Já não nos restam mais lágrimas

A história da Ucrânia foi marcada por tragédia e bravura. O que podemos aprender com esse povo e como podemos orar por eles?

Christianity Today March 19, 2022
Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: Lisa Fotios / Pexels / WikiMedia Commons

Por mais de um mês, o mundo assistiu à Rússia começar a cercar a nação ucraniana, insistindo o tempo todo que não tinha planos de invasão. Agora, vemos um horror que se desenrola diariamente diante dos nossos olhos.

Ouvimos falar de projéteis de artilharia terem caído em uma usina nuclear. De jardins de infância e teatros que foram bombardeados. De blocos de apartamentos e bairros inteiros reduzidos a escombros. De um tanque ter matado três pessoas que estavam em um carro. De centenas de órfãos que entraram na Polônia, alguns desacompanhados, atordoados e chorando enrolados em seus cachecóis.

Vimos civis desarmarem uma bomba russa com as próprias mãos. E moradores beberem água de aquecedores de água, depois de semanas sobrevivendo a temperaturas congelantes sem eletricidade nem aquecimento. Vimos ataques aéreos a pelo menos 20 unidades de saúde, incluindo uma maternidade e um hospital infantil.

A resposta ucraniana a tal ataque devastador cativou o mundo. O serviço de pesquisa “Rating” informa que 88% dos ucranianos acreditam que vão repelir o ataque russo e 98% apoiam as ações das forças armadas ucranianas.

Mais de dois milhões de ucranianos fugiram por segurança, mas os que ficaram têm resistido com bravura. Eles estão revidando com coquetéis molotov e rifles de caça, em apoio às suas forças armadas, às quais tiveram um desempenho melhor do que qualquer um imaginava — especialmente Vladimir Putin.

Peter Wehner escreveu no The Atlantic que “o que atraiu apoio à Ucrânia foram as virtudes humanas que estão sendo exibidas em meio a um terrível drama humano”.

“Foi ver pessoas comuns — entre elas jovens e idosos — agindo de maneira extraordinária para defender o país que amam, contra todas as probabilidades. Foi ver as pessoas fazendo a coisa certa, correndo risco de morte, quando quase todos os instintos dentro delas deveriam estar gritando: Faça o que for preciso para sobreviver, mesmo que a sobrevivência, embora não seja desonrosa, seja menos honrosa.”

E ele continua: “Seja qual for o destino que os aguarda — e agora os russos estão sitiando cidades que abrigam milhões de pessoas — o povo e o presidente da Ucrânia [Volodymyr Zelensky] mostraram que o amor à honra jamais se torna algo ultrapassado, mesmo para um mundo às vezes indiferente, exaurido e cínico”.

Como Martin Luther King Jr. disse certa vez sobre a luta contra a injustiça: “Se um homem não descobriu algo pelo qual morrer, não está pronto para viver”.

Com sua trágica história, a Ucrânia é uma nação que se familiarizou com o sofrimento.

Visitei o país em 2018, e descobri que os principais pontos turísticos eram monumentos que traziam à memória atrocidades humanas do passado da nação. Visitei o Museu da Fome, um memorial aos milhões de ucranianos que morreram de fome na década de 1930, quando os soviéticos tomaram suas fazendas e confiscaram suas colheitas.

Outros museus relatam a ocupação pelo exército de Hitler, na Segunda Guerra Mundial, quando somente Kiev sofreu um milhão de baixas — mais do que o número total de baixas de americanos em toda a guerra. No campo, os combates destruíram 28 mil aldeias.

No dia seguinte, visitei uma ravina gramada nos limites da cidade. Hoje Babi Yar é um parque, um pacífico ambiente silvestre, aninhado em um bairro de lojas e casas; mas o próprio nome evoca cenas de genocídio. Babi Yar foi o primeiro ato de assassinato em massa de Hitler em sua campanha contra os judeus. Soldados da SS cercaram os judeus da cidade, desnudaram-os e os metralharam à beira de um penhasco.

Morreram cerca de 22 mil judeus no primeiro dia e 12 mil no segundo. Mais de um milhão de judeus ucranianos morreram no Holocausto, incluindo muitos parentes de Zelensky — um judeu que, compreensivelmente, acha revoltante que Vladimir Putin tenha tentado apresentar tanto o presidente quanto o governo ucraniano como parte de um movimento “neonazista”.

A derrota de Hitler levou a mais quatro décadas de ocupação soviética. Quando a URSS entrou em colapso, a Ucrânia finalmente viu uma oportunidade de se tornar independente. Em 1990, 300 mil ucranianos formaram uma corrente humana, em uma demonstração de unidade, dando-se as mãos ao longo de uma rota de cerca de 550 quilômetros de Kiev a Lviv.

No ano seguinte, 92% da população votou pela independência do país. Em um acordo à parte, a nova nação abriu mão de suas armas nucleares (o terceiro maior estoque do mundo) em troca de garantias de segurança. Como um dos signatários do acordo, a Rússia concordou em respeitar a integridade territorial da Ucrânia.

A democracia teve um começo difícil na Ucrânia. Se você acha que as eleições nos EUA são sujas, lembre-se de que, em 2004, quando o reformador ucraniano Viktor Yushchenko ousou desafiar Viktor Yanukovych — do partido apoiado pela Rússia —, ele quase morreu de um suspeito envenenamento por dioxina.

Ignorando o aviso, Yushchenko permaneceu na corrida presidencial, com o corpo enfraquecido e o rosto permanentemente desfigurado pelo veneno. No dia da eleição, uma pesquisa de boca de urna mostrava Yushchenko com 11% de vantagem, mas o governo em exercício conseguiu reverter esses resultados por meio de indisfarçada fraude.

Em uma das reviravoltas pouco conhecidas da história, os surdos desencadearam uma revolução pacífica. Na noite da eleição, a estação de televisão estatal informou: “Senhoras e senhores, anunciamos que o desafiante Viktor Yushchenko foi completamente derrotado”. No entanto, as autoridades governamentais não levaram em conta uma característica da televisão ucraniana: a tradução que ela oferece para deficientes auditivos.

Na imagem que aparece no canto inferior direito da tela da televisão, uma mulher corajosa, criada por pais surdos-mudos, transmitiu uma mensagem muito diferente na língua de sinais. “Estou me dirigindo a todos os cidadãos surdos da Ucrânia”, disse ela por meio de sinais. “Não acreditem no que eles [as autoridades] dizem. Eles estão mentindo e tenho vergonha de traduzir essas mentiras. Yushchenko é o nosso presidente!”.

Inspirados por essa tradutora, Natalya Dmitruk, os surdos enviaram mensagens de texto e e-mail a seus amigos sobre as eleições fraudulentas. Com o ato de desafio de Natalya, logo outros jornalistas tomaram coragem e também se recusaram a transmitir a versão do partido. Protestos espontâneos eclodiram nas principais cidades e nasceu a Revolução Laranja.

Em Kiev, 500 mil pessoas inundaram a Praça da Independência, muitas delas acampadas sob um clima frio e vestindo laranja, em apoio às cores da campanha de Yushchenko. Nas semanas seguintes, a multidão chegou algumas vezes a atingir um milhão de pessoas. Quando observadores externos provaram que a fraude eleitoral havia ocorrido, os tribunais ordenaram uma nova eleição — e desta vez, Yushchenko emergiu como o vencedor indiscutível.

Dez anos depois, o candidato apoiado pela Rússia, que Yushchenko derrotou, estava na presidência. Ele acumulou uma fortuna de 12 bilhões de dólares e morava em uma verdadeira mansão, com um zoológico particular, uma frota de 35 carros, um campo de golfe e um campo de tiro subterrâneo — enquanto a maioria dos ucranianos vivia na pobreza. Quando ele deteve a inclinação da nova nação em direção à Europa e, em vez disso, buscou laços mais estreitos com a Rússia, os ucranianos foram às ruas mais uma vez. O Parlamento finalmente ordenou novas eleições, e um presidente pró-Europa venceu.

Um guia barbudo chamado Oleg me conduziu por memoriais em homenagem aos “Cem Celestiais”, uma lista de nomes das 130 pessoas mortas por atiradores de elite do governo, durante a revolta de 2014. Outros 15 mil manifestantes ficaram feridos no mesmo protesto.

“Esta foi uma revolução da internet”, disse Oleg. “À medida que a notícia se espalhava online, os táxis começaram a oferecer caronas gratuitas para manifestantes de toda a cidade. Montei uma tenda de oração no meio de meio milhão de manifestantes, e passei 67 dias lá. Fornecíamos um local para oração e distribuíamos pão e chá quente para ativistas e policiais. E agora faço viagens para as linhas de frente em uma van blindada, transportando suprimentos de comida e água para os soldados e civis envolvidos no conflito no leste da Ucrânia”.

Logo após a “Revolução da Dignidade”, em 2014, a Rússia aproveitou a oportunidade para tomar a península da Crimeia e duas outras regiões, iniciando uma guerra de menores proporções que preparou o terreno para a invasão em grande escala que estamos assistindo agora.

Penso no pungente poema de Ann Weems, “Já não oro pela paz”. Como muitos, sinto uma sensação de desespero impotente ao ver as mortes e a devastação na Ucrânia. Como podemos orar por eles?

Eu oro primeiro pelos 40 milhões de ucranianos que ficaram para trás, lutando para sobreviver, enquanto jatos rasgam o céu do país e tanques atacam casas e hospitais.

Oro pelos refugiados que chegam à Hungria, Polônia, Moldávia e Romênia, bem como pelos milhares que tiveram a sorte de escapar para lugares distantes, como Reino Unido, França, Canadá e Estados Unidos. Oro pelos maridos e pais que ficaram em sua terra natal, arriscando suas vidas para repelir os invasores. Oro pelas famílias anfitriãs que vão ao encontro dos refugiados, nas fronteiras e nas estações de trem, oferecendo-lhes hospedagem gratuita.

Oro pelos ministérios cristãos como Mission Eurasia e New Hope Ukraine, muitos dos quais estão baseados na cidade-dormitório de Irpin, cenário de alguns dos combates mais ferozes.

Um dos líderes declarou em uma newsletter: “Aprendemos a amar e a odiar em um nível totalmente novo. Descobrimos o que significa odiar o mal no âmago do nosso ser. E aprendemos a amar a verdade. A verdade que nos liberta. […] A muitos de nós simplesmente já não nos restam mais lágrimas. Agora estamos tão irados com todas as injustiças praticadas contra nós, que pedimos ao Senhor dos Exércitos que mostre seu justo juízo.”

Oro pelos soldados russos. A inteligência britânica interceptou alguns de seus telefonemas em pânico para casa. Eles foram informados de que seriam recebidos com flores, como libertadores, e em vez disso se encontram no meio de uma guerra sangrenta contra ucranianos que estão determinados a resistir. O New York Times publicou uma reportagem, dizendo que algumas unidades russas desmoralizadas depuseram suas armas e se renderam, ou sabotaram seus próprios veículos, para evitar lutas.

Oro pelo povo russo, que está ouvindo uma versão totalmente diferente dos acontecimentos. Estão dizendo para eles que é uma operação militar restrita, sem vítimas civis. Enquanto isso, o Ocidente hostil está tentando sufocar economicamente seu país. Os russos que protestam contra a guerra são presos, enquanto outros correm o risco de serem presos por apenas usarem a palavra guerra nas mídias sociais.

Oro pelo meu próprio país, para que não nos deixemos abater pelos preços mais altos da gasolina e pela queda do mercado de ações, nem deixemos de apoiar aqueles que defendem a liberdade e a justiça.

Sim, também oro por Vladimir Putin. Jesus não nos disse para amar nossos inimigos e orar por aqueles que nos perseguem? Seria necessário um milagre colossal para um ditador com uma determinação tão egocêntrica passar por uma mudança de coração — o tipo de milagre que os hebreus exilados testemunharam nos dias de Nabucodonosor (Daniel 4).

Tish Harrison Warren escreveu recentemente sobre a ira materna que sentiu, ao olhar para a imagem de um pai ucraniano, angustiado, segurando o corpo sem vida e coberto de sangue do seu filho: “Uma criança inocente foi morta violentamente porque o líder da Rússia decidiu que queria tomar para si um país vizinho e soberano”.

Ela encontrou um tipo estranho de consolo nos salmos imprecatórios, que invocam o juízo de Deus sobre o mal. “Este é o mundo em que vivemos”, escreveu ela. “Não podemos simplesmente dar as mãos, cantar “Kumbaya” e esperar o melhor. Nossos corações clamam por julgamento contra a maldade que deixa pais chorando sós por seus filhos assassinados. Precisamos de palavras para expressar nossa indignação diante desse mal”.

Para os cristãos, Putin é uma lição de advertência. Após a dissolução da União Soviética, a antiga Rússia ateia acolheu calorosamente um influxo de missionários estrangeiros, que ensinaram a Bíblia em escolas públicas, abriram uma universidade cristã e organizaram uma série de ministérios evangélicos. Muitos deles elogiaram Putin, que reconstruiu igrejas e ficou do lado deles na versão russa das “guerras culturais”.

Mais tarde, porém, a maioria dos ministérios estrangeiros foi forçada a sair, por uma aliança estratégica entre Putin e sua fiel apoiadora, a Igreja Ortodoxa Russa. A igreja oficial ganhou acesso ao poder e patrocínio do governo, enquanto Putin ganhou seguidores leais.

À luz disso, Russell Moore extrai uma lição que não ousamos ignorar: “Nós, cristãos evangélicos, devemos observar os passos de Vladimir Putin — e devemos reconhecê-los, sempre que nos disserem que precisamos de um faraó, de um Barrabás ou de um César para nos proteger de nossos inimigos reais ou presumidos. Sempre que isso acontecer, devemos nos lembrar como se diz, em qualquer língua, esta palavra: “Não”.

Philip Yancey é autor de muitos livros, incluindo, mais recentemente, um livro de memórias: Where the Light Fell.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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