezes, esse sofrimento é comum à experiência de pessoas que não são cristãs também. Crentes e descrentes recebem diagnósticos de câncer. Crentes e descrentes sofrem por causa de conflitos ou de guerras. Crentes e descrentes passam por sofrimento emocional e tensão em relacionamentos.

Mas dificuldade não é o mesmo que perseguição. Só porque você é cristão e está sentindo na pele os efeitos de um mundo caído não significa que está sendo assediado ou que está sofrendo oposição por causa da justiça.

A perseguição acontece para igrejas que se reúnem em segredo e para igrejas que se reúnem às claras. Muitos de nós imaginamos nossos irmãos perseguidos se reunindo em igrejas secretas nas casas. Anos atrás, a Radical iniciou um evento chamado Igreja Secreta. Essa iniciativa foi baseada em momentos que vivi com crentes asiáticos, em que fui levado às escondidas para lugares em que todos os outros presentes na sala seriam presos, caso fossem pegos reunidos ali.

Mas o que muitos cristãos não percebem é que a perseguição também acontece em países onde nossos irmãos e irmãs se reúnem abertamente em prédios (até mesmo grandes) de igrejas, onde são liderados por pastores formados em seminários. Acabei de me encontrar, na África Ocidental, com um pastor cujo complexo em que fica a sua igreja recebia regularmente mais de 500 fiéis; certo dia, porém, eles foram repentinamente atacados por militantes que começaram a queimar prédios, carros e pessoas. Só porque os cristãos se reúnem em público não significa que não corram perigo.

A realidade da perseguição pode variar dentro de um mesmo país. Veja a Índia e a Indonésia, por exemplo. Os cristãos podem se reunir tranquilamente nas manhãs de domingo, no estado de Kerala, que fica no sul da Índia. Enquanto isso, no ano passado, multidões queimaram mais de 200 igrejas no estado de Manipur, que fica no leste do país. Algumas centenas de quilômetros a sudeste, na Indonésia, os cristãos podem estar protegidos em uma ilha e sofrer oposição em outra. Assim como acontece no país em que você vive, a segurança pode variar de região para região.

A perseguição pode vir de cima para baixo, de baixo para cima ou de ambas as direções. Alguns governos ao redor do mundo proíbem seus cidadãos de seguirem a Jesus e se reunirem como igreja. Mas a perseguição nem sempre é iniciada por autoridades governamentais. Quando meu amigo Zamir se tornou cristão, seus próprios irmãos o espancaram quase até a morte, e seu pai o expulsou de casa. Outros amigos meus, a quem chamarei de Samil e Aanya, foram rejeitados por sua família por seguirem Jesus. Quando o casal voltou, anos depois, para tentar compartilhar o evangelho com seus pais, o pai de Aanya a envenenou e ela morreu. Em alguns países, forças políticas, familiares e amigos trabalham em conjunto para perseguir os cristãos. Por exemplo, o regime norte-coreano proíbe o cristianismo, e as autoridades dependem que familiares, amigos ou vizinhos lhe delatem atividades cristãs.

A perseguição pode significar morte — ou discriminação. Como já compartilhei, as histórias de perseguição na Nigéria são horrendas. Há várias décadas, militantes têm sequestrado, estuprado e matado muitos de nossos irmãos e irmãs em Cristo. Ao mesmo tempo, a perseguição à igreja nem sempre é tão severa. Com base em conversas que tive com irmãos e irmãs ao redor do mundo, um empreendedor cristão em um país do Oriente Médio pode perder o direito de ter um negócio — ou pode perder a clientela que o sustenta. Um novo seguidor de Jesus que vive no alto do Himalaia pode perder o direito à água ou à eletricidade em sua aldeia. Uma igreja em uma cidade do Sudeste Asiático pode ser forçada a pagar taxas extras (e às vezes exorbitantes) para alugar ou possuir um prédio.

Na Europa e nas Américas, os crentes geralmente introduzem qualquer menção à perseguição em suas vidas dizendo: “Não é tão ruim quanto o que nossos irmãos e irmãs ao redor do mundo estão enfrentando”, e isso é uma verdade inquestionável. Mas não significa que ainda não seja perseguição quando um cristão britânico é preso por orar silenciosamente do lado de fora de uma clínica de aborto ou quando um cristão americano é demitido de seu emprego por expressar suas opiniões sobre a sexualidade bíblica.

A perseguição vem em seguida da identificação e da proclamação. Desde o começo da igreja, no livro de Atos, a perseguição tem ocorrido sempre que as pessoas professam ou propagam a fé em Jesus. A palavra grega para “testemunha”, em Atos 1.8, é martus, de onde vem a palavra mártir. Na Somália, enquanto minha amiga Halima continuar reservada e calada sobre sua fé, ela poderá evitar a perseguição. Mas assim que disser que se afastou do islamismo para seguir a Jesus, ela provavelmente será morta. Na Índia, dependendo do estado, compartilhar o evangelho com outra pessoa pode levar alguém à prisão, enquanto levar alguém a Jesus e batizar essa pessoa pode significar dez anos de prisão.

O propósito da perseguição é silenciar o testemunho. Quando começou a perseguição contra a igreja, em Atos 4, os líderes judeus ordenaram aos cristãos que “não falassem nem ensinassem em nome de Jesus”. Pedro e João responderam dizendo: “não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (v. 18-20). Depois de se reunirem para orar, os primeiros cristãos ficaram “todos cheios do Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus” (v. 31).

É importante lembrar disso, quando cristãos de partes do mundo em que há liberdade costumam dizer coisas como: “eu dou testemunho sendo uma boa pessoa ou praticando boas obras”. Isso pode até soar bem aos nossos ouvidos, mas não é o que a Bíblia quer dizer com testemunho. Em muitas partes do mundo, nossos irmãos e irmãs em Cristo estão razoavelmente seguros, se não forem mais do que boas pessoas que praticam boas obras. Mas quando falam do que viram e ouviram, eles sofrem perseguição.

A perseguição é algo garantido não apenas para outros cristãos, mas também para nós. À luz de tudo o que foi dito aqui, é uma questão de obediência a Deus orar especificamente por nossos irmãos e irmãs que vivem em partes do mundo onde a perseguição é mais feroz (Hebreus 13.3). Não há como exagerarmos a importância disso: temos uma responsabilidade bíblica e familiar de orar e de trabalhar por nossos irmãos e irmãs em Cristo, particularmente em países como Coreia do Norte, Somália, Líbia, Eritreia, Iêmen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irã e Afeganistão. Ao mesmo tempo, Deus também deixa claro em sua Palavra que “todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Timóteo 3.12). Observe as palavras “todos” e “serão”. A perseguição não é um “talvez” nem é para “alguns” cristãos.

Se você não está sofrendo perseguição em algum grau, precisa se perguntar: “Estou professando e propagando a fé em Jesus?” Em outras palavras, você está se identificando de forma clara e inequívoca com Jesus; está proclamando Jesus com humildade e ousadia; está contando às pessoas sobre a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, e chamando outros a se arrependerem e a crerem no nosso Salvador, porque a vida deles, hoje e por toda a eternidade, no céu ou no inferno, depende da resposta que derem a ele?

Se não estamos professando fé em Jesus dessa forma, então, enquanto oramos pela igreja perseguida, precisamos perceber que, na verdade, nossas vidas se simpatizam com os perseguidores. Isso pode soar como algo exagerado, ofensivo, mas considere isto: se o propósito da perseguição é silenciar o testemunho, e se você ou eu estamos silenciando nosso próprio testemunho, então, estamos refletindo a imagem dos perseguidores, e não a dos perseguidos.

Mas se nos identificamos corajosamente com Jesus e damos testemunho dele, então, enquanto oramos, estamos nos identificando com a igreja perseguida. E de acordo com 2Timóteo 3, podemos ter certeza de que a perseguição virá para nós. Quanto mais dedicarmos nossas vidas a seguir a Jesus e a torná-lo conhecido no lugar em que vivemos e em todas as nações, e particularmente nos lugares onde o evangelho ainda não foi pregado, mais enfrentaremos perseguição. Vamos interceder por nossos irmãos e irmãs em Cristo que são perseguidos ao redor do mundo, para que sejam fiéis até o fim, conscientes de que todo cristão precisa de intercessores semelhantes para fazer o mesmo.

David Platt atua como pastor principal da McLean Bible Church e é autor de livros como Radical e Don’t Hold Back [Não se contenha]. Também é o fundador da Radical, uma organização que ajuda as pessoas a seguirem a Jesus e a torná-lo conhecido nos lugares em que vivem e em todas as nações.

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As deportações em massa prometidas por Trump colocam igrejas de imigrantes em alerta

Algumas das propostas do presidente eleito parecem improváveis, mas ele ameaçou retirar do país milhões de imigrantes, ilegais e legais.

A man furls a flag after a US naturalization ceremony in Los Angeles for immigrants becoming citizens.

Em Los Angeles, no início deste ano, um homem enrola uma bandeira dos EUA, após uma cerimônia de naturalização para imigrantes que se tornam cidadãos.

Christianity Today November 11, 2024
Mario Tama / Getty Images

Jackson Voltaire, um pastor que lidera uma denominação com 255 igrejas batistas haitianas na Flórida, fez uma oração pedindo uma bênção pessoal para Donald Trump, no dia seguinte à eleição.

Mas Voltaire também se reuniu para orar com líderes das igrejas de sua denominação que estavam preocupados com o que pode vir a acontecer com o status legal dos haitianos no país.

“Podemos até dizer para as pessoas não se preocuparem, porém, para a maioria delas, há motivos para se preocupar”, disse Voltaire. “Mas quando fixamos nossos olhos em Jesus, a preocupação começa a se dissipar. A força e o consolo que encontramos nas promessas de Deus são mais fortes do que o medo.”

Trump, o presidente eleito, fez da deportação em massa uma parte central de sua campanha, prometendo retirar dos Estados Unidos milhões de imigrantes, entre eles, os haitianos. A plataforma oficial do Partido Republicano promete “realizar a maior operação de deportação da história americana”.

Em discursos de campanha, Trump falou de imigrantes sem visto que estariam cometendo crimes violentos, mas também indicou que acabaria com certos programas de imigração legal, como o que beneficia os haitianos.

Essas propostas podem afetar mais de 10 milhões de pessoas nos EUA e resultar na separação de milhões de famílias, já que a maioria dos imigrantes sem visto vive em lares com outros imigrantes legais.

Grande parte dos haitianos está legalmente nos Estados Unidos, através do Status de Proteção Temporária, um programa para quem foge de guerras ou de situações extremas, e que contempla o Haiti e outras nações, como Venezuela e Nicarágua. Trump tentou, sem sucesso, acabar com esse programa em seu primeiro mandato e, agora, vai tentar de novo.

O Haiti atualmente não tem um governo funcional, o que dificulta qualquer deportação, e os moradores vivem sob o controle de gangues em guerra.

Voltaire disse que orou não apenas para que Trump abençoasse os Estados Unidos, mas para que Deus encontrasse pessoas que mudassem o curso da nação do Haiti, para que os haitianos não tivessem que fugir do país. Voltaire ora para que o Haiti possa “voltar aos tempos gloriosos em que essa nação era considerada a pérola do Caribe”.

Trump fez promessas de deportar milhões, em sua campanha de 2016, mas os números de deportação em seu primeiro mandato parecem ser praticamente os mesmos do governo Biden. O governo Obama ainda detém o recorde do maior número de deportações em um ano.

Desta vez, Trump propôs um meio mais drástico de deportação: mobilizar a Guarda Nacional para prender imigrantes ilegais. Ele frequentemente cita a “Operação Wetback”, do governo Eisenhower, na qual autoridades policiais federais e locais fizeram amplas operações para deportar quase um milhão de pessoas, entre as quais havia cidadãos americanos.

Especialistas em imigração duvidam que o Congresso fornecerá financiamento para deportações em massa, e dizem que a infraestrutura necessária para a ação não é algo fácil de se ampliar. Um grupo ligado à imigração estimou o custo da deportação em US$ 315 bilhões.

Mesmo que não haja dinheiro para deportações em massa, “não quero dizer às pessoas que tudo vai ficar bem. Acho que veremos um aumento nas deportações de pessoas de bem”, disse Matthew Soerens, chefe de advocacy da World Relief, uma organização evangélica de reassentamento de refugiados. “Todos concordam em deportar criminosos violentos.”

Embora os evangélicos tenham apoiado Trump na eleição, historicamente, eles também têm visões mais compassivas sobre imigração. Eles apoiam o status legal para os “Dreamers” (imigrantes ilegais trazidos para os EUA quando crianças), se opõem à separação de famílias e sentem que os EUA têm uma obrigação moral de acolher refugiados. Uma visão que mudou recentemente, no entanto, é que eles veem os imigrantes como um dreno econômico.

Grupos religiosos esperam poder argumentar com Trump que os imigrantes têm valor.

“Vamos implorar a ele, apelar ao seu compromisso de apoiar a igreja perseguida, às suas declarações de que ele acredita na imigração legal”, disse Soerens.

“Nós […] acreditamos na possibilidade de progredir e pedimos à nova administração que considere o imenso valor que os imigrantes e refugiados trazem para nossa nação”, afirmou Krish O’Mara Vignarajah, chefe da Global Refuge, uma agência religiosa de reassentamento de refugiados.

Separar famílias é a política de imigração mais impopular entre os cristãos evangélicos brancos. “Não está claro o que Trump, o presidente eleito, fará”, disse Soerens.

As deportações atingiriam a comunidade latina de forma desproporcional. Os evangélicos latinos apoiam a extensão do status legal aos Dreamers e a outros imigrantes sem visto que vivem nos EUA há muito tempo. Contudo, a maioria desses evangélicos (60%) votou em Trump na última eleição, em grande parte com base em questões sociais, entre elas o aborto, que podem ter tido origem em países com regimes comunistas ou de esquerda.

“Embora os evangélicos latinos não sejam um bloco monolítico nem sejam eleitores que votam com base em uma única questão, quando o assunto é imigração, muitas congregações latinas expressaram profundas preocupações em torno do discurso da deportação em massa e de seu impacto no ministério em relação à igreja latina”, disse Gabriel Salguero, presidente da National Latino Evangelical Coalition [Coalizão Nacional de Evangélicos Latinos], em uma declaração à CT.

“Nós nos perguntamos como as igrejas podem aceitar os dízimos e as ofertas de membros imigrantes e, ao mesmo tempo, permanecem caladas sobre políticas que defendem sua deportação em massa”, disse ele. “Nossa oração sincera é que finalmente haja uma solução para a questão da imigração que contemple os dois lados, que respeite o estado de direito e honre a dignidade de todas as pessoas.”

A pressão política há muito tempo impede o Congresso de promulgar a reforma da imigração; um projeto de lei bipartidário sobre segurança nas fronteiras, proposto em fevereiro com o intuito de restringir migrantes na fronteira e tratar do processo de asilo fracassou, quando Trump se opôs a ele.

Outros programas legais de imigração estão sendo questionados. A liberdade condicional humanitária permite que afegãos, ucranianos, haitianos, cubanos, nicaraguenses e venezuelanos encontrem abrigo legal nos EUA, mas Trump prometeu deportar pessoas desse programa.

“Preparem-se para ir em embora”, disse Trump.

Muitos ucranianos vieram para os EUA sob o status de liberdade condicional humanitária, fugindo da guerra em seu país. Paul Oliferchik é filho de refugiados da União Soviética e foi, até recentemente, pastor de uma igreja ucraniana das Assembleias de Deus em Nova York, a cidade que abriga a maior população ucraniana dos EUA. Ele agora serve em uma igreja chinesa na cidade.

Sua esposa é filha de refugiados ucranianos que receberam ajuda de uma organização luterana para se reinstalarem nos EUA, lembra ele. “Nós nos mudamos [para cá] como refugiados e fomos tremendamente abençoados”, disse ele.

Mas muitos dos imigrantes evangélicos ucranianos que ele conhece são apoiadores de Trump — eles não tomam decisões políticas com base na questão da imigração, mas sim com base em questões socialmente conservadoras.

Oliferchik acha que eles provavelmente não sabem sobre o possível fim do programa de liberdade condicional humanitária. De qualquer forma, espera que eles fiquem no país, assim como outros refugiados.

“Deus ajudou a trazer muitos de nós para cá, para viver nos Estados Unidos”, disse ele. “Deus disse a Israel, quando os estava tirando do Egito, para se lembrarem [daquilo que ele estava fazendo]. Se não nos lembrarmos de onde o próprio Deus nos tirou e de como ele nos redimiu, isso pode ter reflexos no modo como tratamos outros que também estão apenas tentando sobreviver e viver.”

No primeiro mandato de Trump, ele tentou acabar com o Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA) [Ação Diferida para Chegadas na Infância], um programa para aquelas pessoas conhecidas como Dreamers, mas se deparou com obstáculos legais. Especialistas em imigração disseram que os consultores jurídicos de Trump aprenderam com suas primeiras tentativas de derrubar alguns desses programas e podem ter mais sucesso desta vez.

Liderada por Stephen Miller, experiente consultor em matéria de imigração, a equipe de Trump está procurando outras maneiras de restringir a imigração legal, relatou o The Wall Street Journal, como, por exemplo, uma política que bloquearia a imigração de pessoas com deficiência ou de baixa renda.

Um programa que fica totalmente sob a alçada do presidente é o programa de refugiados; em seu último mandato, Trump suspendeu temporariamente o programa inteiro, e, assim, reduziu drasticamente o número de admissões de refugiados para um nível recorde.

Em 2020, quando ele completou seu mandato, as admissões de refugiados tinham caído da média histórica de 81 mil por ano para 12 mil. Trump, em sua campanha de 2024, criticou as admissões de refugiados de Biden e disse que traria “novas medidas repressivas”.

As medidas repressivas do governo Trump anterior, em alguns casos, prenderam imigrantes sem antecedentes criminais que estavam no país há décadas.

Em 2017, agentes do Immigration and Customs Enforcement [Imigração e Fiscalização Aduaneira] prenderam centenas de cristãos iraquianos em Detroit, alguns a caminho da igreja. Esses cristãos teriam que enfrentar perseguição e “até mesmo a morte” se tivessem sido deportados, escreveram líderes evangélicos ao governo Trump, na época.

Durante os embates legais em torna dessa deportação, muitos cristãos iraquianos foram mantidos em detenção nos EUA, por mais de um ano, antes de serem libertados, e alguns foram deportados. (Alguns dos indivíduos de fato tinham registros criminais que levaram à deportação; outros não tinham antecedentes criminais.) Muitos dos cristãos caldeus não acreditavam que seriam deportados, porque tinham apoiado Trump e acreditavam em suas declarações sobre proteger os cristãos perseguidos.

Seja qual for a escala da deportação na próxima administração, as promessas de Trump já causam ansiedade nas comunidades de imigrantes.

“Minha sensação é que, para a maioria dos meus amigos haitianos, a preocupação nem é tanto com a deportação, pois eles têm um status (ainda que temporário) que os protege da deportação”, disse Jeremy Hudson, pastor da Fellowship Church, uma das maiores igrejas em Springfield, Ohio, que tem uma grande população haitiana.

“A maior preocupação de que mais ouvi eles falarem é sobre como serão tratados e vistos pelos cidadãos locais.”

Trump falou que imigrantes sem visto estão “envenenando o sangue do nosso país” e prometeu socorrer “todas as cidades que foram invadidas e conquistadas” [por imigrantes]. Ele e seu vice-presidente, JD Vance, perseguiram haitianos reiteradamente, espalhando a história falsa de que eles estavam comendo os animais de estimação das pessoas em Springfield.

Voltaire, o pastor da Flórida, disse que suas igrejas haitianas ainda estão lidando com as consequências dessas declarações.

“O impacto dessa história falsa de Springfield chegou para ficar”, ele disse. “Mas os haitianos são um povo resiliente. Eles já passaram por muita coisa.”

Enquanto isso, os pastores haitianos devem continuar a servir os imigrantes que estão em suas igrejas.

“Nossa oração é que as pessoas encontrem forças e consolo no amor que mostramos por elas”, ele disse. “No final, oramos para que o nome de Deus seja glorificado na vida de todos os imigrantes, sejam eles haitianos ou de onde quer que sejam.”

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News

O que outra presidência de Trump significa para os evangélicos ao redor do mundo

Líderes cristãos, do Brasil à Turquia, recebem os resultados das eleições nos EUA com alegria, tristeza e indiferença.

Donald Trump in front of a world map
Christianity Today November 9, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Getty

Enquanto os americanos iam às urnas, na terça-feira, o resto do mundo observava, para ver quem se tornaria o 47º presidente dos Estados Unidos. A eleição de Donald Trump tem impacto em muitas comunidades evangélicas ao redor do mundo, em termos de política externa, ajuda humanitária, liberdade religiosa e tendências culturais. Ainda assim, líderes cristãos de alguns países disseram que não fazia diferença para eles quem se tornaria o próximo presidente dos EUA.

A CT perguntou a vários líderes evangélicos ao redor do mundo sobre suas reações a uma nova presidência de Trump e seu impacto prático sobre a situação dos evangélicos em seus respectivos países. As respostas são divididas por região: África, Ásia, Europa, América Latina, América do Norte e Oriente Médio. A CT acrescentará outras respostas, à medida que forem enviadas.

América Latina

Brasil

Cassiano Luz, diretor-executivo, Aliança Evangélica Brasileira

O fato de Donald Trump ter sido novamente eleito para a presidência dos EUA, potencialmente, tem importantes implicações para os evangélicos brasileiros.

Trump é considerado aliado e amigo de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil que teve amplo apoio evangélico. Condenado por abuso de poder político e uso irregular dos meios de comunicação, Bolsonaro está inelegível, e portanto, impedido de concorrer à reeleição em 2026. Também é investigado por lavagem de dinheiro, falsificação em registros de vacinação e incitação da insurreição que destruiu o Congresso Nacional e outros prédios oficiais na capital da república, Brasília, em 2022. Bolsonaro e seus aliados comemoram a volta de Trump à presidência, crendo que a pressão política americana poderá reverter sua inelegibilidade no Brasil.

Penso que uma prioridade para nós, como igreja evangélica brasileira, é entender os elementos que motivam nossas escolhas e posicionamentos ideológicos. Enquanto grande parcela dos evangélicos brasileiros comemora a volta de Donald Trump à presidência, por considerá-lo alinhado aos princípios do evangelho, prefiro parafrasear o querido Ronaldo Lidório, lembrando que o evangelho não é nem democrata nem republicano, não se alinha à Kamala nem a Trump; o evangelho é Jesus. “Amigos, este mundo não é a casa de vocês; por isso, não se sintam à vontade nele. Não deem espaço para o ego à custa da sua alma” (1Pedro 2.11 na versão A MENSAGEM) 

México

Rubén Enriquez Navarrete, secretário, Fraternidade Evangélica do México

Donald Trump venceu a eleição presidencial nos Estados Unidos mais uma vez. Embora possa não estar acima de qualquer suspeita, ele é uma pessoa que reconhece as origens e os princípios dos EUA como enraizados no Deus da Bíblia. Acredito que Deus permitiu isso por dois motivos: para dar às igrejas uma oportunidade maior de difundir o evangelho e para encorajar a reflexão entre aqueles que se afastaram de Deus.

A questão dos imigrantes é uma das principais preocupações das igrejas mexicanas, e o resultado da eleição sem dúvida a influenciará. As igrejas mexicanas estão organizando esforços para apoiar os imigrantes, especialmente na fronteira. Para nós, isso não é um problema, mas uma oportunidade. Embora muitos cheguem aqui como descrentes, eles geralmente se convertem e, ao retornarem para seus países de origem, compartilham o evangelho ou apoiam igrejas estabelecidas.

Para os cristãos mexicanos, não há um impacto significativo — apenas um sentimento de orgulho em saber que, nos EUA, as opiniões dos pastores evangélicos são valorizadas.

América do Norte

Canadá

David Guretzki, presidente e CEO, Fraternidade Evangélica do Canadá

Devido à proximidade geográfica do Canadá, os principais eventos políticos nos EUA têm uma influência maior em nosso clima político e social. Por exemplo, quando a Suprema Corte dos EUA derrubou o precedente Roe v. Wade, o aborto se tornou um tópico polêmico novamente no Canadá, o que levou a promessas do nosso governo no sentido de garantir que o Canadá não seguiria pelo mesmo caminho.

Houve muita angústia em ambos os lados do debate sobre o aborto, embora absolutamente nada tenha mudado em nosso contexto legal. A revogação de Roe v. Wade despertou nos defensores pró-vida um desejo renovado de ver novas leis promulgadas, enquanto os defensores pró-escolha buscavam permitir acesso irrestrito ao aborto.

Embora sempre haja comparações entre as políticas dos EUA e do Canadá, buscamos lembrar aos cristãos evangélicos que o contexto histórico, religioso, social e político do Canadá é único.

Nossa organização é grata pelo fato de que a eleição dos EUA tenha sido realizada com liberdade e sem violência ou perda de vidas. As Escrituras nos ordenam a orar por todos aqueles em posição de autoridade, independentemente de sua filiação política. Nesse sentido, pedimos a todos os seguidores de Jesus que observem esta exortação, e ao mesmo tempo demonstrem amorosa tolerância para com aqueles cujas visões políticas possam diferir das suas.

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África

Nigéria

James Akinyele, secretário-geral, Fraternidade Evangélica da Nigéria

À luz das atuais dificuldades econômicas e políticas que a Nigéria enfrenta, esta eleição nos EUA não foi debatida localmente tanto quanto as duas anteriores. Para os evangélicos, nenhum dos candidatos era uma opção fácil. Harris era considerada mais sensata, mas seu forte apoio ao aborto e aos direitos LGBTQ deixou muitas pessoas desconfortáveis. As posições morais de Trump reverberam nossas principais convicções evangélicas, mas sua falta de moralidade em termos pessoais e sua percepção da supremacia branca despertaram alguma preocupação. Esperamos que ele se torne mais aberto à imigração.

Alguns líderes cristãos nigerianos disseram que a vitória de Trump é uma resposta às nossas orações por um presidente dos EUA que defenderá a fé cristã na Nigéria e ao redor do mundo. Outros disseram que deveria ser aceita como a vontade de Deus, sem julgamento positivo ou negativo. Mas quase todo mundo espera que ele se torne menos polêmico em sua retórica e na conduta pessoal. E muitos são simpáticos à sua promessa de manter o papel da América de polícia global, sem ser subserviente ao resto do mundo.

África do Sul

Moss Ntlha, secretário-geral, Aliança Evangélica da África do Sul

A vitória de Trump é um dia triste para o evangelicalismo em todo o mundo. Evangélicos proeminentes nos EUA saíram em total apoio a Trump, fazendo parecer que ser alguém que crê na Bíblia é ser alguém que apoia Trump. Esse endosso passa a impressão de que o conservadorismo teológico requer e conduz a uma visão política de direita que é ditatorial, que se opõe à justiça climática, que sanciona o genocídio na Terra Santa e aprova o que ocorreu naquele 6 de janeiro.

Na África do Sul, muitos que conhecem os horrores do apartheid reconhecem quão facilmente uma política populista, que se apega a uma visão estreita da moralidade pública, pode prejudicar aqueles que estão nas margens. Trump já declarou, em seu primeiro mandato, que os países africanos são “países de m—”. Recentemente, ele deixou claro que, quando voltasse à presidência, garantiria que Israel tivesse tudo o que precisa para “terminar o trabalho”, o que muitos entendem como apagar do mapa a existência palestina.

Nossa preocupação é que ter Trump na Casa Branca tornará difícil proclamar a mensagem do evangelho de que “Deus amou o mundo de tal maneira” que enviou Jesus para morrer por todos, especialmente nossos vizinhos muçulmanos. Nossa preocupação é que ele use o imenso poder do governo dos EUA para punir aqueles que buscam políticas estrangeiras contrárias às dele, como a África do Sul, por apelar ao Tribunal Internacional de Justiça para que julgue se o que estamos testemunhando no conflito Israel-Palestina é genocídio.

Ásia

Bangladesh

Philip Adhikary, presidente, Aliança Evangélica de Bangladesh

A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA evoca reações mistas. Embora a administração de Trump geralmente tivesse uma posição forte em favor da liberdade religiosa, suas políticas externas em relação a países como Bangladesh eram frequentemente pragmáticas, em vez de explicitamente focadas nas preocupações de minorias religiosas específicas. Sua abordagem em favor da “América primeiro” [que desconsidera interesses globais e foca somente na política doméstica dos EUA] e seu apoio à liberdade religiosa podem sinalizar implicações positivas e desafiadoras para os evangélicos de Bangladesh.

No entanto, a ajuda externa dos EUA, que às vezes vem com condições relacionadas a direitos humanos, pode não mudar drasticamente em resposta às prioridades de Trump, em especial se sua administração priorizar os interesses nacionais em detrimento dos direitos humanos internacionais.

Na prática, o impacto da presidência de Trump poderia incluir maiores oportunidades para ONGs religiosas sob a forma de ajuda. No entanto, a ascensão da retórica nacionalista e anti-imigrantes em alguns países ocidentais, durante seu mandato, poderia encorajar a oposição local aos esforços evangélicos, potencialmente aumentando a pressão social ou a perseguição.

China

Pastor de uma igreja doméstica na China

A presidência de Donald Trump pode impactar os cristãos chineses de algumas maneiras importantes. Sua política “a América primeiro” pode levar a controles de visto mais rígidos, reduzindo o acesso de estudantes chineses à educação nos EUA. Isso pode ser particularmente desafiador para famílias cristãs na China que estão educando seus filhos em casa, por meio de homeschooling [educação domiciliar] ou enviando seus filhos para escolas cristãs não registradas. Como entrar depois em uma faculdade no exterior é frequentemente a única opção de ensino superior que esses estudantes têm, essas famílias podem ter de enfrentar escolhas difíceis.

Em contrapartida, estudantes chineses que se convertem durante o período em que vivem nos EUA podem ter mais probabilidade de voltar à China, devido às oportunidades limitadas de carreira nos EUA, o que potencialmente fortaleceria as comunidades cristãs locais.

O apoio que Trump recebeu de grupos evangélicos americanos, somado a suas declarações polêmicas sobre democracia e liberdade, podem aprofundar as divisões dentro das comunidades cristãs chinesas. Sua retórica e sua ênfase nos interesses nacionais podem fornecer munição para a mídia estatal chinesa criticar ainda mais a democracia ocidental, o que pode levar a mais restrições às liberdades religiosas na China.

Se Trump impuser mais tarifas ou outras pressões econômicas sobre a China, isso pode levar a dificuldades financeiras para muitas famílias, impactando assim a capacidade dos cristãos chineses de sustentar a igreja. No entanto, tais dificuldades econômicas também podem levar as pessoas a buscar refúgio espiritual, possivelmente aumentando o interesse na fé cristã.

Índia

Vijayesh Lal, secretário-geral, Fraternidade Evangélica da Índia

Não espero muitas mudanças no rumo geral da política externa sob uma nova administração Trump, já que a Índia é um parceiro estratégico fundamental para equilibrar a crescente influência da China na região. Em questões como direitos das minorias e liberdade religiosa, é seguro pressupor que Trump não colocará tanta pressão sobre a Índia quanto um presidente democrata provavelmente colocaria. Na verdade, ao visitar a Índia durante seu mandato anterior, ele fez um elogio infame ao histórico do primeiro-ministro Narendra Modi em matéria de liberdade religiosa. Embora a administração Trump possa se concentrar na liberdade religiosa, de um ponto de vista global, é provável que não comentará sobre o tratamento que é dado a cristãos e a muçulmanos na Índia.

Pode ser que muitos cristãos na Índia e no sul da Ásia com inclinações para o Partido Republicano recebam bem essa volta de Trump à presidência; para a igreja na Índia, porém, não vejo ganhos significativos. A igreja na Índia não deposita suas esperanças na liderança política, seja ela dos EUA ou da Índia.

Nepal

Sher Bahadur A. C., secretário-geral, Fraternidade de Igrejas Nacionais do Nepal

A eleição de Donald Trump trouxe uma onda de otimismo entre os cristãos nepaleses. Para muitos, sua vitória é vista como uma boa notícia, não só para os Estados Unidos, mas também para as comunidades cristãs ao redor do mundo.

As políticas de Trump, que demonstram uma forte inclinação para apoiar a liberdade religiosa e as causas cristãs globais, tornaram seu nome popular entre os cristãos nepaleses. Esperamos que ele continue apoiando os cristãos em todo o mundo e nos apoie em nossos esforços para praticar nossa fé com liberdade.

Embora não esperemos mudanças significativas no Nepal, a influência global do governo americano e a possibilidade de pressão diplomática dos EUA, caso quaisquer ações forem tomadas contra os cristãos em nosso país, podem servir como uma proteção para as minorias religiosas.

Ao mesmo tempo, a dinâmica geopolítica mais ampla deve ser considerada. A administração Trump é conhecida por sua postura crítica em relação aos governos comunistas, e o Nepal é atualmente liderado por um primeiro-ministro comunista, Khadga Prasad Sharma Oli. Trump também tem um relacionamento próximo com a Índia, enquanto o Nepal está mais alinhado com a China. Isso poderia potencialmente criar tensões entre o Nepal e a administração Trump, caso o Nepal aprofunde seus laços com Pequim.

Filipinas

Noel Pantoja, diretor nacional, Conselho Filipino de Igrejas Evangélicas

Com nossos corações alegres, celebramos a vitória de Donald Trump nas eleições recentes, reconhecendo que Deus ordenou que ele liderasse os EUA. Este momento nos enche de esperança, pois significa um compromisso renovado com a liberdade religiosa, permitindo que os indivíduos expressem sua fé sem medo nem restrição.

A igreja filipina está atualmente se opondo a projetos de lei do Senado e do Congresso filipinos sobre orientação sexual, identidade de gênero, e expressão, casamento entre pessoas do mesmo sexo e aborto. Se aprovados, esses projetos de lei prejudicarão a igreja, as escolas e as empresas. Todos os lobistas são apoiados por defensores dos direitos LGBTQ dos EUA e do Ocidente; por isso, a posição de Trump sobre essas questões e a sua vitória nas eleições encorajam as igrejas nos EUA e nas Filipinas.

Estamos esperançosos quanto ao impacto positivo que esta administração terá na política externa, promovendo a paz e fortalecendo relacionamentos com nações que compartilham os valores da democracia. É uma vitória não apenas para a América, mas para pessoas tementes a Deus ao redor do mundo, especialmente na Ásia, onde a luz de Deus pode brilhar mais forte através de sua própria liderança divina.

 Sri Lanka

Noel Abelasan, diretor nacional, Every Home Crusade

A vitória de Trump pode impactar positivamente os cristãos evangélicos no Sri Lanka, ao promover a liberdade religiosa e, possivelmente, direcionar a ajuda dos EUA para programas baseados na fé. Esse foco nos princípios cristãos pode encorajar os cristãos do Sri Lanka e apoiar iniciativas alinhadas com as prioridades dos EUA.

No entanto, um posicionamento forte contra a China pode complicar a posição diplomática do Sri Lanka, dada a influência da China na região, o que pode afetar indiretamente os grupos evangélicos locais. No geral, pode aprofundar a solidariedade entre os evangélicos em termos globais, inspirando os cristãos do Sri Lanka a se sentirem mais conectados a um movimento comum.

 Taiwan

Andrew Chiang, pastor, Bilingual Community Church

Não acho que a presidência de Trump impactará a liberdade religiosa em Taiwan no curto prazo. O apoio de Trump a causas evangélicas conservadoras não afeta as pessoas em Taiwan; portanto, é improvável que desencadeie qualquer reação negativa por parte das fatias mais seculares da sociedade. Em termos de ajuda e de política externa, tanto Trump quanto Biden buscaram uma política de contenção da China, o que é benéfico para Taiwan, desde que não exagerem e desencadeiem uma guerra.

A presidência de Trump provavelmente terá um impacto maior nas tendências culturais e religiosas. Teorias da conspiração, alarmismo do fim dos tempos e falsas profecias, que têm corrido desenfreadas nos EUA, desde a primeira presidência de Trump, também se espalharam por Taiwan. Isso provavelmente continuará sob sua segunda presidência. É difícil prever como a igreja evangélica em Taiwan reagirá, mas, em alguns círculos, a eleição de Trump levou a mais reflexões sobre teologia pública e política. A igreja evangélica em Taiwan pode ganhar voz própria, independente da igreja evangélica dos EUA, em consequência do caos que testemunha do outro lado do Pacífico.

 EUROPA

 Armênia

 Craig Simonian, coordenador da região do Cáucaso, Rede de Paz e Reconciliação da Aliança Evangélica Mundial

Acredito que a vitória de Trump e a volta do Partido Republicano à liderança do Congresso são coisas inquestionavelmente boas para a Armênia.

Embora poucas pessoas que estão fora dos círculos políticos saibam, a República da Armênia tem sido uma peça central da política externa americana há mais de 30 anos, devido à sua posição estratégica na fronteira com a Rússia, o Irã e a Turquia. Mas somente desde a guerra do Azerbaijão, em 2020, para recuperar o enclave de Nagorno-Karabakh, chamado de Artsakh, de população armênia, foi que a importância da Armênia se tornou conhecida por um público mais amplo — especialmente entre os evangélicos. Os cristãos na região das Montanhas do Cáucaso são perseguidos há milênios.

Grande parte dessa cosncientização é fruto do fato de republicanos terem usado comitês do Congresso e comissões governamentais para defender a Armênia. Ela se tornou a primeira nação cristã do mundo, em 301 d.C., e continua precisando de proteção contra vizinhos hostis. Em contraste, embora os democratas tenham promovido fielmente o reconhecimento do genocídio armênio nos últimos 33 anos, eles realizaram pouco mais que isso.

Agora, com Trump de volta à Casa Branca, podemos esperar que a Armênia cristã desponte mais plenamente como uma nova aliada para a promoção da democracia ocidental na região. Se Deus quiser, a Armênia se tornará um novo centro para missões mundiais também.

Rússia

Vitaly Vlasenko, secretário-geral, Aliança Evangélica Russa

Trump era o candidato mais digno, e estou feliz que ele tenha vencido. Mas a ideia de que ele tem um relacionamento próximo com Vladimir Putin é um exagero. Embora os russos tenham recebido bem sua primeira presidência, muitos ficaram decepcionados e agora olham para ele com desconfiança. Ainda assim, sua eleição nos dá uma nova esperança de que as coisas possam ser diferentes.

Espero que Trump apoie o diálogo internacional, a paz e a liberdade religiosa. Ele prometeu acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas. Ele não é Deus, mas se isso acontecer em breve, ficarei muito feliz. No entanto, como a Rússia não é um estado-satélite dos Estados Unidos, até que Trump tenha selecionado seu gabinete presidencial completo, é muito difícil prever como seremos afetados. Por enquanto, estou esperançoso.

É difícil saber como Trump impactará nossa comunidade evangélica russa. O apoio mútuo entre congregações nos EUA e na Rússia depende principalmente de relacionamentos pessoais e entre igrejas, não depende de quem está na Casa Branca. Historicamente, as autoridades americanas não se opuseram ao nosso diálogo, muito pelo contrário, contribuíram de forma positiva para ele. Como Trump tem o apoio da maioria dos evangélicos dos EUA, espero que sua equipe dê continuidade a essa boa tradição.

Turquia

Ali Kalkandelen, ex-presidente da Associação de Igrejas Protestantes na Turquia

As políticas americanas relacionadas a esta região inundaram nossa nação com refugiados da Síria, do Afeganistão e da Ucrânia. Se Israel expandir sua guerra em direção ao Irã, isso pode ser uma ameaça de envolvimento da Turquia. O conflito Armênia-Azerbaijão continua crítico, pois tem sido negligenciado pelos EUA. E o povo curdo tem buscado autonomia regional, confiante de que os Estados Unidos os apoiam.

Nossa nação foi afetada negativamente por essas crises, dos pontos de vista político e econômico. Devemos orar pela misericórdia e pela sabedoria de Deus para todos os líderes mundiais. Mas Trump promete mudar de rumo e buscar a paz na região, o que seria melhor e mais justo para todos. O presidente Recep Tayyip Erdoğan chama Trump de “meu amigo”, e o relacionamento entre eles provavelmente fortalecerá os laços conjuntos de nossos países dentro da OTAN.

Embora os membros das igrejas tenham sofrido sob o peso dessas crises, estas também abriram uma nova porta para o ministério. Muitos refugiados chegaram à fé em Cristo na Turquia, e nossas congregações têm crentes de origens curda, persa e árabe.

Essa transformação espiritual continuará e fortalecerá a igreja. Nenhum presidente americano pode ter um impacto negativo sobre isso.

Reino Unido

Gavin Calver, CEO, Aliança Evangélica

Mais uma vez teremos de responder a acusações feitas por aqueles que pressupõem que os evangélicos britânicos casam política com fé, da mesma forma que o fazem aqueles que carregam o rótulo de evangélicos nos EUA. Política e fé sempre estarão conectadas até certo ponto; contudo, a relação simbiótica entre a fé e a preferência política de alguém, bem como o fato de o termo evangélico ser frequentemente percebido como sinônimo do slogan MAGA [Make America Great Again, em português, Tornemos a América Grande Novamente], tem sido algo extremamente problemático para nós, aqui no Reino Unido.

Em contraste, os evangélicos britânicos não são de forma alguma casados ​​com quaisquer das nossas filiações políticas. Os cristãos precisam orar e apoiar seus líderes, mas também precisam se posicionar contra o que estiver errado. Nossa lealdade primária deve ser a Jesus, e não a um líder nacional.

Espero que a próxima presidência de Trump seja diferente, que ninguém pressuponha erroneamente que os evangélicos do meu país estão alinhados política e nacionalisticamente, e que possamos continuar a ser o povo das “boas-novas” no Reino Unido.

Ucrânia

Taras M. Dyatlik, diretor de engajamento, Scholar Leaders

Estou profundamente preocupado com o potencial impacto do resultado das eleições dos EUA na defesa do meu país contra a agressão não provocada da Rússia. A Ucrânia depende muito da ajuda dos EUA e das decisões de política externa, e temo que uma mudança na liderança possa afetar esse apoio crucial.

É preocupante para mim ver alguns líderes evangélicos ocidentais adotando narrativas que minimizam ou justificam a agressão russa, muitas vezes decorrentes de sofisticadas campanhas da propaganda russa. A noção de que “a guerra vai acabar quando a Ucrânia parar de se defender ou quando o Ocidente parar de apoiar a Ucrânia”, em vez da ideia de que “a guerra será detida, e deve sê-lo, quando fizermos a Rússia deixar os territórios ucranianos”, revela uma interpretação equivocada e perturbadora da realidade.

A utilização da retórica e dos valores cristãos como armas, para fins políticos, tanto na Rússia quanto nos EUA, também é profundamente preocupante a meu ver. Quando os valores cristãos se tornam intimamente alinhados aos poderes políticos, eles são com frequência distorcidos e utilizados de forma equivocada para justificar ações que prejudicam os vulneráveis.

Oro para que, independentemente da liderança e das políticas dos EUA, a comunidade internacional continue apoiando a luta da Ucrânia por sua existência, seus valores democráticos e pela dignidade humana.

Oriente Médio

Egito

Michael El Daba, Diretor Regional do Movimento de Lausanne para o Oriente Médio e Norte da África

Enquanto o mundo aguardava os resultados das eleições nos EUA, muitos cristãos egípcios estavam em oração pela paz. A guerra se avizinha de nossas fronteiras com Gaza, Líbia e Sudão, e nosso governo aumentou o problema com decisões políticas que levaram à inflação e à dívida sem precedentes. Os turistas têm medo de visitar o país, enquanto os refugiados encontraram um abrigo seguro aqui.

Seja no que diz respeito aos direitos humanos locais ou à paz e à estabilidade regionais, o governo Biden fez pouco para ajudar. Não esperamos que Trump seja muito diferente — pelo menos no que diz respeito ao povo egípcio. Ele buscará uma abordagem altamente transacional com aliados regionais, entre eles o Egito, que enfatiza a venda de armas, acordos comerciais e cooperação em segurança, ao mesmo tempo em que vai ignorar amplamente o engajamento político e diplomático baseado em valores. Trump provavelmente negligenciará até mesmo advertências gentis sobre direitos humanos e liberdades políticas.

Um ponto positivo é que o forte apoio evangélico dos americanos a Trump pode ajudar os evangélicos egípcios a terem uma voz local mais forte. Se Trump se empenhar em uma agenda de liberdade religiosa internacional, podemos contribuir para a campanha pelos direitos das minorias [religiosas]. Isso pode abrir ainda mais a praça pública para a participação política cristã e superar obstáculos administrativos para a construção de prédios de igrejas.

Israel

Danny Kopp, presidente, Aliança Evangélica de Israel

Muitos evangélicos pró-Israel e pró-Palestina — os quais se opõem uns aos outros quando o assunto é a política dos EUA na região — estão ironicamente unidos em sua esperança de que uma nova presidência de Trump seja uma melhoria em relação ao governo Biden. Ainda assim, se há algo que pode ser dito com toda confiança a respeito de Trump, é que ele será imprevisível. Ele é capaz tanto de apoiar uma escalada dramática no uso da força contra os inimigos de Israel quanto de exigir uma rápida cessação das hostilidades que alguns considerariam uma capitulação.

Em geral, os judeus messiânicos não têm nenhuma expectativa de que Trump aborde especificamente suas questões internas como cidadãos judeus messiânicos de Israel. Eles são um grupo demográfico muito pequeno para que ele lhes dedique uma política específica. Assim como seus concidadãos, eles estão quase totalmente consumidos com a questão de como o governo de Trump apoiará ou não Israel em sua atual guerra de sete frentes.

Uma segunda administração Trump pode de fato embarcar em um esforço bem-vindo para expandir os Acordos de Abraão, a fim de incluir a Arábia Saudita e, talvez, até mesmo a Palestina no estabelecimento de acordos de paz com Israel. No entanto, se os Estados Unidos abandonarem seus aliados na Ucrânia e no Sudeste Asiático à agressão russa e chinesa, respectivamente, isso apenas impulsionará esse mesmo eixo que — sobretudo por meio do Irã e de seus representantes — tem sido o principal instigador da violência em Israel, Gaza, Líbano, Síria, Iêmen e Iraque.

Líbano

Wissam al-Saliby, presidente, 21Wilberforce Global Freedom Center

O povo do meu país historicamente não vê muita diferença entre as políticas de republicanos e de democratas em relação a Israel e ao Líbano. No entanto, muitos libaneses que vivem no Líbano e nos EUA apoiaram a eleição de Donald Trump, porque preferem o elemento “desconhecido” de sua presidência às políticas da atual administração, que permitiram que a guerra no Oriente Médio continuasse e se expandisse.

Sem mencionar que esta região está sendo esvaziada de sua população cristã por causa da guerra — primeiro, o Iraque, depois, a Síria, e agora, o Líbano. Muitos dos meus amigos e familiares partiram. E os cristãos palestinos na Cisjordânia continuam a perder suas terras e meios de subsistência para os colonos israelenses.

Precisamos urgentemente de um processo de paz que aborde as queixas genuínas e a injustiça na raiz do conflito, e até hoje nunca tivemos um.

Além disso, a destruição de Gaza e, agora, de grandes partes do Líbano corroeu gravemente a credibilidade dos EUA. Se o governo dos EUA procurasse um país de maioria muçulmana para denunciar ali a perseguição de cristãos, a resposta que ouviria seria: “Primeiro, acabem com a guerra em Gaza; depois, voltem aqui e nos perguntem sobre o nosso próprio histórico de direitos humanos”.

Palestina

Jack Sara, secretário-geral, Aliança Evangélica no Oriente Médio e Norte da África

A política dos EUA tem tido uma influência complexa e muitas vezes contenciosa aqui, com decisões da Casa Branca que afetam nossas vidas cotidianas e nosso futuro de maneiras profundas.

O apoio de Trump a políticas que favorecem a expansão israelense e seu desrespeito aos direitos dos palestinos levantam preocupações. Isso pode significar mais marginalização para os palestinos e um ambiente ainda mais desafiador para os cristãos, que se esforçam para viver sua fé neste contexto volátil.

Trump recebeu apoio significativo de muitos evangélicos, apesar das políticas que parecem contradizer os valores fundamentais de justiça, misericórdia e humildade que as Escrituras nos chamam a defender. Suspeito que muito desse apoio esteja enraizado em uma ideologia teológica e política equivocada — o sionismo cristão — que vê uma fidelidade inquestionável ao Estado de Israel como um mandato bíblico. Muitos evangélicos podem ver Trump como o protetor de Israel, talvez ignorando o desrespeito de sua administração anterior pelos direitos dos palestinos e as consequências mais amplas para a paz no Oriente Médio.

No entanto, mantenho a esperança e permaneço em oração. Espero que a administração Trump possa trabalhar para deter a guerra genocida em Gaza, bem como a invasão terrestre e a campanha de bombardeio generalizado no Líbano. Espero que Trump trabalhe em prol de uma paz que respeite genuinamente os direitos e a dignidade de todos os povos na Terra Santa e na região.

OCEANIA

Austrália

Simon Smart, diretor-executivo, Centro para o Cristianismo Público

Em determinado nível, outra presidência de Trump não tem muita influência sobre os evangélicos na Austrália, que têm um cenário religioso muito diferente em comparação aos EUA. Mas, na medida em que sua presidência contribuir para um desejo cristão de obter o máximo de poder político possível, com o intuito de atingir seus objetivos, ela pode não ser útil a longo prazo. A história mostra que frequentemente — embora nem sempre — a fé cristã e o poder político não se misturam bem. Essa é uma lição que parece difícil de aprender.

A Austrália é um país mais secular do que os Estados Unidos. Para aqueles de nós que tentam promover a compreensão pública da fé cristã aqui, em nada ajudou à nossa causa essa associação, que já vem de décadas, do termo evangélico com um tipo de política que a maioria dos australianos vê com maus olhos. Isso nos obriga a nos envolver com certas percepções que atrapalham um diálogo construtivo sobre a fé.

Reportagem de Angela Lu Fulton, Bruce Barron, Franco Iacomini, Isabel Ong, Jayson Casper e Surinder Kaur.

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Theology

A Bíblia é uma história, e não informação

Editor in Chief

Os algoritmos nos roubam o mistério. Os Evangelhos nos devolvem a capacidade de sermos surpreendidos pela verdade.

Christianity Today November 7, 2024

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Recomendei a leitura do Evangelho de Marcos a um descrente. Ele leu e achou “assustador”. Essa era exatamente a reação que eu queria.

Este jovem é provavelmente ateu ou agnóstico, mas viveu em um ambiente tão secular que não parece ter essa percepção de si mesmo, assim como você não se apresentaria como alguém “que é contra o canibalismo” ou “que é antirroubo”. Ele queria, no entanto, tentar entender — apenas a título de mero exercício intelectual — por que alguém defenderia visões ou práticas religiosas que ele considera estranhas.

Então, ele me perguntou o que deveria ler para conseguir compreender isso. Evidentemente, há muitos conteúdos que eu recomendaria a uma pessoa com esse tipo de curiosidade, mas disse a ele: “Por que você não lê o Evangelho de Marcos? Não se preocupe em entender cada detalhe; apenas leia.”

Mais tarde, encontrei-o novamente, e ele disse que havia seguido meu conselho. “Então, o que você achou?”, perguntei.

Ele disse que estava em conflito. Ler o Evangelho, por um lado, fora envolvente do ponto de vista da narrativa, e de uma forma que ele não esperava, partindo do pressuposto que um texto religioso ancestral seria enfadonho e propagandístico. Por outro lado, ele disse: “Foi meio assustador.” E foi nessa hora que ele mencionou O problema dos três corpos, de Cixin Liu.

Ele sabia que eu tinha lido essa obra de ficção científica no ano anterior — com certa relutância. Um amigo de confiança me recomendou o livro, mas avisou: “Não desista da leitura. Você vai sentir como se não entendesse o que está acontecendo e vai querer parar de ler. Continue lendo e verá que tudo valerá a pena no final.” Meu parceiro de conversa descrente não tinha lido o livro, mas tinha assistido parte da adaptação da obra feita pela Netflix [para a série que traz o mesmo nome do livro].

Vou dar alguns spoilers aqui, de leve: tanto no livro quanto na série, uma civilização alienígena se comunica com cientistas humanos por meio de um headset de realidade virtual para jogos. Os cientistas são colocados em cenários nos quais devem resolver as flutuações de gravidade que estão submetendo um planeta distante a períodos totalmente imprevisíveis de caos e calmaria.

“Às vezes, [ler o Evangelho de Marcos] era como jogar nesses cenários”, disse o jovem. “Era quase como se alguém estivesse lá do outro lado, me observando.”

Com isso, ele quis dizer particularmente que, no texto de Marcos, o “personagem” (nas palavras dele) de Jesus às vezes aparentava ter sido escrito de uma forma que parecia ser inesperadamente imediata. “Às vezes eu tinha que lembrar a mim mesmo de que eu não estava lá, bem no meio daquilo tudo. Isso meio que me assustou um pouco.”

Embora eu não tivesse em mente nenhum alienígena de alguma realidade virtual, essa reação era exatamente o que eu esperava despertar, quando recomendei que ele lesse o Evangelho de Marcos.

Normalmente, se estou ajudando alguém a “entender” o que é o cristianismo, peço a essa pessoa que leia o Evangelho de João. No caso de pessoas como esse rapaz — pessoas que não sei se algum dia terei a oportunidade de acompanhar —, porém, eu sugiro Marcos, em parte porque é conciso e relativamente fácil de ler.

Também faço isso por causa de uma história que ouvi há alguns anos. Se bem me lembro, um homem que tinha sido um espécie de religioso oriental da Nova Era — do tipo que encontrávamos frequentemente nos movimentos contraculturais hippies das décadas de 1960 e 1970 — tornou-se cristão, porque um professor que lhe dava aula de religião comparada passou como tarefa a leitura do Evangelho de Marcos. Assim como o jovem agnóstico que conheci, esse homem foi atraído pela figura de Jesus e começou a sentir como se não estivesse apenas lendo o texto, mas como se estivessem lhe acenando do interior da história.

Leon Wieseltier argumenta que hoje em dia damos muita ênfase à “contação de histórias” — que isso leva a uma perda de argumentos, de persuasão. “A contação de histórias é concebida para despertar no ouvinte certas reações, certas posturas mentais. Isso gera passividade, credulidade, espanto”, escreve Wieseltier. “E todas elas são posturas de rendição.”

É evidente que essa afirmação nega que existam verdades importantes que só podemos ver a partir de posturas de passividade, credulidade, espanto e até mesmo rendição.

O filósofo Byung-Chul Han concorda que deveríamos nos preocupar com a ênfase que é dada à contação de histórias, mas porque — por mais que falemos muito sobre contação — perdemos a capacidade de contar e de ouvir uma história real.

Segundo argumenta Han, em seu novo livro The Crisis of Narration [A crise da narração], “contamos cada vez menos histórias em nossa vida cotidiana” porque “a comunicação assumiu a forma de troca de informações”. Em uma era da informação, escreve Han, uma história real é uma ruptura. Afinal, a informação é algo direto, controlável e consumível. Já uma história funciona de maneira diferente. Para ser vivenciada, uma história precisa que algumas informações sejam retidas e também reveladas.

“Informações retidas — ou seja, a ausência de explicação — aumentam a tensão narrativa”, escreve Han. “A informação empurra para as margens aqueles eventos que não podem ser explicados, mas tão somente narrados. Uma narrativa em geral tem algo de maravilhoso e misterioso em suas margens”. E esse tipo de mistério é surpreendentemente raro em uma era de algoritmos.

Parte do nosso problema é que enxergamos os enredos como algo inquietante em nossa era da informação, especialmente se começarmos a ver nossas vidas como parte desse enredo. É isso que Han acha nocivo nos algoritmos. Eles nos têm feito consumir apenas pedaços de dados desconectados — selecionados de acordo com nossas curiosidades e nossos apetites —, a ponto de não sermos mais surpreendidos. A própria realidade começa a parecer morta, assim como tantos dados abstratos. E morte gera mais morte.

“Pedaços de informação são como partículas de poeira, e não como grãos de semente”, ele escreve. “Eles não têm força germinativa. Uma vez registrados, eles imediatamente caem no esquecimento.” A metáfora de pronto me trouxe à mente as próprias palavras de Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (João 12.24, ESV).

O jornalista David Samuels lamenta o fato de que hoje nós vivamos na monotonia de uma época em que histórias e músicas são esvaziadas por Big Data e substituídas “pelo consumo de pornografia e ativismo ideológico”.

“O objetivo dos algoritmos que governam as informações não é criar beleza, nem qualquer coisa que seja humana; é sugar seus cérebros e, então, fatiá-los em pedaços que possam ser analisados ​​e vendidos para corporações e governos, os quais, inclusive, estão rapidamente se tornando a mesma coisa. É uma mutilação em massa do ser humano”, escreve Samuels. “Na prática, isso soa como um alarme de carro disparado, que toca cada vez mais alto — um som que por si só não significa nada, senão um aviso de que algo está acontecendo.”

Talvez o problema dos três corpos em tudo isso não seja a Bíblia, mas sim o restante da vida. Do lado de lá de nossas vidas digitais estão inteligências em busca de nos questionar — estão algoritmos, sem nome e sem rosto, projetados para nos testar com uma única pergunta: “O que você quer?”. E se, no entanto, o tédio e o mal-estar que sentimos hoje forem sinais de que não fomos criados para viver assim?

Jesus disse que esta é uma das principais razões pelas quais ele ensinava por parábolas, “porque vendo, eles não veem, e ouvindo, eles não ouvem, nem entendem” (Mateus 13.13). Uma história requer um certo tipo de participação, uma certa falta de controle. É preciso ser preparado pela história — e muitas vezes através da história — para ouvir o que ela está dizendo. É preciso ficar suficientemente perplexo para suspender o controle, para sentir a tensão, a fim de não apenas compartilhar informações, mas experimentar algo verdadeiro. Sem esse senso de perplexidade e mistério, uma história perde sua capacidade de surpreender e permanecer [viva].

Pense, por exemplo, no relato muito familiar do Evangelho de João sobre a multiplicação dos pães e peixes feita por Jesus — um sinal milagroso tão importante que todos os Evangelhos fazem referência a ele. Temos a tendência de lembrar que havia uma multidão de milhares, que não havia o suficiente para comer e que Jesus providenciou um banquete praticamente a partir do nada. No entanto, o que a maioria das pessoas não pensa, ao relembrar essa história, é simplesmente como Jesus arma, constrói o episódio.

“Levantando os olhos e vendo que uma grande multidão vinha em sua direção, Jesus disse a Filipe: ‘Onde compraremos pão para esse povo comer?’”, João registra. “Fez essa pergunta apenas para pô-lo à prova, pois já tinha em mente o que ia fazer” (6.5-6).

Ele já tinha em mente o que ia fazer. A pergunta em si — a perplexidade momentânea que foi criada em Filipe — era a intenção de Jesus. É o mesmo padrão que Deus seguiu com as tribos de Israel no deserto, após o Êxodo. Moisés disse a eles: “Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.3).

Jesus não pretende apenas alimentar; ele pretende que primeiro tenhamos “fome e sede de justiça” (Mateus 5.6). Ele não pretendia simplesmente salvar Pedro do afogamento, mas também que Pedro sentisse como era ficar embaixo d’água, gritar por socorro e sentir uma mão puxando-o para cima (Mateus 14.30-31).

O encontro de Jesus com cada um de nós, nas Escrituras, deve funcionar da mesma maneira. Nós também devemos nos encontrar exclamando com a sinagoga de Cafarnaum: “O que é isto? Um novo ensino — e com autoridade!” (Marcos 1.27). Devemos começar a fazer a pergunta: “Por que esse homem fala assim?” (Marcos 2.7). Devemos ouvir as palavras de Jesus, como se fossem dirigidas diretamente a nós: “E vocês? […] Quem vocês dizem que eu sou?” (Marcos 8.29).

Quando alguém encontra autoridade em algoritmos e revelação em consumo, isso de fato pode parecer assustador — assim como, depois de um tempo passando fome, o cheiro de pão assando pode provocar náuseas. Quem não está “entendendo as coisas” não são aqueles que acham tudo isso estranho, mas sim aqueles que acham tudo familiar e chato. É isso que um enredo faz, especialmente o que um enredo inspirado pelo Espírito de Cristo faz, um enredo no qual devemos ouvir a voz do Pastor (João 10.4).

E se alguém que está do outro lado dessas palavras ancestrais souber que você está lá? E se, nessas palavras, você quase puder ouvir a voz com sotaque galileu, que um dia subverteu as linhas do enredo da vida de alguns pescadores, quando lhes disse: “Sigam-me”? E se [essa voz] estiver falando com você? Se for assim, achar isso perturbadoramente estranho não é o fim da história, mas sim um bom lugar para começar.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Public Theology Project [Projeto de Teologia Pública].

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News

Não é fácil orar quando se tem TDAH

Cristãos com neurodivergência estão explorando outras opções para momentos devocionais e estudo da Bíblia.

Christianity Today November 6, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty, Wikimedia Commons

Emily Hubbard relembra uma tendência no discipulado de mulheres, que as incentivava a descansar em Jesus e a “parar de tentar fazer tudo”. O problema era que Hubbard não estava tentando fazer tudo. Ela só queria se lembrar de ligar a máquina de lavar louça.

“Todo discipulado era para pessoas do tipo A, mas eu era uma pessoa do tipo Z”, disse ela.

Hubbard é mãe de quatro filhos, membro do conselho escolar e professora adjunta. O problema dela não é preguiça, mas sim transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Mais de oito milhões de adultos nos EUA são afetados pelo TDAH. Como o transtorno prejudica as funções executivas — o autocontrole necessário para se empenhar em direção a uma meta —, cultivar hábitos para crescer espiritualmente pode ser muito mais desafiador para um cérebro com TDAH do que para alguém que é neurotípico.

A Lifeway Research descobriu que quase dois terços dos frequentadores de igrejas protestantes intencionalmente passam um tempo sozinhos com Deus, ao menos diariamente. A Cru lista a leitura da Bíblia, o estudo da Bíblia, a memorização das Escrituras e a oração como as quatro principais disciplinas espirituais que os cristãos devem desenvolver.

O TDAH torna tarefas repetitivas desse tipo difíceis de praticar. Quando se sentam para um longo período de leitura da Bíblia e oração, os cristãos com TDAH podem sentir dificuldade para se concentrar e acabar se distraindo. Para eles, pode parecer impossível crescer espiritualmente, quando a igreja à sua volta vê o “tempo de silêncio” diário como um indicador de disciplina.

“Por anos, tudo o que eu conseguia fazer era ir à igreja aos domingos e orar pelos meus filhos à noite, e isso era o melhor que eu podia fazer”, disse Hubbard. “Ainda bem que Jesus morreu pelo meu melhor.”

Como o espinho na carne de Paulo (2Coríntios 12), Hubbard diz que vê seu TDAH como um constante lembrete de que seu desempenho não ganha a aprovação de Deus. Sua igreja, New City South, em St. Louis, segue o calendário cristão, em cujos ciclos Hubbard vê graça. Segundo ela, pode ser difícil se concentrar durante um momento específico de oração, um culto de domingo ou durante os diferentes períodos do calendário litúrgico, mas sempre há uma próxima vez, uma nova oportunidade para tentar.

Antes da pandemia, Hubbard visitava regularmente a Abadia da Assunção, em Ava, Missouri, para retiros espirituais silenciosos. Ouvir os monges orando como têm orado há séculos fazia com que Hubbard se lembrasse de que é parte de uma fé maior do que ela mesma.

Cada vez mais cristãos, inclusive líderes cristãos, estão falando sobre como o TDAH afeta sua vida de fé.

José Bourget, capelão da Andrews University, no Michigan, mencionou pela primeira vez, em um sermão no ano passado, que tem TDAH.

“Uma maneira neurodivergente de se relacionar com o mundo não é realmente abordada do púlpito”, disse ele.

Foi só na pandemia que Bourget percebeu que seu esquecimento e sua distração podiam ser mais do que meros traços de personalidade. Certa vez, ele perdeu um voo porque esqueceu sua carteira de motorista. E justificou o erro dizendo que Deus não queria que ele fizesse a viagem. Embora ele ainda pense que Deus possa agir em meio a suas distrações, agora acha importante reconhecer o TDAH.

Desde seu diagnóstico, Bourget — hoje na casa dos 40 anos — está trabalhando para se desvencilhar de anos de culpa e vergonha pelo que ele acreditava serem falhas pessoais.

Ele repete verdades simples como “Cristo me ama”. Ele declara que o cérebro com TDAH não é um cérebro com defeito, e fala do amor e da aceitação de Deus por aqueles que têm esse transtorno. E está pregando tanto para si mesmo quanto para qualquer outra pessoa.

“Parece exagerado e desmedido”, ele disse, “mas sentir constantemente que não me encaixo ou que não pertenço [a um grupo ou a um lugar] faz com que a aceitação seja algo muito crítico.”

Bourget também se deu “permissão para não se conformar” a práticas preestabelecidas de leitura das Escrituras e de oração silenciosa. Em vez disso, ele estabelece algumas estruturas básicas — como separar um tempo todas as manhãs para passar com o Senhor —, mas age com liberdade nesse tempo. Às vezes, ele passa mais tempo em oração; outras vezes, pratica a contemplação ou assiste a um vídeo de um sermão.

Bourget percebe que há alunos da Andrews que estão lutando com essas dificuldades. E faz questão de fazer com que saibam que ele está disponível para ajudá-los. Quando eles expressam culpa porque seus cérebros parecem não funcionar como os de todo mundo, Bourget os ajuda a encontrar práticas que funcionem para eles.

Tentar ficar quieto, parado e concentrado por longos períodos é difícil para pessoas com TDAH — seja para estudar alguma matéria ou para fazer orações a Deus.

Alex R. Hey, especialista em TDAH, aborda o sentimento de vergonha e de fracasso que pode advir dessa incapacidade de se manter atenta, quando a pessoa fica em silêncio. Ele reformula essas limitações para si mesmo e para seus clientes com frases como: “eu consigo orar de forma diferente”.

Isso o ajuda a lembrar que Deus o fez assim. “Pessoalmente, sinto que [o transtorno] colabora para a minha humildade”, disse ele.

Como outros tipos de neurodivergência, o TDAH se manifesta em um espectro. Enquanto alguns podem descrever suas lutas como algo que contribui para sua humildade, outros acham o TDAH debilitante. Jeff Davis, hoje um líder leigo na Igreja Stonebriar Community, nos arredores de Dallas, disse que lutou para encontrar e manter um emprego, devido às suas frágeis funções executivas. Ele passou quase dois anos sem uma casa para morar antes de conseguir ajuda.

Além de recorrer a aconselhamento e uso de medicação, pessoas com TDAH podem desenvolver estratégias de enfrentamento.

Para se envolver com as Escrituras, Hey frequentemente usa a lectio divina — uma prática monástica que usa uma fórmula para ler, meditar, orar e contemplar. Isso mantém sua mente conectada ao texto.

Como o cérebro com TDAH é propenso ao hiperfoco, pessoas com esse transtorno podem se fixar em uma coisa e negligenciar todo o resto. Certa vez, enquanto Hey meditava sobre a passagem em que uma mulher unge os pés de Jesus, ele não conseguia parar de pensar na imagem da mulher beijando os pés do Senhor (Lucas 7.37-38).

“Eu não gosto de pés, então, tudo o que eu conseguia pensar era em como pés são nojentos”, ele disse. Mas, ao pensar mais profundamente sobre o que estava acontecendo na passagem, ele percebeu que a única parte do corpo de Jesus que a mulher pecadora se sentia digna de tocar eram seus pés sujos. Ele, então, imaginou Jesus pegando a mão dela e fazendo-a se levantar.

“Quando não nos sentimos dignos e não nos sentimos amados, Jesus vem até nós e nos levanta”, disse Hey.

Outras orações cristãs antigas e liturgias tradicionais podem ter apelo para o cérebro com TDAH. Michael Agapito, estudante de pós-graduação no Northern Seminary, acha um tempo de silêncio algo assustador, mas faz uso da lectio divina, do Livro de Oração Comum e da Oração de Jesus: “Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, um pecador.”

“Há um enorme repertório de tradições da igreja do qual também somos herdeiros legítimos, mas que nunca realmente exploramos no evangelicalismo moderno”, disse Agapito, que recebeu seu diagnóstico na faculdade.

Ao mesmo tempo em que desenvolveu hábitos para administrar seus sintomas, ele também lutou para abandonar o perfeccionismo e para ver seu TDAH como algo ordenado por Deus. Ele descreveu sua mente como uma máquina de pinball, que fica constantemente saltando de uma ideia para outra sem desacelerar.

“Como cristão e como alguém envolvido no ministério, entendo que Deus entendeu por bem me dar essa condição, em sua providência, sabedoria e soberania”, disse ele. “Durante a minha fase de crescimento, eu meio que via isso como uma maldição, mas [hoje] também vejo isso em parte como uma dádiva.”

Enquanto considera a possibilidade de se tornar pastor, Agapito quer que sua futura congregação aprenda disciplinas espirituais com intencionalidade e acolha todos aqueles que lutam para manter esses hábitos — sejam pessoas neurodivergentes ou não. “O cristão médio também trava suas lutas para mantê-los.”

Megan Fowler mora na Pensilvânia e é escritora colaboradora da CT.

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Ideas

Venham a mim, ovelhas desgarradas: o cristianismo só se vive em comunidade, como povo de Deus

Já existe uma instituição que responde aos grandes questionamentos humanos. Ela se chama igreja.

A white sheep wearing sunglasses with a group of sheep in the background that are colored by a green and blue gradient.
Christianity Today November 5, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash

Dos bancos de qualquer igreja que a gente olhe, parece que estamos realmente vivendo um momento difícil para o corpo de Cristo. (Em outros locais, talvez não aconteça o mesmo)

Alguns de nossos próximos veem a igreja como um agente reativo, que pisa no freio em todos os principais movimentos em prol do progresso, desde a fundação do país. Outros acreditam que a igreja é um lobo em vias de perder sua pele de cordeiro, e que finalmente revelará sua face tóxica, abusiva e autoprotetora. Para outros ainda, a igreja é um completo fiasco, até mesmo invisível. Talvez as gerações mais velhas frequentassem os cultos de Natal e de Páscoa e as gerações mais novas dissessem que os frequentavam. Porém, não há mais necessidade de fingir.

Para aqueles de nós que permanecem comprometidos com a igreja — até mesmo pastores, apologetas e escritores cristãos — pode parecer tentador enfrentar esse momento com uma atitude de minimizar a importância da igreja o máximo possível. “Você não precisa ir à igreja para ser cristão”, podemos dizer. O cristianismo é sobre um relacionamento pessoal e individual com Jesus. O que importa é se você conhece a Jesus, se o segue e o ama em sua vida diária. A religião organizada pode ajudar algumas pessoas, mas está tudo bem se esse não for o seu caso. Em vez de ir à igreja, você pode tentar ouvir uma pregação online.

Gostaria de propor uma perspectiva diferente. Não é exatamente um estudo de caso teológico, embora não porque não haja algum. Como escrevi em outro artigo, teologicamente falando, há uma razão e tão somente uma razão para irmos à igreja: Deus.

Se o Deus do evangelho é o único Deus vivo e verdadeiro, então, cada um de nós deveria estar na igreja todo domingo de manhã (e nos outros dias também). Se ele não é o único Deus vivo e verdadeiro — se Jesus não ressuscitou dos mortos — então, a igreja é construída sobre uma mentira, nossa fé é inútil e “somos, de todos os homens, os mais dignos de compaixão” (1Coríntios 15.16-19). Se o evangelho fosse falso, a igreja seria uma perda de tempo, mesmo que ela acrescentasse décadas à nossa vida e garantisse absolutamente que florescêssemos de forma plena e pessoal. Se o Deus de Abraão é fictício, se ele não é o Criador do céu e da terra, seria melhor viver na verdade e ser miserável do que encenar uma liturgia de ser feliz.

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Mas, por definição, os cristãos acreditam que o evangelho é verdadeiro. E se é verdadeiro, então, a igreja — “que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” (1Timóteo 3.15) e “que é o seu corpo [de Cristo], a plenitude daquele que enche todas as coisas, em toda e qualquer circunstância” (Efésios 1.23) — é um elemento vital da vida humana vivida em toda a plenitude.

Por isso é tão equivocado esse instinto de enfrentar a crítica ou a ignorância da nossa cultura em relação à igreja minimizando sua importância. A igreja não é um complemento opcional à fé cristã. É nela que aprendemos a ser os seres humanos que Deus pretendia que fôssemos. Na verdade, é a igreja que torna possível vivermos uma vida verdadeiramente humana diante de Deus.

A igreja tem o que precisamos, tem o propósito, a comunidade e o cultivo da virtude que o restante da nossa cultura está buscando às cegas, na escuridão. Tudo isso está bem aqui, na igreja. Ela não tem nada que possa nos fazer ficar inibidos ou nos envergonhar. Nada pelo que devamos nos desculpar. As pessoas têm fome de igreja, mesmo que não percebam isso. E, às vezes, nós mesmos, que somos cristãos, não percebemos.

Considere alguns diagnósticos populares recentes sobre o que aflige nossa sociedade, especialmente nossas famílias e nossos jovens. An Anxious Generation [Uma geração ansiosa], de Jonathan Haidt, denuncia a infância “baseada em telas” da Geração Z e da Geração Alfa. Bad Therapy [Terapia ruim], de Abigail Shrier, condena a colonização da educação e da criação de filhos por uma visão de mundo terapêutica falsamente científica e quase religiosa. James Davison Hunter, Yuval Levin e Rob Henderson detalham a precariedade econômica que assombra a esfera pública, e uma lista crescente de escritores, entre eles Richard Reeves e Louise Perry, analisaram nossa confusão em torno de coisas como gênero, corpo, trabalho, casamento e criação de filhos.

Estamos até mesmo vendo pensadores seculares explorando novamente os benefícios práticos e culturais do cristianismo — tanto que Justin Brierley escreveu um livro intitulado The Surprising Rebirth of Belief in God [O surpreendente renascimento da crença em Deus]. Além de relatar conversões reais, ele interage com intelectuais que querem ser cristãos, mas não conseguem (ainda) se converter, um desdobramento digno de nota em uma era supostamente secular.

Agora, dê um passo para trás e considere o que esses autores prescrevem.

Eles nos dizem que as pessoas em geral, e as crianças em particular, florescem quando os pais são casados, quando as famílias permanecem intactas, quando temos casas e bairros repletos de irmãos, irmãs e primos.

As crianças precisam brincar com amigos ao ar livre, e não em ambientes fechados e presas a telas. Elas precisam aprender o gosto pela leitura — serem leitoras de livros que não apenas forneçam sabedoria, mas também as levem por aventuras no mundo da imaginação.

Elas precisam ser encarregadas de desempenhar um bom trabalho, de ajudar seus próximos e de servir aqueles que necessitam. Elas precisam ser inseridas em uma diversidade de ambientes sociais intergeracionais que as ensinem a transitar por relacionamentos incertos, e às vezes arriscados, com outras crianças e adultos.

E, por falar em adultos, as crianças precisam de mentores em quem possam confiar. Elas precisam de rituais de passagem que marquem transições, seja da infância para a adolescência ou da adolescência para a idade adulta. Elas precisam de espaços nos quais se sintam livres para discutir e debater em voz alta, com amigos e adultos de confiança, o que significa ser homem ou ser mulher.

Elas precisam de espaços livres de tecnologia, nos quais possam habitar seus corpos e estar presentes para os outros: velhos e jovens, negros e brancos, casados ​​e solteiros, deficientes e fisicamente aptos. Elas precisam sentir tédio — durante um sermão, por exemplo, ou durante uma longa reunião para discutir o orçamento — sem ter [à mão] uma maneira fácil de acabar com esse tédio. Elas precisam observar as amizades entre adultos em seus melhores e piores momentos.

Ora, se você fosse projetar do zero uma instituição local para atender a essas necessidades de qualquer criança, indivíduo ou família, pertencente a qualquer faixa de renda, você acabaria com algo muito parecido com a igreja. Mesmo aqueles que estão fora da igreja já estão começando a perceber isso. Veja Derek Thompson, do The Atlantic, lamentando “a crise da igreja” (embora ele próprio seja agnóstico) ou Haidt falando que existe “um buraco em forma de Deus no coração de todos” (embora ele seja ateu).

Ao dizer tudo isso, não estou sugerindo que a igreja seja redutível a seu papel de solucionar problemas sociais. Ela é mais do que isso, embora não seja menos. Além disso, nossos problemas sociais também são problemas espirituais — e a igreja também é o lugar em que aprendemos a orar, a adorar com os outros, a ver o que deveria ser óbvio, mas muitas vezes escapa à nossa compreensão: que o mundo está repleto da grandeza de Deus. A igreja nos oferece a solenidade de ritos e práticas que treinam nossos olhos e corações a permanecerem focados em Jesus, em meio a uma cultura de perpétua ironia, sarcasmo barato e entretenimento fácil.

Nada disso deveria ser um choque, quando visto a partir de uma perspectiva teológica. Deus fundou a igreja. Ela não é uma instituição meramente humana. Deveríamos esperar que ela seja finamente ajustada às necessidades complexas da experiência humana — para nos ajudar com tudo, desde a socialização precoce até a crise da meia-idade e a morrer bem.

É verdade, para usar uma frase de Jesus, que a igreja foi feita para o homem (Marcos 2.27). Em um sentido mais profundo, porém, o homem foi feito para a igreja. A humanidade foi feita para a comunhão com Deus, e temos um antegozo desse banquete de comunhão na igreja, que é o corpo de Cristo. Fomos criados para florescer nela, na igreja. Pois o que nos faz florescer de forma mais suprema é encontrado de forma mais poderosa lá, onde adoramos juntos, ouvindo a Palavra e recebendo os sacramentos.

Você pode pensar que os cristãos enxergariam nisso uma oportunidade — a chance de dizer à nossa sociedade que temos o que ela está buscando, que já existe uma instituição local que tem a resposta para esses males sociais. Mas, na maioria dos casos, estamos deixando de aproveitar a oportunidade do momento, e acho que existem duas razões para isso.

No nível cultural, muitos cristãos tendem a tratar a igreja como um embaraçoso estorvo ou uma isca apelativa [que não cumpre o que promete], algo a ser suportado se você quiser seguir a Jesus.

Muito pelo contrário: a igreja é o ponto de venda. Não quero dizer que queremos que as pessoas se juntem às igrejas pelas vantagens sociais. Quero dizer que o próprio Cristo fez da oferta do evangelho e da oferta de se juntar a um povo uma coisa só. Assim como não podemos ter o Pai sem o Filho (1João 2.23) ou não podemos ter a adoção por Deus sem a adoção por Abraão (Gálatas 3.6–4.7), também não podemos ter Cristo sem seu corpo e sem sua noiva (Efésios 2.1-22). É um pacote. O Senhor e a família dele são coisas que vêm juntas; ou temos os dois ou não temos nenhum deles.

Em um contexto diferente, o teólogo protestante Filipe Melanchthon certa vez comentou que conhecer a Cristo é conhecer seus benefícios. Algo assim também é verdade no caso de que tratamos: a igreja é um refúgio para a humanidade. É uma escola para aprender a ser humano como Jesus, o único ser humano verdadeiro e completo. Consequentemente, dados os desafios dos nossos dias, a igreja é um campo de treinamento para a antifragilidade.

Não importa como você a chame, a igreja está lá por um motivo. Ela não é um estorvo. Ela não é uma religião organizada que você pode pegar ou largar. Sem a igreja, o evangelho é algo incorpóreo, fantasmagórico. De acordo com as Escrituras, a comunidade à qual Cristo se ligou para sempre não é outra senão a igreja (Efésios 5.25-33; 1Coríntios 12.4-27; Apocalipse 21.1-14). O Deus vivo habita nela. Neste mundo, portanto, a igreja é onde se encontra a plenitude de vida. Vamos agir à altura.

No nível congregacional — e admito que isso é fruto da minha experiência pessoal — o que vejo são igrejas ansiosas sobre seu status decaído, nervosas quanto a perder a Geração Z e aflitas para dar às pessoas o que elas querem (isto é, aquilo que os líderes da igreja acham que elas querem). O cenário religioso se tornou um mercado, e as igrejas competem entre si, oferecendo um produto cada vez mais chamativo. Mais tecnologia, adoração em volume mais alto, menos rituais, slogans mais atraentes e um monte de jargões terapêuticos. Algo que entretenha. Algo que mantenha o tédio sob controle. Talvez até algo que viralize nas redes sociais.

A lição que deveríamos ter aprendido há muito tempo é que quanto mais a igreja não se diferencia do mundo, menos o mundo tem qualquer razão para se interessar por ela. A igreja não pode fazer terapia melhor do que os psicólogos, nem fazer shows melhor do que as bandas de rock, nem fazer palestras melhor do que muitos autores de best-sellers. Na competição para entreter, a igreja sempre perderá para os eventos esportivos ou para os encontros com amigos em bons restaurantes.

Quanto mais tentamos alcançar Hollywood, Nashville e o Vale do Silício, menos diferenciada a igreja será — e menos adequada a seu propósito de adorar a Deus e formar seres humanos. Os benefícios práticos da vida comum da igreja não são o seu devido centro. São subprodutos do Espírito que reune uma comunidade humana em torno do Filho de Deus encarnado, e esses subprodutos se deteriorarão ou desaparecerão por completo, se não estivermos mais centrados em Cristo.

Cada geração da igreja tem alguma pergunta urgente a responder. A pergunta da nossa geração não é sobre cristologia, iconografia ou mesmo soteriologia. É sobre a antropologia teológica, a doutrina do ser humano.

Nós, cristãos, sabemos algo sobre o que significa ser humano — e as muitas maneiras pelas quais o ser humano pode dar errado —, e nossa sociedade está desesperada por respostas para essa pergunta. Felizmente, nossos próximos não precisam ler Agostinho, Calvino ou mesmo Paulo para descobrir isso. Ser humano não é algo que você aprende lendo. Você aprende a ser humano com outros seres humanos, na companhia do povo de Deus. Em outras palavras, na igreja.

Deus nos mostrou como sermos humanos em Cristo, e aprendemos a lição em sua escola, ao lado de colegas aprendizes, ao longo da vida (afinal, é isso que significa ser “discípulo”). Tenhamos a confiança para mostrar isso aos outros. Digamos a uma só voz com o salmista: “Venham e vejam o que Deus tem feito; como são impressionantes as suas obras em favor dos homens!” e “vou contar-lhes o que ele fez por mim” (Salmos 66.5, 16). O mundo está batendo à porta. Vamos convidá-los a entrar.

Brad East é professor associado de teologia na Abilene Christian University. É autor de quatro livros, entre eles The Church: A Guide to the People of God [A igreja: Um guia para o povo de Deus] e Letters to a Future Saint: Foundations of Faith for the Spiritually Hungry [Cartas para um futuro santo: Fundamentos da fé para quem tem fome espiritual].

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Theology

O legado evangélico da Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez

Como o sacerdote peruano influenciou os pais da missão integral.

Gustavo Gutiérrez, a Peruvian theologian
Christianity Today October 31, 2024
Alessandra Tarantino / AP Images / Edits by CT

Gustavo Gutiérrez Merino, o pai da teologia da libertação e teólogo católico que foi um dos primeiros a defender uma “opção preferencial pelos pobres”, morreu no dia 22 de outubro, aos 96 anos.

O ministério do sacerdote peruano foi fortemente influenciado pelas injustiças que ele observou em seu país. Durante anos, sob o sistema das haciendas [de grandes latifúndios pertencentes à elite hispânica], apenas 2% dos peruanos controlavam 90% das terras, enquanto agricultores meeiros ganhavam centavos cultivando-as e camponeses trabalhavam nos campos em condições análogas à escravidão.

Em 1968, um golpe tentou acabar com essa ordem de coisas e empoderar os trabalhadores camponeses. Mas as muitas pessoas que foram deixadas para trás por essas reformas logo deixaram as fazendas, mudando-se para assentamentos empobrecidos fora de Lima [capital do Peru].

Comovido por esse sofrimento, Gutiérrez, sacerdote da ordem dominicana, publicou seu livro mais influente, A Theology of Liberation: History, Politics, Salvation [Uma Teologia da Libertação: História, Política, Salvação], em 1971, argumentando que a libertação genuína se desdobra em três dimensões essenciais. Primeiro, a libertação política e social aborda e elimina as causas imediatas da pobreza e da injustiça. Segundo, os pobres, marginalizados e oprimidos são libertados de condições que limitam sua capacidade de autodesenvolvimento digno. Terceiro, essas comunidades são libertadas do egoísmo e do pecado e, agora, podem restaurar relacionamentos rompidos com Deus e com os outros.

Quando os padres começaram a abraçar a teologia da libertação em toda a América Latina, o Vaticano reagiu, criticando-a por sua influência supostamente marxista e pela redução do status de Jesus de Salvador divino para libertador social. No entanto, ao contrário de outros defensores da teologia da libertação, Gutiérrez nunca sofreu sanções da hierarquia católica.

Embora a América Latina ainda fosse predominantemente católica nos primeiros dias do ministério de Gutiérrez, muitos dos primeiros líderes evangélicos da região foram amadurecendo ao lutar com questões semelhantes. Essas ideias levaram o equatoriano René Padilla e outros peruanos, como Samuel Escobar e Pedro Arana, a desenvolver a teologia da “misión integral” ou missão integral, que buscava equilibrar a responsabilidade cristã de compartilhar sobre a obra redentora de Cristo com o dever de responder às desigualdades sociais.

A CT pediu a evangélicos familiarizados com a vida e a obra de Gustavo Gutiérrez que compartilhassem sobre como a teologia da libertação impactou a teologia, a prática e o crescimento dos evangélicos latino-americanos. As respostas foram editadas para maior clareza e concisão.

Este artigo pode vir a ser atualizado.

JUAN FONSECA

Pesquisador da história do movimento evangélico na Universidad del Pacífico, Lima, Peru

Samuel Escobar e Gustavo Gutiérrez foram dois teólogos peruanos que, de diferentes maneiras, influenciaram o cristianismo evangélico e católico, respectivamente, encorajando essas duas vertentes a integrarem seu trabalho missionário ao contexto de sofrimento da América Latina.

Em 1969, no Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE I), o teólogo evangélico Samuel Escobar desafiou os evangélicos latino-americanos a “encontrar uma maneira de encarnar sua fé na realidade latino-americana”. Por exemplo, ele os instou a desenvolver uma hermenêutica nativa, original, em resposta a questões decorrentes dos cinturões de pobreza das grandes cidades ou das culturas autóctones do continente.

Dois anos depois, o Padre Gustavo Gutiérrez publicou a sua Teologia da Libertação, um dos textos fundamentais da teologia da libertação. Ele impactou significativamente o cristianismo global com sua insistência em colocar os pobres no centro da missão cristã, uma convicção que transcendeu fronteiras denominacionais e renovou profundamente a teologia cristã.

No entanto, naqueles mesmos anos, nos bairros mais pobres das cidades latino-americanas, pregadores pentecostais estavam mobilizando uma espiritualidade frugal da pobreza. Apesar da falta de uma teologia formal e de estarem equipadas com poucos recursos materiais, as igrejas pentecostais tornaram-se a alternativa religiosa ao catolicismo para os empobrecidos do continente.

Parafraseando o teólogo americano Millard Richard Shaull, a teologia da libertação escolheu os pobres, mas os pobres escolheram o pentecostalismo na América Latina, uma observação cujo teor de verdade já foi reconhecido por outros teólogos da libertação. No entanto, com base na minha observação pessoal do cenário religioso no Peru, em vez de colocar a teologia da libertação e o pentecostalismo como coisas que estão em oposição uma a outra, é mais apropriado ver o ministério de Gutiérrez e o pentecostalismo como movimentos convergentes. No âmbito de suas respectivas espiritualidades, tanto a teologia da libertação quanto o pentecostalismo fazem dos pobres um ponto focal comum de suas respectivas hermenêuticas, os sujeitos privilegiados de suas reflexões e missões, e a face de Cristo.

O teólogo britânico John A. Mackay se perguntou, em um artigo da CT de 1969, se o futuro do cristianismo pertenceria a “um catolicismo reformado e a um pentecostalismo amadurecido”. Gustavo Gutiérrez e a teologia da libertação já fizeram a sua parte no processo de reforma do catolicismo. Resta aos pentecostais continuar amadurecendo em sua fé no Cristo dos pobres.

David Kirkpatrick

Autor do livro A Gospel for the Poor: Global Social Christianity and the Latin American Evangelical Left [Um Evangelho para os pobres: Cristianismo social global e a esquerda evangélica na América Latina], Estados Unidos

Gustavo Gutiérrez deu voz a uma geração inteira de teólogos latino-americanos que lutavam com questões de violência, injustiça e desigualdade, no contexto da Guerra Fria. Sua insistência em um reexame crítico das abordagens tradicionais às Escrituras e seu chamado para amplificar as vozes dos pobres tiveram um impacto imenso sobre os teólogos latino-americanos da sua geração, na qual se incluem muitas figuras católicas e protestantes proeminentes, como o Papa Francisco e o teólogo metodista José Míguez Bonino.

Em 1973, René Padilla escreveu o primeiro artigo dedicado à teologia da libertação que foi publicado pela Christianity Today. Padilla, assim como muitos evangélicos, discordava da abordagem de Gutiérrez — que Padilla chamava de “camisa de força” para a Bíblia. “Não se faz nenhuma tentativa para mostrar por que essa práxis específica (em lugar de qualquer outra) é escolhida como objeto de reflexão, ou para mostrar o que torna essa reflexão especificamente cristã”, escreveu Padilla. Mas ele também se recusou a permitir que as críticas à teologia da libertação silenciassem os apelos proféticos por justiça. Muitos evangélicos protestantes latino-americanos concordaram que o contexto injusto do pós-guerra exigia novas abordagens à fé e à prática.

Em resposta à versão em inglês da obra A Theology of Liberation [Uma Teologia da Libertação], lançada em 1973, Padilla argumentou: “A necessidade de uma libertação da teologia é, então, tão real em nosso caso quanto é no no caso da teologia da libertação”. Em vez de juntar-se ao crescente movimento da teologia da libertação, a resposta de Padilla foi a missão integral, uma abordagem holística à missão cristã que sintetiza a busca pela justiça e a oferta de salvação.

Mas Padilla concluiu seu artigo para a CT fazendo uma pergunta que definiria sua vida e obra: “Onde está a teologia evangélica que proporá uma solução com a mesma eloquência [de Gutiérrez], mas também com uma base mais firme na Palavra de Deus?”. Gutiérrez inspirou uma geração inteira de teólogos evangélicos protestantes latino-americanos a continuar sua busca e a construção teológica de uma teologia verdadeiramente latino-americana de justiça e de missão.

Valdir Steuernagel

Pastor e teólogo, Brasil

Nunca tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Gustavo Gutiérrez, embora eu tenha ouvido falar do seu nome desde a década de 1970. Quando soube que ele morreu, peguei na minha biblioteca o seu livro We Drink from Our Own Wells: The Spiritual Journey of a People [Bebemos do Nosso Próprio Poço: A Jornada Espiritual de um Povo]. Ao abri-lo, as primeiras palavras me tocaram profundamente: “Seguir a Jesus é o que define o cristão”. Sorri, porque é exatamente isso que eu gostaria de dizer também.

Venho de outra escola teológica, mas compartilho do reconhecimento de Gutiérrez de que o contexto é importante no processo de fazer teologia, e o nosso contexto era a América Latina. O fato de ele ser peruano afetou o modo que ele pensava e vivia sua fé, que sempre esteve enraizada em seu ambiente confessional. Da mesma forma, eu sou brasileiro, e foi nesta terra que encontrei o evangelho e que tive o privilégio de viver minha vocação.

Minha identidade também foi moldada por uma confessionalidade evangélica, a qual foi nutrida dentro dos círculos da Fraternidade Teológica Latino-Americana. Mas fomos inspirados pela convicção de Gutiérrez de que a teologia tinha de sair das “bibliotecas” para as “comunidades”. Nossa fé tinha de alcançar as pessoas mais vulneráveis ​​em nossas sociedades. Com Gutiérrez, somos desafiados a olhar para o “reverso da história”, para as comunidades tão frequentemente ocultadas pelas narrativas “vitoriosas” da história ou que se tornaram o “reverso” precisamente por causa desses vencedores.

Ainda posso ouvir alguns dos debates e discussões [entre seguidores católicos da teologia da libertação e defensores evangélicos da missão integral] que apontavam para as diferenças em nossas respectivas teologias. E também vejo o compromisso de Gutiérrez com o chamado que Deus lhe deu e seu longo e profundo senso de pertencimento [dentro da igreja católica], no qual os pobres e os mais vulneráveis ​​tinham um lugar especial, um lugar onde eram acolhidos por um Deus de amor e de justiça.

Ruth Padilla DeBorst

Professora na Comunidad de Estudios Teológicos Interdisciplinarios e no Western Theological Seminary, Colômbia/Estados Unidos

É impossível conceber o trabalho teológico na efervescente América Latina de meados do século 20 e começo do século 21 sem reconhecer a generosa contribuição de Gustavo Gutiérrez. Embora este sacerdote peruano e a maioria de seus companheiros da teologia da libertação estivessem desenvolvendo sua teologia principalmente para a igreja católica e dentro dela, essa teologia influenciou o pensamento evangélico.

O movimento da missão integral se desenvolveu ao mesmo tempo, nos movimentos estudantis evangélicos e na Fraternidade Teológica Latino-Americana. Em 1972, René Padilla e Samuel Escobar se encontraram com vários teólogos da libertação, interagiram diligentemente com seus escritos, e, mais tarde, falaram sobre como essa experiência desafiou de forma preciosa sua hermenêutica e como eles entendiam a práxis ética da fé cristã. Aqueles que se identificam como evangélicos hoje fariam bem em olhar com apreço para o legado deste gigante da teologia, não apenas na América Latina, mas no mundo todo.

Harold Segura

Pastor e diretor de Fé e Desenvolvimento da World Vision Latin America, Colômbia/Costa Rica

A teologia da libertação surgiu na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970, com teólogos como Gustavo Gutiérrez (de quem nos despedimos com gratidão e admiração). Ele apresentou a ideia de um cristianismo comprometido com os mais vulneráveis ​​e excluídos. Essa teologia colocou a realidade da pobreza e da injustiça no centro da reflexão cristã, afirmando que o evangelho deveria levar não só à salvação espiritual, mas também à transformação social.

Para muitos evangélicos, essa abordagem foi um desafio. A maioria das igrejas evangélicas havia focado sua mensagem na salvação pessoal, priorizando a conversão e a vida espiritual. A teologia da libertação, com sua ênfase em justiça social e seu diálogo com as ciências sociais, era vista com ceticismo. Muitos a consideravam uma distorção política que ameaçava a pureza do evangelho.

No entanto, nem todos a rejeitaram. Alguns movimentos evangélicos começaram a refletir sobre seu próprio papel na sociedade e assumiram uma postura mais ativa diante da injustiça. Essa teologia teve uma influência inegável sobre algo que, mais ou menos na mesma época, começou a ficar conhecido como missão integral — uma visão do evangelho que busca não apenas a salvação da alma, mas também o bem-estar do corpo e a justiça na sociedade. A missão integral não foi um resultado direto da teologia da libertação, mas a teologia da libertação desencadeou o diálogo e a reflexão que permitiram que a missão integral brotasse do solo evangélico.

Em algumas comunidades evangélicas, esse despertar para o social não mudou a crença de que os esforços de crescimento da igreja devem se concentrar na conversão pessoal e na evangelização. Na verdade — em parte como reação ao ativismo político da teologia da libertação —, os movimentos evangélicos experimentaram um crescimento considerável, especialmente em alguns setores evangélicos tradicionais, onde uma fé mais conservadora e não politizada era enfatizada.

Hoje, muitas igrejas evangélicas latino-americanas continuam a transitar entre a espiritualidade e o engajamento social, buscando maneiras de serem fiéis ao evangelho enquanto respondem às necessidades de um mundo injusto.

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Theology

Animais fantásticos, monstros e a narrativa bíblica

O que os relatos bíblicos sobre seres monstruosos como Leviatã e Beemote nos dizem sobre nossa experiência do sagrado?

A monster and a snake from a historical painting with a moon in the background and an angel flying above
Christianity Today October 30, 2024
Edits by CT / WikiMedia Commons

Quando comecei a ler a Bíblia na adolescência, fiquei chocado a primeira vez que li o Apocalipse de João. Comecei a ler a Bíblia pelo Evangelho de João e não tinha ideia de que a Escritura, um livro com uma imagem de um Deus tão amoroso, poderia ter tantas cenas violentas e tantos seres monstruosos em seu último livro.

Então, descobri que a presença de monstros não é algo exclusivo do livro de Apocalipse. O leitor atento da Bíblia por certo já percebeu a quantidade de seres, no Antigo e no Novo Testamentos, que não correspondem às formas convencionais de seres humanos e animais que encontramos no mundo, no cotidiano.

A Bíblia faz referências a monstros marinhos, como o Leviatã, ou monstros terrestres, como o Beemote. O mundo celestial também é habitado por seres incomuns, como os serafins ou os querubins, sem falar dos seres híbridos, os “seres viventes”, que encontramos no Livro de Ezequiel.

No entanto, é na literatura apocalíptica que esses seres são mais frequentes e mais conhecidos. Como vemos, por exemplo, no livro de Daniel e no Apocalipse de João. A presença desses seres estranhos nos surpreende e nos faz perguntar: por que há tantos seres na Bíblia que não têm equivalentes no mundo real? Qual poderia ser o papel deles nas Escrituras?

A resposta a essas perguntas tem um valor significativo para quem lê as Escrituras, pois esses seres monstruosos potencialmente promovem atos violentos, alguns dos quais a serviço de Deus. Por causa de sua presença e de seus atos poderosos, os monstros devem ser encaixados em uma visão mais ampla da interpretação bíblica.

A interpretação bíblica historicamente tem lidado com esses seres excêntricos de várias maneiras. Uma delas foi interpretando-os de forma alegórica. Cada parte desses seres corresponderia a um elemento doutrinário ou moral. Essa foi a visão preferida das igrejas antiga e medieval.

Então, nos estudos modernos, tornou-se mais comum entender esses seres como metáforas de elementos históricos. Na verdade, os monstros da literatura apocalíptica judaica e cristã são formas de representar potências imperiais, como os Impérios Selêucida ou Romano.

No entanto, essa abordagem resolve o problema apenas superficialmente, restando a questão do por quê esses poderes são descritos de maneiras tão bizarras. A interpretação política dos monstros também não explica todos os monstros do Apocalipse, e muito menos a violência promovida por agentes divinos no fim dos tempos.

Mais recentemente, alguns intérpretes começaram a fazer novas perguntas sobre esses seres estranhos. E chegaram à conclusão de que não basta listar os monstros e reconhecer sua presença; para entendê-los é necessária uma abordagem adequada.

Eu defendo que os monstros são, fundamentalmente, criações culturais por meio das quais expressamos nossas tensões em relação à sociedade e a nós mesmos. Eles habitam a mitologia dos povos e as profundezas de nossa psiquê, emergindo em nossos sonhos. Portanto, uma experiência do sagrado também passa pela articulação dos monstros, tanto internos quanto cósmicos. Essa perspectiva tem uma consequência clara para a interpretação da Bíblia: à medida que a Escritura aborda os dramas essenciais da alma humana e da criação, ela também manifesta os atos dos monstros em todo o seu poder e ambiguidade.

A teoria da monstruosidade, que é como essa abordagem tem sido convencionalmente chamada, busca uma compreensão complexa da cultura formulando a seguinte proposição: é possível estudar uma cultura com base nos monstros que ela cria. Essa perspectiva começou a ser considerada na década de 1990, nos estudos culturais, e ganhou aplicações também na pesquisa literária. Vou me concentrar em três de suas ideias centrais.

A primeira é que as culturas frequentemente retratam como algo ameaçador, perigoso, desestabilizante, animalesco — isto é, como um monstro — tudo aquilo que percebem como externo a si mesmas. E fazem isso não só por meio de conceitos, mas também, e acima de tudo, por meio de imagens híbridas e grotescas.

Os seres nos limiares do mundo — pense nos povos exóticos ou nos seres imaginários que vivem fora do mundo conhecido — são o outro, e um outro ameaçador.

Nada disso é novidade. Afinal, sabemos muito bem que grupos humanos tendem a se definir com características positivas, “civilizadas”, atribuindo a pessoas de fora de seu grupo um caráter que é não só ameaçador, mas também desestabilizante. Estamos cientes dos efeitos devastadores dessa posição em sociedades multiculturais e multiétnicas como a nossa.

A novidade da teoria da monstruosidade é sua segunda ênfase, inspirada pela psicanálise: os monstros que identificamos como externos, na verdade, refletem rupturas e traumas internos. O que eu projeto no outro como monstruoso de alguma forma se refere a mim mesmo.

Não é de se espantar, diriam os teóricos da monstruosidade, que, na Inglaterra vitoriana do século 19, a literatura tenha começado a criar monstros. Confiantes na ciência e no progresso e ocupando uma posição-chave entre as potências imperiais, os britânicos enfrentavam ameaças que emergiam de dentro.

Pense no Conde Drácula, um vampiro, um morto-vivo do Leste, que visita Londres em busca de uma mulher que o liberte de sua solidão. Ou pense em Frankenstein, um monstro em quem a fantasia mais proibida e fascinante da ciência é realizada, criando vida por meio da usurpação do lugar de Deus.

Ao criar monstros, as pessoas apontam para algo ameaçador que está “lá fora”, mas também para um perigo que está “aqui”, dentro de si mesmas e de sua cultura.

O terceiro elemento da teoria da monstruosidade nos orienta a prestar atenção às formas dos monstros: os monstros são assustadores porque suas imagens são aberrações e, por serem assim, devem ser vistos e imaginados não apenas como meras alegorias. Afinal, essas imagens provocam reações emocionais. Os monstros são seres híbridos, malformados, gigantescos, grotescos. Essa é a maneira de a sociedade questionar o mundo e suas categorias consideradas normativas.

Volto à minha pergunta, agora focada no mundo bíblico: “Por que há tantos monstros na Bíblia?” Essa é uma questão delicada que afeta nossas crenças e sensibilidades. Afinal, sempre pensamos no Deus da Bíblia como um Pai amoroso e na história contada na Bíblia como a história da salvação.

O fato de agentes divinos se apresentarem como seres monstruosos e violentos é o ponto crítico da nossa reflexão. Sou da opinião de que essa questão, mesmo que não receba respostas rápidas e fáceis, deve estar na pauta de uma reflexão teológica crítica.

Afinal, o cristianismo, uma religião que deveria espalhar a mensagem do amor de Deus pela humanidade, também se manifestou como uma religiosidade de violência e ódio, promovendo guerras, escravidão, opressão e morte. Encarar os aspectos monstruosos que estão dentro, no interior de nossas tradições e especialmente na Bíblia é uma maneira cautelosa de lidarmos com esse potencial de destruição e de violência que coexiste ao lado do amor e da solidariedade.

Os monstros do Apocalipse de João oferecem à narrativa principal do cristianismo primitivo insights sobre o futuro do mundo governado pelo trono divino. O livro do Apocalipse fala sobre a manifestação do poder divino sobre o cosmo, e também sobre a sociedade e os poderes que a governam. Nesse sentido, o Apocalipse oferece uma narrativa total de uma ecologia radical. As pragas executadas pelos anjos afetam não só as pessoas, mas também as estrelas, as águas, as plantas e os impérios da Terra.

Nessa vindicação do sofrimento dos justos, todos os níveis do cosmo e todas as expectativas de poder são abalados. No entanto, a execução do juízo divino e o estabelecimento do reino de Deus não podem ocorrer nas categorias ultrapassadas da sociedade que ele está buscando suplantar. A afirmação “Estou fazendo novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5) também se aplica à linguagem e às categorias usadas para narrar esse “fim dos tempos”. Portanto, nada no Apocalipse é narrado na linguagem cotidiana; tudo é apresentado pela primeira vez em sua profundidade, em uma revelação (apokalypsis) da realidade.

Os monstros são os agentes dessa narrativa. O opressor Império Romano é revelado, em todo seu poder demoníaco, nos monstros apresentados no capítulo 13, cuja força vem do dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres — outro monstro, que é apresentado no capítulo 12. Este dragão, por sua vez, se opõe à “mulher vestida do sol” (v. 1), trazendo caos e tentando devorar o filho dela.

O Império Romano, que se concebia como o garantidor de uma era de paz (a Pax Romana), é apresentado em termos de caos cósmico e demoníaco, desestabilizando a ordem mundial e desafiando o próprio Deus. Apresentar o poder opressor do Império Romano na forma de um monstro serve para revelar sua verdadeira identidade.

Mas o monstro descrito como algo externo também se refere ao que é interno. Deus e os anjos também são apresentados com características violentas e disruptivas. Na primeira visão do Apocalipse, Jesus aparece como o Filho do Homem apocalíptico — deslumbrante e exaltado, segurando estrelas em sua mão direita e carregando a chave para o Hades. Uma espada sai de sua boca. Esta figura poderosa do Cristo cósmico governa tanto o mundo celestial quanto o inferior.

Mas, no capítulo 5, em sua entronização, Jesus é apresentado como “o Leão da tribo de Judá” (v. 5) e depois como o Cordeiro que foi morto. Aqui, ele passa da imagem de um animal (que é vencedor) para a de outro (que é vítima), sem nenhuma referência à sua humanidade.

Essas formas de apresentar Cristo, ao mesmo tempo, como um ser cósmico e como uma vítima animal morta, que são tão distantes uma da outra, conectam Jesus com a experiência de humilhação e a esperança de exaltação de seus seguidores, os leitores do livro. Os seguidores de Cristo vivenciam o império como algo demoníaco e veem a si mesmos como vítimas vindicadas, embora nenhuma dessas visões use categorias situadas historicamente.

Somente a monstruosidade das imagens externas e internas permite que imaginem esse mundo de inversão de posições e de experiência radical do sagrado. Sem monstros, a linguagem do Apocalipse teria perdido todo o seu poder. A suspensão das categorias do senso comum é o que permite uma experiência religiosa plena, ainda que muitas vezes violenta.

Em um mundo de violência extrema e de violência interna, a violência sofrida e a violência imaginada (ou desejada) também devem ser visitadas. O leitor do livro de Apocalipse — e de toda a Bíblia — é convidado a uma experiência radical de Deus, na qual o leitor e suas maneiras de nomear o mundo não ocupam o centro.

Essa experiência desestabilizante, embora seja chocante e incômoda, tira o leitor do papel de intérprete poderoso. Ela desafia a ideia de controlar ou de ver o sagrado como algo inteiramente externo e objetivo. O encontro com Deus é uma experiência que nos inspira medo, temor — não um “temor” reverente e formal, mas uma experiência que o teólogo Rudolf Otto chamou de “mistério tremendo e fascinante”.

Há autores que insistem que a origem da religião — e no caso do judaísmo e do cristianismo não seria diferente — está em uma experiência do sagrado percebido como poderoso, disruptivo e violento. Nesse sentido, ler as Escrituras não é a reprodução de uma posição de poder equiparada a projetos ocidentais de cultura civilizadora.

A Bíblia, com seus animais fantásticos e seres monstruosos, nos leva a uma experiência de alteridade radical, que se reflete fora e dentro de nós, inserindo-nos em uma ecologia radical na qual Deus se manifesta desestabilizando categorias e criando novos mundos que antes eram inimagináveis.

Os monstros nos desnudam, empurrando-nos para além do conforto da interpretação centrada em nós mesmos, permitindo-nos uma experiência radical de Deus em meio ao drama de sua criação.

Paulo Nogueira é doutor em teologia, membro leigo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e professor de Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Theology

Precisamos da teologia para explicar o mundo em que vivemos

Pessoas com formação teológica são indispensáveis para nos ajudar a pensar sobre questões ideológicas e éticas à luz da Palavra e do mundo de Deus.

Christianity Today October 29, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Pexels / Unsplash / Wikimedia Commons

Não é segredo para ninguém que a educação teológica está em crise hoje. Nos últimos anos, as demissões de professores e a redução de seminários evangélicos e faculdades cristãs mostram que não há exagero na gravidade desse diagnóstico.

No entanto, como teólogo, acho que essa tendência preocupante é um sintoma de um problema maior: há uma sensação crescente, pelo menos em alguns círculos, de que a teologia acadêmica — junto com seus estudantes e acadêmicos — é algo praticamente irrelevante. Embora o analfabetismo bíblico e o anti-intelectualismo estejam impactando a igreja local em todos os níveis, interações pessoais recentes me fizeram questionar se alguns pastores ainda levam o estudo formal da teologia a sério.

Um pastor com quem conversei expressou um sentimento não tão incomum, quando menosprezou a teologia como algo que não era prático e estava fora de sintonia com as necessidades de sua congregação. “Não leio mais muita teologia acadêmica”, confessou ele, “pois, na minha pregação, ela aparece de uma forma que não consegue se conectar com os leigos”. Este sentimento foi repercutido por outros amigos meus, também pastores, em vários momentos, e a esposa de um deles chegou a sugerir que tais esforços acadêmicos poderiam se beneficiar de uma abordagem mais “acessível”.

Comentários como esses revelam que há, em certos círculos, um ceticismo em relação à investigação teológica rigorosa, ceticismo que muitas vezes vem acompanhado de uma preferência por formas mais facilmente digeríveis de discurso espiritual, sem as amarras de instituições acadêmicas. É difícil competir com o volume — em ambos os sentidos [ou seja, da voz e de quantidade] — dos trechos espirituais produzidos por celebridades cristãs e pregadores de megaigrejas para públicos de massa. E, embora parte dessa teologia pública de nível popular seja boa, grande parte dela carece da profundidade e da nuance que resultam de um estudo teológico mais cuidadoso.

Em resumo, a teologia acadêmica não é perda de tempo, nem é obsoleta ou irrelevante. Como diz um dos meus mentores, Stephen Priest: “Questionamentos filosóficos exigem respostas teológicas. E todos fazem questionamentos filosóficos”. No entanto, proponho que levemos essa afirmação um passo além: questionamentos de todos os campos da investigação humana exigem respostas teológicas — e tais respostas exigem um estudo intelectual cuidadoso. A teologia não só é a mais relevante de todas as disciplinas, como também pode ser a mais significativa. Como R. C. Sproul disse certa vez:

Tudo o que aprendemos — economia, filosofia, biologia, matemática — deve ser entendido à luz da realidade abrangente do caráter de Deus. É por isso que, na Idade Média, a teologia era chamada de “a rainha das ciências” e a filosofia de “sua serva”. Hoje, a rainha foi deposta de seu trono e, em muitos casos, levada para o exílio.

Uma postura negativa ou mesmo ambivalente em relação à teologia não consegue perceber as contribuições valiosas de seus estudiosos e, em última análise, cultiva a superficialidade dentro da igreja e a ignorância em nossa cultura mais ampla. Mas, se a teologia deve desempenhar o mesmo papel vital que já desempenhou — tanto no púlpito quanto em praça pública —, devemos primeiro identificar quais fatores levaram ao seu declínio e, então, como devemos reagir [a eles].

Em 2020, o teólogo wesleyano Roger E. Olson fez uma pergunta difícil: “A teologia ainda importa?” Parece que esse foi um ponto de discussão com um amigo dele, o falecido teólogo batista Stanley J. Grenz, com quem Olson escreveu em coautoria a obra Who Needs Theology? An Invitation to the Study of God [Quem precisa de teologia? Um convite ao estudo de Deus] (1996).

Perto do fim da vida, no início dos anos 2000, Grenz compartilhou, em particular, sua preocupação de que o cristianismo estivesse entrando em uma “fase pós-teológica” — em uma nova era que veria o “fim da teologia” por completo. De muitas maneiras, essas preocupações ecoavam o alerta que Mark A. Noll emitiu em sua famosa obra The Scandal of the Evangelical Mind [O escândalo da mente evangélica], publicada apenas alguns anos antes.

Embora Olson tenha protestado contra o prognóstico na época em que foi feito, ele veio a concordar com ele desde então, com base em observações anedóticas de seus “quarenta anos de experiência como teólogo”. Olson relata situações em que discutiu tópicos teológicos, os quais ele sentia serem ricos em relevância cultural, apenas para vê-los serem descartados como meros exercícios “acadêmicos”, palavra que, segundo ele, com frequência é usada como sinônimo de “irrelevante”.

Além dos problemas notórios com a “religião popular americana” de hoje — a democratização de um cristianismo populista —, Olson oferece várias razões pelas quais a teologia perdeu sua influência em nossa nação. Primeiro, ele observa uma percepção crescente de que teólogos só se importam em conversar uns com os outros, e não com um público mais amplo, e que eles não buscam mais ter uma voz unificada. E, se os próprios teólogos têm entre si vários pontos de discordância, como as pessoas podem confiar que seja verdade o que qualquer um deles tem a dizer?

Olson também aponta para mudanças na teologia acadêmica nos anos 60, quando os departamentos de estudos religiosos sucumbiram à visão de que ninguém sabe nem pode dizer nada sobre Deus. Os teólogos deixaram de discutir Deus para discutirem as discussões sobre Deus, levando a uma falta de consenso entre eles e a uma incerteza quanto ao papel e à relevância da teologia na sociedade. Como disse um artigo da revista Time, a teologia passou da “reflexão sobre Deus — o devido objeto da teologia — para uma consciência religiosa humana”. Ou, como Sproul declarou: “Substituímos a teologia pela religião”.

Em meio a essas mudanças, a teologia como disciplina perdeu autoridade aos olhos do público. Por exemplo, Olson observa que, desde 1966, quando foi publicada a famosa edição “Deus está morto”, nenhum teólogo apareceu nas capas da revista Time — como já acontecera com Karl Barth, Reinhold Niebuhr e Paul Tillich, entre outros. Isso leva Olson a se perguntar se o mundo, ao assistir a tudo isso, chegou à conclusão de que, uma vez que os teólogos declararam que Deus estava morto, a própria teologia também deve ter morrido.

Ao mesmo tempo, precedentes legais contribuíram para reforçar ainda mais essa percepção. Em um artigo da CT de 1975, “A teologia está morrendo?”, o acadêmico e jurista evangélico John Warwick Montgomery explicou que a ascensão de seminários teológicos independentes foi, em parte, resultante de uma decisão de 1963, da Suprema Corte, no caso Abington School District versus Schempp, que restringiu o estudo da religião à análise literária e histórica, em instituições educacionais seculares — distanciando efetivamente a teologia do discurso intelectual dominante. (Compare isso com o contexto europeu, onde Wolfhart Pannenberg defendeu com sucesso a teologia acadêmica como uma ciência adequada para ser acolhida em universidades seculares, algo para o qual não temos paralelo em nosso contexto dos EUA.)

Os comentários de Montgomery sobre a percepção que se tem da teologia nos EUA merecem ser novamente ouvidos: “A teologia hoje é superficial e passageira”, ele escreveu. “A questão importante é por que [ela é assim], e a resposta tem a ver com algo muito mais profundo do que separar teologia de religião ou seminário teológico de universidade.” De fato, “a fonte central do problema”, segundo ele, “é que a teologia não tem mais certeza de seus dados”: o estudo das Escrituras foi desconstruído a ponto de a Bíblia não ter mais autoridade suficiente para fundamentar a teologia.

Tomadas em conjunto, as afirmações de Olson e de Montgomery oferecem dois pontos vitais para levarmos em consideração. Para ressucitar o estudo da teologia, devemos resgatar tanto seu objeto quanto sua fonte.

Primeiro, o objeto principal da teologia é Deus. O teólogo britânico John Webster disse: “O princípio ontológico da teologia é o próprio Deus — não algum ente proposto, mas o Senhor que, da plenitude insondável de seu ser triúno, amorosamente se estende às criaturas em Palavra e Espírito”. Ele também clamou por um avivamento da teologia como havia sido proposto no passado, no qual “Deus não é convocado à presença da razão; a razão é convocada diante da presença de Deus”.

Como C. S. Lewis certa vez declarou: “Eu acredito no cristianismo assim como acredito que o sol nasce: não apenas porque o vejo, mas porque, por meio dele, vejo todo o resto”. Se tudo na vida, nisso incluindo todas as disciplinas educacionais, só pode ser visto de forma adequada e plena à luz da verdade de Deus, então, a teologia (especificamente como disciplina acadêmica, rigorosa e cuidadosa) é pertinente a todos os aspectos da vida. Em outras palavras, se Deus existe e criou o universo, então, a teologia importa universalmente.

Segundo, a fonte dos dados da teologia não é outra senão a Bíblia, ordenada por Deus para sua autorrevelação. Webster pediu um retorno à “teologia teológica” mediante o envolvimento com textos cristãos clássicos e uma fundamentação das alegações em exegese bíblica sólida. “A Escritura é o lugar para o qual a teologia é direcionada a fim de encontrar seu objeto de estudo e a norma pela qual suas representações são avaliadas”, ele disse. E como Montgomery alertou: “Ou a Escritura fala unívocamente de Deus, ou a morte da teologia é uma certeza inquestionável.”

Resgatar esses dois elementos — o objeto e a fonte da teologia — deve permanecer em nossa mente como prioridade, se quisermos ver a teologia restaurada ao lugar que historicamente ocupou em nosso mundo. E, felizmente, acredito que os ventos podem finalmente estar mudando nessa direção, à medida que os teólogos de hoje estão trazendo a relevância da verdade de Deus para as preocupações contemporâneas e usando essa lente para se envolver com várias áreas de estudo.

Houve desdobramentos recentes na teologia analítica e na teologia engajada com a ciência, por exemplo, que receberam ampla atenção e estimularam uma série de publicações, conferências, eventos e discussões produtivas. Esses campos em expansão sustentam a natureza “científica” da teologia — tanto em sua linguagem quanto em seu conteúdo conceitual — para que ela esteja melhor equipada para dialogar com outras disciplinas acadêmicas. Esse movimento, sem dúvida, permite que a teologia lance luz em campos sociológicos e científicos, fornecendo confirmação sobre algumas questões ou esclarecendo outras.

Uma área específica a fornecer recursos da teologia evangélica é a doutrina da criação. Considere o Creation Project [Projeto Criação], do Carl F. H. Henry Center, e os vários volumes publicados nos últimos anos, que demonstram como a doutrina da criação tem importância para todas as áreas de interesse científico. Questões como a idade da Terra, Adão e Eva e evolução ainda são discussões vivas entre teólogos, e por um bom motivo. Nas palavras do teólogo John Polkinghorne: “A ciência não pode dizer à teologia como construir uma doutrina da criação, mas não se pode construir uma doutrina da criação sem levar em conta a idade do universo e o caráter evolutivo da história cósmica”.

E por falar em cosmologia — o estudo do universo e nosso lugar nele — alguns teólogos estão fazendo uma volta contemporânea ao design inteligente cristão em sua defesa do teísmo. Isso lança luz sobre campos adjacentes — como biologia, física, química, cuidado da criação e estudos da consciência —, na intersecção entre ciência e religião. Alguns teólogos até têm algo a dizer sobre o potencial de vida extraterrestre e suas implicações para a existência de Deus e para a teologia em geral.

Também houve um renascimento da investigação teológica sobre a vida após a morte — um tópico sobre o qual muitas pessoas, religiosas ou não, frequentemente se perguntam —, como fica evidenciado por uma série de livros lançados recentemente sobre o céu, o inferno e o estado intermediário. Teólogos cristãos estão mostrando que têm algo vital a dizer sobre experiências de quase morte, e também estão aprofundando nossa compreensão de doutrinas negligenciadas como deificação, transfiguração, bem como a ressurreição e a ascensão de Cristo.

Outra área de investimento que foi revitalizada é a doutrina da humanidade e como ela tem pontos de contato com quase todas as preocupações contemporâneas. Como um artigo da CT explica: “Teólogos evangélicos estão pegando tópicos que ‘tendemos a considerar mais sociológicos’ … e mostrando que eles são, de fato, ‘profundamente teológicos’”. Trabalhos recentes notáveis ​​​​reforçam a importância, para outras disciplinas, da antropologia vista das perspectivas teológica e cristológica.

Por exemplo, os avanços da ciência, da medicina e da tecnologia despertaram um interesse renovado em áreas como psicologia, deficiência, demência, neurociência e a ética da vida nos cuidados de saúde reprodutiva e paliativa. Da mesma forma, o advento da inteligência artificial e do transumanismo, ou “tecno-humanismo” — que prioriza organismos humanos tecnologicamente avançados em detrimento da “mera” humanidade — trouxe à tona antigos questionamentos sobre o que define a natureza humana e o que separa nossa consciência de outras criaturas ou entidades tecnológicas.

“Quanto mais tecnológica uma sociedade se torna”, disse o teólogo Gabriel Vahanian, “mais ela se preocupa com questões espirituais”.

Tais desdobramentos representam oportunidades significativas para os teólogos consolidarem uma voz de autoridade sobre questões existenciais e éticas urgentes do mundo de hoje — em todas as áreas, desde política até saúde pública. E, felizmente, estamos vendo sinais de que a erudição teológica está de fato descendo da torre de marfim da academia para se envolver em discussões vitais, que impactam todas as facetas da nossa vida contemporânea.

A transcendência da teologia como disciplina informativa para todas as demais disciplinas é o que continuará a atrair a mente e o coração dos jovens — como um dia atraiu os meus. Na minha fase de amadurecimento, eu ansiava por entender o mistério do evangelho e a riqueza da criação de Deus, sabendo que, para entender o mundo de verdade, é preciso abordá-lo à luz de seu Criador e Redentor. Como o salmista afirma no Salmo 19: “Os céus declaram a glória de Deus”, e, como Paulo nos diz, os atributos de Deus e seu caráter são revelados em sua criação (Romanos 1.20). Toda a criação está constantemente apontando para seu Criador.

Quando eu estudava na faculdade e no seminário, percebi que a teologia não é meramente uma abordagem metodológica rica para questões de importância vital; é também uma cultura em si mesma e, em última análise, uma prática espiritualmente formativa que pode levar a comunidade cristã à maturidade piedosa. A teologia é o processo gradual de permitir que a palavra de Cristo habite em nós ricamente (Colossenses 3.16).

Porque Deus falou e continua a falar, a teologia não só ainda importa — ela é necessária. Sem a voz de Deus, nossa compreensão do mundo é limitada. Embora alguns secularistas possam sugerir que as ciências naturais são capazes de nos dar tudo o que precisamos, elas nunca conseguem nos dar uma perspectiva coerente sobre o mundo e nosso lugar nele, e muito menos nos dizer o que é importante e significativo.

Hoje, temos bons motivos para ter esperança de que a teologia possa, um dia, recuperar seu lugar de direito como rainha das disciplinas e ser restaurada a seu papel vital de manter a saúde de nossas igrejas locais. A teologia, quando feita da forma correta, deve impulsionar a igreja global a cultivar uma comunidade de fé mais profunda, bem como uma face pública que convoque o mundo para uma vida mais elevada e melhor.

Toda vez que nos envolvemos no trabalho da teologia, ecoamos as palavras de Francis Schaeffer, que proclamou, alguns anos após o anúncio da morte de Deus pela Time: “Deus está presente e não está em silêncio”.

Joshua R. Farris faz parte do corpo docente de pesquisa da Ruhr Universität Bochum, na Alemanha, e é o fundador do Soul Science Ministries e do Spiritually Driven Leadership [Ministério da Ciência da Alma e Liderança Espiritualmente Orientada]. Seus livros mais recentes são The Creation of Self [A criação do “eu”], The Banquet of Souls: A Mirror to the Universe [O Banquete das Almas: Um espelho para o universo] e Humanizing AI Business [Humanizando os negócios de IA].

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