Imagine Jesus no monte: por que sua face resplandesceu?

O resplendor de Cristo na Transfiguração significa muito mais do que pensamos.

A Transfiguração, obra de Alexander Ivanov.

A Transfiguração, obra de Alexander Ivanov.

Christianity Today March 13, 2024
WikiMedia Commons / Edições feitas por CT

Jesus Cristo é, sem dúvida, o homem mais famoso que já existiu. Sua imagem está em toda parte. Mas qual era, de fato, a aparência do homem-Deus de Nazaré?

Muitas vezes imaginamos uma “aparência” específica, com base em representações artísticas que vimos. Muitos desses retratos, porém, são influenciados pela cultura do artista. E, embora possamos pressupor certos traços visuais, tomando como base a época e a cultura em que Jesus viveu, há poucas evidências explícitas para essas suposições. De fato, a Bíblia nos diz muito pouco ou quase nada sobre a aparência de Jesus.

Além da observação feita por Isaías de que Jesus “não tinha nenhuma beleza ou majestade” (Isaías 53.2), as Escrituras nunca nos dizem qual era a estatura de Jesus, que tipo de cabelo ele tinha,que tipo de corpo, qual era a cor dos seus olhos, que tipo de roupa ele usava ou até mesmo qual era a cor de sua pele.

É um tanto inesperado que a Bíblia não comente sobre a aparência física de Jesus, já que, naquela época, a aparência física de uma pessoa geralmente correspondia a seus traços de caráter. Pode ser que os autores da Antiguidade fizessem observações sobre aspectos da aparência de seu personagem principal com o intuito de destacar ou antecipar algo sobre este.

Por exemplo, o Antigo Testamento nos diz que o rei Saul era “jovem de boa aparência, sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros” (1Samuel 9.2) e que o rei Davi era “ruivo, de belos olhos e boa aparência” (1Samuel 16.12). Cada uma dessas descrições sinalizava seu apelo heroico e real para o povo de Israel.

O único lugar em que a narrativa do Novo Testamento volta seu foco para a aparência de Jesus é na Transfiguração (veja os relatos paralelos em Mateus 17.1-8; Marcos 9.2-8; Lucas 9:28-36; 2Pedro 1.16-20). E embora haja muita coisa que poderíamos dizer sobre o significado último da Transfiguração, vamos analisá-la a partir de uma perspectiva mais filosófica — e especialmente no que diz respeito à sua ênfase singular no rosto e nas vestes de Jesus.

No relato de Mateus, o autor observa que o rosto de Jesus “brilhou” (17.2), enquanto Lucas diz que a aparência de seu rosto “se transformou” (9.29). Antes disso, apenas uns poucos textos mencionam o rosto de Jesus. Sabemos que Jesus volta a sua face para Jerusalém (Lucas 9.51-53), que ele prostrou-se “com o rosto em terra” no Getsêmani (Mateus 26.39) e que as pessoas cuspiram em seu rosto e o vendaram, enquanto ele estava sendo julgado (Mateus 26.67; Marcos 14.65). Há também textos que falam sobre Jesus não demonstrar “parcialidade”, o que é uma referência mais literal a ele revelar sua face para as pessoas (Mateus 22.16; Marcos 12.14; Lucas 20.21).

Embora os textos sobre a Transfiguração não descrevam a aparência do rosto de Jesus, a ênfase que dão a isso é importante. Tanto na Antiguidade quanto hoje, nosso rosto é uma das partes do nosso corpo de teor mais relacional — ver o rosto de alguém geralmente envolve um encontro pessoal. Também é visto como um aspecto íntimo de Deus, quando se trata de suas singulares aparições a seres humanos nas Escrituras.

O Antigo Testamento descreve momentos em que Deus interage com certas pessoas “face a face”. A primeira vez que vemos essa expressão é depois que Jacó luta com Deus, quando o narrador diz que Jacó deu ao lugar o nome de Peniel, a palavra hebraica para a “face de Deus”. “Vi a Deus face a face e, todavia, minha vida foi poupada” (Gênesis 32.30), diz Jacó. Deus também revela sua face e fala com Moisés “face a face, como quem fala com seu amigo” (Êxodo 33.11) — o que foi uma honra rara e significativa.

A expressão “face a face” não deve ser entendida literalmente, uma vez que o pedido de Moisés para ver a face de Deus foi negado (Êxodo 33.18-20); mas é uma expressão idiomática para o encontro com Deus que comunica uma proximidade relacional. De maneira semelhante, a ênfase da Transfiguração na face de Jesus implica que se trata de um encontro divino. E, embora não saibamos exatamente como era o rosto de Jesus, acabamos aprendendo que isso não é a coisa mais importante a saber sobre Jesus.

Outra característica única dos relatos da Transfiguração é a menção às vestes de Jesus. Mateus afirma que elas “se tornaram brancas como a luz” (17.2) e Marcos afirma que elas se tornaram “brancas, de um branco resplandecente, como nenhum lavandeiro no mundo seria capaz de branqueá-las” (Marcos 9.3). Da mesma forma, Lucas diz que suas roupas ficaram “alvas e resplandecentes como o brilho de um relâmpago” (Lucas 9.29).

Nossas roupas são feitas para se ajustarem e colarem ao nosso corpo e, portanto, são, de certa forma, uma extensão de nossa presença pessoal. Nossas roupas também nos revelam e nos escondem — elas revelam algo sobre a nossa figura, mas também escondem outros aspectos. E, em última análise, as roupas são coisas criadas e, portanto, representativas da criação. A humanidade a princípio tentou se vestir com folhas de figueira (Gênesis 3.7), mas Deus, que era seu verdadeiro alfaiate, fez-lhes “roupas de pele” (Gênesis 3.21).

Os escritores dos Evangelhos não nos contam nenhum detalhe específico sobre as roupas transfiguradas de Jesus, a não ser o fato de que elas brilhavam. Mas esse único detalhe diz muito — sobre Jesus e, em última análise, sobre nós. O fato de que Jesus estava usando roupas em seu encontro com o Pai e que elas, assim como o seu rosto, brilhavam, é uma declaração poderosa: Tudo o que se une a Cristo, até mesmo suas roupas tão comuns, é transformado por ele. Quem quer e o que quer que Jesus toque acabará brilhando com luz resplandecente. Aqueles de nós que estão unidos a Cristo um dia serão glorificados como ele foi (1Coríntios 15.40-44).

As roupas de Jesus o cobrem e o revelam. Elas brilham tão intensamente que não podemos vê-las em detalhes; mas elas também nos dão uma prévia — não apenas da glória dele, mas também da nossa glória futura e da glória do reino vindouro. O livro de Apocalipse nos diz que aqueles que perseverarem até o fim também estarão vestidos de branco (Apocalipse 3.5). Deus convida seu povo a receber dele vestes brancas, e os que estão no céu são descritos como alguém que está vestido de branco (4.4; 7.9-14).

Em outras palavras, nos relatos da Transfiguração, a ênfase nas roupas funciona como uma prévia da transformação final do povo de Deus e de seu lar. E embora não saibamos nenhum outro detalhe tangível sobre o tipo de roupa que Jesus usava, os autores dos Evangelhos pareciam estar escrevendo com uma realidade mais importante em mente.

A Transfiguração é a única passagem nas Escrituras que inclui uma descrição física de Jesus — e, mesmo assim, sua aparência é, em grande parte, obscurecida por um brilho ofuscante. No entanto, o resplendor dessa cena é intencional. Do início ao fim, as Escrituras afirmam que os seres humanos não podem ver a Deus. Assim como Deus disse a Moisés que nenhum homem pode ver a sua face e viver (Êxodo 33.20), somos informados de que “ninguém jamais viu a Deus” (1João 4.12) e que Deus é “invisível” (1Timóteo 1.17; Hebreus 11.27).

Paulo esclarece ainda que Deus “habita em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver” (1Timóteo 6.16). E assim, a luz descrita nos relatos da Transfiguração tem duas funções ao mesmo tempo — é ofuscante e reveladora. É ofuscante, porque ninguém pode ver a Deus e viver. No entanto, ao mesmo tempo, ela revela que Jesus é o mediador entre Deus e a humanidade, e que é somente nele e por meio dele que podemos ver a verdadeira glória de Deus (João 1.14, 18).

Talvez seja por isso que não temos uma descrição mais detalhada da aparência física de Jesus. Para outras figuras do mundo antigo, essa descrição era apropriada. Mas, no caso de Jesus, que é “a imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15), é mais adequado que os autores bíblicos o retratem em uma luz resplandecente. No entanto, também é apropriado que eles destaquem seu rosto e suas roupas como os principais pontos focais de luz, pois Jesus também é totalmente homem.

Em última análise, os relatos da Transfiguração simplesmente nos oferecem outra maneira de afirmar o que sempre dissemos sobre Jesus: que ele é verdadeiramente Deus e é verdadeiramente homem, possuindo duas naturezas em uma só pessoa. Isso nos lembra que devemos respeitar tanto a transcendência quanto a imanência de Jesus. Ele está perto de nós e longe de nós — ele é semelhante a nós e diferente de nós. E, um dia, aqueles que nele confiam se tornarão exatamente como ele, pois, finalmente, o veremos como ele realmente é (1João 3.2).

Patrick Schreiner leciona Novo Testamento no Midwestern Baptist Theological Seminary, em Kansas City, Missouri. Ele é autor de vários livros, entre eles The Transfiguration of Christ [A Transfiguração de Cristo].

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Não existe uma fórmula única para educar crianças cristãs

Deus será fiel em cuidar de nossos filhos. Podemos confiar nele, onde quer que eles estudem.

Christianity Today March 12, 2024
Illustration by Christianity Today / Source Images: Getty

Nunca tive a intenção de educar nossos filhos em casa. Quando começamos, não foi por motivações religiosas. Bem, talvez tenha sido um pouco. Vivíamos em uma pequena cidade, localizada na zona rural, e minha filha, que então cursava a educação infantil, precisava viajar de ônibus por uma hora até a escola. Isso a fazia ficar fora de casa das 7h às 16h, cinco dias por semana. A escola era boa e a professora, ótima, mas, quando chegava em casa, minha filha estava tão cansada que mal sobrava tempo para o discipulado em família que eu havia idealizado.

Então, tomamos a decisão de tentar a educação domiciliar — só com nossa filha mais velha e somente durante um ano. No entanto, quando nos preparávamos para matricular nosso segundo filho na educação infantil, surgiram alguns sinais de alerta em relação à sua saúde e a necessidades de aprendizado, e chegamos à conclusão de que seria mais fácil optar pela educação domiciliar para os dois, naquele ano letivo. Depois disso, o ritmo da educação domiciliar se adaptou perfeitamente ao nosso estilo de vida. O trabalho do meu marido tem suas temporadas com uma carga horária intensa e outras com mais tempo em casa, e conseguimos ajustar nossa rotina familiar de acordo com essas oscilações.

As pessoas frequentemente nos perguntavam se sempre educaríamos nossos filhos em casa. Eu costumava responder que estávamos indo “criança por criança, um ano de cada vez”. A educação domiciliar era algo inesperado que Deus havia colocado em nosso caminho, e eu não ousava presumir o que ele planejara para nós em seguida.

Mas isso não significa que cheguei facilmente a uma postura de confiança e humildade em relação às decisões sobre a educação escolar. Passei por uma fase arrogante, tive uma fase exasperada, e, finalmente, cheguei a uma fase em que fui ganhando mais confiança. No entanto, durante discussões sobre educação com outros pais e membros da nossa comunidade, percebi que em geral eram os cristãos — e, às vezes, até eu mesma — que demonstravam pouca graça, independentemente do lado que estivéssemos defendendo. Eu já tinha sido uma mãe que defendera com arrogância, primeiro, a escola pública, depois, a educação domiciliar, até que, finalmente, me tornei uma mãe humilde, que se deixa ser guiada pelo Senhor. Essa última fase foi conquistada a duras penas, por isso espero ajudar outros pais a chegarem nela mais rapidamente do que eu.

Não me arrependo dos anos em que eduquei meus filhos em casa. Pelo contrário, eu os valorizo muito. Todavia, o fato de não termos sido capazes de assumir um compromisso vitalício com a educação domiciliar foi fonte de tensão em alguns de nossos relacionamentos. Quando me inscrevi para ser tutora em nosso grupo local de educação domiciliar, pediram que eu assinasse um contrato, comprometendo-me a educar todos os meus filhos em casa, até se formarem no ensino médio. Além disso, eu deveria declarar minha convicção de que a educação domiciliar era a melhor escolha para todas as famílias. Parecia uma grande presunção de minha parte afirmar isso em relação a mim ou aos outros. Por isso eu sempre acrescentava, às margens dos contratos, frases como “se Deus assim quiser”.

Hoje, 14 anos depois, nossa jornada na educação domiciliar chegou ao fim. Paramos por diversas razões. Pouco a pouco, Deus foi preparando nossos corações para esta mudança. Nossos filhos estão crescendo e conversamos com cada um deles sobre essa transição. Fizemos escolhas individualizadas, considerando as diferentes necessidades e desejos de cada um. Dos nossos seis filhos, o mais velho está no segundo ano da faculdade. Outro já é quase adulto e está matriculado em uma escola on-line. Outros dois estão em uma escola pública, e os dois restantes frequentam uma escola cristã particular. Eles permanecerão onde estão até se formarem? Se Deus assim quiser.

Minha experiência me ensinou que a educação domiciliar não é uma fórmula segura para garantir a fé de uma criança. Vi muitas crianças educadas em casa que, ao chegarem à idade adulta, não queriam mais saber de Deus. Uma delas me disse: “É difícil demais. Deus quer que eu seja perfeito o tempo todo, e não é que eu não possa mais tentar agradá-lo; é que simplesmente não me importo mais.”

Vi o esgotamento espiritual nos rostos de adolescentes cujos pais querem usar a lei de Deus para criar supercrianças com uma super fé, mas acabam fomentando um cristianismo sem Cristo. Deus é nosso ponto de partida, mas, na prática, tentamos determinar o que nossos filhos farão e pensarão. Transformamos o conselho prudente de Provérbios 22.6 — “Instrua a criança segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o passar dos anos não se desviará deles” — em uma garantia mecânica.

Inconscientemente, começamos a acreditar que, se formos pais perfeitos, teremos filhos perfeitos — e que a educação domiciliar oferece um grau de controle que outras opções de educação não conseguem ter. No entanto, esta é uma fórmula destituída da doutrina do pecado e da redenção. Em sua essência, é uma espécie de salvação por obras. Isso é devastador — e não apenas para as crianças que perdem a fé.

Fiquei desolada ao testemunhar o sofrimento de uma amiga, que passou anos educando seus filhos em casa, apenas para, mais tarde, ver um deles rejeitar a fé que ela lhe ensinou. Na visão dessa mãe, ela fez tudo certo. Manteve um padrão elevado. Disciplinou bem. No entanto, a fórmula não funcionou.

Obviamente, todos os pais têm suas fórmulas; isso não é exclusividade da educação domiciliar. Meu pastor, por exemplo, enviou os filhos para uma escola cristã, para que tivessem uma base sólida, mas depois mudou para escolas públicas, para expor os filhos ao mundo, enquanto ainda podiam contar com os pais todas as noites para sanar suas dúvidas e perguntas. Algumas famílias acham que seus filhos se saem melhor na escola pública, onde é mais fácil decifrar quem é cristão e quem não é, e onde podem encontrar mais oportunidades para colocar a fé em ação. Outras começam matriculando os filhos na escola pública e depois mudam para a escola cristã, ao perceberem que eles têm o coração sensível e precisam de um ambiente mais protetor. Outras ainda têm filhos com necessidades especiais que não podem ser devidamente atendidas por pequenas escolas cristãs.

Algumas fórmulas funcionam, outras não. Porém, pela minha observação, o fator constante em histórias de sucesso na área da educação não é uma fórmula específica. Deus será fiel para com os nossos filhos, e podemos confiar nele em qualquer situação.

É claro que ter a capacidade de fazer escolhas educacionais — de decidir qual fórmula parece ser a melhor — é um privilégio, e o privilégio nunca é um pré-requisito para a fé. Pelo contrário: “Bem-aventurados os pobres, pois a vocês pertence o Reino de Deus.”, Jesus ensinou. “Mas ai de vocês os ricos, pois já receberam sua consolação” (Lucas 6.20,24). De qualquer forma, o discipulado não está restrito ao horário escolar.

A capacidade de criar nossos filhos na fé não depende de onde estamos, de nossa renda nem de outras vantagens materiais. Grandes santos foram criados em lugares onde o cristianismo é ilegal. Muitos cristãos profundamente fiéis jamais frequentaram uma escola, sequer por um dia. Deus não é limitado por nossas escolhas educacionais.

Em contrapartida, como mãe que já experimentou todas as opções educacionais mais comuns nos Estados Unidos, posso afirmar sem hesitação: independentemente do caminho educacional que você escolher, o pecado estará lá. Na educação domiciliar, também temos valentões que intimidam as outras crianças. As crianças brigam. Os professores ficam cansados. A disciplina é difícil. Mesmo na educação domiciliar, Cristo é o único Salvador, e nenhuma escolha educacional poupará uma mãe ou um pai de lamentar com seu filho pelo estado caído do nosso mundo. Nenhum grau ou nenhum modelo de educação pode ignorar nossa necessidade desesperada de um Salvador, a cada hora, todos os dias.

A educação domiciliar foi uma parte gratificante da nossa história familiar. Todavia, ainda que não tivéssemos conseguido empreendê-la, o pecado ainda seria real, e Deus ainda seria fiel.

Eu sou luterana, e na doutrina da vocação, em nossa tradição, não buscamos um plano único que sirva para todas as pessoas. Sabendo que somos salvos pela obra de Cristo, e de Cristo somente, somos livres para amar e servir ao próximo de muitas maneiras diferentes. Como isso se dará é algo que varia de pessoa para pessoa, de família para família e de comunidade para comunidade. O mesmo vale para a educação. Em nossa vocação como pais, é razoável considerarmos as opções educacionais que temos diante de nós, as necessidades de nossos filhos e as nossas próprias necessidades como pais e, em seguida, escolher a melhor opção.

Eu aprendi que existem prós e contras em todos os tipos de educação, e tudo bem que seja assim. Minha fé não está em nenhuma fórmula educacional. As fórmulas são suscetíveis a falhas. Tampouco, minha fé reside em minha capacidade de ser a mãe perfeita. Eu não sou o salvador dos meus filhos. Minha fé está em Cristo e em Cristo somente.

Gretchen Ronnevik é autora de “Ragged: Spiritual Disciplines for the Spiritually Exhausted” e co-apresentadora do podcast “Freely Given”.

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Culture

Grupo de evangélicos brasileiros traz sua cartilha política para Portugal

Imigrantes da América do Sul são uma força crescente nas igrejas do outro lado do Atlântico. Mas a iniciativa de parte deles na próxima eleição é vista com reservas.

Pessoas observam um outdoor da campanha eleitoral em Lisboa.

Pessoas observam um outdoor da campanha eleitoral em Lisboa.

Christianity Today March 8, 2024
Armando Franca / AP Images

No próximo domingo, Portugal irá às urnas, e um grupo transatlântico de líderes cristãos uniu-se para fazer campanha em favor do Alternativa Democrática Nacional (ADN).

O pequeno partido — fundado em 2014 e que nunca ocupou um assento na Assembleia da República, o parlamento português — tem chamado a atenção da nação por minimizar a COVID-19 e culpar os EUA pela guerra na Ucrânia. Mas as suas posições pró-vida, em defesa da liberdade religiosa e contra a legalização das drogas atraíram um apoio significativo dos evangélicos, grande parte dele vindo de brasileiros — imigrantes e os que possuem cidadania portuguesa — ansiosos para usar sua cartilha política contra o antigo colonizador.

“Eu quero chamar a atenção de todas as lideranças evangélicas de Portugal, bem como de todos os cristãos, para que apoiem e votem no ADN nas eleições de 10 de março”, disse o político brasileiro e pastor pentecostal Marco Feliciano, em um vídeo no YouTube postado por adeptos do ADN, há várias semanas atrás. “É chegada a hora do povo que ama a Bíblia Sagrada se levantar e decidir por um país melhor, um país que vai proteger e promover os valores judaico-cristãos.”

Feliciano é um dos muitos representantes dos brasileiros nas câmaras legislativas que tornaram sua identidade evangélica uma parte integrante de sua política. Fundador da Catedral do Avivamento, igreja neocarismática com ligação não muito estreita com as Assembleias de Deus, ele é um dos 204 deputados (dos 513 da Câmara dos Deputados do Congresso brasileiro) que integram a bancada evangélica, também conhecida como Frente Parlamentar Evangélica.

Esta coligação apoia a manutenção da ilegalidade do aborto e das drogas, bem como outras questões que são importantes para o público evangélico. Nem todos desse grupo professam a fé evangélica; cerca de metade deles está lá para sinalizar esses posicionamentos a seus eleitores. Embora o bloco tenha sido criticado por dar apoio incondicional ao ex-presidente Jair Bolsonaro e não tenha apoio unânime nem mesmo entre os evangélicos, seus integrantes continuam em grande parte a ganhar as eleições e a conquistar novos apoiadores.

“Nos temas que são mais caros aos cristãos, o nosso grupo tem feito um trabalho muito preciso”, disse Feliciano, em uma declaração por escrito à CT. Esse sucesso encorajou muitos a voltar seu foco para locais onde a diáspora possa ter influência política.

Em função de um acordo de 1971, os imigrantes brasileiros e portugueses em qualquer um dos dois países podem receber quase todos os direitos políticos que possuem os nacionais, incluindo o direito de votar em eleições nacionais. Em particular, há muitos evangélicos, em ambos os países, que querem agora iniciar uma coligação parlamentar evangélica própria. Para estes, o primeiro passo é votar no ADN.

Valdinei Ferreira, sociólogo e professor da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, vê esse fenômeno como um “desdobramento natural” da presença brasileira em Portugal.

“O Brasil criou uma infraestrutura própria das instituições evangélicas. Com isso, quando se tem uma presença expressiva de brasileiros, é natural que eles tentem reproduzir seus modelos”, afirma. “Essa ramificação política acaba sendo um efeito colateral.”

Estudioso da transnacionalização das igrejas brasileiras, Ferreira observa que “essa conversão da identidade religiosa em identidade política é relativamente nova no contexto brasileiro”.

“Um dos primeiros deputados evangélicos eleitos no Brasil foi Lauro Monteiro da Cruz, na década de 1950”, lembra Ferreira. “Ele foi eleito com base na carreira de médico. Sua identidade religiosa não era tida como algo que pudesse beneficiar suas credenciais. Hoje, porém, as pessoas se apresentam como ‘evangélicas’, e isso já basta para concorrer às eleições”.

À medida que brasileiros se mudam para o exterior, eles levam consigo essas práticas. “Esse modelo de um bloco evangélico faz alianças com outras faces do conservadorismo político, o qual se tornou uma questão transnacional”, diz Ferreira.

Um por cento

Os portugueses geralmente realizam eleições para o Parlamento a cada quatro anos, mas as eleições antecipadas deste ano seguem-se à saída abrupta do Primeiro-Ministro Antônio Costa, que se demitiu devido a acusações de corrupção contra dois de seus ministros.

Se o ADN obtiver 1 por cento dos votos, provavelmente será, pela primeira vez, representado por um deputado. Nas eleições parlamentares de 2022, o partido obteve 10.911 votos, ou seja, 0,2 por cento do total de eleitores do país. (Na época, o partido precisaria de 70.000 votos para ganhar um representante.)

Este ano, um cenário um pouco diferente pode estar se configurando. Um painel com as intenções de voto, conduzido pela CNN Portugal, sugeriu que o ADN receberia 1 por cento dos votos, uma oscilação possivelmente explicada pelos esforços de quase duas dúzias de pastores locais, todos eles brasileiros ou com ligações estreitas com o Brasil.

Paulo Nunes, pastor da Assembleia de Deus Missão Lusitana, coordena o grupo. Nascido em Torres Novas, cidade a cerca de 110 quilômetros ao norte de Lisboa, regressou a Portugal em 2021, após 30 anos na Suíça.

Nunes tornou-se cristão em Zurique e começou a frequentar uma igreja da Assembleia de Deus de língua portuguesa, liderada por brasileiros e afiliada a um dos principais ramos das Assembleias de Deus no Brasil, o Ministério Belém (com sede em São Paulo). Ele foi ordenado em 1996.

Nunes admite que, até recentemente, sabia muito pouco sobre a política de Portugal.

“Eu estava por dentro da política brasileira. Eu ficava sabendo do que estava acontecendo em Portugal, mas estava mais informado sobre a realidade brasileira”, afirma. “O brasileiro é determinado na luta por seus princípios, por aquilo em que acredita.”

Mas outros evangélicos portugueses não consideram este modelo de engajamento político tão atraente.

No dia 20 de fevereiro, a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) emitiu um comunicado aconselhando os cristãos a exercerem o seu direito de voto, mas também os alertando a evitarem transformar as igrejas em palco de campanhas eleitorais.

“Essa participação legítima não pode servir para a instrumentalização das comunidades e organizações de âmbito religioso e espiritual”, afirmou o grupo evangélico, “muito menos deve ser usado o púlpito para a mobilização em torno de projetos político-partidários específicos”.

A AEP enviou outro documento às igrejas-membro sobre um vídeo, que trouxe à tona a aliança no contexto de uma reunião entre líderes religiosos e representantes do ADN.

“A este propósito devo esclarecer que, tendo sido convidado a estar presente no referido ato, enquanto presidente da Direção da AEP, a minha ausência não se deveu a qualquer indisponibilidade ou incompatibilidade de agenda”, escreveu Timóteo Cavaco, “mas sim à manifesta e resoluta convicção e entendimento de que a AEP não poderá estar associada a esta ação nem a qualquer outra de natureza político-partidária”.

Cavaco foi procurado pela CT para comentar ambos os documentos, mas declinou do convite e afirmou que a entidade só irá abordar o assunto após a votação de 10 de março.

Mas Nunes — que está na lista do partido ADN e pode tornar-se deputado, se o grupo conseguir um assento no Parlamento — diz que o voto dos imigrantes evangélicos brasileiros pode ajudar a mudar o país para sempre.

“A bancada parlamentar evangélica será uma força motivadora”, afirma.

Feliciano enviou um comunicado por escrito à CT, dizendo que gravou o vídeo para abordar temas como liberdade religiosa, descriminalização das drogas e aborto. “Na falta de legisladores que se contraponham, essas pautas têm sido aprovadas à revelia do que pensa a sociedade conservadora. Portugal precisa de representantes conservadores no Legislativo!

Egito e o povo de Israel?

As mudanças demográficas podem, em última análise, limitar a influência da AEP sobre a igreja evangélica em Portugal. De acordo com o censo de Portugal de 2021, existem 187.000 evangélicos no país, ou seja, 2,1 por cento da população com mais de 15 anos (a população total é de 10,3 milhões). Isto é mais que o dobro de 2011, quando a população evangélica era de 75.000 pessoas, ou seja, 0,8 por cento da população.

Esse crescimento é atribuído, em grande parte, à imigração — um relatório do ano passado revela que existem 781 mil estrangeiros vivendo em Portugal, um contingente que tem aumentado constantemente nos últimos 7 anos. Destes, quase 30 por cento são brasileiros. Em outras palavras, quase 4 em cada 10 brasileiros que vivem no país são hoje evangélicos.

Num país predominantemente católico, porém, a mera presença de estrangeiros em igrejas evangélicas pode parecer suspeita. Nos últimos anos, tem havido escândalos em torno de líderes religiosos envolvidos em adoções ilegais de bebês e questões de imigração.

Antonio Rodolpho mudou-se do Brasil para Portugal como missionário, há quase 30 anos. Ele realizou workshops em diversas igrejas, em todo o país, para ajudar líderes a lidar com um ambiente cada vez mais multicultural, o qual inclui brasileiros e cidadãos de países de língua portuguesa na África (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique).

“Algumas igrejas estavam prestes a morrer, mas renasceram com a chegada dos imigrantes”, disse ele.

Às vezes, porém, as coisas não transcorrem tão bem assim. Rodolpho compara a relação dos crentes brasileiros e de seus pares portugueses com o Egito e o rápido crescimento do povo de Israel, em Êxodo 1 — a comunidade cresceu tão rápido que seus anfitriões começaram a temer que pudesse haver uma tomada de poder.

“Quando há uma ou duas famílias brasileiras é bonito, é exótico”, disse ele. “Quando este grupo cresce, porém, surge o medo — e se eles assumirem o controle da igreja?”

Para muitos líderes da igreja, isso não é uma preocupação. Joel Resende, pastor português da Igreja Metodista Wesleyana da Gafanha de Nazaré, uma comunidade de pescadores a 260 quilômetros ao norte de Lisboa, diz que na sua igreja há uma frequência média de 100 pessoas por culto — 40 portugueses, 30 brasileiros e 30 guineenses da Guiné-Bissau. É melhor assim, diz ele, “do que ter uma igreja só de portugueses e com apenas 40 pessoas”.

Por ora, mesmo com o apoio dos imigrantes brasileiros, as chances de um bloco evangélico tomar conta do espaço político português são muito pequenas. Porém, o professor Ferreira alerta que o fator mobilização dentro das igrejas poderia dar maior peso ao voto evangélico.

Uma vez que o voto não é obrigatório em Portugal, uma onda de apoio conclamada por líderes religiosos poderia levar a uma maior participação nas eleições e favorecer um grupo que se apresenta como um outsider na política.

“Mesmo que eles não sejam numericamente fortes, ainda podem causar muito barulho.”

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Sentir-se politicamente sem-teto já é um bom começo

Em tempos de partidários fervorosos, devemos continuar peregrinos.

Christianity Today March 8, 2024
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Unsplash / Getty

“Eu me sinto politicamente sem-teto hoje em dia.”

Nas últimas seis horas, enquanto eu escrevia este texto, ouvi algo parecido com isso de duas pessoas muito diferentes: um representante eleito que é um republicano conservador, e um ativista progressista que, por acaso, é judeu. Seja devido à figura polarizadora de Donald Trump, no primeiro caso, seja por causa do aumento do antissemitismo, desde os ataques a Israel em 7 de outubro, no segundo, esses dois indivíduos se sentem em uma espécie de exílio em relação a suas respectivas facções políticas.

Muitas pessoas se sentem assim neste momento, inclusive muitos seguidores de Jesus. Descobrimos que aqueles que antes eram nosssos aliados não são mais, e que aqueles que costumavam ser nossos oponentes estão mais próximos de nós, no que tange a abordar a crise em questão. Isso é verdade especialmente quando muitos temem até mesmo falar sobre esse distanciamento, por medo de perderem seu lugar na tribo.

Muitos de nós que nos sentimos politicamente sem-teto pensamos que esse deslocamento seria algo temporário. Alguns republicanos esperavam que as coisas voltariam ao normal, depois que Donald Trump deixasse a Casa Branca. Alguns democratas achavam que, quando passasse a onda do “Defund the Police” [movimento que pede que investimentos destinados à polícia sejam realocados para outras áreas da segurança pública], a vida também voltaria a um padrão mais familiar. Mas ambos os partidos ainda não recuperaram o equilíbrio, e não parece que isso vá acontecer tão cedo.

Para os cristãos, no entanto, sentir-se politicamente sem-teto é sempre uma oportunidade única de reavaliar nossas prioridades. Por mais que pensemos que estamos em um território desconhecido neste momento, não estamos. Ao longo dos Evangelhos, Jesus é confrontado por pressões externas para se juntar a uma facção. Na verdade, as perguntas mais polêmicas que foram feitas a ele tinham a ver exatamente com isso.

Ele ficaria do lado dos fariseus, em uma revolta silenciosa contra o trono de Davi, agora ocupado por intrusos romanos? Ou ele seria solidário aos zelotes, em sua rebelião não tão silenciosa contra o Império Romano? Ele se aliaria aos coletores de impostos, que colaboravam com os romanos? Ou se aliaria aos saduceus e se acomodaria ao domínio romano?

Jesus, no entanto, recusou-se a mesclar sua identidade com qualquer dessas facções. Em vez disso, ele se afastou daqueles que queriam proclamá-lo rei (João 6.15) ou transformá-lo em um mero fornecedor de comida (6.26). E contrariando as expectativas de todos, ele se anunciou como o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14.6).

Desde a terra de Ur, do patriarca Abraão, até a ilha de Patmos, do apóstolo João, a Bíblia descreve o chamado de Deus como uma peregrinação — uma jornada que parte do que nos é familiar e nos lança no desconhecido. O livro de Hebreus elogia nossos pais e mães da Antiguidade, porque eles se viam como “estrangeiros e peregrinos na terra” (Hebreus 11.13). Esse reconhecimento verbalizado foi um sinalizador para os próximos versículos: “Os que assim falam mostram que estão buscando uma pátria. Se estivessem pensando naquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Em vez disso, esperavam eles uma pátria melhor, isto é, a pátria celestial.” (v. 14-16).

Em tempos normais, nossas filiações políticas seriam, ou pelo menos deveriam ser, uma parte mínima de nossas vidas. No entanto, em uma época de tribalismo totalizante — em que a política costuma ser um mecanismo para nos identificarmos e diferenciarmos amigos de inimigos — não é isso que acontece. Em épocas como esta em que vivemos, qualquer um que não se adaptar a esse senso de supremacia se sentirá solitário, se não acabar completamente sozinho.

Muitas vezes, porém, Deus usa circunstâncias externas, como o abalo de uma ordem cívica que antes parecia estável, para nos libertar de ídolos que por nós mesmos não teríamos abandonado. Em um tempo de idolatria política, talvez esse nosso sentimento de falta de raízes possa ser apenas uma forma de Deus nos lembrar que somos viajantes, peregrinos — inseridos no tempo e no espaço, mas criados para uma realidade muito além deles.

Talvez nós, que nos sentimos politicamente sem-teto, estejamos sendo chamados, juntamente com o mundo em geral, a nos lembrar de que há muito tempo nos contentamos com a definição errada de lar. A política de identidade partidária do momento acaba se revelando uma casa construída sobre a areia. E, ao contrário disso, estamos à procura de um tipo diferente de lar: aquele que tem muitas moradas e que nosso Pai construiu sobre a rocha sólida.

Essa verdade pode parecer estranha nestes tempos estranhos em que vivemos. No entanto, devemos nos lembrar que peregrinar é melhor do que pertencer — desde que estejamos caminhando na direção certa.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública da revista.

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Os cristãos não podem ‘solucionar’ o conflito entre Israel e Hamas

Jesus poderia acabar com essa crise. Mas seus seguidores certamente não têm o mesmo poder.

Crianças palestinas verificam os estragos feitos em suas casas pelos bombardeios israelenses.

Crianças palestinas verificam os estragos feitos em suas casas pelos bombardeios israelenses.

Christianity Today March 7, 2024
Ahmad Hasaballah / Stringer / Getty Images

A maneira de resolver o conflito entre Israel e Hamas é muito simples, segundo explicou recentemente o jornalista Matt Yglesias. Poderíamos resolver a questão com apenas cinco passos:

“Meu plano para resolver a crise: 1. Uma pausa humanitária nos ataques 2. A libertação dos reféns 3. Palestinos e israelenses desenvolvem preferências diferentes e mais razoáveis do que as que eles realmente têm 4. A solução de dois Estados 5. Os Estados árabes normalizam suas relações com Israel”

É um excelente plano, não é mesmo? Eu gostei muito! Só que — bem, esse terceiro passo parece um pouco complicado.

E como Yglesias escreveu detalhadamente no Substack, o ponto é justamente esse. Obviamente, esse plano de cinco passos é uma piada, uma ironia. Mas ele toca em um ponto que muitos dos comentários sobre esse assunto parecem não perceber — o que acontece nos EUA, com toda certeza, e muito provavelmente em outros lugares ao redor do mundo. E o ponto em questão é o fato de que os líderes políticos israelenses (sem falar dos assassinos do Hamas) não ignoram o que nós, observadores externos, acreditamos ser o caminho certo e prudente a seguir.

“Eles simplesmente discordam”, observa Yglesias, e é improvável que parem de discordar, assim como é improvável que nós tenhamos o poder de mudar muito a forma como eles pensam, se é que temos qualquer influência nesse sentido. Por “nós” eu me refiro em parte ao governo dos EUA, que, apesar de todo o seu poder, é objetivamente limitado em sua capacidade de mudar o comportamento de combatentes que acreditam, com razão, que estão envolvidos em uma luta existencial. Mas também me refiro especificamente a você e a mim — bem como a nossos irmãos cristãos em todo o mundo.

Nós não podemos solucionar essa crise, por mais fiéis, factuais e fervorosos que sejamos.

Penso que vale a pena dizer isso por dois motivos. Um deles é o nosso hábito moderno de “conscientização”, como quando, por exemplo, eu posto este artigo no Facebook porque quero aumentar a conscientização.

Assim como acontece com muitas questões de grande importância, a realidade é que a maioria de nós pode fazer muito pouco para realizar mudanças significativas. Às vezes, podemos doar dinheiro para uma causa relevante. Sempre podemos orar (1Tessalonicenses 5.17) e tomar cuidado para não pecar no coração ou com palavras, quando reagirmos às notícias (Mateus 5.21-30). Mas a maioria de nós não é um cientista que pode encontrar a cura para o câncer, nem um político que pode propor uma nova lei de imigração americana, nem mesmo um general que possa decidir sobre quem as bombas cairão. Nossos deveres para com Deus e para com o próximo geralmente são mais iminentes e mundanos, e se Deus responde às nossas orações, é muito mais por obra dele mesmo do que nossa.

Ainda assim, nós nos vemos diante de uma quantidade enorme de informação sobre problemas que estão próximos e distantes de nós. Esse é o ruído de fundo de todas as conversas digitais. Sentimos a necessidade de reagir —, mas como? Que bem tangível podemos fazer? Muitas vezes, como pessoas finitas em um mundo caído, a resposta frustrante é: nenhum, absolutamente nenhum. Muitas vezes, a única ação visível que podemos ter é a que chamamos de “conscientização”, e muitas vezes isso se resume a promover uma corrida por alguma causa ou fazer algumas postagens nas mídias sociais.

A conscientização não é algo ruim, mas fazer burburinho não significa mudar. A conscientização — e a opinião que a acompanha — não é, por si só, uma solução. Ter ideias e informações em nossa cabeça não resolverá uma crise que está a meio mundo de distância e totalmente fora de nossa esfera de influência. “Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida” — ou pode subtrair uma hora que seja de algum conflito distante? (Mateus 6.27).

E não só isso, mas esse tipo de preocupação também pode desviar nossa atenção e energia de outros usos melhores. O que é melhor: eu aumentar a conscientização sobre o câncer ou eu fazer um jantar para um membro da minha igreja que está fazendo quimioterapia? Isso não é difícil de responder.

O segundo motivo é que, como cristãos, temos, como de fato é apropriado termos, a fidelidade e seus efeitos em alta conta. Pela fé, os filhos de Deus “praticaram a justiça”, “fecharam a boca de leões” e “pela ressurreição, tiveram de volta os seus mortos” (Hebreus 11). Como Paulo escreveu aos coríntios, podemos ser “cooperadores de Deus”, e cooperadores cuja fé repousa “no poder de Deus” (1Coríntios 3.9, 2.5). A “oração de um justo é poderosa e eficaz”, ensinou Tiago, lembrando-nos da história de Elias — que “era humano como nós” —, mas cuja oração sincera levou tanto à fome quanto à fartura (5.16-18).

Contudo, a fé não é algo mágico, nem é garantia de um final feliz deste lado da eternidade. Ela nem sempre consegue nos proteger ou afastar os outros do mal.

Os heróis da fé, em Hebreus 11, não puderam contar com o triunfo sobre a adversidade em qualquer sentido imediato que fosse: Alguns “enfrentaram zombaria e açoites, outros ainda foram acorrentados e colocados na prisão, apedrejados, serrados ao meio, postos à prova, mortos ao fio da espada. Andaram errantes, vestidos de pele de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos e maltratados.” (v. 36-38). Eles “foram torturados e recusaram ser libertados, para poderem alcançar uma ressurreição superior” — e, embora tenham vindo a alcançá-la, ainda assim foram torturados (v. 35).

A fidelidade cristã também não pode ter efeito onde ela não existe. Um ensaio recente sobre o conflito entre Israel e Hamas, publicado na Red Letter Christians, termina com uma exortação de um pacificador cristão palestino, o qual, “quando perguntado sobre o que ele acha que mais contribuirá para acabar com essa violência”, disse: “Quando seguirmos o Jesus de quem falamos, essa crise acabará”.

A parte de mim que está convencida de que Jesus chama seus seguidores para a pacificação e a não violência quer concordar, mas o realista que habita em mim diz que isso simplesmente não é verdade.

Sim, os cristãos devem seguir a Jesus, seja na guerra, seja em qualquer outra circunstância. Mas a a fidelidade cristã não acabará com essa crise, em grande parte porque as pessoas que estão em guerra aqui, em sua esmagadora maioria, não são cristãs. Há alguns cristãos judeus messiânicos nas Forças de Defesa de Israel e entre os civis israelenses, e há alguns crentes árabes que fazem parte da população civil de Gaza, onde eles e suas igrejas não foram poupados dos ataques. Mas, de modo geral — especialmente nos escalões superiores, onde as decisões estratégicas são tomadas, e por completo no Hamas — esse é um conflito entre combatentes que não são cristãos.

Não podemos esperar que eles sigam a Jesus, se nunca fizeram dele seu Senhor. Não devemos esperar que eles valorizem uma perspectiva cristã sobre o que fazer (1Coríntios 2.14, 5.12-13a). Essa é a versão cristã do terceiro passo de Yglesias — ou seja, uma piada, tanto quanto sua versão secular.

Isso não quer dizer que nossa fé não seja importante aqui. Está além do nosso poder acabar com essa crise, mas não está além do poder de Deus.

Costumamos dizer que a famosa oração de Elias trouxe fartura, e de certa forma de fato trouxe; mas quando “o céu enviou chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tiago 5.18), isso não aconteceu pelas mãos de Elias. Foi obra de Deus. E podemos ser “cooperadores de Deus” cuja fé repousa “no poder de Deus”, mas ainda assim a obra é de Deus e o poder é de Deus. Quando os filhos de Deus “praticaram a justiça”, “fecharam a boca de leões” e “pela ressurreição, tiveram de volta os seus mortos” (Hebreus 11), não foram realmente eles que fizeram tudo isso, mas sim Deus, que agiu por meio deles.

Para Deus, como seria acabar com essa crise? Eu não sei. As dificuldades práticas parecem insuperáveis para mim. De qualquer forma, não tenho boas ideias e não tenho poder para colocá-las em prática. Só posso por a minha “esperança no Senhor, desde agora e para sempre” (Salmos 131.3), deixar de me preocupar com “coisas difíceis demais para mim” (131.1, NASB) e orar pela paz. Talvez Deus pudesse prosseguir com a Segunda Vinda. Ora, “não seria este um bom momento para ele voltar?

Bonnie Kristian é diretora editorial da Christianity Today para livros e ideias.

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As ideias malignas por trás dos ataques de 7 de outubro

A ação do Hamas contra Israel têm uma história ideológica grotesca e merece um julgamento moral firme e determinado.

Kibutz Kfar Aza após o ataque do Hamas em 7 de outubro

Kibutz Kfar Aza após o ataque do Hamas em 7 de outubro

Christianity Today March 7, 2024
Gili Yaari / AP

O interior da casa vaza pelas janelas quebradas como as entranhas de um animal sacrificado. A pessoa que morava nesta casa em Kfar Aza, Israel, morreu durante os ataques que a destroçaram, em 7 de outubro de 2023. Destroços de sua vida — como livros, jogos de tabuleiro, móveis, luminárias, roupas, travesseiros — estão espalhados no jardim da frente, encharcados pela chuva que cai.

Estou na varanda, e me certifico de que o equipamento de gravação está coberto e seco. Um telhado feito de folhas metálicas onduladas, arrancado até a metade, paira sobre a varanda e balança ao sabor do vento. Produz um som alto e solitário, como uma serra musical ou o gemido de um fantasma.

A maioria das casas desse quarteirão se parece com esta: estão destruídas, esfaceladas. O clima em Kfar Aza é distópico, desesperador ao extremo, como se o mundo tivesse acabado e as pessoas tivessem que juntar os cacos. Só que o mundo não acabou no dia 7 de outubro. As repercussões desse dia estão sendo sentidas em Gaza, enquanto estou lá, e ecoam pelas ruas das cidades, em campi universitários e em escolas e sinagogas de todo o mundo.

Kfar Aza é um kibutz que fica a cerca de três quilômetros da fronteira com Gaza. Como a maioria dos kibutzim, foi fundado como uma comuna agrária e utópica. Estas comunidades fronteiriças estavam comprometidas com a paz, e acolhiam habitantes de Gaza que tinham autorização de trabalho para virem servir a comunidade. Elas também foram as mais atingidas pelo Hamas.

Estar aqui passa uma sensação de intimidade que é, ao mesmo tempo, invasiva. Saio do cômodo em que estou e vou para a sala. É uma casa pequena, como a maioria aqui. Atravesso uma porta e encontro um quarto desarrumado, onde alguém saiu às pressas da cama, quando as sirenes tocaram, às 6h30 daquela manhã. Eu me viro, e vejo uma parede cravada de buracos de bala e uma sala saqueada. Há manchas esbranquiçadas no chão e nas paredes, nos lugares em que o sangue foi removido, e manchas escuras, onde não foi possível removê-lo.

Das 900 pessoas que viviam em Kfar Aza, cerca de 1 em cada 10 foi assassinada ou sequestrada. Muitas casas, como esta em que estou, têm um buraco negro bem no centro, onde pneus trazidos de Gaza foram empilhados e queimados, para expulsar a família de moradores do cômodo à prova de ataques. A fumaça [dos pneus queimados] deixou as paredes e o teto pretos e cor de âmbar. Ainda consigo sentir um vestígio de ozônio no ar, produzido por algum incêndio elétrico, o cheiro acre de plástico queimado e um odor mais forte que parece extravasar do próprio buraco negro. Olho para cima e vejo uma mulher, que também visita o kibutz comigo, cobrindo a boca, ficando pálida e indo em direção à porta. Eu a sigo.

Nos dias antes de vir para cá, ouvi pelo menos uma dúzia de pessoas dizer: “O dia 7 de outubro foi o mais mortal para os judeus, desde o Holocausto”. A frase dá voltas em minha cabeça, enquanto ando por este espaço. A fileira de casas destruídas lembra o Gueto de Varsóvia, depois que os nazistas o destruíram e enviaram seus residentes para campos de extermínio. Mais cedo, estivemos do lado de fora de outra casa crivada de buracos de bala que evocavam lembranças dos Einsatzgruppen, esquadrões de extermínio nazistas que prenderam judeus na frente oriental e atiraram neles — homens, mulheres e crianças —, enquanto estes estavam posicionados em valas comuns, que foram forçados a cavar momentos antes. E então, é claro, há os incêndios e as cinzas, buracos negros para onde quer que se olhe. A palavra holocausto tem origem no grego antigo e refere-se a um sacrifício em que a vítima é queimada inteira.

Os nazistas construíram uma indústria da morte em remansos, usando ferramentas industriais e o transporte de massa para realizar seu trabalho com uma crueldade metódica, quase clínica. O Hamas fez o oposto. A selvageria era o ponto central. Eles queriam que isso fosse visto. Num arquivo de áudio interceptado pelas Forças de Defesa de Israel (FDI), em 7 de outubro, um terrorista do Hamas ligou para seus pais, de um kibutz perto de Kfar Aza. “Vejam quantos eu matei com as minhas próprias mãos!” ele diz. “Seu filho matou judeus!” Pouco depois, ele acrescenta: “Mãe, seu filho é um herói”.

“Eu gostaria de estar com você”, disse sua mãe.

Que história está sendo contada por meio desse telefonema? Que história foi contada várias e várias vezes, ano após ano, de modo a permitir que um filho ligasse para os pais, esfuziante de alegria pela matança de pessoas inocentes? Responder a esta questão é trazer à tona a ideologia do Hamas.

A ideologia é uma narrativa que oferece uma chave para a história. Ela enquadra uma crise do presente de tal maneira que aponta para um futuro inevitável. Também cria a sensação avassaladora de que o futuro é certo e de que os seguidores dessa ideologia são agentes para o progresso da história. Essa sensação de inevitabilidade tem um efeito poderoso — e terrível — sobre os seus sujeitos; eles se tornam capazes de cometer crueldades incomensuráveis.

Interior de uma casa incendiada, em Kfar Aza.Alexi J. Rosenfeld / Getty
Interior de uma casa incendiada, em Kfar Aza.

A ideologia nazista propunha que o povo alemão estava destinado a dominar o mundo, mas estava sendo corrompido pelos judeus. Nesta trama, o extermínio dos judeus não era assassinato; era algo que estava acelerando um processo histórico necessário. Repetir essa história por várias vezes, através da propaganda, permitiu que oficiais e funcionários nazistas se imaginassem como boas pessoas que não estavam fazendo um mero trabalho, mas fazendo um trabalho corajoso e ousado, que inaugurava um futuro utópico.

A ideologia pode assumir milhares de formas e justificar todas as formas de mal. A ideologia stalinista promoveu o assassinato em massa na Rússia. A ideologia da seita NXIVM levou ao tráfico sexual. A ideologia maoísta resultou na opressão dos uigures pelo governo chinês. Quando se acredita que a história está em jogo, as pessoas são capazes de justificar praticamente tudo.

O Hamas é movido por uma ideologia antissemita própria, expressa no slogan utópico “Do rio ao mar, a Palestina será livre”. Ser livre para eles não significa ser “um Estado livre e democrático para todos os seus cidadãos”. Significa Judenrein — termo nazista que significa “limpo de judeus” ou “livre de judeus”, que alguns invocaram em relação ao Hamas. Esta é a chave deles para a história — o único problema que, se resolvido, moveria a história rumo a seu destino utópico.

Saber disto é algo que dá sentido a algumas das cenas mais incompreensíveis de 7 de outubro. Por exemplo, embora a barbárie dos ataques tenha chocado a consciência do mundo, foi saudada com alegria em muitas ruas da Palestina. Muitos cidadãos comuns — não militantes — juntaram-se à profanação de cadáveres em Gaza.

Depois, tivemos aquele telefonema e a resposta da mãe do terrorista. A ideologia conta uma história que desumaniza todos os israelenses, incluindo as populações muçulmana e cristã, e vê cada ato de violência como um passo necessário nessa revolução utópica. É por isso que o Hamas dispara foguetes indiscriminadamente, é por isso que massacra crianças e mulheres, é por isso que o estupro coletivo e a mutilação sexual faziam parte do plano para o dia 7 de outubro. A ideologia transforma toda essa violência em uma violência redentora, uma orgia de mortes que promove o progresso da história.

Alguns poderão argumentar que existem paralelos dessa ideologia do Hamas entre os israelenses, particularmente no movimento dos colonos de direita. Há uma dose de verdade nisso. Os elementos mais radicais, mais extremistas do movimento dos colonos vislumbram a recuperação de todas as terras históricas de Israel, o que exigiria no mínimo a subjugação dos residentes árabes, se não o seu deslocamento em massa. Mas é uma fantasia agir como se houvesse, antes daquele 7 de Outubro, uma simetria entre este movimento — que mesmo sob um governo de direita continua a ser uma pequena facção — e o Hamas, a autoridade governante em Gaza. Os israelenses, em sua grande maioria, celebram a natureza liberal do Estado e são os primeiros a se gabarem da igualdade de direitos e de privilégios dos seus cidadãos árabes.

É a natureza ideológica da visão do Hamas que torna este conflito algo tão difícil de se lidar. Quando se define o Estado judeu como o principal obstáculo à utopia, quando se consagra a violência como meio quase sacramental de buscar esse futuro utópico, e quando alguém passa décadas e décadas contando essa história para seus filhos e para os filhos deles, qualquer discurso de pacificação continuará a ser irracional. Isso não quer dizer que a paz seja impossível, mas sugere que, até que se faça o trabalho de articular uma história melhor, uma história em que a violência já não sirva como meio de redenção, este ciclo [de violência] continuará.

Existem implicações importantes a que fluem deste fato, muitas das quais foram expostas durante a guerra em Gaza. O Hamas exerceu uma espécie de controle totalitário. Para que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) e a organização Médicos Sem Fronteiras pudessem cumprir a sua missão humanitária em Gaza, tinham de estar conscientes do Hamas. Assim, teriam tido de se manter caladas, desconversarem ou mentirem abertamente sobre a presença do Hamas em hospitais, sobre os esconderijos de armas em escolas e sobre a onipresente rede de túneis do grupo.

Havia apenas duas opções: cooperar com o Hamas, o que significava ignorar, permitir ou fechar os olhos para a atividade terrorista; ou abandonar a sua missão e, ao mesmo tempo, abandonar aqueles a quem se comprometeram a servir.

Aqui, mais uma vez, a ideologia desempenhou seu papel — embora fosse uma ideologia diferente da do Hamas. Neste caso, foi a ideologia anticolonial, importada de lugares como a Argélia, a África do Sul e a Índia, onde o colonialismo europeu empobreceu os povos nativos e criou uma sociedade de dois níveis. Os nacionalistas palestinos abraçaram a linguagem desta ideologia e, com o impulso da União Soviética, nas décadas de 1970 e 1980, esta tomou conta da esquerda global e da academia, reclassificando o conflito Israel-Palestina como um confronto entre colonizadores europeus (judeus) e os povos nativos da terra (palestinos).

Tal como acontece com muitas histórias ideológicas, esta também não resiste a um exame minucioso. Mesmo que alguém rejeite a Bíblia como documento histórico, o registo arqueológico confirma a presença judaica na terra já no século 9 a.C. Com o sionismo moderno, os paralelos com o colonialismo europeu são quase inexistentes, uma vez que a maioria dos judeus que se estabeleceu na Palestina Obrigatória Britânica (e, antes disso, no Império Otomano) fugiam da instabilidade, da violência e dos extermínios em massa, tendo muitas vezes comprado suas terras a preço elevado. Dos judeus que chegaram depois do estabelecimento do Estado de Israel, a maioria veio como refugiado, especialmente depois de os estados árabes vizinhos terem confiscado as propriedades dos seus residentes judeus e os expulsado.

A violência entre judeus e árabes, que começou em 1947 e 1948, não foi um conflito entre um império estrangeiro e uma população nativa, mas sim um conflito entre dois grupos com reivindicações históricas válidas sobre a terra. O deslocamento e a morte de centenas de milhares de palestinos, que foram resultantes desse conflito, são uma tragédia e a sua contínua condição de apátrida é um escândalo. Mas a luta de nenhum desses povos decorre do colonialismo.

Da mesma forma, as distinções que tornam os judeus parte do problema da “supremacia branca” esquecem que os supremacistas brancos têm gritado palavras de ordem como “os judeus não tomarão nosso lugar” e que mais de 60 por cento dos judeus israelenses são Mizrahi — do Oriente Médio e do Norte da África — o que significa que não são “brancos” por qualquer definição do termo que se adote.

No entanto, esta ideologia consolidou-se na academia e em muitas instituições compostas por seus graduados. Assim, nas marchas contra a guerra, pode-se ver a bandeira do Hamas tremulando perto de cartazes que dizem “Queers pela Palestina” ou “Os direitos ao aborto são direitos palestinos”. O fio condutor não é a liberdade nem os direitos humanos, uma vez que o Hamas pouco se importa com estes valores. E certamente também não é a visão teocrática do Hamas, que contrariaria todos os valores da academia.

Na realidade, têm um fio comum ao qual chegam a partir de diferentes direções: o Hamas se utiliza de uma ideologia islâmica e nacionalista para demonizar os judeus, e a esquerda acadêmica se utiliza da ideologia anticolonial para fazer o mesmo. E ambos abraçam a violência redentora contra corpos de judeus como meio de restaurar a justiça no mundo.

Na manhã seguinte da minha viagem a Kfar Aza, estou na Cidade Velha, em Jerusalém, que está tomada por um silêncio mortal. Perto das 10h, essas ruas normalmente estariam lotadas. Os comerciantes estariam aglomerados nas entradas, jogando gamão e dominó em mesas precárias ou barris de 20 litros virados de boca para baixo. Um aroma de frutas frescas sairia das lojas que vendiam sucos e vitaminas batidas, misturando-se ao odor exalado pelos escapamentos de scooters e motocicletas que serpenteavam no meio da multidão. Por todos os lugares, veriam-se grupos de turistas admirados, usando crachás iguais, olhando para as placas de rua e ouvindo os guias turísticos que os conduziam em direção ao Muro das Lamentações ou à Via Dolorosa. Hoje, porém, ouço meus próprios passos ecoando nas paredes de pedra.

A maioria das lojas está fechada, e dos poucos comerciantes que restaram, todos se lembram de mim, pelo dia de ontem. Pessoas de fora da cidade são raras agora.

“Kentucky!”, grita um deles, quando me aproximo. “Ei, KFC, Coronel Sanders. Eu tenho suas ervas e seus temperos”. Seu companheiro na porta da loja ri. Sorrio e aceno, ignorando seus apelos para eu parar e olhar os lenços e bugigangas pendurados na porta.

“Leve algo para casa, para sua esposa ou namorada — ou para as duas!” diz outro, algumas portas adiante. Isso arranca uma grande risada do comerciante ao lado.

“Amanhã”, eu digo, e passando com pressa. “Vou fazer compras amanhã.”

“Amanhã?”, diz ele. “Amanhã morreremos, Kentucky. Há uma guerra lá fora; venha, olhe”.

Eu me sinto mal, por saber que ele não vai vender nada hoje. Pouco antes de virar a esquina, ouço um deles gritar: “Até amanhã, coronel Sanders!”, com uma enorme gargalhada.

Uma rua de lojas fechadas, na Cidade Velha, em Jerusalém.Michael Winters, para Christianity Today
Uma rua de lojas fechadas, na Cidade Velha, em Jerusalém.

Depois disso, minha caminhada pela Cidade Velha é silenciosa. Passo por becos com cheiro de esgoto, por janelas abertas das quais sai o som estridente dos boletins de notícias, e por pelo menos uma meia dúzia de gatos esparramados pelos degraus de calcário, antes de chegar a uma porta estreita e a uma praça aberta e iluminada. Viro à direita e me deparo com a fachada de uma igreja antiga. Atrás de mim, pairando sobre a igreja, está o minarete da mesquita aiúbida, construída no local onde o califa Omar orou, depois de ter conquistado Jerusalém, em 637.

A igreja em si é modesta. Muitos que a visitam ficam decepcionados, especialmente se conheceram a beleza da Catedral de Notre-Dame, na França, da Catedral de São Paulo, em Londres ou da Catedral de São Patrício, em Nova York. O que eles veem, quando chegam aqui, é monótono e errático, mas eu adoro tudo isso.

E adoro, em parte, justamente por esse motivo. Esta não é uma igreja comum. Já foi derrubada, incendiada e reconstruída muitas vezes. É uma colcha de retalhos de estilos arquitetônicos, uma vez que outros edifícios se colaram às suas laterais.

O espaço em si era sagrado muito antes da construção da Igreja do Santo Sepulcro. É tradicionalmente reconhecido como o local da Crucificação e da Ressurreição.

Muitos evangélicos vêm a Jerusalém e visitam o Jardim da Tumba, não muito longe dali. É pitoresco e meditativo, uma espécie de jardim de oração não denominacional que é exatamente o que se poderia esperar quando se procura um lugar para refletir. Mas o registo arqueológico apoia a reivindicação de autenticidade da Igreja do Santo Sepulcro. Seus sepulcros datam da época certa; estaria fora dos portões da cidade na hora certa; e, o mais importante, foi reconhecida como o local correto tanto pelos romanos (que procuraram profaná-la com um santuário a Júpiter) como pelos cristãos (que a reconheceram como um espaço sagrado), até à construção da primeira igreja no local, no quarto século.

Independentemente de sua tradição, pode ser um lugar desorientador. O edifício tem uma escuridão pesada. Normalmente, multidões de fiéis transitam por suas passagens estreitas, orando, chorando, sorrindo para selfies, como que em busca de uma pequena bênção por respirar o ar onde Jesus ressuscitou dos mortos. Imagino que seja onde podemos encontrar Jesus hoje — não em algum parque tranquilo, mas bem no meio de uma multidão de pessoas caóticas e necessitadas.

Hoje, o local encontra-se quase inteiramente vazio. Um monge caminha com passos leves pelo chão de pedra. Um americano vestido como Jesus, que veio há anos para viver com simplicidade e falar com os peregrinos, dirige-se a uma capela. O único outro som vem de uma equipe de operários de uma construção.

Dentro do portal está a Pedra da Unção, tradicionalmente reverenciada como o local onde o corpo de Jesus foi preparado para o sepultamento. Normalmente, uma pequena multidão se ajoelha para esfregar rosários na pedra ou beijá-la.

Fico ali por um longo momento, imaginando um punhado de discípulos carregando o corpo inerte de Jesus, da cruz até esta pedra. As palavras de Isaac Watts me passam pela mente:

Veja, de sua cabeça, de suas mãos, de seus pés,

Tristeza e amor derramam-se, mesclados.

Especialmente hoje, a tristeza parece tangível.

Durante séculos, os cristãos foram os principais defensores do ódio antissemita. Culpamos os judeus por todos os tipos de males sociais, incluindo a peste, e criamos teorias da conspiração que envolviam o sacrifício de crianças.

Os cristãos culparam os judeus pelo assassinato de Jesus, uma vez que as autoridades religiosas judaicas tomaram providências para a sua prisão e exigiram a sua execução. Esta noção dos judeus como “assassinos de Deus” tornou-se a motivação por trás de todo tipo de ações repugnantes e violentas. É uma acusação torpe a se fazer contra quem quer que seja. O próprio Jesus absolveu aqueles que participaram de sua prisão e condenação. “Ninguém pode tirar minha vida de mim”, disse ele. “Eu a sacrifico voluntariamente. Pois tenho autoridade para dá-la quando quiser e também para retomá-la” (João 10.18, NLT).

Hoje, muitos, no Ocidente, gostam de pensar que deixaram estes tropos para trás. Mas ideias antigas são difíceis de morrer e o antissemitismo é uma ideia muito antiga. Depois do 7 de Outubro, as pessoas conclamaram uma nova “revolta da Intifada” como a “única solução” para o conflito Israel-Palestina. Este discurso invoca tanto as Intifadas palestinas (períodos de violência terrorista mortal, nas décadas de 1980, 1990 e 2000) quanto a Solução Final do partido nazista. Ainda menos sutis são as multidões que gritaram “gás nos judeus” e usaram de violência contra negócios de propriedade de judeus fora de Israel.

O antissemitismo pode manifestar-se de formas subversivas. À medida que o Natal se aproximava, no ano passado, os defensores dos palestinos em Gaza começaram a fazer circular uma imagem da Igreja Evangélica Luterana de Natal, em Belém. A tradicional manjedoura da igreja não fora exposta este ano; em vez dela, o menino Jesus estava envolto em um keffiyeh e caído entre escombros que pareciam ter resultado de um bombardeio. A imagem viralizou e diversas agências de notícias globais publicaram histórias sobre ela.

“Não vemos isto como uma guerra contra o Hamas”, disse o pastor da igreja, Munther Isaac, ao The New York Times. “É uma guerra contra os palestinos. […] É assim que o Natal se parece na Palestina de hoje: crianças mortas, casas destruídas e famílias deslocadas. Vemos a imagem de Jesus em cada criança que é morta em Gaza.”

Em um gesto semelhante, uma série de políticos, ativistas e intelectuais celebraram o Natal chamando Jesus de palestino, comparando a ocupação da Cisjordânia à ocupação romana da Judeia ou comparando a guerra em Gaza ao massacre de inocentes perpetrado por Herodes.

Em certo nível, o desejo de traçar tais paralelos é perfeitamente compreensível. A devastação em Gaza é difícil de compreender. O Ministério da Saúde, sob liderança do Hamas, estima que mais de 25 mil pessoas morreram, desde o início da guerra e, para muitos palestinos, é apenas mais uma ferida em quase um século de perdas, sofrimento e deslocamentos. É legítimo lamentar esse sofrimento ou questionar a justiça e a proporcionalidade desta guerra. Podemos concordar, sem remorso, que Jesus chora com os que choram em Gaza.

Mas estas imagens e metáforas servem apenas para eclipsar o judaísmo de Jesus. Algo que é feito, e de forma particularmente perturbadora, pelo keffiyeh em que envolveram o menino Jesus.

O keffiyeh, um lenço branco estampado em xadrez, tornou-se símbolo do nacionalismo palestino durante a Revolta Árabe de 1936-1939. Yasser Arafat usava um keffiyeh nos anos 60, enquanto tentava promover um movimento nacionalista entre os palestinos.

Arafat, apesar de ser visto como um santo por alguns, foi descrito por Andrew McCarthy, ex-procurador federal, como um “bandido” e “o pai do terrorismo moderno”. Foi Arafat quem inventou novas maneiras de fazer o mal (Romanos 1.30), desenvolvendo táticas que visavam crianças, escolas, shoppings e ônibus públicos como alvo. Ele monetizou a compaixão pelos palestinos, enriquecendo-se com bilhões de dólares. Também foi ele quem rejeitou a solução de dois Estados sob as mais favoráveis condições possíveis, em 2000, retirando-se das conversações de paz para dar início à Segunda Intifada.

Mas o poder duradouro do keffiyeh como símbolo surgiu por causa das fotografias de outra pessoa, tiradas em 1970.

O tema das fotos era Leila Khaled, uma mulher palestina de olhar intenso e maçãs do rosto salientes como as de uma modelo. Ela foi fotografada por Eddie Adams, em um campo de refugiados no Líbano, segurando um rifle Kalashnikov e usando um keffiyeh ao estilo de um hijab — algo que era incomum, uma vez que o keffiyeh era um lenço tipicamente masculino. Trazia no dedo um anel feito de uma bala e um pino de granada.

Àquela altura, o mundo já sabia o nome dela. Meses antes, ela tinha participado do sequestro de um voo comercial com destino a Tel Aviv, desviando-o para Damasco e utilizando os seus passageiros para garantir a libertação de prisioneiros de guerra sírios e egípcios. Poucos meses depois de ser fotografada, ela participou de outro ataque surpreendentemente semelhante ao de 11 de setembro. Quatro aviões foram alvo de sequestro, mas Khaled e seu parceiro falharam. Ele foi morto, um membro da tripulação foi baleado e ela foi presa, ficando detida até que seus companheiros sequestradores conseguiram sua libertação em uma troca de reféns.

Hoje, ela é uma palestrante muito requisitada para conferências sobre direitos humanos. A sua imagem é estampada em cartazes e murais por todos os territórios palestinos e em todo o Oriente Médio. Isto não ocorre por ela ter moderado suas posições e desejar a paz, mas porque conserva o mesmo espírito revolucionário que inspirou seus atos terroristas em 1969 e 1970. Em um discurso que fez numa conferência na África do Sul, em 14 de outubro de 2023, uma semana após o massacre do Hamas, ela disse: “Não basta ir às ruas. […] O objetivo principal é que as pessoas peguem em armas, sempre.”

O terrorismo, em outras palavras, é essencial para o projeto redentor de Khaled.

Tal violência não é algo periférico ao significado simbólico do keffiyeh; ela é o próprio significado simbólico do keffiyeh. Para pessoas como Khaled e Arafat, a violência infligida a crianças, civis e idosos é uma parte necessária da sua visão revolucionária. É uma violência ideológica, que é justificada por uma visão utópica de uma Palestina que se torna Judenrein [livre de judeus] do rio ao mar.

É claro que nem todo mundo que usa um keffiyeh (ou que envolve o menino Jesus nele) o faz com essa mesma intenção. Tenho certeza de que isso é verdade especialmente em relação àqueles no Ocidente que compraram seus keffiyehs na Amazon ou na Urban Outfitters. Contudo, para o Hamas e para outros grupos militantes que conspiram para ver o fim de Israel — em típicos contextos que fazem de Arafat e de Khaled heróis, por causa de sua adesão à violência revolucionária — o simbolismo é inteiramente claro.

Adoramos a um Deus que se fez carne e habitou entre nós, que chorou pela morte de seu amigo Lázaro e que suou sangue, em sua angústia no jardim do Getsêmani. Imaginá-lo entre os escombros de Gaza é compreender corretamente a presença e a solidariedade de Cristo para com aqueles que sofrem — tal como também poderíamos imaginá-lo entre os escombros de Kfar Aza.

Mas envolver Jesus em um keffiyeh vai além de um esforço de solidariedade, e significa abraçar não apenas o partidarismo ou o nacionalismo, mas também um símbolo de violência que vê expressamente a destruição da vida de judeus como ponto-chave para a história. É o símbolo de um movimento que glorifica como mártires indivíduos que amarram bombas ao corpo e explodem ônibus escolares. E isso não é uma expressão profunda de identificação ou de solidariedade; é uma obscenidade.

As pessoas ao redor de Jesus esperavam que ele pegasse em armas contra os romanos. Ele se recusou a fazer isso explicitamente. Na única ocasião em que um de seus discípulos empunhou uma espada, Jesus lhe disse para guardá-la (Mateus 26.52).

Da mesma forma, chamar Jesus de palestino é algo impreciso e irresponsável. Se for entendido como uma metáfora, é uma metáfora tosca — tão tosca quanto dizer: “Jesus é americano” ou “Jesus é haitiano”. Se for uma afirmação de caráter histórico, é ignorante. Jesus era um judeu da Judeia, e os romanos só estabeleceram a “Síria Palestina” mais de um século após a sua ressurreição, depois da revolta de Bar Kokhba, como um insulto aos judeus (pois o nome Palestina faz alusão a seus antigos rivais, os filisteus).

Tal desleixo e desrespeito pelos fatos é fruto natural do pensamento ideológico: a sua lógica distorce tudo o que se aproxima de sua órbita, assim como um buraco negro desvia a luz. No caso, transformar Jesus em um palestino enquadra-o na narrativa da descolonização, permitindo acreditar que ele nasceu em Belém, e, ao mesmo tempo, sustentando a ficção de que os judeus não têm qualquer direito histórico sobre a terra.

O que resulta disso é uma perigosa distorção moral. Ela alicia cristãos para a lógica — abraçada por grupos como o Hamas e por aqueles que acatam a narrativa “colonizador-colonizados” — que culpa os judeus pelos ataques de 7 de outubro. A presença de judeus “colonizadores”, segundo insistem estes grupos, é opressora para os nativos palestinos e, portanto, provoca a violência testemunhada em 7 de outubro. Tal lógica deixa a guerra em Gaza sem justificação, uma vez que é apenas mais uma expressão do poder colonial contra o povo nativo.

É também uma lógica anticristã. Se Jesus for tudo, menos judeu, o Leão da tribo de Judá, ele não pode ser o Messias. Transformar Jesus em outra coisa só faz sentido dentro da lógica distorcida desta ideologia.

Nos dias que se seguiram ao início da guerra, muito se falou da invocação do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para o povo se “lembra[r] do que Amaleque lhes fez”, em uma referência aos inimigos bíblicos de Israel. Os amalequitas foram prototerroristas particularmente bárbaros, que atacaram os israelitas durante o Êxodo, tendo como alvo os mais fracos e vulneráveis entre eles (Deuteronômio 25.17-18). Eles aparecem novamente em uma guerra contra o rei Saul, e fazem uma aparição final no Livro de Ester. O grande inimigo desse livro, Hamã, é um agagita — uma referência a Agague, rei dos amalequitas, a quem Saul poupou contrariando a ordem de Deus (1Samuel 15.7-9).

Na obra God and Politics in Esther, o filósofo judeu Yoram Hazony escreve sobre os amalequitas:

Não temos ideia de quais deuses governavam os amalequitas. Nenhum foi nomeado e, pelo que sabemos, pode não ter havido nenhum. O que sabemos é que quaisquer que sejam os deuses que tenham pertencido a Amaleque, como povo eles não temiam quaisquer limites morais estabelecidos por esses deuses. E, ao contrário até mesmo do que os mais depravados idólatras de Canaã, eles não respeitavam nenhum limite ao seu desejo de controlar tudo o que lhes convinha.

A capacidade sem fim para o mal tornou-se, para os judeus, um símbolo da violência antissemita desenfreada.

A advertência de Deuteronômio 25, para que se lembrem de Amaleque, é lida todos os anos no início da festa do Purim, solenidade que nasce do livro de Ester e é uma celebração da sobrevivência dos judeus. Hamã conspirou para matar todos os judeus do Império Persa e quase conseguiu fazê-lo, seduzindo o rei com uma teoria da conspiração antissemita:

Existe certo povo disperso e espalhado entre os povos de todas as províncias de teu império, cujos costumes são diferentes dos de todos os outros povos e que não obedecem às leis do rei; não convém ao rei tolerá-los. Se for do agrado do rei, que se decrete a destruição deles. (Ester 3.8–9)

A raiz do ódio de Hamã é a resistência de Mordecai, um judeu que se recusa a curvar-se para ele, como se fosse um ídolo. Nisto encontramos outra raiz do antissemitismo: a exigência de assimilação. Desde que Deus chamou Abraão, a sua tribo e os seus herdeiros foram separados dos seus vizinhos por suas crenças e práticas, e a recusa deles em se assimilarem tornou-os muitas vezes objeto de desprezo [desses outros povos]. Mas, como a história mostra de tempos em tempos, o que começa com os judeus raramente termina com os judeus. A perseguição romana aos judeus foi uma antecessora da perseguição aos cristãos. Os nazistas assassinaram também milhões de não judeus — entre eles dissidentes do regime, ciganos, polacos e soviéticos, homossexuais, cristãos que rejeitaram a ideologia nazista e pessoas com deficiência.

Telhado derretido e destroços queimados na parte externa de uma casa, em Kfar Aza.Michael Winters, para Christianity Today
Telhado derretido e destroços queimados na parte externa de uma casa, em Kfar Aza.

As ideologias da descolonização e das organizações terroristas islâmicas visam exterminar Israel, do rio ao mar, mas o seu apetite pela violência revolucionária provavelmente não se satisfará com tanta facilidade.

Em contraste, os cristãos, especialmente os evangélicos, deveriam ser os maiores defensores da liberdade e do pluralismo. E não apenas pelo bem da nossa própria liberdade de adorar como quisermos, mas pelo bem do próprio evangelho. A Boa Nova brilha mais intensamente em uma sociedade onde haja liberdade para rejeitá-la, de modo que os convertidos possam verdadeiramente fazer brilhar a sua luz diante dos homens. O antissemitismo (na forma da ideologia islâmica), o anticolonialismo, a supremacia branca e até mesmo o nacionalismo cristão são todos precursores da erosão das liberdades que impedirá a propagação do evangelho ou distorcerá a sua mensagem.

Alguns ouviram a invocação de Amaleque por Netanyahu como um apelo à vingança contra os cidadãos de Gaza, mas poucos judeus praticantes a teriam entendido dessa forma, segundo o rabino Elchanan Poupko. (Na verdade, o próprio discurso de Netanyahu fez distinção entre o Hamas e os cidadãos comuns.) Em vez disso, tal como a invocação de Amaleque no Purim, ela é um lembrete de que o antissemitismo surge novamente a cada geração e, pela providência de Deus, o povo judeu persevera.

A Edícula, santuário construído em torno do túmulo de Jesus, fica no extremo oposto da Igreja do Santo Sepulcro e do Gólgota. A luz, que fica nebulosa pela fumaça das velas e pelo incenso, entra pelas janelas feitas na cúpula acima dela.

O local está mais vazio do que o normal esta manhã. É claro que “ele não está aqui”, como disse o anjo a Maria, na manhã de Páscoa; hoje, porém, também não estão aqui peregrinos nem adoradores.

É neste santuário que penso com mais frequência, quando penso em Jerusalém — este lugar onde o arco da história se inverteu. Foi uma reviravolta chocante na sorte dos discípulos de Jesus, e tenho de acreditar que foi um choque para o próprio Diabo. Os evangelhos de Lucas e de João nos dizem que ele estava por trás da traição de Jesus (Lucas 22.3; João 13.27), e Apocalipse 12 o retrata como alguém que persegue o menino Jesus desde o momento de sua concepção, orquestrando todo tipo de violência contra ele. Desde o momento da prisão de Jesus até o seu último suspiro na cruz, o Diabo desencadeou todo tipo de dor e humilhação.

Mas neste sepulcro de calcário, todo aquele mal e aquela destruição provaram ser uma falha de imaginação. Satanás não poderia prever que, ao destilar violência e ódio sobre o corpo de Cristo, ele na verdade libertaria o corpo de Cristo — a igreja — do cativeiro.

E é neste estranho ambiente — que, a despeito de todas as velas e enfeites não supera suas raízes humildes de um simples túmulo em Jerusalém — que encontramos a única e verdadeira “chave da história”. Ela não nos fornece uma ideologia. Não nos oferece nenhum mapa para o passado ou para o futuro, e dificilmente responde a todas as nossas perguntas. Em vez disso, ela nos insere em uma história marcada por mistério e esperança. E nos promete um futuro em que a violência acabará, em que espadas serão transformadas em arado e as nossas tristezas serão recolhidas como lágrimas em cálices, embora não nos forneça um roteiro simples para dar início a esse futuro. Ao contrário, essa chave nos convida à paciência e à esperança, e promete a presença de Cristo enquanto esse futuro não chega, aconteça o que acontecer.

Ao me ajoelhar na Edícula, penso na violência cometida contra o corpo de Cristo, a poucos passos de distância, no Gólgota. Penso também em Kfar Aza, onde o Hamas desencadeou o seu culto à morte sobre o corpo de judeus. E fico impressionado com os pontos em comum entre as duas situações.

A Igreja do Santo SepulcroMichael Winters, para Christianity Today
A Igreja do Santo Sepulcro

Ambos os atos desafiam a razão, uma vez que ambos convidam a uma resposta de alguém com um poder radicalmente desproporcional à sua disposição. Mas isso em si é uma revelação; a violência e o sofrimento eram o ponto principal, pois o ódio satânico por trás deles não era compelido pela razão, mas pela raiva. Satanás odeia o povo judeu pela mesma razão que odeia a igreja — eles revelam algo sobre aquele que ele mais odeia.

Essa comparação tem seus limites, é claro, e um deles é a diferença entre Jesus, que disse: “Ninguém pode tirar minha vida de mim”, e os residentes de Kfar Aza, que desejavam nada mais do que a paz com seus vizinhos de Gaza. Embora seja possível sugerir que a ira assassina contra eles tenha origens em comum com o ódio a Jesus, é grotesco sugerir que devam ser massacrados.

Aqui novamente nos voltamos para Ester. O ponto central desse livro não é a justiça que será feita em relação a Hamã; é o pedido de Ester. Ela arrisca a própria vida para pedir ao rei não que poupe os judeus, mas que os deixe se defenderem. Ester é, neste sentido, um texto principalmente político, que descreve não a atitude de um indivíduo que deve dar a outra face, quando injustiçado por outro, mas sim a responsabilidade de uma tribo de defender o seu povo da aniquilação.

Podemos discutir sobre os detalhes e as táticas através das quais Israel poderá fazer isso. E deveríamos fazê-lo. Mas deveria ficar claro — quando Israel está trabalhando para fornecer socorro por meio de corredores humanitários, alimentos e medicamentos, e aviso prévio de ataques aéreos, e quando diz explicitamente que está tentando minimizar o número de vítimas civis — que não há equivalência moral com o Hamas, o qual, por sua vez, diz o contrário, tem civis como alvo, e se regozija com o assassinato de mulheres, crianças e bebês.

Somente a ideologia é capaz de distorcer a nossa visão e de nos cegar para essa assimetria moral. Se estamos com dificuldade de enxergar isso, precisamos nos perguntar o porquê.

Mike Cosper é o diretor da CT Media. Sua obra mais recente é Land of My Sojourn, e seu próximo livro, The Church in Dark Times, explora a ideologia no evangelicalismo.

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Vivendo em um tempo sem respostas

Aprendendo a ter uma esperança serena em meio à dor.

Christianity Today March 3, 2024
Óleo sobre painel: Evening Romance, Cherith Lundin, 30 x 48 &quot

O Senhor é bom para com aqueles cuja esperança está nele, para com aqueles que o buscam; é bom esperar tranquilo pela salvação do Senhor. Lamentações 3.25-26

Este ano, estou aprendendo a ter uma esperança serena. Minha filha de oito anos tem síndrome de Down. Seu caminho já sinuoso tomou um rumo inesperado quando, com apenas seis meses de idade, uma tempestade implacável de convulsões causou-lhe danos no cérebro e no corpo. As deficiências e os atrasos deixados pelas convulsões afetaram todos os aspectos de sua vida.

Enquanto meu marido e eu lidávamos com seu diagnóstico, a jornada de nossa família se tornou uma peregrinação lenta e constante rumo ao desconhecido. Semana após semana, meu marido e eu nos sentávamos no tapete da fisioterapia com a nossa filha, desejando que seus músculos despertassem de seu sono, orando para que a estática em seu cérebro se acalmasse. Em meio à sua luta, recebíamos perguntas de amigos e familiares bem-intencionados, sobre quando ela daria seus primeiros passos ou falaria suas primeiras palavras. E não tínhamos respostas para dar.

O progresso era dolorosamente lento e, às vezes, nossos esforços pareciam uma causa perdida. Durante a pandemia passamos a fazer sessões virtuais de terapia e nos apegamos à tela do computador como se fosse uma tábua de salvação para o potencial da nossa filha. À medida que o isolamento se aprofundava e nossos corações ficavam pesados com a incerteza, cheguei a um ponto em que minha esperança parecia tão frágil quanto o corpinho da minha filha, prestes a se ferir ao menor toque. Meu marido perseverou, quando eu não consegui mais. Embora eu tivesse fechado o laptop, achando que seu zumbido silencioso de esperança havia se calado, ele continuou comparecendo às sessões virtuais de terapia. Ele alimentava um lampejo de expectativa, mesmo quando eu praticamente tinha me entregado ao desespero.

Com o passar do tempo e com o mundo saindo de seu sono, retomamos nossas peregrinações semanais para hospitais e clínicas, estacionando nossa minivan bagunçada em vagas reservadas para deficientes. Hoje, minha filha está na segunda série, ainda não consegue se levantar sozinha, mas com a ajuda de uma mão amiga ou de um andador [objeto com rodas que ajuda a criança a caminhar], seus pés conseguem se firmar em terreno sólido. Com um pouco de ajuda e incentivo, ela dá um passo à frente, e a esperança vai aumentando na medida da cadência de seus passos.

Amigos, familiares e até mesmo conhecidos têm tido sonhos recorrentes com a nossa filha andando. A primeira vez que tive esse sonho, acordei me sentindo tola por ter imaginado algo tão audacioso. Embrulhei minha tenra e delicada esperança em camadas de armadura de autoproteção. Entretanto, os escudos que mantive cuidadosamente levantados por tanto tempo se renderam recentemente: segurei as mãos da minha filha, enquanto ela estava em pé diante de mim, se balançando ao som da banda de louvor. Enquanto cantávamos, ela se jogou para a frente, com seu aparelho nas pernas e seu tênis rosa me puxando junto, indo em direção à frente do santuário com velocidade cada vez maior. Peguei-a em meus braços e pude ver algo que eu não tinha visto antes — a profunda verdade de que ela estava correndo para os braços amorosos de um Salvador que se importa.

Aquele que compreende as profundezas da nossa humanidade — que está bem familiarizado com nossos ossos cansados e nossos corações doloridos — chama minha filha de amada, ele a ama e, em uma reviravolta misteriosa, também ama a mim — que tenho dúvidas, sou cínica, e uma mãe que às vezes só consegue sussurrar a palavra esperança.

Deus não rejeita os desejos que acalentamos nos recantos silenciosos de nosso coração. O Deus que falou com Elias, tanto no silêncio quanto na tempestade, embala nossas frágeis esperanças e, como vemos em Lamentações 3, afirma que nossa paciência e nossa perseverança são boas.

Talvez eu não saiba se minha filha um dia correrá livremente, do lado de cá do céu, mas sei isto: o Senhor é bom para com aqueles cuja esperança está nele (v. 25). A Quaresma nos convida a contemplar nossa fragilidade. Lembre-se de que até mesmo esse prenúncio da esperança é uma dádiva preciosa neste período de reflexão, enquanto peregrinamos por este mundo exaurido. Quando tudo o que conseguir enxergar for uma oração sem resposta, não despreze os sinais de esperança, enquanto aguarda.

Nos momentos em que se perguntar se até mesmo seus mais frágeis clamores por ajuda serão em vão, lembre-se disso: “É bom esperar em silêncio, esperar em silêncio o auxílio de Deus” (Lamentações 3.25-26, MSG). Que nosso coração se encha de uma esperança silenciosa, serena, como uma dádiva sagrada. Que os ecos frágeis dessa esperança nos sustentem, ao darmos passos hesitantes e vacilantes, enquanto caminhamos com Deus em meio à espera, à escuridão e ao desconhecido.

Para refletir



Quando foi que você teve apenas um sussurro de esperança em sua vida? O que aconteceu?

Como sua definição de esperança muda, quando você considera não apenas a divindade, mas a humanidade de Jesus?

Kayla é autora e fundadora de Liturgies for Parents [liturgias para pais]. Ela vive em Iowa com o marido e quatro filhos.

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Books

A justiça americana determina que embriões congelados são crianças

Decisão inédita reconhece a vida em seus estágios iniciais, mas complica o futuro da fertilização in vitro.

Christianity Today March 2, 2024
BSIP / Universal Images Group via Getty Images

Em meados de fevereiro, o Alabama estendeu a proteção legal para além dos nascituros no útero, de modo a abranger nascituros fora do útero, tornando-se o primeiro estado americano a decidir que os embriões congelados são crianças perante a lei.

A decisão suscitou elogios por parte de alguns evangélicos que, por acreditarem que a vida começa na concepção, querem ver estes “bebês flocos de neve” serem tratados como pessoas, e não como produtos.

A decisão também complicou o futuro da fertilização in vitro (FIV) em todo o estado, desagradando pais atuais e futuros que recorreram ao procedimento. Ao menos um sistema hospitalar suspendeu por ora os tratamentos de fertilização in vitro.

Depois que o precedente Roe v. Wade foi derrubado, participantes do movimento pró-vida invocaram a 14ª. Emenda, que proíbe que se prive “qualquer pessoa da vida, da liberdade ou da propriedade”, e se uniram em torno das leis sobre a personalidade fetal para proibir o aborto e garantir os direitos humanos na concepção.

A medida para proteger os embriões era prevista tanto por ativistas antiaborto quanto por ativistas pelos direitos reprodutivos. Ela segue um padrão de políticas pró-vida no estado sulino: a constituição do Alabama protege “os direitos do nascituro” e a proibição do aborto no estado entrou em vigor após a decisão do caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, em 2022.

Em um processo movido pelos pais de vários embriões que foram destruídos em uma clínica de fertilidade, a Suprema Corte do Alabama afirmou que os nascituros são abrangidos pela Lei [estadual] sobre homicídio culposo de menores, independentemente do “estágio de desenvolvimento, localização física ou quaisquer outras características acessórias”, isto é, mesmo que estejam armazenados em um freezer e ainda não tenham sido implantados.

Estima-se que 1,5 milhão de embriões estejam congelados nos EUA, onde tratamentos de fertilidade como a fertilização in vitro estão se tornando mais comuns. No ano passado, 42% dos americanos — e 44% dos evangélicos brancos — disseram que eles mesmos ou alguém que conhecem buscaram assistência para fertilidade, superando os 33% em 2018, de acordo com o Pew Research Center.

A decisão não proíbe a fertilização in vitro, mas, como o procedimento muitas vezes resulta em sobras de embriões, os quais são mantidos indefinidamente congelados ou são destruídos, as clínicas de fertilidade não têm certeza de quais serão as implicações para eles e para o seu armazenamento.

“Por que é que todos os médicos especializados em fertilidade nos estados vermelhos [estados republicanos] estavam pirando, depois da decisão do caso Dobbs?” Katy Faust, fundadora da organização sem fins lucrativos Them Before Us, disse anteriormente à CT. “É porque eles [talvez não consigam] tocar seu negócio lá, se não puderem destruir vidas humanas.”

A questão do excesso de embriões provenientes da fertilização in vitro e a ética do processo em si tornaram-se uma parte importante das discussões pró-vida entre os evangélicos, incluindo a defesa da adoção de embriões.

O magistrado Jay Mitchell — que frequenta a Church of the Highlands, uma megaigreja com congregações em vários locais — foi o redator da opinião majoritária na decisão sobre o caso dos embriões. Ele se concentrou no entendimento da palavra criança, e não mencionou Deus.

“Aqui, o texto da Lei [estadual] sobre homicídio culposo de menores é abrangente e sem especificações. Aplica-se a todas as crianças, nascidas e não nascidas, sem limitação”, afirmou a decisão.

“Não é função deste Tribunal criar uma nova limitação, baseada em nossa própria visão, do que é ou não uma política pública sensata. Isto é especialmente verdade em lugares, como aqui, onde o povo deste Estado adotou uma emenda constitucional que visa diretamente impedir que os tribunais excluam a ‘vida não nascida’ da proteção legal.”

Uma opinião concordante do Chefe de Justiça Tom Parker, no entanto, baseia-se numa compreensão bíblica da personalidade e faz referência a Gênesis, ao apóstolo Paulo, a Tomás de Aquino, a Santo Agostinho e a João Calvino. Parker — que é membro da Igreja Frazer, uma congregação Metodista Livre em Montgomery — concluiu:

A visão teológica sobre a santidade da vida, adotada pelo povo do Alabama, abrange o seguinte: (1) Deus fez cada pessoa à Sua imagem; (2) cada pessoa tem, portanto, um valor que excede em muito a capacidade que os seres humanos têm de calcular; e (3) a vida humana não pode ser destruída injustamente, sem incorrer na ira de um Deus santo, que vê a destruição da Sua imagem como uma afronta a Si mesmo.

Andrew Walker, professor de ética e teologia pública no Southern Baptist Theological Seminary, chamou a decisão de “um avanço impressionante, repleto de significado moral”.

Nikki Haley, candidata republicana à presidência, que engravidou de seu filho por meio de inseminação intrauterina (IIU), fez referência às suas lutas pela fertilidade na campanha e concordou que os embriões “são bebês” na NBC News, na quarta-feira.

“Uma coisa é congelar espermatozóides ou óvulos, mas quando se fala de um embrião, estamos falando de — bom, para mim, isso é uma vida”, disse Haley, cuja IIU não exigiu a criação de embriões fora do corpo.

Haley, uma metodista que se descreve como pró-vida, enfatizou a necessidade de consenso na esfera federal, quando se trata de aborto, e vê mais oportunidades na esfera estadual.

“Quando vemos mais mulheres com problemas para engravidar e mais mulheres fazendo inseminação artificial e in vitro, essas são discussões que precisamos ter”, disse ela. “Mas também são discussões em que precisamos ter mulheres e médicos envolvidos, para que digam: ‘Como queremos lidar com isso, daqui para frente?’”

Mesmo antes da decisão do Alabama, o caso Dobbs tornou mais difícil para casais que fizeram fertilização in vitro doarem aos pesquisadores embriões que optarem por não implantar. O jornal The Washington Post informou que o RENEW Biobank, da Universidade de Stanford, que antes aceitava embriões de 49 estados, hoje aceita de apenas 7 estados — os demais exigem uma revisão extra, no caso de os doadores violarem as leis do seu estado de origem.

Historicamente, os católicos têm manifestado mais preocupações teológicas em torno da reprodução assistida do que os protestantes, embora haja mais pessoas no movimento pró-vida que agora prestam atenção à questão. Os pais evangélicos que desejam ter filhos, mas lutam contra a infertilidade, podem optar pela fertilização in vitro, mas limitando o número de embriões criados, para que cada um deles possa ser implantado.

Apesar de algumas reservas, o teólogo Wayne Grudem escreveu, em 2019, para o ministério The Gospel Coalition que “se a fertilização in vitro for usada por um casal, e se forem tomados cuidados para evitar a destruição intencional de embriões, então, é uma ação moralmente boa, que agrada a Deus, porque não viola nenhuma orientação bíblica, alcança o bem moral de superar a infertilidade e traz a bênção dos filhos para mais uma família.”

Jennifer Lahl, presidente do The Center for Bioethics and Culture Network, há anos tem levantado preocupações sobre a reprodução assistida. Após a decisão do Alabama, ela apontou para a proibição alemã de congelar embriões, que está em vigor desde 1990.

“A fertilização in vitro ainda é legal e o céu não caiu”, disse ela. “Você só não pode fazer muitos [embriões] e congelá-los; você deve implantá-los.”

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Books

A JOCUM reúne forças, após 11 missionários morrerem e 8 ficarem feridos em acidente de ônibus, na Tanzânia

Darlene Cunningham: “Nunca tivemos uma tragédia desta magnitude em toda a [nossa] história… a morte de [líderes] cria um vácuo enorme para a JOCUM.”

Um acidente envolvendo quatro veículos aconteceu no subúrbio de Arusha, nordeste da Tanzânia, no dia 24 de fevereiro.

Um acidente envolvendo quatro veículos aconteceu no subúrbio de Arusha, nordeste da Tanzânia, no dia 24 de fevereiro.

Christianity Today March 1, 2024
Video screen grab / Wasafi Media / YouTube / RNS

Dias depois de um acidente de ônibus ter matado 11 de seus missionários, na Tanzânia, os líderes da organização Jovens com uma Missão (JOCUM) estão “devastados”, mas reunindo orações e apoio para ajudar com evacuações médicas, repatriações e preparativos para os funerais, gastos que, segundo as expectativas, custarão centenas de milhares de dólares.

Os missionários cristãos, sete dos quais eram de outros países, entre eles um dos Estados Unidos, morreram na área de Ngaramtoni, perto da cidade de Arusha, que fica no norte da Tanzânia, país situado na África Oriental.

As autoridades dizem que um caminhão de construção atingiu um dos dois micro-ônibus que transportavam os missionários. Eles tinham participado de um curso de “Mestrado Executivo em Liderança” e voltavam de uma visita de campo nas terras Maasai, quando o caminhão perdeu os freios, colidindo com o ônibus.

“Nunca tivemos uma tragédia desta magnitude em toda a história da JOCUM e estamos todos arrasados”, afirmou Darlene Cunningham, cofundadora da JOCUM, em uma carta datada de 26 de fevereiro. Ela explica:

Os indivíduos envolvidos na organização do Mestrado Executivo eram líderes-chave da JOCUM na região — alguns deles lideravam bases da JOCUM que estavam prosperando; outros dedicavam-se à liderança no campo da educação e outras esferas; outros ministravam em locais de acesso restrito, onde ninguém mais se atreveria a ir — e viam a mão de Deus sobre os seus ministérios de maneiras surpreendentes. Os estudantes atraídos para o Mestrado Executivo eram pessoas do mesmo calibre —missionários pioneiros da JOCUM, comprometidos por toda uma vida. Portanto, para a JOCUM, como movimento missionário, as mortes desses obreiros criam um enorme vácuo nesta parte do mundo.

Na quarta-feira (28 de fevereiro), membros da JOCUM na região realizaram orações e cultos de despedida dedicados a seus colegas falecidos.

“O clima é de muita tristeza,” disse Bernard Ojiwa, um líder da JOCUM na Tanzânia, ao Religion News Service, em um telefonema, da cidade de Arusha. “Começamos a jornada para fazer os enterros dos membros locais.”

“Também estamos fazendo um planejamento para ver como os corpos dos membros estrangeiros poderão ser enviados para casa. Por enquanto, os corpos permanecem no necrotério”, acrescentou.

Fontes da polícia em Arusha disseram que os sete estrangeiros eram do Quênia, Togo, Madagáscar, Burquina Faso, África do Sul, Nigéria e EUA.

A JOCUM não divulgou os nomes completos de seus missionários falecidos, porque muitos trabalhavam sob risco de segurança em nações que não são cristãs. “Todos os que morreram eram líderes de projetos, de centros de formação e de ministérios”, observou o ministério, em uma atualização fornecida em seu site. “É um golpe imenso para a nossa missão, especialmente para o continente africano, o Oriente Médio e a Europa.”

O acidente, que envolveu quatro veículos motorizados ao todo, matou 25 pessoas, das quais 11 eram membros da JOCUM, e feriu 21, das quais 8 pertenciam a essa organização missionária. John Mukolwe, queniano que é líder de base da estação de Arusha, estava entre os mortos.

“Mukolwe era meu amigo há mais de 30 anos. Sua morte me deixa muito triste”, disse Karin Kea, administradora da base da JOCUM na área do rio Athi, no Quênia.

Abel Sibo, membro da missão que era do Burundi, postou um vídeo no Facebook dos missionários da JOCUM cantando o hino “Este é o dia que o Senhor fez”, e disse que o grupo estava cantando este hino antes de o acidente ocorrer.

Segundo lideranças da JOCUM, membros da missão do mundo inteiro vieram para a região do acidente, a fim de oferecer apoio moral, pastoral e aconselhamento.

“Nossos irmãos e nossas irmãs na Tanzânia estão carregando muita coisa neste momento”, escreveu Cunningham, em sua carta à família JOCUM. “Aqueles que sobreviveram ao acidente e foram os primeiros a prestar socorro estão sofrendo um trauma que será profundo e duradouro. As tarefas práticas que precisam ser realizadas pelos sobreviventes na base, após uma tragédia como essa, são enormes, enquanto ainda tentam superar sua própria dor.”

A JOCUM foi fundada por Loren e Darlene Cunningham, em 1960, com a ênfase no envio de jovens voluntários de diferentes denominações para servir em missões de evangelização de curto prazo. A organização tem hoje cerca de 2 mil escritórios em todo o mundo, e envolve missionários de 200 países.

A JOCUM estabeleceu sua presença em Arusha no ano 2000, e, desde então, abriu três escritórios totalmente equipados na região. Os programas educacionais do centro incluem aulas sobre o ministério do discipulado, alfaiataria, conhecimentos de informática e língua inglesa, entre outras.

“Nestes dias que estamos vivendo, lágrimas estão sendo derramadas em todo o mundo, por indivíduos, famílias e jocumeiros do mundo inteiro. Pessoalmente, estou sofrendo com o peso desta notícia, pois conheci pessoalmente muitos desses indivíduos e os amava”, escreveu Cunningham. Ela encorajou a ler três versículos bíblicos:

• Apeguem-se ao fato de que, não importa o que aconteça, sabemos que Deus é justo e bondoso em todos os seus caminhos (Salmos 145.17).

• Lembrem-se de Jó 42.2. Ele havia perdido tudo e sua resposta a Deus foi: “Sei que podes fazer todas as coisas; nenhum dos teus planos pode ser frustrado”. Vamos nos apegar a essa palavra!

• Lembrem-se de Isaías 41.10: “Por isso não tema, pois estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o ajudarei; Eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa”.

A presidente da Tanzânia, Samia Suluhu Hassan, enviou uma mensagem de condolências e apelou para o aumento da inspeção veicular e da aplicação das leis de trânsito, para evitar mais perdas de vidas.

“Esses acidentes ceifam a vida de nossos entes queridos, da força de trabalho nacional e de pessoas das nossas famílias. Continuo a apelar para que todos sigam as leis de trânsito para o uso de veículos”, escreveu Suluhu no X (antigo Twitter). “Envio minhas condolências aos familiares e amigos que perderam seus entes queridos. Que descansem em paz com o Deus Todo-Poderoso! Amém!”

“Gosto de pensar que Loren está lá, nos portões do céu, para cumprimentar e dar as boas-vindas a esses onze amados jocumeiros!”, escreveu Darlene Cunnigham. “Nossos corações se alegram por saber que estão felizes por estar com Jesus, enquanto, ao mesmo tempo, choramos a perda da presença deles entre nós”.

Cobertura adicional da equipe da CT.

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O que um dissidente russo assassinado tem a nos ensinar sobre coragem moral

Alexei Navalny se dispôs a lutar sozinho. Mas sabia que nunca estaria sozinho na história maior.

Alexei Navalny, próximo a agentes da polícia, no corredor do centro empresarial onde fica o escritório de sua Fundação Anticorrupção, em Moscou.

Alexei Navalny, próximo a agentes da polícia, no corredor do centro empresarial onde fica o escritório de sua Fundação Anticorrupção, em Moscou.

Christianity Today February 29, 2024
Dimitar Dilkoff / Contributor / Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva -se aqui.

O presidente russo Vladimir Putin assassinou outro cristão esta semana. Foi apenas mais um dia no suposto projeto de Putin de proteger “o Ocidente cristão” da impiedade. Afinal, como eles dizem, não se pode criar um império nacionalista cristão sem matar algumas pessoas.

Antes que o mundo esqueça o cadáver de Alexei Navalny em algum compartimento abaixo de zero de uma colônia penal no Ártico, devemos olhar para ele — especialmente aqueles de nós que seguimos a Jesus Cristo — para entender o que realmente é coragem moral.

Navalny foi talvez o dissidente mais reconhecidamente anti-Putin do mundo, e é agora um dos muitos inimigos de Putin a acabar “repentinamente morto”. Ele sobreviveu a um envenenamento, em 2020, recuperou-se na Europa e, finalmente, regressou à sua terra natal, apesar de saber o que iria enfrentar. Quando falava de sua dissidência e de sua disposição para suportar as consequências, Navalny repetidamente fazia referência a sua profissão de fé cristã. Emily Belz, minha colega na Christianity Today, teve acesso a uma transcrição do julgamento de 2021, em Meduza, na qual Navalny explica, em termos surpreendentemente bíblicos, o que significa alguém sofrer pelas próprias crenças.

“O fato é que sou cristão, o que normalmente me coloca na posição de objeto constante de ridículo na Fundação Anticorrupção, porque a maior parte dos nossos funcionários é composta de ateus, sendo que eu próprio já fui um ateu bem militante”, disse Navalny (conforme tradução feita pelo Google Translate). “Mas agora sou crente e isso ajuda muito em minhas atividades, pois tudo fica muito, muito mais fácil.”

“Há menos dilemas na minha vida, porque tenho um livro em que, geralmente, está escrito, de forma mais ou menos clara, quais atitudes devo tomar em cada situação”, explicava ele. “Nem sempre é fácil seguir este livro, é claro, mas estou realmente tentando.”

Navalny disse especificamente que era inspirado pelas palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos” (Mateus 5.6, NASB).

“Sempre pensei que este preceito específico é mais ou menos uma instrução para agir”, disse Navalny. “E então, embora certamente eu não goste muito do lugar onde estou, não me arrependo de ter voltado [para meu país] nem do que estou fazendo. Estou em paz, porque fiz a coisa certa.”

“Pelo contrário, sinto uma verdadeira satisfação”, disse ele. “Pois, em um momento difícil, agi conforme as instruções e não traí o preceito.”

Essas palavras podem parecer um pouco fáceis demais. Afinal — poderia replicar algum incrédulo —, a maioria das pessoas no movimento pró-democracia e antitirania, do qual Navalny fazia parte, não acreditava, de fato, “nas instruções” das Escrituras. E o próprio Putin é apoiado por líderes-chave da Igreja Ortodoxa Russa, onde alguns estão dispostos — tanto quanto qualquer profeta da corte já esteve — a batizar o seu assassinato com a linguagem da virtude cristã e da civilização cristã. (Embora também existam exemplos de dissidência fiel.)

Mas essa reação não entende o que Navalny queria dizer. Ele não estava dizendo que cristãos são corajosos e que incrédulos não são. Há amplas evidências em contrário —na Rússia e também em outros lugares — que poriam tais noções para correr.

Navalny reconhecia, no entanto, que o fascínio da covardia moral, quando enfrentado com coragem, significa ficar sozinho. A consciência sempre pode se assegurar de que ficar quieto neste momento é a coisa certa. Navalny reconhecia o terror presente na ideia de ser deixado de fora de um campo de pertencimento — na ideia de ser rotulado como traidor por seus compatriotas e como herege por seus irmãos religiosos.

Resistir à atração dessa turba requer uma motivação diferente de uma chance de “sucesso” político melhor que o de sempre. Navalny reconhecia que é preciso, como disse certa vez o missionário evangélico Jim Elliot, abraçar a “estranheza”.

“Para uma pessoa dos tempos de hoje, todo esse preceito — ‘bem-aventurados’, ‘os que têm fome e sede de justiça’, ‘porque serão satisfeitos’ — soa, evidentemente, muito pomposo”, dizia Navalny. “Soa um pouco estranho, para ser honesto.”

“Ora, falando francamente, as pessoas que dizem essas coisas deviam parecer malucas”, reconhecia ele. “Pessoas malucas, estranhas, sentadas ali na cela, com os cabelos desgrenhados e tentando se animar com alguma coisa, embora sejam sós, solitárias, pois ninguém precisa delas.”

“E esta é a coisa mais importante que o nosso governo e todo o sistema estão tentando dizer a essas pessoas: você está sozinho”, continuou ele. “Você é um solitário. Primeiro é importante intimidar; depois, provar que você está sozinho.”

Com isso, Navalny não só identificou os próprios motivos para a estranheza consciente, mas também contradisse a própria natureza da concepção putinista de cristianismo. Nesse regime, ser “cristão” é ser russo (ou ser o equivalente local de-sangue-e-solo, qualquer que seja ele). Ser “cristão” é ser uma pessoa “normal” — que não se dispõe a sair da linha, a expor a própria consciência a qualquer pensamento que possa lhe trazer dificuldades.

Após o assassinato de Navalny, a The Free Press publicou cartas trocadas entre Navalny e Natan Sharansky, famoso ex-dissidente soviético que cumpriu pena na mesma colônia penal do Ártico, durante alguns dos anos mais perigosos do regime comunista. Passagens bíblicas são citadas do começo ao fim das cartas, e há inclusive uma brincadeira de Navalny sobre “onde mais passar a Semana Santa”, senão no complexo prisional que o homem mais velho chamava de “alma mater”.

Esta era a raiz, creio eu, da coragem moral de Navalny, da sua disposição de ficar sozinho, da sua prontidão em morrer. A questão não é apenas que ele sabia alguns versículos da Bíblia; o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, que é apoiador de Putin, sem dúvida sabe muito mais. A questão é a maneira como ele parecia conhecer as Escrituras. Ele parecia reconhecer não só as meras “instruções” de Jesus sobre ter fome e sede de justiça, sobre ser abençoado na perseguição, mas reconhecia também a história que estava por trás e em volta dessas instruções. Ele sabia que tais palavras pareciam estranhas. E sabia que eles pareciam loucos.

Na introdução à sua coleção de poemas sobre a alegria, Christian Wiman observa que os primeiros ouvintes da mensagem do Novo Testamento, ofendidos pela estranheza do que ouviam, “poderiam muito bem ter voltado para casa, passando por fileiras de cadáveres crucificados, destinados especialmente a erradicar todas as causas de qualquer esperança ou alegria insurreicionista.” A estranheza era o ponto. Ninguém pode de fato ouvir o que Jesus está dizendo, quando chama os esquecidos, os perseguidos, os pobres e os injuriados de “bem-aventurados”, a menos que entendamos por que sua própria família pensava que ele estava “fora de si” (Marcos 3.21).

Provavelmente, foi por isso que Navalny reconheceu com tamanha clareza os métodos do regime de Putin para fazer com que os dissidentes se sentissem estranhos, loucos e sozinhos: Navalny já tinha visto isso antes, com um Império Romano que fazia a mesma coisa usando cruzes.

Aqueles que têm coragem moral — sejam eles de todas as religiões, sejam eles pessoas sem fé — têm motivações de todos os tipos para as suas convicções. Mas — seja qual for a motivação — não se pode manter a coragem moral se não estiver disposto a ser afastado de tudo o que chamamos “minha casa”, daqueles a quem chamamos “meu povo”. Essa é a alegre ironia: ninguém jamais está sozinho, quando faz parte de uma história maior, quando pertence a um corpo maior.

A nuvem de testemunhas inclui Elias e Jeremias, Pedro e Paulo, Máximo e Bonhoeffer, e inúmeros outros que morreram aparentemente abandonados, que pareciam loucos em sua época (Hebreus 12.1). É de pessoas como estas — e não de bispos “cristãos alemães” do Reich ou do patriarcado Ortodoxo que apoia Putin — que nasce a próxima geração da nossa fé.

O objetivo da “fome” e da “sede” é que a pessoa seja levada a ver que algo está faltando — que tudo o que é oferecido para satisfazê-la não é suficiente. O próprio apetite por tais coisas é um sinal de que aquilo de que se tem fome e sede, na realidade, está lá [no outro mundo].

Uma pessoa pode ver isso, às vezes, até mesmo de um gulag (campo de concentração russo). Isso é estranho. Isso é loucura. Mas é isso que ao menos uma Pessoa que conheço chamaria de “bem-aventurados”.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública.

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