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Não é fácil orar quando se tem TDAH

Cristãos com neurodivergência estão explorando outras opções para momentos devocionais e estudo da Bíblia.

Christianity Today November 6, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty, Wikimedia Commons

Emily Hubbard relembra uma tendência no discipulado de mulheres, que as incentivava a descansar em Jesus e a “parar de tentar fazer tudo”. O problema era que Hubbard não estava tentando fazer tudo. Ela só queria se lembrar de ligar a máquina de lavar louça.

“Todo discipulado era para pessoas do tipo A, mas eu era uma pessoa do tipo Z”, disse ela.

Hubbard é mãe de quatro filhos, membro do conselho escolar e professora adjunta. O problema dela não é preguiça, mas sim transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Mais de oito milhões de adultos nos EUA são afetados pelo TDAH. Como o transtorno prejudica as funções executivas — o autocontrole necessário para se empenhar em direção a uma meta —, cultivar hábitos para crescer espiritualmente pode ser muito mais desafiador para um cérebro com TDAH do que para alguém que é neurotípico.

A Lifeway Research descobriu que quase dois terços dos frequentadores de igrejas protestantes intencionalmente passam um tempo sozinhos com Deus, ao menos diariamente. A Cru lista a leitura da Bíblia, o estudo da Bíblia, a memorização das Escrituras e a oração como as quatro principais disciplinas espirituais que os cristãos devem desenvolver.

O TDAH torna tarefas repetitivas desse tipo difíceis de praticar. Quando se sentam para um longo período de leitura da Bíblia e oração, os cristãos com TDAH podem sentir dificuldade para se concentrar e acabar se distraindo. Para eles, pode parecer impossível crescer espiritualmente, quando a igreja à sua volta vê o “tempo de silêncio” diário como um indicador de disciplina.

“Por anos, tudo o que eu conseguia fazer era ir à igreja aos domingos e orar pelos meus filhos à noite, e isso era o melhor que eu podia fazer”, disse Hubbard. “Ainda bem que Jesus morreu pelo meu melhor.”

Como o espinho na carne de Paulo (2Coríntios 12), Hubbard diz que vê seu TDAH como um constante lembrete de que seu desempenho não ganha a aprovação de Deus. Sua igreja, New City South, em St. Louis, segue o calendário cristão, em cujos ciclos Hubbard vê graça. Segundo ela, pode ser difícil se concentrar durante um momento específico de oração, um culto de domingo ou durante os diferentes períodos do calendário litúrgico, mas sempre há uma próxima vez, uma nova oportunidade para tentar.

Antes da pandemia, Hubbard visitava regularmente a Abadia da Assunção, em Ava, Missouri, para retiros espirituais silenciosos. Ouvir os monges orando como têm orado há séculos fazia com que Hubbard se lembrasse de que é parte de uma fé maior do que ela mesma.

Cada vez mais cristãos, inclusive líderes cristãos, estão falando sobre como o TDAH afeta sua vida de fé.

José Bourget, capelão da Andrews University, no Michigan, mencionou pela primeira vez, em um sermão no ano passado, que tem TDAH.

“Uma maneira neurodivergente de se relacionar com o mundo não é realmente abordada do púlpito”, disse ele.

Foi só na pandemia que Bourget percebeu que seu esquecimento e sua distração podiam ser mais do que meros traços de personalidade. Certa vez, ele perdeu um voo porque esqueceu sua carteira de motorista. E justificou o erro dizendo que Deus não queria que ele fizesse a viagem. Embora ele ainda pense que Deus possa agir em meio a suas distrações, agora acha importante reconhecer o TDAH.

Desde seu diagnóstico, Bourget — hoje na casa dos 40 anos — está trabalhando para se desvencilhar de anos de culpa e vergonha pelo que ele acreditava serem falhas pessoais.

Ele repete verdades simples como “Cristo me ama”. Ele declara que o cérebro com TDAH não é um cérebro com defeito, e fala do amor e da aceitação de Deus por aqueles que têm esse transtorno. E está pregando tanto para si mesmo quanto para qualquer outra pessoa.

“Parece exagerado e desmedido”, ele disse, “mas sentir constantemente que não me encaixo ou que não pertenço [a um grupo ou a um lugar] faz com que a aceitação seja algo muito crítico.”

Bourget também se deu “permissão para não se conformar” a práticas preestabelecidas de leitura das Escrituras e de oração silenciosa. Em vez disso, ele estabelece algumas estruturas básicas — como separar um tempo todas as manhãs para passar com o Senhor —, mas age com liberdade nesse tempo. Às vezes, ele passa mais tempo em oração; outras vezes, pratica a contemplação ou assiste a um vídeo de um sermão.

Bourget percebe que há alunos da Andrews que estão lutando com essas dificuldades. E faz questão de fazer com que saibam que ele está disponível para ajudá-los. Quando eles expressam culpa porque seus cérebros parecem não funcionar como os de todo mundo, Bourget os ajuda a encontrar práticas que funcionem para eles.

Tentar ficar quieto, parado e concentrado por longos períodos é difícil para pessoas com TDAH — seja para estudar alguma matéria ou para fazer orações a Deus.

Alex R. Hey, especialista em TDAH, aborda o sentimento de vergonha e de fracasso que pode advir dessa incapacidade de se manter atenta, quando a pessoa fica em silêncio. Ele reformula essas limitações para si mesmo e para seus clientes com frases como: “eu consigo orar de forma diferente”.

Isso o ajuda a lembrar que Deus o fez assim. “Pessoalmente, sinto que [o transtorno] colabora para a minha humildade”, disse ele.

Como outros tipos de neurodivergência, o TDAH se manifesta em um espectro. Enquanto alguns podem descrever suas lutas como algo que contribui para sua humildade, outros acham o TDAH debilitante. Jeff Davis, hoje um líder leigo na Igreja Stonebriar Community, nos arredores de Dallas, disse que lutou para encontrar e manter um emprego, devido às suas frágeis funções executivas. Ele passou quase dois anos sem uma casa para morar antes de conseguir ajuda.

Além de recorrer a aconselhamento e uso de medicação, pessoas com TDAH podem desenvolver estratégias de enfrentamento.

Para se envolver com as Escrituras, Hey frequentemente usa a lectio divina — uma prática monástica que usa uma fórmula para ler, meditar, orar e contemplar. Isso mantém sua mente conectada ao texto.

Como o cérebro com TDAH é propenso ao hiperfoco, pessoas com esse transtorno podem se fixar em uma coisa e negligenciar todo o resto. Certa vez, enquanto Hey meditava sobre a passagem em que uma mulher unge os pés de Jesus, ele não conseguia parar de pensar na imagem da mulher beijando os pés do Senhor (Lucas 7.37-38).

“Eu não gosto de pés, então, tudo o que eu conseguia pensar era em como pés são nojentos”, ele disse. Mas, ao pensar mais profundamente sobre o que estava acontecendo na passagem, ele percebeu que a única parte do corpo de Jesus que a mulher pecadora se sentia digna de tocar eram seus pés sujos. Ele, então, imaginou Jesus pegando a mão dela e fazendo-a se levantar.

“Quando não nos sentimos dignos e não nos sentimos amados, Jesus vem até nós e nos levanta”, disse Hey.

Outras orações cristãs antigas e liturgias tradicionais podem ter apelo para o cérebro com TDAH. Michael Agapito, estudante de pós-graduação no Northern Seminary, acha um tempo de silêncio algo assustador, mas faz uso da lectio divina, do Livro de Oração Comum e da Oração de Jesus: “Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, um pecador.”

“Há um enorme repertório de tradições da igreja do qual também somos herdeiros legítimos, mas que nunca realmente exploramos no evangelicalismo moderno”, disse Agapito, que recebeu seu diagnóstico na faculdade.

Ao mesmo tempo em que desenvolveu hábitos para administrar seus sintomas, ele também lutou para abandonar o perfeccionismo e para ver seu TDAH como algo ordenado por Deus. Ele descreveu sua mente como uma máquina de pinball, que fica constantemente saltando de uma ideia para outra sem desacelerar.

“Como cristão e como alguém envolvido no ministério, entendo que Deus entendeu por bem me dar essa condição, em sua providência, sabedoria e soberania”, disse ele. “Durante a minha fase de crescimento, eu meio que via isso como uma maldição, mas [hoje] também vejo isso em parte como uma dádiva.”

Enquanto considera a possibilidade de se tornar pastor, Agapito quer que sua futura congregação aprenda disciplinas espirituais com intencionalidade e acolha todos aqueles que lutam para manter esses hábitos — sejam pessoas neurodivergentes ou não. “O cristão médio também trava suas lutas para mantê-los.”

Megan Fowler mora na Pensilvânia e é escritora colaboradora da CT.

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Ideas

Venham a mim, ovelhas desgarradas: o cristianismo só se vive em comunidade, como povo de Deus

Já existe uma instituição que responde aos grandes questionamentos humanos. Ela se chama igreja.

A white sheep wearing sunglasses with a group of sheep in the background that are colored by a green and blue gradient.
Christianity Today November 5, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash

Dos bancos de qualquer igreja que a gente olhe, parece que estamos realmente vivendo um momento difícil para o corpo de Cristo. (Em outros locais, talvez não aconteça o mesmo)

Alguns de nossos próximos veem a igreja como um agente reativo, que pisa no freio em todos os principais movimentos em prol do progresso, desde a fundação do país. Outros acreditam que a igreja é um lobo em vias de perder sua pele de cordeiro, e que finalmente revelará sua face tóxica, abusiva e autoprotetora. Para outros ainda, a igreja é um completo fiasco, até mesmo invisível. Talvez as gerações mais velhas frequentassem os cultos de Natal e de Páscoa e as gerações mais novas dissessem que os frequentavam. Porém, não há mais necessidade de fingir.

Para aqueles de nós que permanecem comprometidos com a igreja — até mesmo pastores, apologetas e escritores cristãos — pode parecer tentador enfrentar esse momento com uma atitude de minimizar a importância da igreja o máximo possível. “Você não precisa ir à igreja para ser cristão”, podemos dizer. O cristianismo é sobre um relacionamento pessoal e individual com Jesus. O que importa é se você conhece a Jesus, se o segue e o ama em sua vida diária. A religião organizada pode ajudar algumas pessoas, mas está tudo bem se esse não for o seu caso. Em vez de ir à igreja, você pode tentar ouvir uma pregação online.

Gostaria de propor uma perspectiva diferente. Não é exatamente um estudo de caso teológico, embora não porque não haja algum. Como escrevi em outro artigo, teologicamente falando, há uma razão e tão somente uma razão para irmos à igreja: Deus.

Se o Deus do evangelho é o único Deus vivo e verdadeiro, então, cada um de nós deveria estar na igreja todo domingo de manhã (e nos outros dias também). Se ele não é o único Deus vivo e verdadeiro — se Jesus não ressuscitou dos mortos — então, a igreja é construída sobre uma mentira, nossa fé é inútil e “somos, de todos os homens, os mais dignos de compaixão” (1Coríntios 15.16-19). Se o evangelho fosse falso, a igreja seria uma perda de tempo, mesmo que ela acrescentasse décadas à nossa vida e garantisse absolutamente que florescêssemos de forma plena e pessoal. Se o Deus de Abraão é fictício, se ele não é o Criador do céu e da terra, seria melhor viver na verdade e ser miserável do que encenar uma liturgia de ser feliz.

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Mas, por definição, os cristãos acreditam que o evangelho é verdadeiro. E se é verdadeiro, então, a igreja — “que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” (1Timóteo 3.15) e “que é o seu corpo [de Cristo], a plenitude daquele que enche todas as coisas, em toda e qualquer circunstância” (Efésios 1.23) — é um elemento vital da vida humana vivida em toda a plenitude.

Por isso é tão equivocado esse instinto de enfrentar a crítica ou a ignorância da nossa cultura em relação à igreja minimizando sua importância. A igreja não é um complemento opcional à fé cristã. É nela que aprendemos a ser os seres humanos que Deus pretendia que fôssemos. Na verdade, é a igreja que torna possível vivermos uma vida verdadeiramente humana diante de Deus.

A igreja tem o que precisamos, tem o propósito, a comunidade e o cultivo da virtude que o restante da nossa cultura está buscando às cegas, na escuridão. Tudo isso está bem aqui, na igreja. Ela não tem nada que possa nos fazer ficar inibidos ou nos envergonhar. Nada pelo que devamos nos desculpar. As pessoas têm fome de igreja, mesmo que não percebam isso. E, às vezes, nós mesmos, que somos cristãos, não percebemos.

Considere alguns diagnósticos populares recentes sobre o que aflige nossa sociedade, especialmente nossas famílias e nossos jovens. An Anxious Generation [Uma geração ansiosa], de Jonathan Haidt, denuncia a infância “baseada em telas” da Geração Z e da Geração Alfa. Bad Therapy [Terapia ruim], de Abigail Shrier, condena a colonização da educação e da criação de filhos por uma visão de mundo terapêutica falsamente científica e quase religiosa. James Davison Hunter, Yuval Levin e Rob Henderson detalham a precariedade econômica que assombra a esfera pública, e uma lista crescente de escritores, entre eles Richard Reeves e Louise Perry, analisaram nossa confusão em torno de coisas como gênero, corpo, trabalho, casamento e criação de filhos.

Estamos até mesmo vendo pensadores seculares explorando novamente os benefícios práticos e culturais do cristianismo — tanto que Justin Brierley escreveu um livro intitulado The Surprising Rebirth of Belief in God [O surpreendente renascimento da crença em Deus]. Além de relatar conversões reais, ele interage com intelectuais que querem ser cristãos, mas não conseguem (ainda) se converter, um desdobramento digno de nota em uma era supostamente secular.

Agora, dê um passo para trás e considere o que esses autores prescrevem.

Eles nos dizem que as pessoas em geral, e as crianças em particular, florescem quando os pais são casados, quando as famílias permanecem intactas, quando temos casas e bairros repletos de irmãos, irmãs e primos.

As crianças precisam brincar com amigos ao ar livre, e não em ambientes fechados e presas a telas. Elas precisam aprender o gosto pela leitura — serem leitoras de livros que não apenas forneçam sabedoria, mas também as levem por aventuras no mundo da imaginação.

Elas precisam ser encarregadas de desempenhar um bom trabalho, de ajudar seus próximos e de servir aqueles que necessitam. Elas precisam ser inseridas em uma diversidade de ambientes sociais intergeracionais que as ensinem a transitar por relacionamentos incertos, e às vezes arriscados, com outras crianças e adultos.

E, por falar em adultos, as crianças precisam de mentores em quem possam confiar. Elas precisam de rituais de passagem que marquem transições, seja da infância para a adolescência ou da adolescência para a idade adulta. Elas precisam de espaços nos quais se sintam livres para discutir e debater em voz alta, com amigos e adultos de confiança, o que significa ser homem ou ser mulher.

Elas precisam de espaços livres de tecnologia, nos quais possam habitar seus corpos e estar presentes para os outros: velhos e jovens, negros e brancos, casados ​​e solteiros, deficientes e fisicamente aptos. Elas precisam sentir tédio — durante um sermão, por exemplo, ou durante uma longa reunião para discutir o orçamento — sem ter [à mão] uma maneira fácil de acabar com esse tédio. Elas precisam observar as amizades entre adultos em seus melhores e piores momentos.

Ora, se você fosse projetar do zero uma instituição local para atender a essas necessidades de qualquer criança, indivíduo ou família, pertencente a qualquer faixa de renda, você acabaria com algo muito parecido com a igreja. Mesmo aqueles que estão fora da igreja já estão começando a perceber isso. Veja Derek Thompson, do The Atlantic, lamentando “a crise da igreja” (embora ele próprio seja agnóstico) ou Haidt falando que existe “um buraco em forma de Deus no coração de todos” (embora ele seja ateu).

Ao dizer tudo isso, não estou sugerindo que a igreja seja redutível a seu papel de solucionar problemas sociais. Ela é mais do que isso, embora não seja menos. Além disso, nossos problemas sociais também são problemas espirituais — e a igreja também é o lugar em que aprendemos a orar, a adorar com os outros, a ver o que deveria ser óbvio, mas muitas vezes escapa à nossa compreensão: que o mundo está repleto da grandeza de Deus. A igreja nos oferece a solenidade de ritos e práticas que treinam nossos olhos e corações a permanecerem focados em Jesus, em meio a uma cultura de perpétua ironia, sarcasmo barato e entretenimento fácil.

Nada disso deveria ser um choque, quando visto a partir de uma perspectiva teológica. Deus fundou a igreja. Ela não é uma instituição meramente humana. Deveríamos esperar que ela seja finamente ajustada às necessidades complexas da experiência humana — para nos ajudar com tudo, desde a socialização precoce até a crise da meia-idade e a morrer bem.

É verdade, para usar uma frase de Jesus, que a igreja foi feita para o homem (Marcos 2.27). Em um sentido mais profundo, porém, o homem foi feito para a igreja. A humanidade foi feita para a comunhão com Deus, e temos um antegozo desse banquete de comunhão na igreja, que é o corpo de Cristo. Fomos criados para florescer nela, na igreja. Pois o que nos faz florescer de forma mais suprema é encontrado de forma mais poderosa lá, onde adoramos juntos, ouvindo a Palavra e recebendo os sacramentos.

Você pode pensar que os cristãos enxergariam nisso uma oportunidade — a chance de dizer à nossa sociedade que temos o que ela está buscando, que já existe uma instituição local que tem a resposta para esses males sociais. Mas, na maioria dos casos, estamos deixando de aproveitar a oportunidade do momento, e acho que existem duas razões para isso.

No nível cultural, muitos cristãos tendem a tratar a igreja como um embaraçoso estorvo ou uma isca apelativa [que não cumpre o que promete], algo a ser suportado se você quiser seguir a Jesus.

Muito pelo contrário: a igreja é o ponto de venda. Não quero dizer que queremos que as pessoas se juntem às igrejas pelas vantagens sociais. Quero dizer que o próprio Cristo fez da oferta do evangelho e da oferta de se juntar a um povo uma coisa só. Assim como não podemos ter o Pai sem o Filho (1João 2.23) ou não podemos ter a adoção por Deus sem a adoção por Abraão (Gálatas 3.6–4.7), também não podemos ter Cristo sem seu corpo e sem sua noiva (Efésios 2.1-22). É um pacote. O Senhor e a família dele são coisas que vêm juntas; ou temos os dois ou não temos nenhum deles.

Em um contexto diferente, o teólogo protestante Filipe Melanchthon certa vez comentou que conhecer a Cristo é conhecer seus benefícios. Algo assim também é verdade no caso de que tratamos: a igreja é um refúgio para a humanidade. É uma escola para aprender a ser humano como Jesus, o único ser humano verdadeiro e completo. Consequentemente, dados os desafios dos nossos dias, a igreja é um campo de treinamento para a antifragilidade.

Não importa como você a chame, a igreja está lá por um motivo. Ela não é um estorvo. Ela não é uma religião organizada que você pode pegar ou largar. Sem a igreja, o evangelho é algo incorpóreo, fantasmagórico. De acordo com as Escrituras, a comunidade à qual Cristo se ligou para sempre não é outra senão a igreja (Efésios 5.25-33; 1Coríntios 12.4-27; Apocalipse 21.1-14). O Deus vivo habita nela. Neste mundo, portanto, a igreja é onde se encontra a plenitude de vida. Vamos agir à altura.

No nível congregacional — e admito que isso é fruto da minha experiência pessoal — o que vejo são igrejas ansiosas sobre seu status decaído, nervosas quanto a perder a Geração Z e aflitas para dar às pessoas o que elas querem (isto é, aquilo que os líderes da igreja acham que elas querem). O cenário religioso se tornou um mercado, e as igrejas competem entre si, oferecendo um produto cada vez mais chamativo. Mais tecnologia, adoração em volume mais alto, menos rituais, slogans mais atraentes e um monte de jargões terapêuticos. Algo que entretenha. Algo que mantenha o tédio sob controle. Talvez até algo que viralize nas redes sociais.

A lição que deveríamos ter aprendido há muito tempo é que quanto mais a igreja não se diferencia do mundo, menos o mundo tem qualquer razão para se interessar por ela. A igreja não pode fazer terapia melhor do que os psicólogos, nem fazer shows melhor do que as bandas de rock, nem fazer palestras melhor do que muitos autores de best-sellers. Na competição para entreter, a igreja sempre perderá para os eventos esportivos ou para os encontros com amigos em bons restaurantes.

Quanto mais tentamos alcançar Hollywood, Nashville e o Vale do Silício, menos diferenciada a igreja será — e menos adequada a seu propósito de adorar a Deus e formar seres humanos. Os benefícios práticos da vida comum da igreja não são o seu devido centro. São subprodutos do Espírito que reune uma comunidade humana em torno do Filho de Deus encarnado, e esses subprodutos se deteriorarão ou desaparecerão por completo, se não estivermos mais centrados em Cristo.

Cada geração da igreja tem alguma pergunta urgente a responder. A pergunta da nossa geração não é sobre cristologia, iconografia ou mesmo soteriologia. É sobre a antropologia teológica, a doutrina do ser humano.

Nós, cristãos, sabemos algo sobre o que significa ser humano — e as muitas maneiras pelas quais o ser humano pode dar errado —, e nossa sociedade está desesperada por respostas para essa pergunta. Felizmente, nossos próximos não precisam ler Agostinho, Calvino ou mesmo Paulo para descobrir isso. Ser humano não é algo que você aprende lendo. Você aprende a ser humano com outros seres humanos, na companhia do povo de Deus. Em outras palavras, na igreja.

Deus nos mostrou como sermos humanos em Cristo, e aprendemos a lição em sua escola, ao lado de colegas aprendizes, ao longo da vida (afinal, é isso que significa ser “discípulo”). Tenhamos a confiança para mostrar isso aos outros. Digamos a uma só voz com o salmista: “Venham e vejam o que Deus tem feito; como são impressionantes as suas obras em favor dos homens!” e “vou contar-lhes o que ele fez por mim” (Salmos 66.5, 16). O mundo está batendo à porta. Vamos convidá-los a entrar.

Brad East é professor associado de teologia na Abilene Christian University. É autor de quatro livros, entre eles The Church: A Guide to the People of God [A igreja: Um guia para o povo de Deus] e Letters to a Future Saint: Foundations of Faith for the Spiritually Hungry [Cartas para um futuro santo: Fundamentos da fé para quem tem fome espiritual].

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Theology

O legado evangélico da Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez

Como o sacerdote peruano influenciou os pais da missão integral.

Gustavo Gutiérrez, a Peruvian theologian
Christianity Today October 31, 2024
Alessandra Tarantino / AP Images / Edits by CT

Gustavo Gutiérrez Merino, o pai da teologia da libertação e teólogo católico que foi um dos primeiros a defender uma “opção preferencial pelos pobres”, morreu no dia 22 de outubro, aos 96 anos.

O ministério do sacerdote peruano foi fortemente influenciado pelas injustiças que ele observou em seu país. Durante anos, sob o sistema das haciendas [de grandes latifúndios pertencentes à elite hispânica], apenas 2% dos peruanos controlavam 90% das terras, enquanto agricultores meeiros ganhavam centavos cultivando-as e camponeses trabalhavam nos campos em condições análogas à escravidão.

Em 1968, um golpe tentou acabar com essa ordem de coisas e empoderar os trabalhadores camponeses. Mas as muitas pessoas que foram deixadas para trás por essas reformas logo deixaram as fazendas, mudando-se para assentamentos empobrecidos fora de Lima [capital do Peru].

Comovido por esse sofrimento, Gutiérrez, sacerdote da ordem dominicana, publicou seu livro mais influente, A Theology of Liberation: History, Politics, Salvation [Uma Teologia da Libertação: História, Política, Salvação], em 1971, argumentando que a libertação genuína se desdobra em três dimensões essenciais. Primeiro, a libertação política e social aborda e elimina as causas imediatas da pobreza e da injustiça. Segundo, os pobres, marginalizados e oprimidos são libertados de condições que limitam sua capacidade de autodesenvolvimento digno. Terceiro, essas comunidades são libertadas do egoísmo e do pecado e, agora, podem restaurar relacionamentos rompidos com Deus e com os outros.

Quando os padres começaram a abraçar a teologia da libertação em toda a América Latina, o Vaticano reagiu, criticando-a por sua influência supostamente marxista e pela redução do status de Jesus de Salvador divino para libertador social. No entanto, ao contrário de outros defensores da teologia da libertação, Gutiérrez nunca sofreu sanções da hierarquia católica.

Embora a América Latina ainda fosse predominantemente católica nos primeiros dias do ministério de Gutiérrez, muitos dos primeiros líderes evangélicos da região foram amadurecendo ao lutar com questões semelhantes. Essas ideias levaram o equatoriano René Padilla e outros peruanos, como Samuel Escobar e Pedro Arana, a desenvolver a teologia da “misión integral” ou missão integral, que buscava equilibrar a responsabilidade cristã de compartilhar sobre a obra redentora de Cristo com o dever de responder às desigualdades sociais.

A CT pediu a evangélicos familiarizados com a vida e a obra de Gustavo Gutiérrez que compartilhassem sobre como a teologia da libertação impactou a teologia, a prática e o crescimento dos evangélicos latino-americanos. As respostas foram editadas para maior clareza e concisão.

Este artigo pode vir a ser atualizado.

JUAN FONSECA

Pesquisador da história do movimento evangélico na Universidad del Pacífico, Lima, Peru

Samuel Escobar e Gustavo Gutiérrez foram dois teólogos peruanos que, de diferentes maneiras, influenciaram o cristianismo evangélico e católico, respectivamente, encorajando essas duas vertentes a integrarem seu trabalho missionário ao contexto de sofrimento da América Latina.

Em 1969, no Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE I), o teólogo evangélico Samuel Escobar desafiou os evangélicos latino-americanos a “encontrar uma maneira de encarnar sua fé na realidade latino-americana”. Por exemplo, ele os instou a desenvolver uma hermenêutica nativa, original, em resposta a questões decorrentes dos cinturões de pobreza das grandes cidades ou das culturas autóctones do continente.

Dois anos depois, o Padre Gustavo Gutiérrez publicou a sua Teologia da Libertação, um dos textos fundamentais da teologia da libertação. Ele impactou significativamente o cristianismo global com sua insistência em colocar os pobres no centro da missão cristã, uma convicção que transcendeu fronteiras denominacionais e renovou profundamente a teologia cristã.

No entanto, naqueles mesmos anos, nos bairros mais pobres das cidades latino-americanas, pregadores pentecostais estavam mobilizando uma espiritualidade frugal da pobreza. Apesar da falta de uma teologia formal e de estarem equipadas com poucos recursos materiais, as igrejas pentecostais tornaram-se a alternativa religiosa ao catolicismo para os empobrecidos do continente.

Parafraseando o teólogo americano Millard Richard Shaull, a teologia da libertação escolheu os pobres, mas os pobres escolheram o pentecostalismo na América Latina, uma observação cujo teor de verdade já foi reconhecido por outros teólogos da libertação. No entanto, com base na minha observação pessoal do cenário religioso no Peru, em vez de colocar a teologia da libertação e o pentecostalismo como coisas que estão em oposição uma a outra, é mais apropriado ver o ministério de Gutiérrez e o pentecostalismo como movimentos convergentes. No âmbito de suas respectivas espiritualidades, tanto a teologia da libertação quanto o pentecostalismo fazem dos pobres um ponto focal comum de suas respectivas hermenêuticas, os sujeitos privilegiados de suas reflexões e missões, e a face de Cristo.

O teólogo britânico John A. Mackay se perguntou, em um artigo da CT de 1969, se o futuro do cristianismo pertenceria a “um catolicismo reformado e a um pentecostalismo amadurecido”. Gustavo Gutiérrez e a teologia da libertação já fizeram a sua parte no processo de reforma do catolicismo. Resta aos pentecostais continuar amadurecendo em sua fé no Cristo dos pobres.

David Kirkpatrick

Autor do livro A Gospel for the Poor: Global Social Christianity and the Latin American Evangelical Left [Um Evangelho para os pobres: Cristianismo social global e a esquerda evangélica na América Latina], Estados Unidos

Gustavo Gutiérrez deu voz a uma geração inteira de teólogos latino-americanos que lutavam com questões de violência, injustiça e desigualdade, no contexto da Guerra Fria. Sua insistência em um reexame crítico das abordagens tradicionais às Escrituras e seu chamado para amplificar as vozes dos pobres tiveram um impacto imenso sobre os teólogos latino-americanos da sua geração, na qual se incluem muitas figuras católicas e protestantes proeminentes, como o Papa Francisco e o teólogo metodista José Míguez Bonino.

Em 1973, René Padilla escreveu o primeiro artigo dedicado à teologia da libertação que foi publicado pela Christianity Today. Padilla, assim como muitos evangélicos, discordava da abordagem de Gutiérrez — que Padilla chamava de “camisa de força” para a Bíblia. “Não se faz nenhuma tentativa para mostrar por que essa práxis específica (em lugar de qualquer outra) é escolhida como objeto de reflexão, ou para mostrar o que torna essa reflexão especificamente cristã”, escreveu Padilla. Mas ele também se recusou a permitir que as críticas à teologia da libertação silenciassem os apelos proféticos por justiça. Muitos evangélicos protestantes latino-americanos concordaram que o contexto injusto do pós-guerra exigia novas abordagens à fé e à prática.

Em resposta à versão em inglês da obra A Theology of Liberation [Uma Teologia da Libertação], lançada em 1973, Padilla argumentou: “A necessidade de uma libertação da teologia é, então, tão real em nosso caso quanto é no no caso da teologia da libertação”. Em vez de juntar-se ao crescente movimento da teologia da libertação, a resposta de Padilla foi a missão integral, uma abordagem holística à missão cristã que sintetiza a busca pela justiça e a oferta de salvação.

Mas Padilla concluiu seu artigo para a CT fazendo uma pergunta que definiria sua vida e obra: “Onde está a teologia evangélica que proporá uma solução com a mesma eloquência [de Gutiérrez], mas também com uma base mais firme na Palavra de Deus?”. Gutiérrez inspirou uma geração inteira de teólogos evangélicos protestantes latino-americanos a continuar sua busca e a construção teológica de uma teologia verdadeiramente latino-americana de justiça e de missão.

Valdir Steuernagel

Pastor e teólogo, Brasil

Nunca tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Gustavo Gutiérrez, embora eu tenha ouvido falar do seu nome desde a década de 1970. Quando soube que ele morreu, peguei na minha biblioteca o seu livro We Drink from Our Own Wells: The Spiritual Journey of a People [Bebemos do Nosso Próprio Poço: A Jornada Espiritual de um Povo]. Ao abri-lo, as primeiras palavras me tocaram profundamente: “Seguir a Jesus é o que define o cristão”. Sorri, porque é exatamente isso que eu gostaria de dizer também.

Venho de outra escola teológica, mas compartilho do reconhecimento de Gutiérrez de que o contexto é importante no processo de fazer teologia, e o nosso contexto era a América Latina. O fato de ele ser peruano afetou o modo que ele pensava e vivia sua fé, que sempre esteve enraizada em seu ambiente confessional. Da mesma forma, eu sou brasileiro, e foi nesta terra que encontrei o evangelho e que tive o privilégio de viver minha vocação.

Minha identidade também foi moldada por uma confessionalidade evangélica, a qual foi nutrida dentro dos círculos da Fraternidade Teológica Latino-Americana. Mas fomos inspirados pela convicção de Gutiérrez de que a teologia tinha de sair das “bibliotecas” para as “comunidades”. Nossa fé tinha de alcançar as pessoas mais vulneráveis ​​em nossas sociedades. Com Gutiérrez, somos desafiados a olhar para o “reverso da história”, para as comunidades tão frequentemente ocultadas pelas narrativas “vitoriosas” da história ou que se tornaram o “reverso” precisamente por causa desses vencedores.

Ainda posso ouvir alguns dos debates e discussões [entre seguidores católicos da teologia da libertação e defensores evangélicos da missão integral] que apontavam para as diferenças em nossas respectivas teologias. E também vejo o compromisso de Gutiérrez com o chamado que Deus lhe deu e seu longo e profundo senso de pertencimento [dentro da igreja católica], no qual os pobres e os mais vulneráveis ​​tinham um lugar especial, um lugar onde eram acolhidos por um Deus de amor e de justiça.

Ruth Padilla DeBorst

Professora na Comunidad de Estudios Teológicos Interdisciplinarios e no Western Theological Seminary, Colômbia/Estados Unidos

É impossível conceber o trabalho teológico na efervescente América Latina de meados do século 20 e começo do século 21 sem reconhecer a generosa contribuição de Gustavo Gutiérrez. Embora este sacerdote peruano e a maioria de seus companheiros da teologia da libertação estivessem desenvolvendo sua teologia principalmente para a igreja católica e dentro dela, essa teologia influenciou o pensamento evangélico.

O movimento da missão integral se desenvolveu ao mesmo tempo, nos movimentos estudantis evangélicos e na Fraternidade Teológica Latino-Americana. Em 1972, René Padilla e Samuel Escobar se encontraram com vários teólogos da libertação, interagiram diligentemente com seus escritos, e, mais tarde, falaram sobre como essa experiência desafiou de forma preciosa sua hermenêutica e como eles entendiam a práxis ética da fé cristã. Aqueles que se identificam como evangélicos hoje fariam bem em olhar com apreço para o legado deste gigante da teologia, não apenas na América Latina, mas no mundo todo.

Harold Segura

Pastor e diretor de Fé e Desenvolvimento da World Vision Latin America, Colômbia/Costa Rica

A teologia da libertação surgiu na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970, com teólogos como Gustavo Gutiérrez (de quem nos despedimos com gratidão e admiração). Ele apresentou a ideia de um cristianismo comprometido com os mais vulneráveis ​​e excluídos. Essa teologia colocou a realidade da pobreza e da injustiça no centro da reflexão cristã, afirmando que o evangelho deveria levar não só à salvação espiritual, mas também à transformação social.

Para muitos evangélicos, essa abordagem foi um desafio. A maioria das igrejas evangélicas havia focado sua mensagem na salvação pessoal, priorizando a conversão e a vida espiritual. A teologia da libertação, com sua ênfase em justiça social e seu diálogo com as ciências sociais, era vista com ceticismo. Muitos a consideravam uma distorção política que ameaçava a pureza do evangelho.

No entanto, nem todos a rejeitaram. Alguns movimentos evangélicos começaram a refletir sobre seu próprio papel na sociedade e assumiram uma postura mais ativa diante da injustiça. Essa teologia teve uma influência inegável sobre algo que, mais ou menos na mesma época, começou a ficar conhecido como missão integral — uma visão do evangelho que busca não apenas a salvação da alma, mas também o bem-estar do corpo e a justiça na sociedade. A missão integral não foi um resultado direto da teologia da libertação, mas a teologia da libertação desencadeou o diálogo e a reflexão que permitiram que a missão integral brotasse do solo evangélico.

Em algumas comunidades evangélicas, esse despertar para o social não mudou a crença de que os esforços de crescimento da igreja devem se concentrar na conversão pessoal e na evangelização. Na verdade — em parte como reação ao ativismo político da teologia da libertação —, os movimentos evangélicos experimentaram um crescimento considerável, especialmente em alguns setores evangélicos tradicionais, onde uma fé mais conservadora e não politizada era enfatizada.

Hoje, muitas igrejas evangélicas latino-americanas continuam a transitar entre a espiritualidade e o engajamento social, buscando maneiras de serem fiéis ao evangelho enquanto respondem às necessidades de um mundo injusto.

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Theology

Animais fantásticos, monstros e a narrativa bíblica

O que os relatos bíblicos sobre seres monstruosos como Leviatã e Beemote nos dizem sobre nossa experiência do sagrado?

A monster and a snake from a historical painting with a moon in the background and an angel flying above
Christianity Today October 30, 2024
Edits by CT / WikiMedia Commons

Quando comecei a ler a Bíblia na adolescência, fiquei chocado a primeira vez que li o Apocalipse de João. Comecei a ler a Bíblia pelo Evangelho de João e não tinha ideia de que a Escritura, um livro com uma imagem de um Deus tão amoroso, poderia ter tantas cenas violentas e tantos seres monstruosos em seu último livro.

Então, descobri que a presença de monstros não é algo exclusivo do livro de Apocalipse. O leitor atento da Bíblia por certo já percebeu a quantidade de seres, no Antigo e no Novo Testamentos, que não correspondem às formas convencionais de seres humanos e animais que encontramos no mundo, no cotidiano.

A Bíblia faz referências a monstros marinhos, como o Leviatã, ou monstros terrestres, como o Beemote. O mundo celestial também é habitado por seres incomuns, como os serafins ou os querubins, sem falar dos seres híbridos, os “seres viventes”, que encontramos no Livro de Ezequiel.

No entanto, é na literatura apocalíptica que esses seres são mais frequentes e mais conhecidos. Como vemos, por exemplo, no livro de Daniel e no Apocalipse de João. A presença desses seres estranhos nos surpreende e nos faz perguntar: por que há tantos seres na Bíblia que não têm equivalentes no mundo real? Qual poderia ser o papel deles nas Escrituras?

A resposta a essas perguntas tem um valor significativo para quem lê as Escrituras, pois esses seres monstruosos potencialmente promovem atos violentos, alguns dos quais a serviço de Deus. Por causa de sua presença e de seus atos poderosos, os monstros devem ser encaixados em uma visão mais ampla da interpretação bíblica.

A interpretação bíblica historicamente tem lidado com esses seres excêntricos de várias maneiras. Uma delas foi interpretando-os de forma alegórica. Cada parte desses seres corresponderia a um elemento doutrinário ou moral. Essa foi a visão preferida das igrejas antiga e medieval.

Então, nos estudos modernos, tornou-se mais comum entender esses seres como metáforas de elementos históricos. Na verdade, os monstros da literatura apocalíptica judaica e cristã são formas de representar potências imperiais, como os Impérios Selêucida ou Romano.

No entanto, essa abordagem resolve o problema apenas superficialmente, restando a questão do por quê esses poderes são descritos de maneiras tão bizarras. A interpretação política dos monstros também não explica todos os monstros do Apocalipse, e muito menos a violência promovida por agentes divinos no fim dos tempos.

Mais recentemente, alguns intérpretes começaram a fazer novas perguntas sobre esses seres estranhos. E chegaram à conclusão de que não basta listar os monstros e reconhecer sua presença; para entendê-los é necessária uma abordagem adequada.

Eu defendo que os monstros são, fundamentalmente, criações culturais por meio das quais expressamos nossas tensões em relação à sociedade e a nós mesmos. Eles habitam a mitologia dos povos e as profundezas de nossa psiquê, emergindo em nossos sonhos. Portanto, uma experiência do sagrado também passa pela articulação dos monstros, tanto internos quanto cósmicos. Essa perspectiva tem uma consequência clara para a interpretação da Bíblia: à medida que a Escritura aborda os dramas essenciais da alma humana e da criação, ela também manifesta os atos dos monstros em todo o seu poder e ambiguidade.

A teoria da monstruosidade, que é como essa abordagem tem sido convencionalmente chamada, busca uma compreensão complexa da cultura formulando a seguinte proposição: é possível estudar uma cultura com base nos monstros que ela cria. Essa perspectiva começou a ser considerada na década de 1990, nos estudos culturais, e ganhou aplicações também na pesquisa literária. Vou me concentrar em três de suas ideias centrais.

A primeira é que as culturas frequentemente retratam como algo ameaçador, perigoso, desestabilizante, animalesco — isto é, como um monstro — tudo aquilo que percebem como externo a si mesmas. E fazem isso não só por meio de conceitos, mas também, e acima de tudo, por meio de imagens híbridas e grotescas.

Os seres nos limiares do mundo — pense nos povos exóticos ou nos seres imaginários que vivem fora do mundo conhecido — são o outro, e um outro ameaçador.

Nada disso é novidade. Afinal, sabemos muito bem que grupos humanos tendem a se definir com características positivas, “civilizadas”, atribuindo a pessoas de fora de seu grupo um caráter que é não só ameaçador, mas também desestabilizante. Estamos cientes dos efeitos devastadores dessa posição em sociedades multiculturais e multiétnicas como a nossa.

A novidade da teoria da monstruosidade é sua segunda ênfase, inspirada pela psicanálise: os monstros que identificamos como externos, na verdade, refletem rupturas e traumas internos. O que eu projeto no outro como monstruoso de alguma forma se refere a mim mesmo.

Não é de se espantar, diriam os teóricos da monstruosidade, que, na Inglaterra vitoriana do século 19, a literatura tenha começado a criar monstros. Confiantes na ciência e no progresso e ocupando uma posição-chave entre as potências imperiais, os britânicos enfrentavam ameaças que emergiam de dentro.

Pense no Conde Drácula, um vampiro, um morto-vivo do Leste, que visita Londres em busca de uma mulher que o liberte de sua solidão. Ou pense em Frankenstein, um monstro em quem a fantasia mais proibida e fascinante da ciência é realizada, criando vida por meio da usurpação do lugar de Deus.

Ao criar monstros, as pessoas apontam para algo ameaçador que está “lá fora”, mas também para um perigo que está “aqui”, dentro de si mesmas e de sua cultura.

O terceiro elemento da teoria da monstruosidade nos orienta a prestar atenção às formas dos monstros: os monstros são assustadores porque suas imagens são aberrações e, por serem assim, devem ser vistos e imaginados não apenas como meras alegorias. Afinal, essas imagens provocam reações emocionais. Os monstros são seres híbridos, malformados, gigantescos, grotescos. Essa é a maneira de a sociedade questionar o mundo e suas categorias consideradas normativas.

Volto à minha pergunta, agora focada no mundo bíblico: “Por que há tantos monstros na Bíblia?” Essa é uma questão delicada que afeta nossas crenças e sensibilidades. Afinal, sempre pensamos no Deus da Bíblia como um Pai amoroso e na história contada na Bíblia como a história da salvação.

O fato de agentes divinos se apresentarem como seres monstruosos e violentos é o ponto crítico da nossa reflexão. Sou da opinião de que essa questão, mesmo que não receba respostas rápidas e fáceis, deve estar na pauta de uma reflexão teológica crítica.

Afinal, o cristianismo, uma religião que deveria espalhar a mensagem do amor de Deus pela humanidade, também se manifestou como uma religiosidade de violência e ódio, promovendo guerras, escravidão, opressão e morte. Encarar os aspectos monstruosos que estão dentro, no interior de nossas tradições e especialmente na Bíblia é uma maneira cautelosa de lidarmos com esse potencial de destruição e de violência que coexiste ao lado do amor e da solidariedade.

Os monstros do Apocalipse de João oferecem à narrativa principal do cristianismo primitivo insights sobre o futuro do mundo governado pelo trono divino. O livro do Apocalipse fala sobre a manifestação do poder divino sobre o cosmo, e também sobre a sociedade e os poderes que a governam. Nesse sentido, o Apocalipse oferece uma narrativa total de uma ecologia radical. As pragas executadas pelos anjos afetam não só as pessoas, mas também as estrelas, as águas, as plantas e os impérios da Terra.

Nessa vindicação do sofrimento dos justos, todos os níveis do cosmo e todas as expectativas de poder são abalados. No entanto, a execução do juízo divino e o estabelecimento do reino de Deus não podem ocorrer nas categorias ultrapassadas da sociedade que ele está buscando suplantar. A afirmação “Estou fazendo novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5) também se aplica à linguagem e às categorias usadas para narrar esse “fim dos tempos”. Portanto, nada no Apocalipse é narrado na linguagem cotidiana; tudo é apresentado pela primeira vez em sua profundidade, em uma revelação (apokalypsis) da realidade.

Os monstros são os agentes dessa narrativa. O opressor Império Romano é revelado, em todo seu poder demoníaco, nos monstros apresentados no capítulo 13, cuja força vem do dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres — outro monstro, que é apresentado no capítulo 12. Este dragão, por sua vez, se opõe à “mulher vestida do sol” (v. 1), trazendo caos e tentando devorar o filho dela.

O Império Romano, que se concebia como o garantidor de uma era de paz (a Pax Romana), é apresentado em termos de caos cósmico e demoníaco, desestabilizando a ordem mundial e desafiando o próprio Deus. Apresentar o poder opressor do Império Romano na forma de um monstro serve para revelar sua verdadeira identidade.

Mas o monstro descrito como algo externo também se refere ao que é interno. Deus e os anjos também são apresentados com características violentas e disruptivas. Na primeira visão do Apocalipse, Jesus aparece como o Filho do Homem apocalíptico — deslumbrante e exaltado, segurando estrelas em sua mão direita e carregando a chave para o Hades. Uma espada sai de sua boca. Esta figura poderosa do Cristo cósmico governa tanto o mundo celestial quanto o inferior.

Mas, no capítulo 5, em sua entronização, Jesus é apresentado como “o Leão da tribo de Judá” (v. 5) e depois como o Cordeiro que foi morto. Aqui, ele passa da imagem de um animal (que é vencedor) para a de outro (que é vítima), sem nenhuma referência à sua humanidade.

Essas formas de apresentar Cristo, ao mesmo tempo, como um ser cósmico e como uma vítima animal morta, que são tão distantes uma da outra, conectam Jesus com a experiência de humilhação e a esperança de exaltação de seus seguidores, os leitores do livro. Os seguidores de Cristo vivenciam o império como algo demoníaco e veem a si mesmos como vítimas vindicadas, embora nenhuma dessas visões use categorias situadas historicamente.

Somente a monstruosidade das imagens externas e internas permite que imaginem esse mundo de inversão de posições e de experiência radical do sagrado. Sem monstros, a linguagem do Apocalipse teria perdido todo o seu poder. A suspensão das categorias do senso comum é o que permite uma experiência religiosa plena, ainda que muitas vezes violenta.

Em um mundo de violência extrema e de violência interna, a violência sofrida e a violência imaginada (ou desejada) também devem ser visitadas. O leitor do livro de Apocalipse — e de toda a Bíblia — é convidado a uma experiência radical de Deus, na qual o leitor e suas maneiras de nomear o mundo não ocupam o centro.

Essa experiência desestabilizante, embora seja chocante e incômoda, tira o leitor do papel de intérprete poderoso. Ela desafia a ideia de controlar ou de ver o sagrado como algo inteiramente externo e objetivo. O encontro com Deus é uma experiência que nos inspira medo, temor — não um “temor” reverente e formal, mas uma experiência que o teólogo Rudolf Otto chamou de “mistério tremendo e fascinante”.

Há autores que insistem que a origem da religião — e no caso do judaísmo e do cristianismo não seria diferente — está em uma experiência do sagrado percebido como poderoso, disruptivo e violento. Nesse sentido, ler as Escrituras não é a reprodução de uma posição de poder equiparada a projetos ocidentais de cultura civilizadora.

A Bíblia, com seus animais fantásticos e seres monstruosos, nos leva a uma experiência de alteridade radical, que se reflete fora e dentro de nós, inserindo-nos em uma ecologia radical na qual Deus se manifesta desestabilizando categorias e criando novos mundos que antes eram inimagináveis.

Os monstros nos desnudam, empurrando-nos para além do conforto da interpretação centrada em nós mesmos, permitindo-nos uma experiência radical de Deus em meio ao drama de sua criação.

Paulo Nogueira é doutor em teologia, membro leigo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e professor de Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Theology

Precisamos da teologia para explicar o mundo em que vivemos

Pessoas com formação teológica são indispensáveis para nos ajudar a pensar sobre questões ideológicas e éticas à luz da Palavra e do mundo de Deus.

Christianity Today October 29, 2024
Illustration by Elizabeth Kaye / Source Images: Pexels / Unsplash / Wikimedia Commons

Não é segredo para ninguém que a educação teológica está em crise hoje. Nos últimos anos, as demissões de professores e a redução de seminários evangélicos e faculdades cristãs mostram que não há exagero na gravidade desse diagnóstico.

No entanto, como teólogo, acho que essa tendência preocupante é um sintoma de um problema maior: há uma sensação crescente, pelo menos em alguns círculos, de que a teologia acadêmica — junto com seus estudantes e acadêmicos — é algo praticamente irrelevante. Embora o analfabetismo bíblico e o anti-intelectualismo estejam impactando a igreja local em todos os níveis, interações pessoais recentes me fizeram questionar se alguns pastores ainda levam o estudo formal da teologia a sério.

Um pastor com quem conversei expressou um sentimento não tão incomum, quando menosprezou a teologia como algo que não era prático e estava fora de sintonia com as necessidades de sua congregação. “Não leio mais muita teologia acadêmica”, confessou ele, “pois, na minha pregação, ela aparece de uma forma que não consegue se conectar com os leigos”. Este sentimento foi repercutido por outros amigos meus, também pastores, em vários momentos, e a esposa de um deles chegou a sugerir que tais esforços acadêmicos poderiam se beneficiar de uma abordagem mais “acessível”.

Comentários como esses revelam que há, em certos círculos, um ceticismo em relação à investigação teológica rigorosa, ceticismo que muitas vezes vem acompanhado de uma preferência por formas mais facilmente digeríveis de discurso espiritual, sem as amarras de instituições acadêmicas. É difícil competir com o volume — em ambos os sentidos [ou seja, da voz e de quantidade] — dos trechos espirituais produzidos por celebridades cristãs e pregadores de megaigrejas para públicos de massa. E, embora parte dessa teologia pública de nível popular seja boa, grande parte dela carece da profundidade e da nuance que resultam de um estudo teológico mais cuidadoso.

Em resumo, a teologia acadêmica não é perda de tempo, nem é obsoleta ou irrelevante. Como diz um dos meus mentores, Stephen Priest: “Questionamentos filosóficos exigem respostas teológicas. E todos fazem questionamentos filosóficos”. No entanto, proponho que levemos essa afirmação um passo além: questionamentos de todos os campos da investigação humana exigem respostas teológicas — e tais respostas exigem um estudo intelectual cuidadoso. A teologia não só é a mais relevante de todas as disciplinas, como também pode ser a mais significativa. Como R. C. Sproul disse certa vez:

Tudo o que aprendemos — economia, filosofia, biologia, matemática — deve ser entendido à luz da realidade abrangente do caráter de Deus. É por isso que, na Idade Média, a teologia era chamada de “a rainha das ciências” e a filosofia de “sua serva”. Hoje, a rainha foi deposta de seu trono e, em muitos casos, levada para o exílio.

Uma postura negativa ou mesmo ambivalente em relação à teologia não consegue perceber as contribuições valiosas de seus estudiosos e, em última análise, cultiva a superficialidade dentro da igreja e a ignorância em nossa cultura mais ampla. Mas, se a teologia deve desempenhar o mesmo papel vital que já desempenhou — tanto no púlpito quanto em praça pública —, devemos primeiro identificar quais fatores levaram ao seu declínio e, então, como devemos reagir [a eles].

Em 2020, o teólogo wesleyano Roger E. Olson fez uma pergunta difícil: “A teologia ainda importa?” Parece que esse foi um ponto de discussão com um amigo dele, o falecido teólogo batista Stanley J. Grenz, com quem Olson escreveu em coautoria a obra Who Needs Theology? An Invitation to the Study of God [Quem precisa de teologia? Um convite ao estudo de Deus] (1996).

Perto do fim da vida, no início dos anos 2000, Grenz compartilhou, em particular, sua preocupação de que o cristianismo estivesse entrando em uma “fase pós-teológica” — em uma nova era que veria o “fim da teologia” por completo. De muitas maneiras, essas preocupações ecoavam o alerta que Mark A. Noll emitiu em sua famosa obra The Scandal of the Evangelical Mind [O escândalo da mente evangélica], publicada apenas alguns anos antes.

Embora Olson tenha protestado contra o prognóstico na época em que foi feito, ele veio a concordar com ele desde então, com base em observações anedóticas de seus “quarenta anos de experiência como teólogo”. Olson relata situações em que discutiu tópicos teológicos, os quais ele sentia serem ricos em relevância cultural, apenas para vê-los serem descartados como meros exercícios “acadêmicos”, palavra que, segundo ele, com frequência é usada como sinônimo de “irrelevante”.

Além dos problemas notórios com a “religião popular americana” de hoje — a democratização de um cristianismo populista —, Olson oferece várias razões pelas quais a teologia perdeu sua influência em nossa nação. Primeiro, ele observa uma percepção crescente de que teólogos só se importam em conversar uns com os outros, e não com um público mais amplo, e que eles não buscam mais ter uma voz unificada. E, se os próprios teólogos têm entre si vários pontos de discordância, como as pessoas podem confiar que seja verdade o que qualquer um deles tem a dizer?

Olson também aponta para mudanças na teologia acadêmica nos anos 60, quando os departamentos de estudos religiosos sucumbiram à visão de que ninguém sabe nem pode dizer nada sobre Deus. Os teólogos deixaram de discutir Deus para discutirem as discussões sobre Deus, levando a uma falta de consenso entre eles e a uma incerteza quanto ao papel e à relevância da teologia na sociedade. Como disse um artigo da revista Time, a teologia passou da “reflexão sobre Deus — o devido objeto da teologia — para uma consciência religiosa humana”. Ou, como Sproul declarou: “Substituímos a teologia pela religião”.

Em meio a essas mudanças, a teologia como disciplina perdeu autoridade aos olhos do público. Por exemplo, Olson observa que, desde 1966, quando foi publicada a famosa edição “Deus está morto”, nenhum teólogo apareceu nas capas da revista Time — como já acontecera com Karl Barth, Reinhold Niebuhr e Paul Tillich, entre outros. Isso leva Olson a se perguntar se o mundo, ao assistir a tudo isso, chegou à conclusão de que, uma vez que os teólogos declararam que Deus estava morto, a própria teologia também deve ter morrido.

Ao mesmo tempo, precedentes legais contribuíram para reforçar ainda mais essa percepção. Em um artigo da CT de 1975, “A teologia está morrendo?”, o acadêmico e jurista evangélico John Warwick Montgomery explicou que a ascensão de seminários teológicos independentes foi, em parte, resultante de uma decisão de 1963, da Suprema Corte, no caso Abington School District versus Schempp, que restringiu o estudo da religião à análise literária e histórica, em instituições educacionais seculares — distanciando efetivamente a teologia do discurso intelectual dominante. (Compare isso com o contexto europeu, onde Wolfhart Pannenberg defendeu com sucesso a teologia acadêmica como uma ciência adequada para ser acolhida em universidades seculares, algo para o qual não temos paralelo em nosso contexto dos EUA.)

Os comentários de Montgomery sobre a percepção que se tem da teologia nos EUA merecem ser novamente ouvidos: “A teologia hoje é superficial e passageira”, ele escreveu. “A questão importante é por que [ela é assim], e a resposta tem a ver com algo muito mais profundo do que separar teologia de religião ou seminário teológico de universidade.” De fato, “a fonte central do problema”, segundo ele, “é que a teologia não tem mais certeza de seus dados”: o estudo das Escrituras foi desconstruído a ponto de a Bíblia não ter mais autoridade suficiente para fundamentar a teologia.

Tomadas em conjunto, as afirmações de Olson e de Montgomery oferecem dois pontos vitais para levarmos em consideração. Para ressucitar o estudo da teologia, devemos resgatar tanto seu objeto quanto sua fonte.

Primeiro, o objeto principal da teologia é Deus. O teólogo britânico John Webster disse: “O princípio ontológico da teologia é o próprio Deus — não algum ente proposto, mas o Senhor que, da plenitude insondável de seu ser triúno, amorosamente se estende às criaturas em Palavra e Espírito”. Ele também clamou por um avivamento da teologia como havia sido proposto no passado, no qual “Deus não é convocado à presença da razão; a razão é convocada diante da presença de Deus”.

Como C. S. Lewis certa vez declarou: “Eu acredito no cristianismo assim como acredito que o sol nasce: não apenas porque o vejo, mas porque, por meio dele, vejo todo o resto”. Se tudo na vida, nisso incluindo todas as disciplinas educacionais, só pode ser visto de forma adequada e plena à luz da verdade de Deus, então, a teologia (especificamente como disciplina acadêmica, rigorosa e cuidadosa) é pertinente a todos os aspectos da vida. Em outras palavras, se Deus existe e criou o universo, então, a teologia importa universalmente.

Segundo, a fonte dos dados da teologia não é outra senão a Bíblia, ordenada por Deus para sua autorrevelação. Webster pediu um retorno à “teologia teológica” mediante o envolvimento com textos cristãos clássicos e uma fundamentação das alegações em exegese bíblica sólida. “A Escritura é o lugar para o qual a teologia é direcionada a fim de encontrar seu objeto de estudo e a norma pela qual suas representações são avaliadas”, ele disse. E como Montgomery alertou: “Ou a Escritura fala unívocamente de Deus, ou a morte da teologia é uma certeza inquestionável.”

Resgatar esses dois elementos — o objeto e a fonte da teologia — deve permanecer em nossa mente como prioridade, se quisermos ver a teologia restaurada ao lugar que historicamente ocupou em nosso mundo. E, felizmente, acredito que os ventos podem finalmente estar mudando nessa direção, à medida que os teólogos de hoje estão trazendo a relevância da verdade de Deus para as preocupações contemporâneas e usando essa lente para se envolver com várias áreas de estudo.

Houve desdobramentos recentes na teologia analítica e na teologia engajada com a ciência, por exemplo, que receberam ampla atenção e estimularam uma série de publicações, conferências, eventos e discussões produtivas. Esses campos em expansão sustentam a natureza “científica” da teologia — tanto em sua linguagem quanto em seu conteúdo conceitual — para que ela esteja melhor equipada para dialogar com outras disciplinas acadêmicas. Esse movimento, sem dúvida, permite que a teologia lance luz em campos sociológicos e científicos, fornecendo confirmação sobre algumas questões ou esclarecendo outras.

Uma área específica a fornecer recursos da teologia evangélica é a doutrina da criação. Considere o Creation Project [Projeto Criação], do Carl F. H. Henry Center, e os vários volumes publicados nos últimos anos, que demonstram como a doutrina da criação tem importância para todas as áreas de interesse científico. Questões como a idade da Terra, Adão e Eva e evolução ainda são discussões vivas entre teólogos, e por um bom motivo. Nas palavras do teólogo John Polkinghorne: “A ciência não pode dizer à teologia como construir uma doutrina da criação, mas não se pode construir uma doutrina da criação sem levar em conta a idade do universo e o caráter evolutivo da história cósmica”.

E por falar em cosmologia — o estudo do universo e nosso lugar nele — alguns teólogos estão fazendo uma volta contemporânea ao design inteligente cristão em sua defesa do teísmo. Isso lança luz sobre campos adjacentes — como biologia, física, química, cuidado da criação e estudos da consciência —, na intersecção entre ciência e religião. Alguns teólogos até têm algo a dizer sobre o potencial de vida extraterrestre e suas implicações para a existência de Deus e para a teologia em geral.

Também houve um renascimento da investigação teológica sobre a vida após a morte — um tópico sobre o qual muitas pessoas, religiosas ou não, frequentemente se perguntam —, como fica evidenciado por uma série de livros lançados recentemente sobre o céu, o inferno e o estado intermediário. Teólogos cristãos estão mostrando que têm algo vital a dizer sobre experiências de quase morte, e também estão aprofundando nossa compreensão de doutrinas negligenciadas como deificação, transfiguração, bem como a ressurreição e a ascensão de Cristo.

Outra área de investimento que foi revitalizada é a doutrina da humanidade e como ela tem pontos de contato com quase todas as preocupações contemporâneas. Como um artigo da CT explica: “Teólogos evangélicos estão pegando tópicos que ‘tendemos a considerar mais sociológicos’ … e mostrando que eles são, de fato, ‘profundamente teológicos’”. Trabalhos recentes notáveis ​​​​reforçam a importância, para outras disciplinas, da antropologia vista das perspectivas teológica e cristológica.

Por exemplo, os avanços da ciência, da medicina e da tecnologia despertaram um interesse renovado em áreas como psicologia, deficiência, demência, neurociência e a ética da vida nos cuidados de saúde reprodutiva e paliativa. Da mesma forma, o advento da inteligência artificial e do transumanismo, ou “tecno-humanismo” — que prioriza organismos humanos tecnologicamente avançados em detrimento da “mera” humanidade — trouxe à tona antigos questionamentos sobre o que define a natureza humana e o que separa nossa consciência de outras criaturas ou entidades tecnológicas.

“Quanto mais tecnológica uma sociedade se torna”, disse o teólogo Gabriel Vahanian, “mais ela se preocupa com questões espirituais”.

Tais desdobramentos representam oportunidades significativas para os teólogos consolidarem uma voz de autoridade sobre questões existenciais e éticas urgentes do mundo de hoje — em todas as áreas, desde política até saúde pública. E, felizmente, estamos vendo sinais de que a erudição teológica está de fato descendo da torre de marfim da academia para se envolver em discussões vitais, que impactam todas as facetas da nossa vida contemporânea.

A transcendência da teologia como disciplina informativa para todas as demais disciplinas é o que continuará a atrair a mente e o coração dos jovens — como um dia atraiu os meus. Na minha fase de amadurecimento, eu ansiava por entender o mistério do evangelho e a riqueza da criação de Deus, sabendo que, para entender o mundo de verdade, é preciso abordá-lo à luz de seu Criador e Redentor. Como o salmista afirma no Salmo 19: “Os céus declaram a glória de Deus”, e, como Paulo nos diz, os atributos de Deus e seu caráter são revelados em sua criação (Romanos 1.20). Toda a criação está constantemente apontando para seu Criador.

Quando eu estudava na faculdade e no seminário, percebi que a teologia não é meramente uma abordagem metodológica rica para questões de importância vital; é também uma cultura em si mesma e, em última análise, uma prática espiritualmente formativa que pode levar a comunidade cristã à maturidade piedosa. A teologia é o processo gradual de permitir que a palavra de Cristo habite em nós ricamente (Colossenses 3.16).

Porque Deus falou e continua a falar, a teologia não só ainda importa — ela é necessária. Sem a voz de Deus, nossa compreensão do mundo é limitada. Embora alguns secularistas possam sugerir que as ciências naturais são capazes de nos dar tudo o que precisamos, elas nunca conseguem nos dar uma perspectiva coerente sobre o mundo e nosso lugar nele, e muito menos nos dizer o que é importante e significativo.

Hoje, temos bons motivos para ter esperança de que a teologia possa, um dia, recuperar seu lugar de direito como rainha das disciplinas e ser restaurada a seu papel vital de manter a saúde de nossas igrejas locais. A teologia, quando feita da forma correta, deve impulsionar a igreja global a cultivar uma comunidade de fé mais profunda, bem como uma face pública que convoque o mundo para uma vida mais elevada e melhor.

Toda vez que nos envolvemos no trabalho da teologia, ecoamos as palavras de Francis Schaeffer, que proclamou, alguns anos após o anúncio da morte de Deus pela Time: “Deus está presente e não está em silêncio”.

Joshua R. Farris faz parte do corpo docente de pesquisa da Ruhr Universität Bochum, na Alemanha, e é o fundador do Soul Science Ministries e do Spiritually Driven Leadership [Ministério da Ciência da Alma e Liderança Espiritualmente Orientada]. Seus livros mais recentes são The Creation of Self [A criação do “eu”], The Banquet of Souls: A Mirror to the Universe [O Banquete das Almas: Um espelho para o universo] e Humanizing AI Business [Humanizando os negócios de IA].

History

A coisa mais perigosa que Lutero fez

E outros fatos sobre a tradução da Bíblia que transformaram o mundo.

Christian History October 29, 2024
Sean Gallup / Getty Images

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No início da Reforma, a principal Bíblia disponível era a Vulgata Latina, a Bíblia que Jerônimo havia produzido originalmente em latim, em 380 d.C. — embora, até a época da Reforma, ela já tivesse sofrido corrupções textuais significativas. Ela incluía uma tradução do Antigo Testamento hebraico e do Novo Testamento grego, além de Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Siraque, Baruque, algumas adições ao Livro de Daniel e 1 e 2Macabeus.

A Bíblia não era um livro com o qual o público em geral estivesse familiarizado. Não era um livro que a maioria dos indivíduos ou das famílias pudesse ter. Havia Bíblias de púlpito, que geralmente ficavam acorrentadas ao púlpito; havia manuscritos de Bíblias em mosteiros; havia Bíblias de propriedade de reis e da elite social. Mas a Bíblia não era um livro que muitos possuíssem.

Além disso, era raro encontrar uma Bíblia traduzida na língua do povo. Na época de Lutero, havia uma série de versões para o alemão e uma versão em francês, publicada já em 1473. Mas a Bíblia Latina ainda era de longe a principal Bíblia disponível. A elite social bem-educada sabia ler latim, embora o cidadão comum de países como Inglaterra, França, Alemanha, Itália ou Espanha soubesse apenas trechos da missa em latim. E, de fato, eles com bastante frequência deturpavam os trechos que sabiam. Se você quiser ter uma boa ideia da miserabilidade da instrução bíblica do público em geral, nessa época, leia os Contos da Cantuária, escritos por Chaucer entre 1387 e 1400 em inglês médio. Confusões e mal-entendidos em torno da Bíblia são abundantes nas histórias de Chaucer.

A Vulgata Latina foi a Bíblia que Lutero estudou primeiro, mas ele logo percebeu suas deficiências, ao se aprofundar no texto grego e ter seus insights revolucionários. Isso levou Lutero a outra percepção: se as coisas realmente deveriam mudar, isso não aconteceria apenas debatendo teologia com outras almas eruditas. A Bíblia precisava ser disponibilizada no vernáculo (neste caso, em alemão) e precisava estar disponível em larga escala. Na minha opinião, a coisa mais perigosa que Lutero fez na vida não foi pregar as 95 Teses na porta daquela igreja. Foi traduzir a Bíblia para o alemão comum e encorajar sua ampla disseminação.

A “heresia” de Lutero

Em 1522, Lutero havia traduzido todo o Novo Testamento, tendo completado a tradução da Bíblia inteira em 1534 — a qual, naquela época, incluía o que veio a ser chamado de Apócrifos (aqueles livros extras do judaísmo intertestamentário). Lutero continuou revisando seu trabalho nos anos seguintes, pois percebeu quão grande agente de mudança era a Bíblia traduzida.

Ele não traduziu diretamente da Vulgata Latina, o que, para alguns, era equivalente à heresia. Lutero havia aprendido grego da maneira usual, na escola de latim em Magdeburg, para que pudesse traduzir obras gregas para o latim. Há histórias, provavelmente verdadeiras, de que Lutero fez incursões em cidades e vilas próximas apenas para ouvir as pessoas falarem, a fim de que sua tradução, particularmente a do Novo Testamento, ficasse o mais próxima possível do uso contemporâneo corrente. Esta não era para ser uma Bíblia feita pela elite e direcionada à elite.

Philip Schaff, o grande historiador da igreja, assim se pronunciou a respeito: “O fruto mais rico do lazer de Lutero em Wartburg [castelo], e a obra mais importante e útil de toda a sua vida, é a tradução do Novo Testamento, por meio da qual ele trouxe o ensino e o exemplo de Cristo e dos Apóstolos para a mente e os corações dos alemães em uma reprodução realista… Ele fez da Bíblia o livro do povo na igreja, na escola e em casa.”

Este ato de Lutero abriu a caixa de Pandora, no que diz respeito a traduções da Bíblia, e já não era mais possível fechar a caixa depois desse feito. Desnecessário dizer que isso preocupou oficiais da igreja de todos os escalões, pois eles não tinham mais um controle estrito da Palavra de Deus.

Precursores e seguidores

No entanto, pouco se fala dos precursores de Lutero na tradução da Bíblia para o vernáculo. Por exemplo, a equipe que trabalho com John Wycliffe precedeu Lutero em uns bons 140 anos na tradução da Bíblia para o inglês médio, entre 1382 e 1395. O próprio Wycliffe não foi o único responsável pela tradução; sabe-se que outros, como Nicholas de Hereford, são conhecidos por terem feito parte da tradução. A diferença entre o trabalho da equipe de Wycliffe e o de Lutero é que nenhuma crítica textual estava envolvida; a equipe de Wycliffe trabalhou diretamente com a Vulgata Latina.

Além disso, Wycliffe incluiu não apenas o que veio a ser conhecido como Apócrifos, mas também acrescentou como bônus 2Esdras e uma obra do século 2,Epístola de Paulo aos Laodicenses.

Assim como no caso dos esforços de Lutero, o trabalho de Wycliffe não foi autorizado por nenhuma autoridade eclesiástica ou da realeza, mas se tornou imensamente popular. E as consequências foram severas. Henrique IV e seu arcebispo, Thomas Arundel, trabalharam duro para reprimir esse trabalho, e a Convocação de Oxford de 1408 votou que nenhuma nova tradução da Bíblia deveria ser feita, por ninguém, sem aprovação oficial. Wycliffe, no entanto, havia riscado um fósforo, e não havia como apagar o fogo.

Talvez a história mais pungente dessa época seja a de William Tyndale. Tyndale viveu de 1494 a 1536 e foi martirizado por traduzir a Bíblia para o inglês. Tyndale, assim como Lutero, traduziu diretamente do hebraico e do grego, exceto, provavelmente, no que diz respeito a referências cruzadas e verificação. Na verdade, ele só terminou o Novo Testamento, e, até sua morte, completou cerca de metade de sua tradução do Antigo Testamento. Sua versão foi a primeira Bíblia em inglês produzida em massa.

Tyndale originalmente pediu permissão ao Bispo Tunstall, de Londres, para produzir sua tradução, mas foi informado de que era proibido — na verdade, que o ato seria considerado herético — e, então, Tyndale foi para o continente europeu para fazer o trabalho. Uma edição parcial foi impressa em 1525 (apenas três anos depois da de Lutero), em Colônia, mas espiões entregaram Tyndale às autoridades e, ironicamente, ele fugiu para Worms, a mesma cidade onde Lutero foi levado à corte e julgado. De lá, a edição completa do Novo Testamento de Tyndale foi publicada em 1526.

Como Alister McGrath mais tarde observaria, a Versão King James (KJV), ou Versão Autorizada, do início dos anos 1600 (sendo que várias edições incluem uma versão de de 1611) não foi uma tradução original da Bíblia para o inglês, mas sim uma apropriação em larga escala da tradução de Tyndale, com alguma ajuda da Bíblia de Genebra e de outras traduções. Muitas das frases memoráveis ​​na King James — “com a pele dos meus dentes”, “acaso sou eu o guardião do meu irmão?”, “o espírito está pronto, mas a carne é fraca”, “tornam-se lei para si mesmos”, e assim por diante — são frases que Tyndale cunhou. Ele tinha um dom notável para transformar expressões bíblicas em algo que fosse memorável em inglês.

Mas, mesmo a Versão Autorizada não foi a primeira tradução autorizada da Bíblia para o inglês. Esse prêmio vai para a “Grande Bíblia” de 1539, autorizada por Henrique VIII. Henrique queria que essa Bíblia fosse lida em todas as igrejas anglicanas, e Miles Coverdale produziu a tradução. Coverdale simplesmente copiou a versão de Tyndale, eliminando algumas características questionáveis, e completou a tradução de Tyndale do Antigo Testamento e dos Apócrifos. Observe, no entanto, que Coverdale usou a Vulgata e a tradução de Lutero para fazer esta versão, e não os originais em hebraico ou grego.

Por esta e várias razões, muitos dos movimentos protestantes emergentes no continente europeu  e na Grã-Bretanha não ficaram felizes com a Grande Bíblia. A Bíblia de Genebra tinha uma linguagem mais vívida e vigorosa e se tornou rapidamente mais popular do que a Grande Bíblia. Foi a Bíblia escolhida por William Shakespeare, Oliver Cromwell, John Bunyan, John Donne e os peregrinos, quando eles vieram para a Nova Inglaterra. Foi ela, e não a KJV, a Bíblia que os acompanhou no Mayflower.

A Bíblia de Genebra era popular não apenas por ter sido produzida em massa, para o público em geral, mas também porque tinha anotações, guias de estudo, referências cruzadas com versículos relevantes de outras partes da Bíblia e introduções para cada livro com um resumo do conteúdo, mapas, tabelas, ilustrações e até índices. Em suma, foi a primeira Bíblia de estudo em inglês e, como já sabemos, ela precedeu a KJV em meio século. Não é de surpreender que, por ser uma Bíblia produzida sob a égide da Genebra de João Calvino, as notas fossem calvinistas quanto ao conteúdo e dissidentes (pois discordavam da Igreja da Inglaterra) quanto ao caráter. Essa foi uma das razões pelas quais os reis da Inglaterra produziram “a Versão Autorizada”. Eles precisavam de uma Bíblia que não questionasse Dieu et mon droit (que significa “Deus e meu direito”, o lema do monarca que sugeria sua soberania).

E quanto aos apócrifos?

É digno de nota que a Bíblia de Genebra foi a primeira a fazer uma tradução do Antigo Testamento para o inglês inteiramente a partir do texto hebraico. Como suas predecessoras, ela incluiu os Apócrifos. De fato, a Bíblia King James de 1611 também incorporou os Apócrifos, inclusive a História de Susana, a História da Destruição de Bel e do Dragão (ambas adições a Daniel) e a Oração de Manassés.

Em suma, nenhuma das principais traduções da Bíblia que surgiram durante as Reformas alemã, suíça ou inglesa produziu uma Bíblia com apenas 66 livros. É verdade que, além dos 66 livros, os outros 7 (ou mais) eram vistos como deuterocanônicos, daí o termo apocrypha; mas, mesmo assim, eles ainda eram vistos como conteúdo que tinha alguma autoridade.

Então, quando e onde a Bíblia protestante de 66 livros apareceu? Essa prática não foi padronizada até 1825, quando a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, essencialmente lançou um desafio e disse: “Esses 66 livros e nenhum outro”. Mas esta não era a Bíblia de Lutero, de Calvino, de Knox ou mesmo dos Wesleys, que usaram a Versão Autorizada. Os protestantes há muito tratavam os livros extras como, na melhor das hipóteses, deuterocanônicos. Alguns até os chamavam de não canônicos, e havia alguns precedentes de impressão de uma Bíblia sem esses livros. Por exemplo, houve uma edição minoritária da Grande Bíblia, posterior a 1549, que não incluía os Apócrifos, e uma edição de 1575 da Bíblia do Bispo que também deixou de fora esses livros. As impressões de 1599 e 1640 da Bíblia de Genebra também os deixaram de fora. Mas, de qualquer forma, esses livros não eram tratados como canônicos por muitos protestantes.

O ato mais influente de Lutero

Lutero não poderia ter imaginado, em 1517, que seu ato mais influente durante a Reforma Alemã, o ato que tocaria mais vidas e mais afetaria o movimento protestante emergente não seriam seus comentários de Gálatas ou de Romanos, seus tratados teológicos como “A escravidão da vontade”, nem mesmo sua insistência na justificação pela graça somente pela fé. Não, a maior pedra que ele atirou no lago eclesiástico, que produziu não apenas as maiores ondulações, mas de fato verdadeiras ondas, foi a produção da Bíblia de Lutero. Mas ele não foi um pioneiro solitário. Ele e William Tyndale merecem igual reconhecimento como os verdadeiros pioneiros da produção de traduções da Bíblia das línguas originais para a língua do povo, para que as pessoas pudessem lê-la, estudá-la, aprendê-la, serem inspiradas e moldadas por ela. A Bíblia do povo, pelo povo e especialmente para o povo não existia realmente antes de Lutero e de Tyndale.

Hoje, se levarmos em conta apenas a língua inglesa, há mais de 900 traduções ou paráfrases do Novo Testamento, parciais ou de todo ele. Novecentas! Nenhum dos primeiros reformadores poderia ter imaginado isso, nem poderia ter imaginado que muitas pessoas teriam suas Bíblias, não apenas nos púlpitos e nos bancos, mas teriam suas próprias Bíblias em suas próprias casas. O gênio que saiu da lâmpada, no início da Reforma Alemã, acabou sendo o Espírito Santo, que faz novas todas as coisas. Isso inclui traduções sempre novas da Bíblia, à medida que nos aproximamos cada vez mais do texto original inspirado do Antigo e do Novo Testamentos, conforme encontramos mais manuscritos, fazemos o árduo trabalho de crítica textual e fazemos traduções baseadas em nossos primeiros e melhores testemunhos dos textos hebraico, aramaico e grego.

Quando a Bíblia de Lutero foi produzida, com base no trabalho de Erasmo no Novo Testamento grego, havia apenas um punhado de manuscritos gregos que Erasmo podia consultar, e eles nem eram tão antigos. Quando a KJV foi produzida, em 1611, havia o mesmo problema tanto em relação ao Antigo Testamento quanto ao Novo Testamento.

Hoje, temos mais de 5.000 manuscritos do Novo Testamento grego, a maioria dos quais foi descoberta nos últimos 150 anos, e alguns destes remontam ao segundo e ao terceiro séculos d.C. Temos as descobertas no Mar Morto e em outros lugares que nos forneceram manuscritos mais de 1.000 anos mais próximos dos textos originais do Antigo Testamento do que o texto massorético (a base tradicional para o texto do Antigo Testamento), e mais próximos do que estávamos em 1900. Deus, em sua providência, está nos atraindo para mais perto de si mesmo ao nos atrair, na era atual, para mais perto do texto original inspirado.

O apelo da sola Scriptura pode ecoar hoje com um som menos oco do que no passado, pois sabemos hoje que as decisões tomadas pelos líderes da igreja, no quarto século, para reconhecer os 27 livros do Novo Testamento e os 39 livros do Antigo (mais alguns), foram as decisões certas. O cânone foi fechado quando se reconheceu que o que precisávamos em nossas Bíblias eram os livros escritos pelas testemunhas oculares originais, ou seus colaboradores e colegas, no caso do Novo Testamento, e aqueles escritos dentro do contexto da transmissão das sagradas tradições judaicas da Lei, dos Profetas e dos Escritos, que remontavam a Moisés, aos Cronistas e aos grandes Profetas da antiguidade.

Embora devamos nossos textos de partida aos antigos dignitários que registraram coisas entre a época de Moisés e a de João de Patmos, devemos nossas Bíblias no vernáculo aos nossos antepassados ​​protestantes — Lutero, Tyndale, Calvino e outros. Talvez hoje, ao celebrarmos mais um aniversário da Reforma Alemã, seja hora de dizer que, sem o protestantismo, é possível que não tivéssemos Bíblias nas mãos de tantos cristãos e em tantos idiomas. O trabalho de levar a Bíblia até o povo, que foi iniciado por Lutero, Tyndale e Wycliffe, não acabou. Ainda há lugares onde a Bíblia é ilegal ou onde nenhuma tradução no idioma local está disponível. Mas, graças a Deus, o trabalho pode continuar, porque o clamor semper reformanda ainda soa verdadeiro hoje.

Ben Witherington III é professor de interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico de Asbury. Ele é autor de muitos livros, mais recentemente, A Week in the Fall of Jerusalem (IVP Academic).

Theology

O nacionalismo cristão e sua consciência pesada

Em vez do controle mundano da sociedade, Cristo clama por corações renovados.

Christianity Today October 22, 2024
Illustration by James Walton

Muitos de nós presumimos que o nacionalismo cristão promete um roteiro que conduz a uma Nova Jerusalém ou a uma Nova Roma ou a uma Nova Constantinopla. Isso é compreensível, dada a retórica triunfal e bélica dos aspirantes a teocratas. Mas e se o roteiro de fato não nos conduzir a nenhum desses lugares?

E se essa nova face do nacionalismo cristão não quiser nos levar à cidade fulgurante de Cotton Mather, reedificada sobre o monte na Colônia da Baía de Massachusetts, mas apenas para uma noite de cupom duplo no Hotel Bellagio, em Las Vegas?

O jornalista Jonathan V. Last observou, há alguns anos, quando estava hospedado em um resort e cassino em Las Vegas, o quanto ficou momentaneamente comovido com o compromisso do hotel em ajudar seus hóspedes a salvarem o planeta. Last observou o cartão, sobre a pia do banheiro, que pedia aos hóspedes que economizassem água usando a mesma toalha várias vezes. Sobre a mesa de cabeceira, ele viu outro cartão que pedia aos hóspedes que protegessem os recursos naturais optando por não trocar a roupa de cama.

Então, ele olhou para a frente do hotel, onde duas fontes gigantes estavam “jorrando água preciosa na aridez do ar desértico”. Foi nesse momento, segundo ele escreveu, que “me ocorreu que a … preocupação [do hotel] com o meio ambiente poderia ser simplesmente uma tentativa de economizar em custos de lavanderia”.

Uma aposta [desse tipo] em um hotel de Las Vegas não é assim tão alta, mas é uma barganha que revela um impulso da natureza humana caída de forma que todas as partes envolvidas saiam ganhando. Os hóspedes sentem que estão fazendo algo virtuoso, e a casa economiza uns tostões. É um microcosmo de algo que Martinho Lutero identificou como o jogo psicológico que estava por trás de Johann Tetzel e de outros que vendiam indulgências para os cristãos medievais.

Dar dinheiro ajudava a aliviar a consciência daqueles que estavam com medo do purgatório, ao mesmo tempo em que ajudava a arrecadar dinheiro para a construção da Basílica de São Pedro em Roma. Os vendedores ambulantes de indulgências podiam dizer a si mesmos que estavam envolvidos na missão de salvar almas, e não no ramo da arrecadação de fundos sem fins lucrativos ou no ramo imobiliário comercial. E os compradores de indulgências podiam se tranquilizar com a penitência, algo que era, e ainda é, muito mais fácil do que o arrependimento.

Dar uma moeda é mais fácil do que carregar uma cruz. A contrição, a confissão e a rendição genuínas são realidades espirituais, internas e intangíveis que exigem que confiemos o perdão à promessa de um Deus invisível. Já as indulgências, por outro lado, vêm acompanhadas de recibos.

Para Lutero, a crise em tudo isso não estava apenas no fato de que a igreja era corrupta, mas em algo mais importante do que isso, ou seja, no fato de que a garantia comprada com esse tipo de indulgência na verdade impedia as pessoas de verem o que realmente é capaz de superar o pecado e limpar a culpa — a fé pessoal em Cristo, e nele crucificado.

“Os cristãos devem ser ensinados que, se o Papa soubesse das exigências dos pregadores do perdão, ele preferiria que a igreja de São Pedro fosse reduzida a cinzas, do que vê-la ser construída com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas”, Lutero afirmou na sua 50ª. tese.

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Em nossa época, as indulgências se parecem mais com a agenda verde de um hotel do que com a construção da Basílica de São Pedro. O novo nacionalismo cristão — assim como as velhas igrejas estatais que definham na Europa e os antigos e secularizados evangelhos sociais do protestantismo histórico — define o cristianismo em termos de reforma de estruturas externas, em vez de regeneração de psiquês internas. Ao contrário dos antigos liberalismos teológicos, porém, os nacionalistas cristãos de hoje buscam solidariedade não na mitigação concreta do sofrimento humano, mas em marcadores de limites, sobretudo simbólicos, como demonstrar a dose certa de uma ofensa teatral com ultrajes da guerra cultural, ter o tipo certo de inimigos, “lacrar os liberais”.

A consciência incomodada do nacionalismo cristão finge que nosso problema é o oposto do que Jesus nos disse: que, ao reivindicar direito sobre um jardim, podemos colher frutos de árvores doentes (Mateus 7.15-20), que, ao controlar o que está fora de nós, podemos renovar o que está dentro (Mateus 12.33-37).

Esta é uma mensagem popular, em todas as épocas; evangelhos da prosperidade e religiões de fertilidade sempre o são. Uma religião extrínseca permite que as pessoas reivindiquem o cristianismo sem seguir a Cristo, e permite que guerreiros culturais despidos de poder, sem uma oração nos lábios e viciados em pornografia se convençam de que estão marchando rumo ao céu. Ao amenizar nossa culpa com nossas escolhas políticas, podemos nos convencer de que o que encontramos em nossa nova Betel é a escada de Jacó para o céu, quando, na verdade, é apenas o bezerro de ouro de Jeroboão (1Reis 12.25-31).

Após a queda da União Soviética, Philip Yancey, colunista de longa data aqui na CT, junto com outros cristãos, encontrou-se com comunistas desiludidos do regime, entre eles os propagandistas do jornal Pravda do Kremlin. O experimento bolchevique, é claro, havia subjugado a ética pessoal, e mais ainda a fé pessoal à causa coletiva — ao suposto “paraíso dos trabalhadores” do futuro, que justificaria cada mentira contada, cada dissidente exilado, cada vida aniquilada ao longo do caminho.

O que Yancey achou mais pungente não foi apenas o fato de que o comunismo soviético havia fracassado, mas a maneira particular como fracassou. Conforme ele refletiu:

Os seres humanos sonham com sistemas tão perfeitos que ninguém precise ser bom, escreveu T. S. Eliot, alguém que viu muitos de seus amigos abraçarem o sonho do marxismo. “Mas o que o homem é vai projetar sua sombra sobre o que o homem finge ser”. O que ouvimos dos líderes soviéticos, da KGB e agora do Pravda foi que a União Soviética acabou com o pior dos dois mundos: com uma sociedade muito longe de ser perfeita e com um povo que havia se esquecido de como ser bom.

Não deveríamos fingir que não somos capazes de enxergar a mesma coisa que vimos no império soviético sem alma, de homens ocos, nesse nacionalismo cristão distópico, politizado e sem vida. Que fim trágico seria acabar com uma sociedade tão depravada quanto sempre foi e com um povo que se esqueceu de como ser salvo.

O caminho a seguir é o mesmo de sempre. Como Lutero disse em sua Disputa de Heidelberg, “O teólogo da glória chama o mal de bem e o bem de mal. O teólogo da cruz chama a coisa do que ela é.” Às vezes, isso significa pregar algumas palavras na porta de um castelo. Às vezes, isso pode significar abrir mão de bens e familiares. Toda a vida cristã trata do arrependimento. Esse arrependimento deve ser sobre renovar nossas mentes e nossos corações, e não apenas sobre lavar consciências que não estão mais sujeitas à Palavra de Deus.

Hoje, como sempre, todo dia é dia da Reforma.

Russell Moore é o editor-chefe da CT.

News

Evangélicos libaneses ajudam muçulmanos deslocados pela guerra entre Hezbollah-Israel

Apesar dos riscos de segurança e dos recursos limitados, as igrejas têm trabalhado duro para atender a população xiita, que não está acostumada a experimentar o amor cristão.

Mulheres xiitas e seus filhos, que fugiram do sul do Líbano para se abrigar em Beirute.

Mulheres xiitas e seus filhos, que fugiram do sul do Líbano para se abrigar em Beirute.

Christianity Today October 22, 2024
Marwan Naamani / AP Images

No dia 23 de setembro, Mustafa colocou sua família de cinco pessoas em uma pequena motocicleta e, saindo de Tiro, dirigiu por sete horas rumo ao norte, até uma aldeia nas montanhas libanesas, ziguezagueando lentamente por um engarrafamento de filas de veículos. Algumas das pessoas que estavam nos carros — como a família de seis pessoas de seu irmão Hussein — levariam dois dias a mais para chegar ao mesmo destino.

Essa viagem normalmente leva duas horas.

Mustafa, e milhares como ele, estavam fugindo freneticamente das bombas israelenses destinadas ao Hezbollah, a milícia xiita que o governo dos EUA classifica como uma organização terrorista. Até aquele momento, ele e seu irmão tinham trabalhado no campo, em uma fazenda fora da cidade, e vivido em um apartamento espartano de dois quartos fornecido por seus empregadores.

A CT concordou em omitir seus sobrenomes por razões de segurança. Mustafa é um cristão originário de Afrin, uma área curda no noroeste da Síria. Questionado se compartilhava da fé de seu irmão, Hussein disse: “Ainda não”.

Seu país natal não reconhece convertidos do islamismo. E embora o Líbano seja a única nação árabe a conceder liberdade de conversão, Tiro é uma cidade xiita socialmente conservadora que vive sob a influência política do Hezbollah.

Este foi o segundo deslocamento de Mustafa. Em 2013, ele e seu irmão fugiram da guerra civil síria. Nos últimos cinco anos, porém, à medida que os índices de pobreza triplicaram no Líbano, os muçulmanos sunitas nominais encontraram apoio de um ministério cristão local que oferecia ajuda.

Dezoito meses atrás, Mustafa professou sua fé em Cristo.

“Eu sigo Jesus”, disse Mustafa. “Ele me salvou”.

Quando Israel começou a invadir o Líbano por terra, emitiu ordens de evacuação para aldeias muçulmanas e cristãs no Sul do país. Mas a grande maioria dos deslocados vem de áreas xiitas suspeitas de abrigar depósitos de armas e túneis subterrâneos — cujos xiitas residentes podem ou não se alinhar à ideologia islâmica do Hezbollah.

De acordo com uma pesquisa realizada no início de 2024, enquanto 78% dos xiitas têm uma visão positiva do papel da milícia nos assuntos regionais, apenas 39% disseram que se alinhavam mais ao Hezbollah do que a outros partidos políticos do Líbano, em contraste com 37% dos xiitas que não se sentem próximos de nenhum partido específico.

Apenas 6% dos cristãos disseram ter “muita confiança” na milícia xiita.

Em meio a essas realidades, os cristãos estão ansiosos — e cautelosos — para ajudar. Compromissos com o Evangelho e a solidariedade nacional exigem hospitalidade. O retraimento sectário encoraja a suspeita. E a campanha de bombardeios de Israel gera o medo de que quem acolher os deslocados possa, consequentemente, transformar-se em alvo.

Apesar disso, muitos estão ajudando os deslocados.

Mustafa e Hussein encontraram abrigo em alojamentos oferecidos por uma igreja evangélica situada na aldeia onde buscaram refúgio, que é habitada por muçulmanos e cristãos. Um tapete de plástico cobria metade do piso de cimento da porção da área reservada que lhes fora destinada, e colchões bem finos estavam escorados nas paredes. Cobertores e travesseiros espalhados pelo recinto eram evidências da noite de sono agitada de seus filhos.

“Esta é a nossa mensagem: mostrar o amor em ação, enquanto levamos as pessoas a Cristo”, disse o pastor da igreja. (A CT está lhe concedendo o benefício do anonimato devido à situação política incerta no Líbano). “À medida que recebem, nós os ensinamos a dar.”

Sua congregação atualmente abriga cerca de 100 pessoas, que foram deslocadas de suas casas no sul e no Vale de Bekaa, no Líbano. Mais da metade dessas pessoas vieram da Síria; o restante é principalmente de xiitas libaneses. O pastor afirma que 60% [dos abrigados] são crentes em Jesus. Outros, como Hussein, são parentes desses crentes ou são muçulmanos que já eram intimamente ligados a igrejas em sua área de origem.

Todos se juntaram para preparar 500 sanduíches de atum para distribuir no local.

Não só palavras

O conflito atual entre Hezbollah e Israel começou no ano passado, em 8 de outubro, um dia depois que o Hamas, a partir de Gaza, invadiu e matou aproximadamente 1.200 israelenses e fez 250 reféns. A milícia libanesa iniciou o que chamou de “frente de apoio” ao Hamas, lançando mísseis que fizeram 80.000 israelenses fugirem de vilas localizadas perto da fronteira.

Um número semelhante de libaneses também fugiu da retaliação de Israel e, por 11 meses, os dois lados mantiveram uma troca de mísseis relativamente contida, visando evitar um conflito maior e talvez regional com o Irã, que está por trás do Hamas e do Hezbollah, os quais atuam como forças aliadas intermediárias.

Esse status quo se manteve, apesar das mortes de 12 crianças drusas, atingidas por um míssil do Hezbollah nas Colinas de Golã, e do aumento dos ataques de Israel a líderes de milícias dentro do Líbano, da Síria e do Irã. As negociações lideradas pelos EUA para acalmar ou cessar os combates não conseguiram superar a insistência do Hezbollah em um cessar-fogo simultâneo em Gaza. Em 17 de setembro, Israel incluiu o retorno dos cidadãos do Norte para suas casas como uma meta oficial de guerra.

Horas depois, um ataque orquestrado por meio da explosão de pagers e, no dia seguinte, de rádios de comunicação — com amplas suspeitas de ter sido conduzido por Israel, apesar de este negar oficialmente sua participação — matou dezenas e feriu milhares de membros da milícia e de pessoal médico afiliado, no Líbano e na Síria. Seis dias depois, a campanha de bombardeio começou. Autoridades israelenses teriam declarado que sua estratégia era de “desescalada através da escalada”.

O Líbano estima que os combates deslocaram 1,2 milhão de seus 6 milhões de residentes. Mais de 950 escolas públicas, armazéns e outras instalações agora servem como abrigos. Noventa por cento dos deslocados, dos quais quase a metade são crianças, não conseguem suprir suas necessidades básicas.

O pastor da aldeia nas montanhas, mencionado no início do artigo, obteve autorização do município, governado por muçulmanos, para fornecer ajuda, juntamente com vários outros grupos de ajuda humanitária que atuam em coordenação com um ministério local, e que é administrado por um ancião da igreja.

Um coordenador de assistência local, que é membro da comunidade muçulmana drusa heterodoxa, disse que “a igreja é sempre a primeira” a fornecer ajuda, enquanto alguns outros grupos “dizem que estão ajudando, mas tudo não passa de conversa”.

Com as salas de aula por todo o país lotadas de famílias em busca de refúgio, porém, ele lamenta que seus três filhos não tenham uma escola para frequentar.

O último conflito entre Israel e o Hezbollah, em 2006, fez com que 900.000 pessoas deixassem suas casas. Naquela época, igrejas e cidadãos de todas as seitas se uniram para ajudar, mas hoje os recursos são muito menores.

Muitos estão relutantes em alugar seus apartamentos para xiitas deslocados, com medo de que estes, que estão em busca de refúgio, não possam — ou não queiram — continuar a pagar. A hiperinflação e uma desvalorização monetária de 98% já fizeram com que muitos libaneses tivessem que se virar para conseguir o sustento diário. O impasse político manteve a nação sem um presidente por dois anos, enquanto o primeiro-ministro atua em caráter interino.

De quem é a culpa?

Muitas pessoas culpam o Hezbollah.

“Sou contra os xiitas na política, mas, do ponto de vista humano, não podemos nos recusar a ajudá-los”, disse o coordenador de assistência druso. “Sofremos com a Síria; sofremos com o Irã. Talvez estejamos esperando a ajuda dos Estados Unidos.”

Diplomatas americanos e franceses tentaram intermediar um cessar-fogo de três semanas no Líbano, e o ministro das Relações Exteriores libanês declarou que o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, havia concordado. Dias depois, um ataque aéreo israelense, que usou bombas destruidoras de bunkers, arrasou quatro prédios residenciais e matou Nasrallah em seus aposentos subterrâneos. Autoridades dos EUA negaram ter conhecimento da anuência de Nasrallah [sobre o cessar-fogo].

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu supostamente teria concordado com as negociações de cessar-fogo, mas depois voltou atrás. Israel declarou que sua guerra é contra o Hezbollah, não contra o Líbano. Netanyahu, dirigindo-se aos libaneses, fez referência à campanha contra o Hamas.

“Vocês têm a oportunidade de salvar o Líbano antes que ele caia no abismo de uma longa guerra, que levará à destruição e ao sofrimento, como tem acontecido em Gaza”, afirmou. “Libertem seu país do Hezbollah para que esta guerra possa acabar.”

O Líbano há muito tempo apoia oficialmente a implementação da resolução 1701 da ONU, adotada para encerrar a guerra de 2006. Ela pede o desarmamento de todas as milícias e a retirada do Hezbollah além do Rio Litani, cerca de 30 quilômetros ao norte da fronteira israelense. Mas, em 2008, o esforço do Líbano para desmantelar a rede de comunicação privada da milícia falhou, após demonstração de força armada do Hezbollah em Beirute.

Os Estados Unidos estariam agora supostamente pressionando os políticos libaneses para que elejam um presidente, que, segundo um acordo não escrito, mas em vigor a cerca de 80 anos, deve ser um cristão maronita. Membros do parlamento libanês, cujos assentos se dividem igualmente entre muçulmanos e cristãos, elegem o chefe de Estado.

Os cristãos, porém, estão divididos em dois partidos políticos principais e outros menores, alguns dos quais se aliam ao Hezbollah como entidade política, a fim de ganhar apoio do eleitorado xiita. Antes da escalada israelense, os principais políticos xiitas obstruíram reiteradamente a conclusão do processo de votação para o presidente cristão, insistindo em um candidato que fosse simpático à causa do Hezbollah.

Mas os líderes do dois principais partidos cristãos, conhecidos por suas ambições presidenciais, têm falhado em trabalhar de forma conjunta e consistente para representar sua comunidade.

“Eu culpo os líderes cristãos — eles trabalham por seus próprios interesses, não pelos interesses do nosso país”, disse aquele pastor da igreja na aldeia que fica nas montanhas. “Se você cede um espaço que é seu para os outros, não pode culpá-los quando eles o tomam.”

Em 2000, o Hezbollah conquistou amplo apoio social, até mesmo de muitos cristãos, ao obrigar Israel a encerrar sua ocupação de 18 anos no Sul do Líbano, originalmente destinada a impor uma zona-tampão contra incursões de militantes palestinos. Desde então, a milícia perdeu o apoio muçulmano sunita, ao entrar na guerra civil na Síria em favor de Bashar al-Assad, o que foi publicamente confirmado em 2013. Cristãos comuns se juntaram a muitos nesse desencanto com o Hezbollah, quando este se aliou a líderes sectários contra a revolução popular de 2019, que deu início aos últimos cinco anos de declínio econômico.

O apoio da milícia ao Hamas provocou uma onde de cartazes com os dizeres “Não queremos guerra” por toda Beirute.

Oferecendo o amor cristão

“Estamos com raiva. Sem fazer nenhuma consulta ao governo, o Hezbollah arrastou o Líbano para a guerra”, disse Joseph Kassab, presidente do Supremo Concílio da Comunidade Evangélica na Síria e no Líbano, que disse que nenhuma paz duradoura pode vir por meio da violência. “Muitos cristãos acham que Israel não se prende a quaisquer restrições na guerra, e a milícia errou em provocar seu inimigo.”

Os ventos da mudança estão soprando, no entanto, disse Jihad Haddad, pastor da True Vine Church em Zahle, uma cidade cristã no Vale de Bekaa, fazendo um trocadilho com um provérbio chinês: Alguns constroem muros para resistir ao vento; mas moinhos de vento poderiam ser mais úteis para o ministério. Como os cristãos não têm voz política no conflito atual, ele está direcionando seus esforços para apoiar os deslocados.

O centro de assistência na igreja já distribuía 2.000 cestas básicas por mês, antes da escalada atual, com muitos alimentos que eram cultivados nas terras da própria igreja. Para cuidar dos muitos que agora estão abrigados em escolas, a igreja adaptou as cestas para que forneçam alimentos que não precisam ser cozidos. Os deslocados também enfrentam escassez de cobertores, mas nada mais resta nos depósitos da igreja.

Haddad vê esperança no horizonte, mas não é fácil. O Líbano, disse ele, está preso entre o “martelo” de Israel e a “bigorna” do Hezbollah. Mísseis atingiram uma área a cerca de um quilômetro e meio de sua casa e, na outra direção, a cerca de um quilômetro e meio da igreja.

Percepções do que acontece em Gaza criam um medo pungente.

“Somos muito cautelosos em acolher famílias que não conhecemos”, disse Haddad. “Onde encontra militantes, Israel os bombardeia.”

O povo de Zahle, segundo ele, verifica cuidadosamente se há afiliação dos xiitas ao Hezbollah. A True Vine forneceu abrigo em apartamentos da igreja para 17 famílias ligadas à congregação, à medida que fiéis e outros buscam abrigo entre os cristãos que, conforme esperam, seja seguro. Mas Haddad também teme que, se a igreja ficar sobrecarregada por abrigar todos aqueles que buscam refúgio, ela não poderá fornecer serviços e ajuda a todos.

A ajuda vinda de igrejas de todas as denominações tem causado uma forte impressão.

“Se não houvesse cristãos no Líbano, já teríamos sido devorados”, afirmou Mohamed al-Hajj Hassan, um sheike xiita conhecido por sua oposição ao Hezbollah, em um videoclipe amplamente compartilhado de sua entrevista na televisão. “Foram eles que nos protegeram e ajudaram aqueles que estão vagando pelas ruas. Foram eles que acolheram nossas mulheres e crianças.”

Os cristãos poderiam ter ficado do lado de Israel, segundo ele. Os xiitas devem agora “reexaminar nossa consciência e pensar se não podemos ter prejudicado nossos parceiros dentro de nosso próprio país.”

Volunteers supported by Thimar prepare meals for the displaced
Voluntários apoiados por Thimar preparam refeições para os deslocados.

Tal apreço e reconhecimento, no entanto, não tornam mais fácil para os evangélicos abrirem as portas de suas instituições, disse Nabil Costa, chefe da Associação de Escolas Evangélicas no Líbano. Suas 35 escolas atendem 20.000 alunos, grupo que é composto por uma mescla de cristãos e muçulmanos. O governo do Líbano obrigou uma escola adventista do sétimo dia, em um bairro xiita no centro de Beirute, a fornecer abrigo para os deslocados.

Costa disse que os evangélicos estarão dispostos a abrir suas escolas, assim que o governo decidir que todas as instalações escolares privadas são necessárias para ajudar. Isso pode incluir a discussão de como cooperar com o ministério da educação para fornecer instrução suplementar para crianças de escolas públicas que foram forçadas a deixar suas salas de aula.

A guerra deslocou 40% dos 1,25 milhão de alunos do Líbano.

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Costa também dirige a Thimar, uma organização batista local de serviço social que supervisiona a Escola Batista de Beirute (BBS), e que negociou com o governo para transformar seu campus em um centro de distribuição para os deslocados. Localizada a cerca de cinco quilômetros ao norte da área densamente povoada de Dahiyeh, em Beirute, onde Nasrallah foi morto, a vizinhança da escola não está atualmente ameaçada por ataques aéreos israelenses. Mas, em meio a ecos dos ferozes bombardeios regulares, a BBS auxilia sete instituições públicas e privadas próximas que hospedam os deslocados, fornecendo 700 refeições diárias. Uma ajuda adicional também é fornecida às igrejas nas montanhas.

“Não temos o direito de rejeitar refugiados”, disse Costa. Mas ele alertou o governo: “Não tirem vantagem do nosso amor cristão”.

É hora de abrirmos nossos corações

Alguns, mesmo entre os próprios deslocados, estão oferecendo amor espontaneamente.

Na segunda-feira, 23 de setembro, Laya Yamout acordou às 6h30, ao som dos ataques aéreos israelenses. Enfermeira registrada que trabalha na Horizons International, ela também é voluntária na Tyre Church, fundada por seu falecido pai, há 14 anos, como uma igreja na cidade xiita. Ela já havia restringido seu deslocamento local, pois ataques de drones de precisão miravam militantes do Hezbollah que dirigiam motocicletas. Melhor não ser pega perto de um deles, disse Yamout, caso eles errem o alvo.

Mas o ataque desse dia parecia diferente. Quatro horas depois, Yamout estava visitando um paciente idoso com demência, quando outra explosão aconteceu nas proximidades. Ela correu para casa, fez as malas e, com seu cachorro a seu lado, dirigiu cerca de 89 quilômetros. As 50 pessoas em sua congregação — quase todas crentes em Jesus de origem muçulmana — acabaram encontrando uma rota de fuga para locais dispersos, abrigando-se em escolas, igrejas ou com familiares. Uma delas voltou para o Iraque.

Yamout ficou na casa de uma amiga, em um bairro cristão da capital.

“Sinceramente, é mais seguro”, ela disse. “Não quero ter que fugir de novo.”

Na manhã seguinte, Yamout se ofereceu como voluntária em uma clínica ligada a uma grande igreja curda em Beirute. Na quarta-feira, ela voltou para Tiro com outras duas pessoas, esperando voluntariar-se na Cruz Vermelha.

Depois de levar sete horas para chegar a Beirute dois dias antes, levou pouco mais de uma hora para voltar para casa, em meio a um cenário “apocalíptico” de carros abandonados na beira da estrada e meia dúzia de prédios em chamas à direita e à esquerda.

Ela quase deu meia-volta logo que chegou. Tiro parecia uma cidade-fantasma, sem água, sem eletricidade e sem sinal de celular. As ruas estavam praticamente vazias, exceto por militantes do Hezbollah, mas ela não ficou com medo daquele cenário.

Seu pai fora preso duas vezes por evangelizar, e o imóvel da igreja sofreu vandalismos repetidamente. Mas, ao longo dos anos, disse Yamout, a Tyre Church conquistou o respeito relutante da comunidade, e a rua em que a igreja fica se tornou popularmente conhecida como “Rua da igreja”.

No entanto, não era seguro permanecer ali. Dois fiéis dormiram na praia, com medo de que seus apartamentos fossem atingidos [por bombardeios]. Yamout encheu uma van de 15 passageiros para retornar à capital com famílias da igreja que não tinham conseguido encontrar transporte dias antes para algum local seguro.

Na quinta-feira, ela estava de volta atendendo em uma clínica, em uma cidade cristã que fica a aproximadamente 80,4 quilômetros ao norte de Beirute, e que recebeu muitas pessoas deslocadas do Vale de Bekaa. Em média, ela atendia 150 pessoas por dia.

“Agora é hora de abrirmos nossos corações”, disse Yamout. “Podemos nunca mais ter essa chance.”

O Líbano tem conteúdo cristão transmitido por ondas do rádio e igrejas por todo o país, mas há muitas aldeias libanesas de todas as seitas que se isolam de outras comunidades. Mas xiitas do Sul, que normalmente conhecem poucos cristãos, agora se encontram abrigados em áreas cristãs. Eles estão profundamente traumatizados, disse Yamout, mas seus rostos se iluminam com um sorriso, quando ela lhes conta que também é de Tiro e dedica um tempo para ouvir suas histórias.

Em cada escola, Yamout trabalha com a igreja local para acompanhar qualquer um que mostre abertura ao evangelho. Ela defende cautela ao oferecer hospitalidade, pois alguns membros da milícia provavelmente se infiltrarão nesses locais. Mas enquanto a maioria deles agora está lutando contra a invasão terrestre de Israel na fronteira, os crentes podem mostrar amor às esposas e aos filhos dos militantes. Ao lado deles estão milhares de xiitas libaneses, sem qualquer relação com o Hezbollah, que estão conhecendo cristãos pela primeira vez.

Enquanto isso, naquela igreja que fica na aldeia nas montanhas — onde Mustafa, Hussein e outros “ainda não” cristãos estão se abrigando —, eles e suas famílias comem em volta de longas mesas de plástico, montadas no estacionamento da igreja. Mustafa espera voltar para Tiro, mas não para sua cidade natal na Síria — é muito perigoso lá. Apesar das incertezas de uma residência temporária por tempo indefinido, ele está em paz no Líbano.

“Não sabemos o que fazer a seguir”, ele disse. “Só Deus sabe, e nós confiamos nele.”

News

Mais cristãos estão assistindo à pornografia. Menos cristãos acham que pornografia é pecado.

A igreja precisa de iniciativas para alcançar os fiéis que dizem assistir à pornografia online [e não veem problema nisso].

Christianity Today October 19, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty

O consumo de pornografia continuou a crescer ao longo da última década, especialmente entre os jovens que são expostos a imagens explícitas mais cedo do que nunca. No entanto, a maioria dos americanos hoje não vê a pornografia como algo nocivo para a sociedade, e muitos cristãos dizem que não estão preocupados com seus efeitos.

É o que diz um novo relatório divulgado recentemente por Barna e Pure Desire, um ministério para pessoas com vícios em pornografia.

Pesquisadores descobriram que 61% dos americanos dizem que assistem à pornografia pelo menos ocasionalmente, número acima dos 55% da pesquisa de 2015 do Barna sobre o mesmo tópico. Além disso, mais mulheres estão assistindo à pornografia do que no passado (44% atualmente contra 39% nove anos atrás).

Na igreja, os pastores de hoje estão mais propensos a falar de um histórico pessoal de consumo de pornografia (67% atualmente contra 57% nove anos atrás). Quase 1 em cada 5 pastores afirma lutar contra a pornografia. E entre cristãos que participaram de cultos no último mês, mais da metade diz que assiste à pornografia pelo menos ocasionalmente.

“O consumo de pornografia não está mais confinado a uma demografia ou a uma subcultura específicas”, disse o relatório. “Ele atinge todos os segmentos da sociedade (de jovens a idosos) sem levar em conta gênero, status social ou crenças religiosas.”

Os novos dados se alinham com outras pesquisas que mostram aumentos drásticos na quantidade de pornografia online criada e consumida nos últimos anos.

Um estudo recente sugeriu que, a cada minuto, 2,5 milhões de pessoas assistem à pornografia online, cujo consumo aumentou em 91% desde 2000. A maior disponibilidade, a facilidade de acesso à pornografia na internet e até mesmo o isolamento social exacerbado pelos lockdowns da pandemia da COVID-19 são vistos como os principais fatores que contribuíram para o aumento.

Alguns esforços de instituições confessionais para conter o crescimento da indústria pornográfica online têm defendido restrições legais, inclusive pressionando para que sejam aprovadas leis que exijam verificação de idade e regulamentações mais rígidas para aqueles que criam os dispositivos tecnológicos. Outros ministérios têm se concentrado em ajudar indivíduos a superar o vício em pornografia.

Líderes do Barna e da Pure Desire disseram que esperam que sua pesquisa ressalte a difusão da pornografia e incentive mais pastores e pessoas envolvidas nos ministérios da igreja a priorizarem o apoio àqueles que estão lutando [contra esse mal]. Mas as estatísticas podem revelar um obstáculo ainda maior: muitas pessoas, entre elas muitos cristãos, não veem nenhum problema em consumir esse tipo de conteúdo.

“Mais de três em cada cinco cristãos (62%) dizem ao Barna que concordam que uma pessoa possa assistir à pornografia regularmente e viver uma vida sexualmente saudável”, diz o relatório. Isso fica apenas quatro pontos percentuais abaixo da parcela de todos os adultos dos EUA que não consideram prejudicial assistir à pornografia (66%).

Além disso, 49% dos cristãos praticantes que admitem assistir à pornografia dizem que estão “confortáveis ​​com a quantidade de pornografia” que consomem.

“Simplesmente essa não é uma questão preocupante para eles… não há nenhum senso de urgência [sobre isso]”, disse Sean McDowell, professor da Universidade Biola e apresentador do podcast Think Biblically. “Acho que este é um exemplo de como as pessoas estão se inspirando muito mais na cultura e nas ideias que nos cercam do que nas Escrituras e em sua visão de mundo cristã.”

No entanto, no estudo, os entrevistados que disseram usar pornografia com certa regularidade foram muito mais propensos a relatar que frequentemente se sentiam ansiosos, críticos de si mesmos, facilmente sobrecarregados e deprimidos.

“Há, em geral, uma correlação direta entre quanto mais pornografia você assiste menos saudável você é mental, emocional e relacionalmente”, disse Nick Stumbo, diretor-executivo da Pure Desire. “Não podemos aceitar sem nos preocupar um comportamento que está minando nossa saúde mental, emocional e relacional.”

Uma pesquisa recente do Institute for Family Studies/YouGov [Instituto para Estudos sobre a Família/YouGov] relatou descobertas semelhantes que correlacionam o consumo de pornografia com solidão e depressão. Seus pesquisadores sinalizaram que o vício generalizado em pornografia é um problema de saúde pública, observando como os sites pornográficos “usam técnicas semelhantes às plataformas de mídia social, como rolagem infinita, reprodução automática e conteúdo personalizado, para manter os usuários engajados” e como os usuários frequentes buscam vídeos mais extremos à medida que ficam dessensibilizados.

O relatório do Barna inclui uma série de perguntas focadas em “trauma de traição” ou o impacto que o consumo de pornografia tem sobre os cônjuges ou outras pessoas importantes na vida do usuário.

As diferenças entre homens e mulheres são gritantes. As mulheres tinham pelo menos o dobro da probabilidade de dizer que o consumo de pornografia por seu parceiro prejudicou o relacionamento deles de alguma forma. A principal preocupação de 44%  das mulheres era que seu parceiro não se sentisse mais atraído por elas. No entanto, a mesma parcela de homens — 44% — relatou não se preocupar com o consumo de pornografia por suas parceiras.

Depois, há ainda o impacto que a pornografia tem sobre os jovens. O relatório mostrou que 39% dos adultos da Geração Z assistem à pornografia diariamente ou semanalmente. Além disso, mais da metade dos jovens da geração Y e dos adultos da Geração Z (uma faixa que vai dos 18 aos 37 anos) dizem já terem enviado nudes [fotografias e vídeos sem roupa] de si mesmos para outra pessoa, e três quartos dizem ter recebido esse tipo de conteúdo, descobriu o Barna Research Group.

Outros estudos recentes indicaram que as crianças estão vendo pornografia muito mais cedo do que as crianças das gerações anteriores — a idade média para a primeira exposição das crianças à pornografia hoje em dia é 12 anos.

Stumbo disse que a Pure Desire está desenvolvendo programas de treinamento para pais que estão procurando maneiras de falar sobre pornografia com seus filhos. Mas mesmo essa estratégia enfrenta obstáculos: o estudo do Barna perguntou aos entrevistados quem ou o que teve o maior impacto na visão que eles têm sobre sexo e comportamento sexual. As respostas “Minha mãe” e “meu pai” ficaram abaixo de “meus amigos”, “televisão ou filmes”, “pesquisa na internet” e da própria pornografia.

“Se você realmente quer ajudar seus adolescentes, uma das melhores coisas que pode fazer é abordar sua própria história e sua própria fragilidade em sua sexualidade”, ele disse. “Quanto mais saudável você ficar nesse aspecto da vida, mais poderá ajudar os adolescentes a ficarem também.”

McDowell disse que é importante que as igrejas ofereçam recursos para pessoas que lutam contra a pornografia, mesmo que estas afirmem não ver problema nisso. A pesquisa descobriu que 83% dos adultos com histórico de consumo de pornografia não têm ninguém em suas vidas que os ajudem a evitá-la.

“Eu suspeito que aqueles que são cristãos e não veem problema com a questão da pornografia acharam os argumentos contra ela pouco convincentes”, ele disse. “Muitas vezes há mágoa, vidas quebradas, há ansiedade, há… estressores subjacentes e má teologia impedindo as pessoas de conseguir a ajuda de que precisam.”

Ele recomenda que, além de ensinar sobre sexualidade saudável no púlpito, cada igreja deve ter um grupo de apoio para pessoas que lutam contra qualquer tipo de vício, seja de natureza sexual ou não.

Juli Slattery, psicóloga e fundadora da Authentic Intimacy [Intimidade Autêntica], concorda que oferecer uma comunidade segura para pessoas que lutam contra a pornografia é fundamental. Ela contribuiu com um dos especialistas que opinaram sobre as descobertas do relatório.

“Você pode dizer às pessoas ‘Deus diz para não vermos pornografia’”, escreveu Slattery. “Mas se você não fornecer as ferramentas e uma comunidade para que elas tratem das questões mais profundas, muitas pessoas vão se sentir realmente de mãos atadas, incapazes de lutar. [Muitos cristãos] não entendem o que está sendo perdido quando a sexualidade é afetada [por práticas imorais], porque eles veem a sexualidade mais como uma ética comportamental, e não como um campo de batalha profundamente espiritual.”

Stumbo, da Pure Desire, disse que, nos últimos anos, notou um interesse cada vez menor das igrejas em acolher ministérios de recuperação do vício em pornografia, após um boom de conscientização e interesse que ocorreu no início dos anos 2000.

A ascensão da internet levou à fundação de vários ministérios de recuperação do vício em pornografia, entre eles o Covenant Eyes [Olhos da Aliança] — que oferece um software para ajudar as pessoas a evitar a pornografia online — e o XXXchurch. A questão continuou a atrair atenção nos anos que se seguiram, especialmente após o lançamento dos smartphones.

A pesquisa anterior do Barna sobre o consumo de pornografia, “The Porn Phenomenon” [O fenômeno da pornografia], foi publicada em 2016. Na época, “parecia ser um período em que essa bolha estourou e as igrejas estavam dizendo: ‘temos que fazer algo em relação à pornografia’”, disse Stumbo. Dois anos antes, a Pure Desire tinha lançado sua popular Conquer Series [Série Conquista], um material em vídeo que oferece um passo a passo para a recuperação do vício em pornografia, que já foi visto por mais de 2 milhões de homens em mais de 100 países.

“A Pure Desire cresceu muito naqueles dois anos”, disse Stumbo. Na mesma época, em 2016, a Covenant Eyes ampliou sua missão e começou a fazer parcerias com outros ministérios, para aumentar a conscientização sobre a pornografia na igreja. Um ano antes, os cristãos fundaram o Protect Young Eyes [Proteja os Olhos dos Jovens], um ministério para ajudar escolas e famílias a criarem políticas para uso de tecnologia que fossem seguras para crianças.

Stumbo disse que o foco na questão [da pornografia] esmoreceu um pouco desde então: “Quando olhamos para trás… acho que a igreja meio que deixou essa luta de lado”.

A apatia que se percebe por parte da igreja em relação à pornografia pode inadvertidamente reforçar outro mito comum: a pesquisa do Barna Group mostrou que 66% dos adultos acreditam que “com força de vontade suficiente, uma pessoa pode superar o vício em pornografia por conta própria”.

Como qualquer vício, no entanto, o primeiro passo para a recuperação é a pessoa admitir que tem um problema. Se quase dois terços dos cristãos acreditam que é possível assistir à pornografia regularmente e ainda assim levar uma vida saudável, esse primeiro passo pode ser o mais difícil.

A normalização moral do consumo de pornografia pode ter uma pequena vantagem: o CEO do Barna Group, David Kinnaman, disse que os entrevistados da pesquisa estão muito mais dispostos a serem abertos e honestos sobre seus hábitos pornográficos do que costumavam ser — uma tendência que ajuda os pesquisadores da área de ciências sociais a captarem a extensão do problema. Ele comparou essa abertura à crescente abertura dos millennials e da geração Z sobre suas lutas com a saúde mental.

“Esse tipo de coisa costumava ser mais difícil de perguntar”, disse Kinnaman. “É realmente notável como as pessoas são honestas [sobre esse assunto]… especialmente online.”

Kinnaman disse que espera que o estudo convença os pastores a tratar das lutas de suas congregações com a pornografia em todas as áreas do discipulado. Isso significa ensinar do púlpito uma visão bíblica da integridade sexual e promover uma verdadeira comunidade entre pequenos grupos, onde as pessoas possam encontrar uma alternativa aos “roteiros internos” que lhes permitem racionalizar seus pecados.

Mas sua preocupação é que o problema não vai embora tão cedo. Segundo Kinnaman, toda pesquisa leva os pesquisadores a começarem a fazer um brainstorming sobre as perguntas que farão da próxima vez, e esta pesquisa não é uma exceção.

“Se achamos que estamos vivendo na era da pornografia hoje”, disse ele, “espere só até a inteligência artificial [se estabelecer].”

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Culture

A arte não precisa ser cristã para ser “boa”

Os cristãos tendem a julgar a cultura pop e como ela afeta a nossa fé, mas o que realmente importa é nossa própria conformidade com Cristo.

An old TV with a fuzzy screen and an antenna made from a fork and knife.
Christianity Today October 17, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Getty

Dos programas de televisão indicados ao Emmy deste ano, meu marido e eu assistimos a todos os episódios de The Crown, um pouco de Abbott Elementary e alguns episódios de Only Murders in the Building. Quando tínhamos uma assinatura do Hulu — plataforma de streaming —, assistimos à primeira temporada de The Bear e várias temporadas de What We Do in the Shadows. (Desde então, cancelamos nossa assinatura, então, infelizmente, não assistimos à Reservation Dogs).

Pergunte-me o que gostei ou não gostei em qualquer uma dessas séries, e eu posso lhe dizer: os diálogos, os cenários, os figurinos, o ritmo. Mas você pode não concordar com meus vereditos. Acho extraordinariamente engraçado What We Do in the Shadows, uma série sobre vampiros que vivem em Staten Island — uma região de Nova York. E engraçado a ponto de rir alto. Mas e Ted Lasso, que é uma série sobre um time de futebol? Três anos atrás, a série conquistou o Emmy. Tenho amigos que adoram essa série. Mas eu assisti, e me desculpe … Ted Lasso simplesmente não é para mim.

É uma questão de gosto. Como diz o ditado, gosto não se discute — mas os cristãos certamente estão inclinados a tentar discutir. Somos instruídos a voltar nossos pensamentos para “tudo o que for verdadeiro, tudo o que for digno de respeito, tudo o que for justo, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, em tudo o que houver alguma virtude ou algo de louvor” (Filipenses 4.8). Sendo assim, quais pinturas, obras literárias, séries, novelas e filmes se enquadram [nesses critérios]?

Acho que essa é a pergunta errada a se fazer. Como editora de cultura da CT, frequentemente encontro escritores tentando discutir seus álbuns pop favoritos ou filmes de sucesso a partir dessa perspectiva. “Não se preocupe”, eles argumentam, “isso é conteúdo cristão!Ou ao menos contém temas cristãos. O filme menciona jardins, água e vinho. A música fala de amor e esperança de maneiras que repercutem com as Escrituras. Os cristãos podem gostar desse programa de TV e assisti-lo, porque ele não apenas é de boa qualidade, mas também é verdadeiro, digno de respeito, justo, puro, amável e de boa fama.

Esse tipo de análise geralmente não leva a nada. Tende a parecer algo forçado — tolo, na melhor das hipóteses, ou desonesto, na pior delas. E, no entanto, entendo seu apelo. Não queremos que as obras de arte que admiramos sejam contrárias às reivindicações da nossa fé. Queremos seguir a prescrição de Paulo de “pensar nas coisas do alto”, de modo que procuramos encontrar esse caráter “elevado” em seriados e músicas pop (Colossenses 3.2). Temos medo de voltar a um fundamentalismo reflexivo que vê a música, a literatura ou o cinema “mundanos” como algo inerentemente perigoso.

Mas a verdade é que o melhor da música, o melhor da literatura e o melhor do cinema fazem referência à nossa fé, de certa forma. Essas obras contam histórias, e o cristianismo conta a grande história que está por trás de todas elas. Na medida em que as obras de arte contam a verdade sobre a natureza humana e o mundo em que vivemos, seremos capazes de encontrar os fios que tecem a trama dessa conexão — ainda que essa conexão nos diga algo extremamente simples como, por exemplo, “o pecado é real”.

O evangelho de Jesus dá sentido ao sacrifício e tipifica o amor, e distingue a vida da morte. Agora, assim como no princípio, temos o Verbo, a Palavra, sustentando a comédia e a tragédia, o absurdo e a futilidade, o sofrimento e a alegria. Nesse sentido, toda obra de arte é aquele altar ateniense de Atos 17, dedicado a um Deus com bastante frequência desconhecido.

Contudo, a possibilidade de um programa de televisão nos fazer pensar sobre o que é nobre e puro muitas vezes tem menos a ver com o programa em si e mais a ver conosco como espectadores. Para Paulo, o altar ao Deus desconhecido foi a base para um sermão que apontava para o Deus que ele, Paulo, conheceu em Cristo Jesus. No entanto, para milhares de atenienses que diariamente viam aquela obra, essa conexão era impensável.

Assim, reformulo a minha pergunta anterior da seguinte maneira: quais pinturas, obras literárias, séries, novelas e filmes se enquadram [nesses critérios de Filipenses 4.8] em relação a mim?

Quais obras de arte podem inspirar cada um de nós — com nossas respectivas sensibilidades estéticas únicas, com as preferências pessoais que Deus nos deu por determinadas piadas, com nossos pecados recorrentes — a refletir sobre o que é admirável e justo?

Colocar a questão dessa forma não desconsidera as diretrizes de Filipenses 4.8. Alguns filmes, músicas ou textos — como aqueles que contêm violência totalmente gratuita ou sexualidade pornográfica — nunca ajudarão nenhum de nós a meditar sobre as coisas do alto. A arte não é como carne sacrificada a ídolos (1Coríntios 8.4-8); não é tudo neutro para o cristão. Nem tudo deve estar disponível à mesa.

No entanto, essa abordagem abre espaço para a personalidade, a flexibilidade e, sim, para o gosto [de cada um]. Eu me deleitei com a série premiada Breaking Bad e com Better Call Saul, a pré-sequência derivada de Breaking Bad. Essas séries são violentas, mas não me levaram à tentação da fúria. Após assistir a cada episódio, passei dias meditando sobre boas intenções e motivos subjacentes e o quanto somos suscetíveis a explicações inconsistentes para o nosso próprio comportamento.

Mas Baby Reindeer [Bebê Rena] eu não tive estômago para assistir. Seu retrato da fragilidade humana se alinhava com meu entendimento da realidade corrompida pelo pecado. Mas as representações de violência sexual da série me deixaram enjoada; elas ficavam na minha cabeça muito tempo depois de eu ter desligado a TV. O programa me parecia sombrio; fazia com que eu me sentisse sombria. Decidi não terminar de assistir à série.

O contrário pode ter sido verdade em relação a outro crente: essa pessoa pode ter gostado de Baby Reindeer, mas não de Breaking Bad. Nesse sentido, a arte é como aquela carne sacrificada a ídolos: o que é uma pedra de tropeço para um de nós não será para o outro (1Coríntios 8.9-13).

Isso torna a tarefa do crítico cristão ao mesmo tempo mais difícil e mais interessante. Nosso trabalho não é justificar nosso gosto em termos de cultura, mas sim explicar o que vemos, a partir de um ponto de vista voltado para Cristo. Não devemos dizer: “esta arte tem ares cristãos”. Devemos afirmar: “aqui está o que eu percebi, como cristão, ao apreciar esta obra”.

Não precisamos tentar forçar os artefatos culturais dentro de uma forma composta por um conjunto de parâmetros que eles nunca foram feitos para atender, ajustando a classificação de modo que os nossos favoritos sejam aprovados. Em vez disso, o que devemos fazer é nos achegar a esses artefatos como pessoas transformadas, com mentes renovadas e vermos o que eles têm a nos oferecer.

Não é dessa forma que a maioria de nós pensa sobre gosto hoje em dia, sejamos nós cristãos ou não, mas isso remete a uma tradição mais antiga. Houve um tempo em que os filósofos pensavam no gosto não em termos de “qual banda você gosta, quais livros você lê, quais roupas você veste”, explicou o escritor Kyle Chayka em uma entrevista recente com o crítico Ezra Klein. Em vez disso, eles entendiam o gosto “como uma experiência humana mais fundamental, como uma capacidade moral, uma maneira de julgar o que está ao seu redor e avaliar o que é bom e… quase torná-lo parte de você”.

Desenvolver o gosto dessa forma exigirá uma confiança, nascida da santificação e informada pelo Espírito, sobre o que é bom e digno de nossa atenção. Também exigirá humildade sobre a nossa própria capacidade de enxergar o que é bom, sobre nossos discursos autolisonjeiros a respeito do que gostamos e não gostamos, e sobre o fato de que nossas mentes sempre podem mudar, talvez em razão da visão de outro crente.

É assim que eu, como crítica cultural cristã, espero que meu gosto pessoal atue: como um guia que aponta para o que é amável, virtuoso e louvável. Como algo que auxilia a minha fé. Como um meio de encontrar Deus em uma pincelada, em um diálogo que me faz rir, em uma verdade bem escrita.

Kate Lucky é editora sênior de cultura e engajamento da Christianity Today.

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