Quem acessa o aplicativo Bible Gateway para procurar João 3.16 encontra 63 opções de tradução em inglês. Para os cristãos, ler o mesmo versículo com uma palavra diferente, uma sintaxe modificada ou em uma versão mais contemporânea ou poética pode lançar uma nova luz sobre um princípio bíblico ou reforçar o impacto da passagem.
Jost Zetzsche percebeu esse efeito — mas de maneira ainda mais intensa — quando começou a assistir a traduções da Bíblia para a língua de sinais. Zetzsche é linguista e curador do Translation Insights & Perspectives (TIPs), uma ferramenta online gratuita da United Bible Societies, que reúne impressões sobre traduções bíblicas em quase 1.000 idiomas, entre os quais estão várias línguas de sinais. Inicialmente, Zetzsche acreditava que incluir as línguas de sinais era apenas uma parte a mais de suas incumbências no TIPs.
“Mas, à medida que comecei a estudar as traduções gravadas em língua de sinais,” disse ele, “fiquei surpreso com o quanto, como ouvinte, eu podia aprender com esses idiomas, algo que nunca havia experimentado em outras línguas.”
Recentemente, ele conversou com Ruth Anna Spooner, que é surda e atua desde 2019 como tradutora principal da equipe de Tradução Cronológica da Bíblia para a Língua de Sinais Americana, além de ser treinadora de equipes de tradução para surdos ao redor do mundo. O objetivo da conversa foi discutir o impacto que causa em uma pessoa ouvinte assistir a essas traduções em língua de sinais.
A entrevista abaixo foi editada para fins de concisão e clareza.
Zetzsche: Vamos começar nossa conversa por uma diferença evidente entre as traduções escritas e as traduções em língua de sinais. As mais de 400 línguas de sinais oficialmente reconhecidas ao redor do mundo adotam várias estratégias diferentes para lidar com nomes próprios. Algumas soletram em sinais a maioria dos nomes e traduzem alguns com base em seu significado; outras, como a Libras (Língua Brasileira de Sinais), traduzem todos os nomes de acordo com seu significado.
No contexto da tradução da Bíblia, reconhecemos que os nomes e seus significados são importantes nos textos originais, mas, geralmente, perdem seu sentido quando traduzidos para línguas escritas. No entanto, quando são traduzidos semanticamente para as línguas de sinais, muitas vezes não são interpretados de acordo com seu significado original, mas sim por meio de outros marcadores baseados em significado, que podem variar de uma comunidade de língua de sinais para outra.
Você pode me ajudar a entender isso?
Spooner: Os nomes são fascinantes nos diferentes idiomas. Todos nós estamos familiarizados com o fato de que um mesmo nome pode ser pronunciado e escrito de maneiras distintas de uma língua para outra: John (inglês), Juan (espanhol), Giovanni (italiano), Jean (francês), Johan (holandês), Ivan (russo), e assim por diante.
As pessoas surdas atribuem a cada indivíduo um nome sinal [também chamado de sinal pessoal] — um sinal inventado que se torna uma identidade exclusiva daquela pessoa. Ao se comunicar em língua de sinais, em vez de usar a versão falada do nome (por exemplo, John), utiliza-se o nome sinal para identificar e se referir à pessoa. Em vez de soletrar “RUTH ANNA”, as pessoas usam meu nome sinal, o que é muito mais eficiente e rápido.
Na comunidade surda, um nome sinal é atribuído exclusivamente a uma pessoa por alguém surdo. Esses sinais podem ser baseados na aparência, na personalidade, em um hobby favorito ou estar relacionados ao significado do nome da pessoa.
Na cultura da Língua de Sinais Americana (ASL), as pessoas só recebem nomes sinais se estiverem imersas na comunidade surda ou se forem figuras históricas ou contemporâneas frequentemente mencionadas (como William Shakespeare). A maioria dos personagens bíblicos não possui um nome sinal previamente estabelecido, o que faz com que as equipes de tradução para surdos muitas vezes precisem criar esses sinais a partir das poucas informações [do texto bíblico].
Veja Davi, por exemplo, sobre quem sabemos bastante coisa. Sabemos que ele era bonito, um homem segundo o coração de Deus, que matava gigantes, que era pastor, músico, poeta, guerreiro renomado, rei, adúltero e pai de Salomão. Já vi nomes sinais para Davi baseados no sinal para “rei”. Alguns nomes sinais são inspirados em suas habilidades musicais e poéticas, enquanto outros refletem sua identidade como jovem pastor, da época em que primeiro ouvimos falar dele, ou como um matador de gigantes, papel que assumiu mais tarde. Há muita variação, e tudo depende de qual característica cada equipe de tradução considera mais memorável em relação a Davi ou mais passível de identificá-lo. O que é mais memorável ou mais passível de identificar alguém pode variar de cultura para cultura também, dependendo de quais traços são mais valorizados em cada país.
Às vezes, quando os versículos mencionam explicitamente o significado de um nome — por exemplo, quando mencionam que Isaque significa “riso”— uma equipe de tradução para língua de sinais pode usar essa informação como um indicativo de que o nome sinal deve ter alguma associação com o sinal que corresponda a esse significado.
Em nossa tradução para a ASL, Jacó, que tinha a pele lisa, sem pelos, tem um nome sinal que pode ser traduzido literalmente para o inglês como “pele do braço lisa”, enquanto seu irmão gêmeo, Esaú, conhecido por ser muito peludo, tem um nome sinal que indica braços cobertos de pelos. Esses nomes sinais transmitem mais significado ao público do que apenas o nome da pessoa.
Zetzsche: Os nomes sinais dos personagens bíblicos são uma forma de aprender mais sobre eles, mas a língua de sinais parece comunicar algo ainda mais profundo do que isso. Como a maioria dos cristãos, desejo compreender melhor as emoções dos personagens bíblicos e captar quem eles realmente eram, mesmo com o distanciamento histórico. Sei que toda tradução também envolve um grau de interpretação, mas fiquei profundamente comovido ao ver como as emoções de Jesus são transmitidas através de gestos e expressões de um intérprete de sinais.
Um exemplo disso é a história da mulher cananeia, em Mateus 15, na Língua de Sinais Mexicana (Lengua de Señas Mexicana, ou LSM). Diferentemente de qualquer coisa que eu já tenha lido no texto escrito, o intérprete em LSM transmite com profundidade a convicção, o encanto e a compaixão de Jesus diante dos argumentos da mulher cananeia. Já não consigo mais ler essa passagem sem me lembrar dessa interpretação visualmente tão intensa e vívida.
(Assista ao vídeo com tradução em inglês.)
Spooner: Qualquer pessoa que observe alguém surdo se comunicando em língua de sinais perceberá rapidamente o quanto se expressam com o rosto e o corpo, muito mais do que um falante de uma língua oral padrão.
Na verdade, pessoas ouvintes frequentemente acham que pessoas surdas são excessivamente expressivas ou emotivas. O que muitos não percebem é o quanto as expressões faciais desempenham um papel gramatical fundamental nas línguas de sinais. Grande parte da gramática da língua de sinais é transmitida pelo rosto. Ao contrário do que se costuma pensar, a língua de sinais não está apenas nas mãos. Ela envolve as mãos, a postura corporal e as expressões faciais — tudo isso ao mesmo tempo.
Se você focar apenas nas mãos, perderá uma grande quantidade de informações gramaticais importantes que são transmitidas por meio das expressões faciais. O movimento das sobrancelhas — se estão erguidas ou não, e até que altura vão para cima ou para baixo — pode transformar uma frase em uma pergunta, uma pergunta em um desafio ou uma afirmação em uma ordem, por exemplo. O formato da boca e das bochechas, os movimentos dos lábios e até da língua também desempenham um papel essencial na gramática da língua de sinais. A posição da cabeça e a movimentação dos ombros de um lado para o outro também transmitem informações importantes do ponto de vista gramatical e linguístico.
Zetzsche: Eu não fazia ideia! Contudo, quando observo um intérprete de sinais em vídeos, tenho a sensação de estar vendo uma grande carga emocional. Estou interpretando isso da forma errada?
Spooner: Não, de fato você está vendo emoção. Essa é mais uma camada de complexidade. Muitas das expressões faciais têm funções gramaticais, mas, além disso, o intérprete também as utiliza para transmitir emoções e, no caso das histórias, para interpretar as personalidades dos diferentes personagens dentro da história.
Na ASL, por exemplo, um intérprete de sinais habilidoso pode mexer as sobrancelhas e inclinar a cabeça para fazer uma pergunta, enquanto, ao mesmo tempo, utiliza as sobrancelhas (assim como o restante do rosto) para transmitir a emoção que está por trás da pergunta. É uma pergunta feita com irritação? Uma pergunta feita com raiva? Uma pergunta neutra? Uma pergunta desesperada? Assim, as sobrancelhas e o restante do rosto comunicam simultaneamente informações gramaticais e emocionais.
Nos vídeos do TIPs, com suas retrotraduções para o inglês escrito, você vê os intérpretes de sinais utilizando suas expressões faciais para comunicar simultaneamente gramática e emoção. As expressões faciais que expressam emoção e as que expressam questões da gramática muitas vezes estão entrelaçadas de tal forma que é difícil—ou até impossível—separá-las durante a interpretação. Ao fazer uma pergunta, por exemplo, o intérprete precisa saber se é uma pergunta feita com irritação ou feita genuinamente por curiosidade, para poder interpretá-la da forma correta. Como você, Jost, não conhece uma língua de sinais, imagino que, para os seus olhos, tudo o que vê nesses vídeos pareça carregado de emoção, o que não é surpreendente. É maravilhoso ver que você sente esse impacto de forma tão profunda. Mas há uma outra camada — relacionada à gramática — acontecendo ao mesmo tempo, e que provavelmente passa despercebida para você.
Agora, vamos discutir por que a história de Jesus e a mulher cananeia, em Mateus 15, apresenta tantos desafios para as traduções em línguas de sinais. Podemos traduzir as palavras e as frases, mas, na língua de sinais, como precisamos encarnar e representar os diálogos, é praticamente impossível traduzir um diálogo de forma neutra, sem expressar o tom e as emoções dos personagens naquele momento.
Por isso, quando Jesus disse: “Eu fui enviado apenas às ovelhas perdidas de Israel”, qual foi o tom que ele usou? Ele disse isso em tom de quem estava se lamentando? Foi firme? Falou de maneira brincalhona ou provocativa? Seja lá qual for o tom que ele usou, a mulher sentiu que ainda podia se aproximar e ajoelhar-se diante dele. Portanto, o que isso nos diz sobre o tom que Jesus usou? Assim como atores de teatro, nós, tradutores das línguas de sinais, precisamos interpretar, da melhor forma possível, quais eram os sentimentos e o tom de Jesus naquele momento. (E para tornar tudo ainda mais complexo, talvez Jesus tenha usado um tom diferente daquilo que ele realmente estava sentindo — e, se for esse o caso, precisamos transmitir essa nuance também). Pode haver várias interpretações diferentes sobre como um versículo—especialmente quando há diálogos — deve ser representado visualmente.
E, então, Jesus diz: “Não é certo tirar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos.” Esse é uma afirmação intrigante — e, novamente, foi dita em que tom? Ele estava sendo brincalhão? Estava provocando ou testando a mulher? Em que momento Jesus decidiu que a ajudaria? Antes de falar sobre as ovelhas perdidas de Israel? Ou depois que ela se ajoelhou diante dele? Jesus, a princípio, estava relutante em ajudá-la, mas acabou sendo tocado pela fé da mulher e, por isso, decidiu atendê-la? Ou ele já sabia desde o início que iria ajudá-la e estava entabulando essa conversa em benefício daqueles que o cercavam?
Zetzsche: Todas essas questões são levadas em conta quando se traduz um texto — ou, mais precisamente, o significado de um texto — para uma língua escrita, mas é impressionante perceber como essa questão das emoções se torna ainda mais premente quando se traduz para uma língua de sinais.
Spooner: Sim, você está certo — o significado é tudo para os tradutores. Devido à natureza expressiva e performática da língua de sinais, os tradutores surdos sabem que o fato de um intérprete de sinais demonstrar emoção de menos ou demais pode alterar significativamente o sentido de uma passagem. Por isso, precisamos garantir que nossas expressões faciais e movimentos corporais estejam transmitindo não só a informação gramatical correta, mas também o nível adequado de emoção que se encaixa na situação.
Mateus não nos dá muitas pistas sobre o tom ou o sentimento de Jesus ao dizer essas palavras. Precisamos inferir isso, com base nos poucos indícios presentes na passagem. Na maioria das traduções escritas que já vi, é possível manter um tom relativamente neutro e deixar para que os leitores tirem suas próprias conclusões e façam suas interpretações. No entanto, essa neutralidade muitas vezes não é possível nas traduções para a língua de sinais.
Zetzsche: Fiquei profundamente comovido pela versão em Língua de Sinais Russa (RSL) da história do paralítico que foi baixado pelo telhado, em Marcos 2. Nessa tradução em sinais, Jesus observa os esforços dos amigos do homem, desde o momento em que começam a abrir o teto. Isso faz muito sentido, mas no texto escrito essa informação está apenas implícita. À medida que Jesus observa o homem paralisado sendo descido [do teto] diante dele, o intérprete de sinais mostra que o coração de Jesus— e o meu, como espectador — transborda de compaixão. A alegria do homem curado e da multidão é retratada de uma maneira tão contagiante que é difícil imaginar esse mesmo impacto sendo transmitido apenas por meio de palavras escritas.
(Assista ao vídeo com tradução em inglês.)
Spooner: Sim, ver algo em língua de sinais muitas vezes é muito mais impactante do que apenas ler palavras em uma página. Embora eu goste muito de ler, há algo em ver os versículos sendo sinalizados em ASL que faz com que eles nos impactem de maneira totalmente diferente.
Talvez isso se deva, em parte, às decisões que o intérprete de sinais precisa tomar para transmitir a atitude e a emoção. Podemos ver o intérprete tornar-se os personagens, o que os deixa mais vivos e reais, de uma maneira mais tangível e tridimensional do que simplesmente ler palavras numa página. A performance do intérprete de sinais se assemelha a um filme. Estamos vendo a cena diante dos nossos olhos, e não apenas imaginando-a mentalmente. Isso nos faz perceber detalhes que, quando lemos um texto escrito, poderíamos ignorar ou passar rapidamente por eles sem muita reflexão.
Minha equipe e eu somos todos surdos e bilíngues em inglês escrito e ASL. Há alguns meses, trabalhamos em algumas passagens do Antigo Testamento relacionadas à queda de Judá e à destruição do templo de Jerusalém. Já havíamos lido e analisado esses versículos antes e discutido como traduzi-los.
Mas quando gravamos a cena e vimos a pessoa interpretando-a com sinais, ficamos chocados com a forma como o comportamento dos israelitas para com Deus era verdadeiramente repulsiva. Não é de se admirar que o Senhor estivesse tão irado com eles. O simples fato de ver as ações dos israelitas ganharem vida na performance do intérprete tornou tudo ainda mais revoltante e doloroso. Quando chegamos à parte da destruição do templo, foi como levar um soco na boca do estômago. Sentimos a dor daquela perda e do exílio de uma maneira muito mais profunda do que jamais havíamos sentido, quando lemos e uma das versões bíblicas em inglês.
A tradução para a língua de sinais, embora comunique o mesmo conteúdo e o mesmo significado da tradução escrita, traz à tona camadas dos versículos que normalmente não são tão perceptíveis nas traduções escritas. Novos elementos e diferentes nuances nos saltam aos olhos e nos impactam de maneira diferente.
Fiquei surpresa ao ver como as traduções em língua de sinais tocaram você. Às vezes, penso que quem não conhece línguas de sinais não conseguirá realmente entender o que está vendo. Mas as suas observações me fizeram perceber que, se uma pessoa ouvinte dedicar tempo para estudar uma tradução em língua de sinais — não apenas assistindo superficialmente aos vídeos, mas analisando-os, como você fez — ela também poderá enxergar os versículos de maneira nova, mais profunda, e adquirir novas impressões. Não é preciso saber uma língua de sinais para se emocionar com a tradução.
Tradução: Erica Neves