Ideas

Fuja da armadilha da idolatria identitária

Teologias que centralizam nossa identidade de grupo não são fiéis. Elas descentralizam Cristo e menosprezam nossos semelhantes.

A fingerprint with a golden calf in it.
Christianity Today September 24, 2025
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: Getty, WikiMedia Commons

Pessoas que nos cobrem de elogios nem sempre têm em mente o que é melhor para nós. Como William Shakespeare alertou nos últimos versos de uma coletânea de 20 poemas, “palavras são fáceis como o vento” enquanto “amigos fiéis são difíceis de encontrar”. Segundo ele, a amizade deve ser testada no fogo das perdas e dos infortúnios:

Aquele que é teu amigo de verdade,
Te ajudará na tua necessidade:
Se estiveres triste, ele chorará;
Se perderes o sono, ele não conseguirá mais dormir.

Assim, de toda a tristeza do coração
Ele contigo suporta uma parte.
Estes são sinais certeiros para distinguir
Um amigo fiel de um inimigo bajulador.

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Essa percepção reflete de perto a sabedoria de Provérbios 29.5, que diz: “Quem adula seu próximo está armando uma rede para os pés dele”. Pessoas que procuram manipular os outros frequentemente começam com elogios exagerados e expressões de admiração. O vendedor que não inspira confiança nos dirá o quanto somos elegantes e bem-vestidos — pouco antes de nos vender um carro financiado a juros altíssimos. A verdade é que gostamos de superlativos, e eles podem nos desviar da verdade ou nos cegar para as trapaças.

Talvez sejamos mais suscetíveis à manipulação quando nos deparamos com elogios à nossa identidade de grupo. É por isso que os políticos bajulam suas bases demográficas. Nosso peito se incha de orgulho ao ouvir o quanto nós e nosso povo somos extraordinários; por isso, elogios falsos podem se tornar uma moeda barata para líderes forjarem conexão e ganharem nossa lealdade.

Em uma sociedade polarizada e obcecada por identidade, exaltar nossa identidade nacional, nossa raça ou nosso gênero infla o nosso ego de forma imediata, mesmo que os elogios não sejam genuínos. Às vezes, sentimos como se o grupo de que somos parte não está sendo ouvido — e, sim, às vezes isso é verdade. É compreensível que a autoafirmação nos faça nos sentir bem. Mas o que está por trás dessa glória superficial?

É evidente que esses aspectos da nossa identidade são importantes e são reconhecidos por Deus (Apocalipse 7.9). Deus dotou diferentes grupos com percepções únicas e usa a nós, bem como a nossa raça, a nossa classe social e as nossas diferentes capacidades físicas, para servir ao seu plano.

Veja a história da mulher samaritana junto ao poço. Jesus rompe com a tradição para conversar com ela, e a mulher se torna uma das primeiras evangelistas (João 4.1-24). Se ignorarmos a etnia e a situação social e econômica dessa mulher, não conseguiremos compreender plenamente o significado dessa história. Não seremos capazes de compreender plenamente a lição sobre a graça e o ministério transformador de Jesus, se fizermos dessa mulher uma abstração despida de cultura e de gênero. Sua identidade desempenhou um papel significativo na mensagem de Deus para nós.

Assim, vemos que a identidade importa. É uma parte significativa da perspectiva a partir da qual vemos Deus. Mas uma teologia da identidade também pode nos levar, equivocadamente, a erros teológicos. Em outras palavras, nós, cristãos, não precisamos alegar que somos totalmente neutros, mas também não podemos deixar que nossa identidade nos leve a exagerar a importância do nosso respectivo grupo, a ponto de nos levar a uma autoexaltação.

A bajulação frequentemente desempenha um papel importante nesse sentido, pois a ela é tão infiel na teologia quanto o é nas amizades. Teologias que gratificam e centralizam a nossa identidade de grupo não são fiéis. Elas nos levam à armadilha da idolatria identitária, que descentraliza Cristo e menospreza nossos semelhantes.

Muitos de nós já nos deparamos com teologias bajuladoras que, na verdade, nos distanciam do verdadeiro evangelho. Por exemplo, nos Estados Unidos, o nacionalismo cristão de Mike Huckabee entrelaça Deus e pátria de forma tão estreita que é difícil decifrar qual das duas coisas Huckabee realmente adora. Ele parece apresentar a pátria como uma obra pura, vinda diretamente das mãos de Deus. Essa teologia bajula seus adeptos, pois lhes dá um senso de superioridade por meio da identidade nacional. Ela sugere que sua cultura é o padrão pelo qual eles devem julgar os outros, e, com isso, usam e distorcem o evangelho para encobrir os pecados dos Estados Unidos e diminuir as contribuições dos que não são americanos.

E a tentação de centralizar nossa identidade em nossa teologia não é menor para grupos que foram historicamente menosprezados de maneira profunda e sistêmica. Mas isso talvez seja ainda mais complicado. Quando uma sociedade — e inclusive a igreja — passou séculos caracterizando um grupo como inerentemente inferior ou particularmente imoral diante de Deus, o dano é devastador. Devemos fazer um esforço grande e deliberado para reparar a autoimagem coletiva dessa comunidade.

Consequentemente, é imperativo que teólogos e líderes da igreja tragam à tona e celebrem o quão próximo Jesus está das pessoas marginalizadas. No contexto ocidental, é bom e necessário destacar o papel especial que mulheres e pessoas que não são brancas desempenham na Bíblia e na história da igreja. Enfatizar a imagem de Deus em nós e seu relacionamento conosco pode ajudar a restaurar uma lente teológica fraturada e redimir a nossa autopercepção. A igreja não precisa temer esforços — desde que tenham base bíblica — para exaltar pessoas que foram diminuídas historicamente.

Dito isso, tais esforços também podem ser alvo de exageros e levar à idolatria identitária. Por exemplo, nos Estados Unidos, para combater o racismo, um movimento chamado Five Percent Nation [Nação dos Cinco Por Cento] declarou que os homens negros são deuses. E embora as teologias cristãs baseadas na identidade não reivindiquem divindade [para identidades específicas], elas podem levar a um autoelogio excessivo ou até mesmo sugerir que Deus apoia algo que o certo seria entendermos como pecado.

Quando fazemos parte de um grupo que sofreu uma longa história de críticas maldosas, pode ser fácil acreditar que qualquer crítica é maldosa. E podemos começar a nos defender mais do que defendemos o próprio evangelho. Sob a influência da idolatria identitária, começamos a nos perguntar “Isso apoia a minha narrativa identitária?”, em vez de perguntar “Isso é verdade?”. Alguns teólogos da tradição feminista, por exemplo, usaram a identidade para minar a autoridade das Escrituras.

Elevar a autoimagem de um grupo e, ao mesmo tempo, manter seu senso de humildade exige um equilíbrio delicado. Seja por meio da resiliência ou do orgulho, podemos oscilar e passar da vergonha para a autojustiça num piscar de olhos. O evangelho não permite esse excesso de correção, porque, embora a imagem de Deus nos dignifique, o reconhecimento da nossa natureza pecaminosa deve nos deixar humildes.

Esse equilíbrio entre dignidade e humildade deve nos afastar da bajulação e nos aproximar de uma verdade mais complexa. O nacionalista cristão deve entender que a influência cristã em qualquer nação não significa que Deus aprove todas as nossas conquistas. Pregadores não podem ignorar a teologia ruim de certas pessoas só porque compartilham de sua herança racial. E embora alguns tenham demonizado de forma desonesta a sexualidade feminina, feministas devem evitar reagir a isso afirmando que a sexualidade não tem limites bíblicos.

É evidente que não estou dizendo que o nacionalismo cristão e o feminismo sejam equivalentes morais. Mas eles podem violar o mesmo princípio, em maior ou menor grau. A idolatria identitária pode ser tentadora para qualquer um de nós, mesmo para quem têm a melhor das intenções. A Bíblia repreende a todos nós, castigando nações opressoras, homens e mulheres promíscuos e predadores, e crentes intolerantes (Amós 1–5; Gênesis 19; Gálatas 2.11–13).

A interação da mulher samaritana com Jesus revelou sua dignidade e seu valor no reino de Deus — e também a dignidade e o valor de seu povo. Jesus usou esse encontro para declarar que, pela fé, aqueles que suportaram anos de degradação, por gerações, podem encontrar, em Cristo, significado, propósito e amor. O sofrimento e a humildade dessas pessoas são, na verdade, propícios ao discipulado (Mateus 5.3).

Mas imagine como a história teria sido diferente, se a mulher samaritana tivesse reivindicado para si algum status de importância diante de Cristo, com base no nacionalismo samaritano — ou se ela tivesse declarado que a sua situação doméstica pecaminosa, ou seja, o fato de ela viver com um homem sem estarem casados, de alguma forma se justificava com base em sua feminilidade (João 4.17-18). Jesus a fez encarar seus erros ao mesmo tempo em que reafirmou sua dignidade.

Devemos desconfiar de qualquer teologia que nos exalte acima da média. Todos somos criaturas caídas, tanto individual quanto coletivamente, e algumas de nossas inclinações e preferências culturais são pecaminosas. Uma teologia centrada na identidade pode ser cômoda, mas nos seduzirá a cometer pecados como a autojustificação, a autobajulação e a vaidade ou presunção, em vez de nos levar a morrer para nós mesmos (Lucas 14.27; Romanos 6.6; 8.13). Embora nossa identidade não seja um obstáculo para o evangelho, ela também não nos torna imunes à repreensão.

Justin Giboney é pastor ordenado, advogado e presidente da And Campaign [Campanha “E”], uma organização cívica cristã. Ele é autor do livro Don’t Let Nobody Turn You Around: How the Black Church’s Public Witness Leads Us out of the Culture War [Não deixe ninguém te desviar do caminho: como o testemunho público da Igreja Negra nos conduz para fora da guerra cultural], que será lançado em breve nos Estados Unidos.

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