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O documentário “Apocalipse nos Trópicos” faz uma simplificação exagerada dos anseios políticos dos evangélicos brasileiros

Muitos deles apoiaram o polêmico presidente Jair Bolsonaro. Mas isso não significa que queiram uma teocracia.

Protestors in Brazil from the documentary, Apocalypse in the Tropics.

Protestors in Brazil shown in the documentary, Apocalypse in the Tropics.

Christianity Today July 17, 2025
Apocalypse in the Tropics

Somente nas últimas décadas a elite cultural brasileira começou a reconhecer a crescente presença dos evangélicos no cenário nacional. Essa visibilidade atingiu novos patamares durante a presidência de Jair Bolsonaro (2019-2022). O forte apoio do eleitorado evangélico a Bolsonaro, combinado com a nomeação de líderes evangélicos para cargos importantes no governo, e até mesmo a indicação de um pastor presbiteriano para o Supremo Tribunal Federal sinalizaram uma mudança drástica na dinâmica entre política e religião no país.

Petra Costa, diretora do recém-lançado documentário Apocalipse nos Trópicos, oferece uma lente através da qual podemos visualizar essa transformação. No entanto, a própria Costa afirma seu completo desconhecimento sobre o campo da religião. Sua formação intelectual reflete a trajetória típica da classe cultural abastada do Brasil: educação de elite, visão de mundo cosmopolita e pressupostos seculares. Ela estudou artes cênicas na Universidade de São Paulo, antes de se formar em antropologia e teatro pelo Barnard College, da Universidade Columbia. Posteriormente, concluiu um mestrado em comunidade e desenvolvimento na London School of Economics.

O distanciamento de Costa da religião não é surpreendente, dada a sua origem familiar. Seus pais abandonaram o catolicismo romano na juventude, motivados por seu envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro. Em consequência disso, Costa cresceu sem uma formação religiosa. Sua mãe, Marília Andrade, foi presa política durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) e chegou a dividir cela com Dilma Rousseff, que foi presidente do Brasil de 2011 a 2016.

Petra Costa conquistou reconhecimento internacional pela primeira vez com Democracia em Vertigem, seu documentário político de cunho intimista que foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2020. Filmado durante o processo de impeachment de Rousseff, o filme mescla memória pessoal com história nacional, refletindo o momento de polarização na política brasileira.

As primeiras imagens de Apocalipse nos Trópicos foram gravadas dentro da Câmara dos Deputados, em Brasília. O então deputado federal Cabo Daciolo abordou a cineasta, entregou-lhe uma Bíblia e a convidou a entregar sua vida a Jesus. Segundo Costa, esse encontro inesperado marcou a primeira vez em que ela realmente notou a presença dos evangélicos.

Ainda assim, toda a ideia para produzir Apocalipse nos Trópicos só tomaria forma mais tarde, tendo nascido de uma curiosidade crescente sobre a influência política cada vez maior dos evangélicos no Brasil e a linguagem religiosa que moldava cada vez mais o discurso público no país.

Durante a pandemia de COVID-19, em 2020, ela decidiu produzir o documentário por causa de uma imagem marcante de um grupo de evangélicos reunidos no coração de São Paulo, orando de joelhos, com a cabeça baixa e as mãos erguidas para o céu. Eles estavam respondendo a um apelo de Bolsonaro, que havia conclamado a nação a jejuar e a orar para livrar o país do vírus.

Bolsonaro, que há tempos negava a adoção de medidas sanitárias para controlar a pandemia e se opunha à vacinação, foi convencido pelo pastor pentecostal Silas Malafaia a convocar um jejum nacional para vencer o vírus da COVID-19. Este momento simbólico da fusão entre o poder político e o poder religioso ocupa o centro do palco no documentário Apocalipse nos Trópicos.

Malafaia figura como a principal voz evangélica do filme, oferecendo sua visão de um Brasil onde fé e política não são mais esferas separadas, mas sim profundamente interligadas.

O distanciamento de Costa em relação a temas religiosos, aliado à sua perspectiva pouco familiarizada com o intrincado mundo do evangelicalismo brasileiro, constituem tanto a força quanto a fraqueza do documentário.

Por um lado, sua perspectiva de uma outsider lhe permite fazer perguntas honestas, até mesmo vulneráveis. Ela aborda o movimento evangélico com curiosidade em vez de cinismo, o que confere ao filme um tom poético, quase um maravilhamento. Por outro lado, seu distanciamento da realidade da fé às vezes leva a uma simplificação exagerada.

Sem o estranhamento de Costa diante da presença evangélica na política brasileira não haveria documentário. Na antropologia, o estranhamento é uma ferramenta metodológica que consiste na alteridade — no encontro com o “outro” — que provoca sentimentos de surpresa, confusão e até inquietação, mas também convida à compreensão.

Costa lida com essa tensão com paciência e cuidado. Ela se aproxima do “outro” evangélico não com julgamentos, mas com perguntas e uma escuta atenta. O documentário é rico em cenas que captam esse senso de admiração e desorientação, como alguém que está por trás da câmera vendo algo pela primeira vez.

Mas sua falta de conhecimento sobre as igrejas evangélicas e suas crenças a leva a confiar demais em vozes muito ansiosas para explicar o movimento, especialmente aquelas já proeminentes na mídia e na política.

Uma abordagem mais experiente poderia tê-la ajudado nesse aspecto. Ao focar tanto em figuras como Malafaia — claramente uma voz influente, mas que está longe de ser representativa — Costa corre o risco de retratar o evangelicalismo como algo monolítico, ignorando sua diversidade teológica e as expressões de fé menos histriônicas e mais fundamentadas que são vividas em comunidades evangélicas por todo o Brasil. É a partir de Malafaia que Costa chega à teologia do domínio como arcabouço para explicar o aumento da presença evangélica na política brasileira.

Apocalipse nos Trópicos enquadra a participação evangélica na política brasileira como um esforço para dominar todas as esferas da vida social. Esse enquadramento, porém, reflete em grande parte a interpretação de Malafaia sobre o movimento. O documentário perde a oportunidade de mostrar que o engajamento evangélico com a política — no Brasil ou em qualquer outro lugar — é muito mais complexo e multifacetado do que uma única ideologia ou estratégia é capaz de explicar.

O documentário não deixa dúvidas sobre o envolvimento de alguns evangélicos nos eventos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, que culminaram na invasão e na depredação das sedes dos três poderes em Brasília. No entanto, comete um tropeço em sua interpretação, ao tentar vincular o apoio evangélico a tais atos diretamente à teologia do domínio.

Essa visão teológica é praticamente desconhecida por muitos pastores e crentes evangélicos no Brasil. Ao tratar a teologia do domínio como uma força unificadora por trás da ação política evangélica, o documentário projeta uma ideologia de importância periférica sobre um movimento diversificado e frequentemente fragmentado.

A aliança estratégica da extrema direita com os evangélicos no Brasil tomou forma à medida que a extrema direita adotou táticas de guerra cultural na arena política. Políticos como Bolsonaro começaram a falar em defesa dos valores da civilização judaico-cristã, enquanto políticos evangélicos se posicionavam como uma barreira moral contra o que descreviam como a pauta da esquerda progressista, especialmente em questões como igualdade de gênero, aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O “apocalipse” que se desenrolou naquele 8 de janeiro em Brasília deve-se muito mais a esse longo processo de demonização da esquerda política e às alegações infundadas de fraude nas eleições do que a qualquer plano evangélico coordenado para instaurar uma teocracia nos trópicos. Essa realidade não reduz a gravidade dos ataques à nossa democracia, dos quais participaram alguns setores evangélicos. Mas desafia essa noção de uma conspiração evangélica organizada para tomar o poder político no país.

O erro que o documentário comete, ao adotar a teologia do domínio como principal explicação para o avanço dos evangélicos na política, não diminui seus méritos. Apocalipse nos Trópicos continua sendo um valioso ponto de partida para reflexão, especialmente para aqueles que se sentem incomodados com os rumos da relação entre igrejas cristãs e a política nas sociedades democráticas, e com a tensão contínua entre Igreja e Estado.

Miroslav Volf, teólogo croata, nos lembra que o remédio para formas distorcidas de participação política dos cristãos não é a sua saída da vida pública, mas uma reflexão bíblica e teológica mais aprofundada sobre como a Igreja pode servir ao bem comum em sociedades democráticas.

A questão central levantada pelo documentário é: a participação evangélica na política continuará sendo uma aliada da extrema direita, tornando-se um instrumento para ferir de morte a democracia brasileira a partir por dentro, a fim de transformar o país em uma autocracia ao estilo da Hungria ou da Rússia?

Não vejo esse cenário como provável num futuro próximo. Embora a aliança entre políticos evangélicos e a extrema direita continue a pressionar as instituições democráticas brasileiras, vários fatores-chave tornam o estabelecimento de uma autocracia disfarçada de teocracia altamente improvável. A falta de apoio do alto comando militar a qualquer solução autoritária, juntamente com o julgamento em curso de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal, por seu papel na tentativa de golpe após as eleições de 2022, inviabilizaram a instauração de uma autocracia.

Malafaia e alguns políticos continuarão a repetir “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (Salmos 33.12), argumentando que a maioria cristã no país, composta de católicos e evangélicos, deveria usar a democracia para aprovar leis que visam restaurar uma versão da cristandade.

Esse tipo de abordagem bíblica à política causa polarização e sentimentos de hostilidade, e funciona para eleger candidatos em eleições proporcionais, como deputados e senadores, mas joga os cristãos contra o restante da sociedade, aprofundando a divisão, em vez de promover a justiça, a paz ou o bem comum.

Seguindo a direção sugerida por Miroslav Volf, creio que o caminho a seguir reside em um diálogo bíblico profundo sobre a vontade de Deus para a igreja nas sociedades democráticas. O Novo Testamento em nenhum lugar defende um projeto de uma “nação cristã” — contudo, em cada nação, o Espírito Santo reúne seguidores de Jesus para formar a sua igreja, um povo separado não para o domínio político, mas para o testemunho fiel.

Essa visão é poderosamente afirmada no livro do Apocalipse: “Tu és digno de receber o livro e de abrir os seus selos, pois foste morto e com o teu sangue compraste para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação. Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra” (Apocalipse 5.9-10).

O Cordeiro não comprou nenhuma nação para se tornar sua igreja. Em vez disso, Ele derramou seu sangue para reunir em cada nação aqueles que formarão seu povo. O Novo Testamento não apresenta um projeto para uma nação cristã, mas sim para uma igreja cristã — ora mais numerosa, ora mais marginalizada — dentro de cada Estado-nação.

Ao longo do Novo Testamento, a promoção da justiça, e não da fé é o papel do Estado que nos é consistentemente apresentado. Em sua primeira carta a Timóteo, o apóstolo Paulo exorta os cristãos para que orem em favor de “todos os que exercem autoridade”, para que “para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade” (1Timóteo 2.2). Em Romanos 13, Paulo afirma que as autoridades governamentais existem pela vontade de Deus e são encarregadas de defender a justiça.

É claro que reconheço que esse apelo à justiça não resolve o conflito. Afinal, a direita e a esquerda políticas frequentemente discordam sobre o que é justiça. Mas essa ênfase bíblica nos dá uma base comum para o debate público. Mais importante ainda, funciona como uma espécie de vacina contra a ilusão de que os cristãos são chamados a construir uma teocracia.

Outro tema bíblico que Apocalipse nos Trópicos nos convida a resgatar é a soberania de Deus. No clima polarizado de hoje, a participação política tem gerado intensa ansiedade nos cristãos, sejam eles de direita ou de esquerda. Há um medo crescente de que, se a corrente ideológica com a qual nos identificamos perder a próxima eleição, tudo se transformará no mais completo caos.

Mas esse medo eclipsa a mensagem crucial do Cristo ressurreto às igrejas que sofriam sob a opressão do Império Romano: “Não tenha medo” (Apocalipse 1.17). Essa palavra, proferida a partir não de um trono de poder político, mas da vitória na Cruz, nos lembra que a esperança cristã não se baseia em vencer eleições, mas em confiar no governo soberano de Deus sobre a história.

Por fim, é importante lembrar, tanto para o bem quanto para o mal, que nenhum governo controla totalmente as sociedades contemporâneas ou a ordem mundial. Vivemos na era do controle diminuído, e isso gera uma sensação que o sociólogo Anthony Giddens descreveu como “mundo em descontrole”.

Quando cristãos buscam o controle por meio do poder político, caímos em duas armadilhas. A primeira é uma ilusão sociológica, visto que nenhum grupo é capaz de dominar plenamente os sistemas complexos e autônomos que governam a economia, a cultura, a política, e assim por diante. A segunda armadilha é um erro teológico, pois perdemos a oportunidade de dar testemunho da verdadeira fonte da segurança cristã: “Levanto os meus olhos para os montes e pergunto: ‘De onde me vem o socorro?’. O meu socorro vem do Senhor,que fez os céus e a terra” (Salmos 121.1-2).

Valdinei Ferreira é doutor em sociologia e pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.

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