A revolução da inteligência artificial está acontecendo a todo vapor. E junto, na vanguarda desse movimento, de forma trágica, ainda que previsível, está a pornografia produzida por meio da inteligência artificial generativa.
Embora a pornografia gerada por IA ainda esteja no início, está explodindo em aspectos como prevalência, popularidade e sofisticação. E, como cristãos, precisamos considerar para onde isso pode nos levar.
Neste estágio que estamos vivendo, todos os problemas da pornografia “comum” também se aplicam à pornografia gerada por IA. Ela ataca a imago Dei ao violar a autonomia das pessoas, tratando-as como objetos de consumo e submetendo-as à vergonha e à culpa injustificáveis.
As pessoas mais prejudicadas são geralmente meninas, mulheres e celebridades que são “despidas” pela IA e têm sua imagem inserida em pornografia deepfake, entre outros horrores.
Não é mais necessário nem ser filmado para ser submetido à degradação da pornografia por vingança: a IA pode transformar qualquer pessoa em ator ou atriz pornô, ainda que a pessoa não queira, por meio de simulações que estão “sempre disponíveis e podem nunca desaparecer [da rede]”. O problema se tornou sério a ponto de motivar uma legislação bipartidária, apoiada pela primeira-dama Melania Trump, e aprovada quase por unanimidade pelas duas casas do Congresso.
Enquanto isso, algumas empresas como a OpenAI sugerem que o caminho para a pornografia “ética” passa pela IA generativa. Se toda a pornografia fosse produzida dessa forma, segundo eles acreditam, ninguém seria prejudicado ao produzi-la. Os usuários de pornografia poderiam obter o que desejam sem prejudicar seres humanos.
Nenhum cristão, até onde sei, juntou-se a esse coro. No entanto, o fascínio da pornografia gerada por IA deixa claro um mecanismo amplamente ignorado, que torna a pornografia tão devastadora, quer seja ela gerada por IA quer não. Seu consumo alimenta a violação de um mandamento e é por essa violação alimentado. Trata-se da violação generalizada do décimo mandamento: “Não cobiçarás” (Êxodo 20.17, ARA).
Em particular, a pornografia gerada por IA amplifica a dinâmica de reciprocidade entre o pecado da cobiça e a pornografia — porque a cobiça é uma espécie de fantasia. Quando cobiçamos algo, projetamos a nós mesmos em mundos alternativos que giram em torno de nossos próprios desejos.
Agostinho, em uma homilia sobre Mateus 5, nos adverte a não “abrirmos o manto da cobiça, mediante o qual possuiríamos a terra no presente, com exclusão até mesmo do nosso próximo, por qualquer meio que seja; não permitamos que tal imaginação nos engane”. A terra é do Senhor (Salmos 24.1), não nossa, e o que o Senhor deu ao nosso próximo a esse próximo foi confiado. A cobiça rejeita essa ordem das coisas, em favor de um mundo que nós criamos com a nossa imaginação.
Dessa forma, a cobiça é a interação entre o orgulho, que é uma rejeição do nosso devido lugar em relação a Deus, e os nossos próprios desejos. “O orgulho é simplesmente virar as costas para o bem imutável [isto é, Deus], e a cobiça é um voltar-se para um bem transitório”, escreve Tomás de Aquino em Sobre o mal. “E um só pecado é constituído por esses dois moveres… visto que todo pecado é um ato de virar as costas para o bem imutável e um ato de voltar-se para um bem transitório”.
Como Tomás de Aquino sugere, raramente cobiçamos aquilo que imaginamos ser a vida imutável e boa de Deus. O mundo de fantasia da nossa cobiça é com frequência aquele que imaginamos ser o mundo transitório do nosso próximo.
Os bois do seu vizinho nunca se cansam. O burro dele obedece as ordens dadas. A casa da vizinha não tem os problemas de encanamento da sua. Os amigos dela são mais encorajadores e generosos. O corpo dela nunca dói. Os filhos deles são mais bem-comportados, mais bem-sucedidos, mais inteligentes e mais gentis.
O mundo que cobiçamos é um mundo de fantasia. E este é o seu apelo.
Em sua carta para a igreja de Roma, Paulo debate publicamente a relação entre lei, pecado, tentação e liberdade em Cristo. No meio da carta, ele confessa aos cristãos romanos o seu pecado por violar o décimo mandamento, quando escreve:
“Que diremos, então? A lei é pecado? De maneira nenhuma! Todavia, eu não saberia o que é pecado, a não ser por meio da lei; na realidade, eu não saberia o que é cobiça se a lei não tivesse dito: ‘Não cobice’. No entanto, o pecado, aproveitando a oportunidade dada pelo mandamento, produziu em mim todo tipo de cobiça” (Romanos 7.7-8).
Em Êxodo 20, o décimo mandamento vem acompanhado de uma lista de proibições (não cobiçar a casa, a esposa, o servo ou a serva, o boi ou o jumento do próximo) que culmina em uma generalização: Não cobiçarás coisa alguma que pertença ao teu próximo.
O comentário de Paulo sobre “todo tipo de cobiça”, em Romanos 7, é, portanto, fundamental. A cobiça não pode ser contida. É uma espécie de toxina, e uma única gota dela envenena todo o poço.
Quando cobiçamos coisas aparentemente inofensivas — como a decoração da sala da casa do vizinho, os seguidores dele nas redes sociais, o carro, as férias ou o smartphone do vizinho — convidamos a cobiça a entrar em outras áreas da nossa vida. Nosso pecado é como o de Paulo: quando cedemos um centímetro à fantasia da cobiça, ela toma tudo, por inteiro.
Isso é especialmente verdade quando se trata do âmbito sexual. O território da fantasia é agressivamente imperial e dominará as fronteiras da nossa sexualidade. A pornografia promete ser um espaço onde tudo acontece do seu jeito, para a sua satisfação. A mentira diz: Não importa qual seja a sua fantasia sexual, a pornografia pode realizar. E a pornografia gerada por IA só torna essa fantasia mais adaptada às inclinações de cada indivíduo.
No calor da fantasia sexual, a pornografia gerada por IA pode parecer um terreno estável, mas é um mar tempestuoso, cujas ondas são impulsionadas pela adoção de um estilo de vida repleto de cobiça — uma correnteza que nos puxa para debaixo d’água e para longe da costa, para profundezas sombrias e distantes da luz do sol.
A cobiça sexual também impulsiona outras formas de cobiça. À medida que organizamos nossa sexualidade mais intimamente em torno de nossos caprichos pessoais, adaptando-a aos nossos próprios desejos, o resto do mundo se torna menos atraente; menos digno de nosso envolvimento; menos digno de ser buscado e explorado; menos digno de ser amado. Recuamos ainda mais para dentro do mundo da fantasia do nosso coração cada vez mais cobiçoso.
A ironia é que, nesse processo, perdemos o que amamos e, na verdade, aquilo de que precisamos. Nossa vida real se torna ainda mais insatisfatória, não apenas porque parece pálida, sem cor, diante de nossas fantasias, mas também porque se distancia de nós. Isso torna o mundo de fantasia do nosso coração cobiçoso ainda mais atraente, em comparação com o mundo real. E assim o ciclo continua.
Parte do que significa ser a imago Dei é que somos uma alma encarnada, somos entidades psicossomáticas cujo corpo está entrelaçado com o nosso espírito. A cobiça da pornografia é desumanizante porque incentiva uma visão desencarnada da vida, desvinculada de relacionamentos reais, concretos.
A pornografia, portanto, representa um profundo problema espiritual que não pode ser dissociado dos mecanismos físicos, emocionais e intelectuais. No final, não apenas nos tornamos seres miseráveis, mas seres miseráveis isolados e solitários.
Portanto, embora esse problema não seja meramente espiritual, ele é espiritual. A pornografia nos acorrenta a um lugar em que a luz de Deus não mais nos atrai. Este é um destino pior do que o desejo não satisfeito, pior até do que a morte. É — literalmente — o inferno.
O mundo da fantasia é, em última análise, um mundo de idolatria, onde os ídolos que a pessoa adora são os seus próprios desejos sexuais. Isso não deveria nos surpreender, pois, como Paulo explicitamente diz aos Colossenses, a cobiça é idolatria (3.5).
Aquilo que a pessoa adora molda toda a sua vida. O primeiro mandamento — “Não terás outros deuses diante de mim” — flui para os outros nove. Mas, de igual modo, o décimo flui de volta até o primeiro, conectando a cobiça não apenas à idolatria, mas também ao sábado, ao adultério, ao homicídio e assim por diante.
Em O Espírito e a Letra, Agostinho escreve que o apóstolo Paulo, em Romanos 7, escolheu o décimo mandamento “como uma máxima geral, e incluiu tudo nele. … Pois não há pecado que não seja cometido por desejo”.
No Sermão do Monte, Jesus também conecta a luxúria ao adultério e o ódio ao homicídio. Mas o que é a luxúria, senão o adultério que se cobiça, e o que é o ódio, senão o homicídio que se cobiça? A distorção do coração, representada no décimo mandamento, pode ser lida em todos os outros nove mandamentos.
Se a cobiça está no cerne do pecado, então, sua solução deve estar no cerne da nossa formação. A solução para a cobiça — e a nossa proteção contra a pornografia gerada por IA — é algo simples de se dizer, mas difícil de colocar em prática.
A solução é a gratidão. Viver uma fantasia é rejeitar Deus e sua criação, é trocá-los por um mundo que nós mesmos criamos. A gratidão rejeita essa fantasia por meio da confissão e do arrependimento.
Um coração grato, quando menciona tudo o que recebeu, é impelido pelo amor a confessar sua ingratidão passada e a se voltar novamente para Deus. A gratidão consciente, em outras palavras, assume a forma de constante confissão e arrependimento da cobiça.
Devemos ser gratos a Deus por nossa vida, nossos relacionamentos e nossa comunidade, pelas oportunidades e pelos perigos, por nossa vocação, nossas obrigações e limitações, pelas grandes e pequenas dádivas e coisas boas da vida cotidiana e das experiências extraordinárias.
A gratidão flui da união com Cristo, por meio da habitação do Espírito. Assim, unidos, podemos começar a ver nossa sexualidade não através da névoa de nossos desejos carnais, mas através das lentes do Evangelho.
A frustração da vida de solteiro pode se tornar uma oportunidade para a liberdade que honra a Cristo (1Coríntios 7.1-7). Um casamento sem sexo por causa de conflitos, doença ou idade pode ser uma época para crescer na graça, para servir a um ente querido que sofre ou para encontrar novas maneiras de amar e ser amado. Dessa forma, a gratidão se torna uma expressão de nossa confiança na vontade de Deus em um momento específico.
Paulo compreende esse papel da gratidão em matar a cobiça quando, no final de Romanos 7, ele irrompe em um hino de esperançosa melancolia, e até mesmo de louvor: “Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (v. 24-25).
Ao abraçar com gratidão essa realidade e todas as outras dádivas que Deus nos dá, somos libertados e passamos das trincheiras da cobiça para a luz de Deus. Lá, encontramos um mundo e um amor que são reais.
O mundo fantasioso da cobiça — agora manifestado pelo potencial da pornografia gerada por IA — promete satisfazer nossos desejos superficiais. Mas falha nas promessas que nos faz. Ficamos mais sedentos do que nunca.
O amor de Deus é fantástico, mas no sentido oposto. Podemos não conseguir o que queremos no momento, mas temos a garantia eterna daquilo que mais profundamente precisamos. Na verdade, receberemos muito mais do que podemos pedir ou imaginar.
Timothy Pickavance é professor de filosofia na Escola de Teologia Talbot da Universidade Biola; também é presbítero e acadêmico residente na Igreja Presbiteriana Redeemer, em Newport Beach, Califórnia. É autor de três livros, sendo o mais recente Knowledge for the Love of God: Why Your Heart Needs Your Mind [Conhecimento pelo amor de Deus: Por que seu coração precisa da sua mente], e publica regularmente posts em seu Substack, Becoming Human [Tornando-se Humano].