Em Ray, o filme biográfico sobre Ray Charles que venceu o Oscar, o público acompanha o cantor na dolorosa constatação de que ele ficará cego aos sete anos de idade.
Sua mãe lhe conta a notícia com um misto de carinho e objetividade. Em certo momento, ele tropeça, cai e grita por ela. Embora esteja por perto, a mãe, em lágrimas — mas com uma atitude muito sábia —, se recusa a respondê-lo. Ela sabe que o filho nunca descobrirá sua plena capacidade se não aprender a usar os outros sentidos para superar suas limitações. Ela o lembra constantemente de que, embora tenha uma deficiência, ele também tem diante de si escolhas reais a fazer e não deve recorrer à autopiedade. As palavras da mãe ecoam em sua mente, à medida que o filme acompanha o desenrolar de sua vida: “Prometa-me que nunca deixará ninguém transformá-lo em um coitadinho incapaz”.
A história não é uma homenagem a um individualismo radical. Em vez disso, a vida de Charles se torna uma espécie de parábola sobre como a resiliência diante de desvantagens e infortúnios pode nos ajudar a desenvolver ao máximo as nossas habilidades. Apesar das muitas coisas que não podemos controlar, Deus dá a cada um de nós o arbítrio, o poder de fazer escolhas que impactam nossa vida (Romanos 2.1, 6). Isso se soma à dignidade de sermos portadores da imagem de Deus (Gênesis 1.26-28). E com o arbítrio e a dignidade que Deus nos deu vem a responsabilidade por nossas escolhas — e não apenas como indivíduos, mas também como membros de diversas comunidades.
Os infortúnios e maus-tratos que sofremos podem causar danos drásticos à nossa vida, mas raramente representam todo o nosso problema. Também precisamos lidar com os efeitos de nossa própria tolice e do nosso pecado. Já adulto, Ray foi forçado a reconhecer que havia quebrado a promessa feita à mãe e se tornado um incapaz por causa de sua escolha de usar heroína. Ele encontrou sua capacidade, mesmo na cegueira, mas perdeu sua capacidade devido ao vício.
E sofrer com problemas que elas mesmas criaram é algo que também pode acontecer com nossas comunidades — inclusive com nossas igrejas. É tentador para as comunidades evitar corrigir o que precisa ser corrigido internamente e jogar a culpa de todos os seus problemas em falhas externas. Mas, tanto pessoal quanto coletivamente, devemos confrontar com honestidade as maneiras pelas quais nos prejudicamos.
Jesus tinha um jeito todo seu de se importar com as desvantagens sociais das pessoas, ao mesmo tempo em que as fazia encarar suas próprias falhas e deficiências. Em João 5, ele cura um homem coxo, e então lhe diz para se levantar e não voltar a pecar (v. 8, 14).
Da mesma forma, no Antigo Testamento, os hebreus passaram por mais de 400 anos de opressão, antes de serem libertados pela mão de Deus (Êxodo 12.40). No entanto, isso não os livrou da responsabilidade pelo mau uso de seu arbítrio no deserto. A compaixão e a convicção de Deus estendem graça para as nossas aflições — sejam elas causadas por fatores externos ou internos — mas não nos isentam da nossa responsabilidade.
Nos Estados Unidos, a direita e a esquerda políticas há muito tempo travam um debate acalorado sobre o impacto das desvantagens sociais no poder de agir das comunidades e nos resultados enfrentados por elas. Ao estilo de uma verdadeira guerra cultural, muitos simplificaram essa situação, reduzindo-a a um cenário de tudo ou nada.
Na direita, o erro característico é focar demais no arbítrio, a ponto de descartar os efeitos inexpugnáveis da opressão histórica ou de culpar injustamente as pessoas por terem sido maltratadas. Alguns conservadores desconsideram as desvantagens causadas pelo racismo, sexismo e classismo, insistindo que a solução para qualquer problema, seja ele individual ou comunitário, é simplesmente a própria pessoa se esforçar para se recompor.
Alguns progressistas, por sua vez, sugerem que é opressivo esperar qualquer responsabilização de certos grupos identitários. Esse ponto de vista pode parecer compassivo, mas, em última análise, é desempoderador. Dizer às pessoas que elas não têm nenhum grau de responsabilidade por coisas sobre as quais elas podem ter influência rouba-lhes a dignidade e a autonomia, o arbítrio. Promove uma paralisia despida de esperança e totalmente desamparada, que impede as oportunidades de tomar a iniciativa. Nem sempre estamos no controle de nossas vidas, mas por certo encontramos encorajamento quando identificamos as nossas esferas de influência e trabalhamos para melhorar a nossa vida e as vidas dos outros.
Tanto individual quanto coletivamente, devemos ser tão lúcidos em relação aos erros que cometemos — e à nossa própria autonomia para agir — quanto somos em relação aos erros cometidos contra nós. Devemos olhar com a mesma desconfiança tanto quem quebra a perna de um homem e, depois, o faz sentir-se envergonhado por mancar quanto quem reclama porque teve a perna quebrada, mas se recusa a fazer fisioterapia para tratar da lesão.
Nenhum grupo étnico, nenhuma classe econômica e nenhum partido político deve desfrutar de uma desculpa abrangente, ou seja, de uma desculpa que sirva de justificativa para todos os seus problemas e patologias. Honestamente falando, não podemos culpar as elites ou os oligarcas, os progressistas ou os conservadores, os imigrantes ou os racistas por tudo o que acontece no mundo. Seja qual for a culpa que lhes pertença, não reconhecer a nossa própria responsabilidade é nos apoiarmos em uma muleta cravejada de diamantes. Essa muleta deve ser descartada, assim como tudo o mais que desonra o arbítrio e a dignidade que Deus nos deu.
Para muitos de nós, essa muleta precisará ser descartada repetidamente. Sempre haverá oportunistas e enganadores prontos para nos oferecer bodes expiatórios gordinhos e suculentos, a quem possamos atribuir todos os nossos problemas. Mas, seja qual for o bode expiatório que nos ofereçam, ofertas assim não trazem libertação. Elas são, na verdade, um convite a coisas como “amargura, indignação, ira, gritaria e calúnia, bem como [a] toda maldade” (Efésios 4.31).
Atualmente, eu me pergunto se esse foco obstinado de muitos na política [de seu país] torna mais fácil para essas pessoas se recusarem a assumir a sua parcela de responsabilidade e uma atitude de misericórdia para com os oprimidos. Ignoramos o caos que está bem diante da nossa porta para ficarmos obcecados com problemas distantes de nós e com as pessoas que supomos estarem causando-os.
Em Tuscaloosa, uma cidade conservadora do estado do Alabama, estamos preocupados com os erros de progressistas que vivem muito longe de nós. Em Los Angeles, uma cidade profundamente progressista, estamos preocupados com os conservadores espalhados pelo país. Até certo ponto, esse hábito é uma desculpa — uma relutância em assumir a responsabilidade por questões mais próximas de nós. A política nacional é importante, claro, mas também pode servir como uma distração conveniente para não abordarmos o que está sob nosso controle e para não consertarmos o que nós mesmos quebramos.
Esse padrão é particularmente perigoso quando está presente em líderes, pois pode afastar comunidades inteiras da responsabilidade de prestar contas por seus atos. Quando a prefeita de Oakland, Sheng Thao, foi indiciada em uma investigação de corrupção conduzida pelo FBI, ela desafiadoramente culpou “forças radicais de direita” por sua situação. (Ora, na Califórnia?) Da mesma forma, o governo Trump culpou a mídia pela violação de segurança do Signal. E os cristãos às vezes jogam no diabo a culpa por suas próprias ações imorais, ignorando a disfunção e a teologia ruim dentro da igreja, para se concentrarem excessivamente em um inimigo externo.
Injustiças históricas podem ter efeitos persistentes. Podemos ter rivais políticos astutos. E certamente, como cristãos, enfrentamos uma oposição feroz no mundo espiritual. Mas exagerar o poder desses inimigos externos é contestar o poder de Deus e minar nossa própria capacidade de agir.
Mesmo quando estamos diante de sérias desvantagens, Deus dotou cada um de nós com a capacidade de fazer escolhas significativas para nós mesmos e para nossas comunidades. Não devemos abdicar desse dever, nem nos contentar em culpar bodes expiatórios, nem fugir de responsabilidades de caráter local. Chamemos uns aos outros a viver segundo a dignidade que Deus nos concedeu, uma dignidade que confronta tanto as ofensas externas quanto as falhas internas com graça e poder.
Justin Giboney é pastor ordenado, advogado e presidente da And Campaign, uma organização cívica cristã. Ele é o autor do livro a ser lançado em breve, Don’t Let Nobody Turn You Around: How the Black Church’s Public Witness Leads Us out of the Culture War [Não deixe ninguém lhe desviar do seu caminho: como o testemunho público da igreja negra nos tira da guerra cultural].