Quinze anos atrás, o acadêmico Stephen Haynes mapeou as muitas interpretações da vida do teólogo alemão do século 20, Dietrich Bonhoeffer. Ele era um conservador que buscou restaurar a Alemanha — ou, talvez ,fosse um progressista que quisesse superar o dogmatismo obsoleto. Bonhoeffer era um anabatista enrustido, que se preocupava primeiro com as questões que envolviam a igreja, e só depois delas, com as questões sociais. Ou, talvez, ele fosse um modelo de teólogo que se importava principalmente com a ação social aqui e agora.
Figuras tão complexas quanto Bonhoeffer são notoriamente difíceis de serem bem interpretadas. Bonhoeffer deixou incontáveis monografias, sermões, correspondências e escritos teológicos e, desde sua morte, muito já foi escrito sobre as lembranças que amigos e colegas têm dele. Tudo isso cria uma figura complexa e às vezes evasiva, difícil de classificar dentro dos movimentos ideológicos contemporâneos. Se não tomarmos cuidado, situar Bonhoeffer em nosso momento histórico pode se tornar um mero exercício de realização de desejos.
Essa é a armadilha em que cai o novo filme sobre o teólogo [A Redenção: a história real de Bonhoeffer]. Na mais recente produção da Angel Studios, a história de Dietrich Bonhoeffer é um recipiente vazio, no qual são despejados nossos próprios desejos — neste caso, o desejo por uma fé que sirva a fins políticos.
Em certo sentido, o filme A Redenção é pura e simplesmente uma biografia, e deve ser elogiado por nos apresentar a grupos que foram influentes na vida do teólogo, mas que são frequentemente subestimados no imaginário popular: sua família, seus amigos nos Estados Unidos e seus contatos em órgãos eclesiásticos por toda a Europa.
Vemos Bonhoeffer sendo educado nas melhores universidades alemãs e se tornando um homem profundamente preocupado com o rumo político que o país tomava. Ele leciona em um seminário independente, em Finkenwalde, em meio à ascensão da influência nazista na igreja alemã. Após o fechamento do seminário, ele se junta à Abwehr, uma agência de inteligência militar alemã. Os espectadores também são apresentados ao seu cunhado, também envolvido na Abwehr, que participou de um plano para assassinar Hitler. Vemos Bonhoeffer na prisão, morrendo no campo de concentração de Flossenbürg, apenas dias antes de os prisioneiros de lá serem libertados pelos Aliados.
Em relação a esses fatos não há controvérsia. Mas o filme é mais especulativo do que sério. Sobre essa estrutura familiar da vida do teólogo, o filme constrói a história de um homem que, desde a infância, parece ter sido destinado a trocar a oração pela conspiração, o ensino bíblico pela espionagem política e a teologia pelo ativismo.
Em vez de retratar um homem de profundas convicções teológicas e intelecto refinado, o filme conta a história de uma pessoa para quem as convicções morais são uma ferramenta flexível e útil, um homem cujas ações são determinadas não por preocupações com o testemunho da igreja, mas sim pela necessidade histórica percebida.
O filme conta a história de um Bonhoeffer disposto a fazer qualquer coisa — inclusive repudiar os ensinamentos de Jesus conforme ele os entendia — para assassinar Adolf Hitler.
Precisamos reconhecer que qualquer filme biográfico toma certas liberdades em relação à figura central que retrata. Os roteiristas preenchem lacunas com conversas e encontros imaginários não apenas para fazer um bom filme, mas também para demonstrar o caráter do indivíduo.
Nesse aspecto, A redenção é um filme típico do gênero — ainda que as liberdades que ele tome sejam um pouco fantasiosas. Por exemplo, Bonhoeffer, quando jovem, passou um ano em Nova York, no Union Theological Seminary [Seminário Teológico da União], onde conheceu de perto o racismo americano e frequentou a histórica Abyssinian Baptist Church [uma das mais antigas igrejas batistas afro-americanas dos Estados Unidos, que se destaca historicamente pela preocupação com causas de justiça social e é referência na história da música gospel estadunidense].
O filme aumenta esses fatos, e retrata Bonhoeffer liderando seu próprio grupo de jazz em uma boate do Harlem, sendo espancado em um confronto com o dono de um hotel que é racista e se tornando um defensor apaixonado dos direitos dos afro-americanos. Esses acréscimos, por mais divertidos que sejam, não são mostrados apenas para preencher espaços no tempo de exibição do filme; eles são mostrados principalmente para retratar Bonhoeffer como um militante, como alguém que estava desenvolvendo um apetite por justiça.
O Bonhoeffer teólogo é ainda mais eclipsado pelo Bonhoeffer agente político conforme o filme vai se desenrolando. À medida que os nazistas ascendem ao poder, ele diz coisas como: “Não posso fingir que orar e ensinar é o suficiente” e “Minhas mãos sujas são tudo o que me resta a oferecer”. Seu célebre seminário clandestino subterrâneo em Finkenwalde não é tratado como um lugar para instruir fielmente candidatos à ordenação da Igreja Confessante, mas sim como uma plataforma de lançamento para um contra-ataque político aos nazistas. Perto do fim de sua vida, ele faz um sermão no qual sua famosa citação [“Quando Cristo chama um homem, ele o chama para vir e morrer”] é intercalada com imagens que mostram um conspirador plantando uma bomba.
Em uma cena horrível, Bonhoeffer nega seu próprio ensinamento pacifista na obra Discipulado, ao insistir: “Eu estava certo… antes de Hitler”. Seu amigo e aluno Eberhard Bethge imediatamente desafia o professor, perguntando se Hitler foi o primeiro líder maligno desde que as Escrituras foram escritas. Bonhoeffer responde em tom ameaçador: “Não. Mas ele é o primeiro que posso deter”.
Essa cena poderia tranquilamente ter sido incluída em um filme de espionagem, se contasse com efeitos especiais e uma montagem de Dietrich fazendo exercícios físicos em preparação para o que enfrentaria nas semanas seguintes.
No cerne do filme, encontra-se um retrato excessivamente confiante do teólogo como um aspirante a assassino. Sabemos que Bonhoeffer foi preso a princípio não por um plano de assassinato (como o filme descreve), mas por seu envolvimento na Operação 7, um esquema para contrabandear judeus para a vizinha Suíça. Sabemos que a principal intriga em que ele estava envolvido, através da Abwehr, era passar informações sobre os nazistas para seus contatos ecumênicos na igreja da Inglaterra e em outros lugares — e não por tentar convencer os ingleses a fornecer uma bomba para matar um ditador, como mostra o filme.
E, finalmente, embora Bonhoeffer sem dúvida soubesse dos planos (que incluíam membros da família) para assassinar Hitler, as evidências sobre seu envolvimento direto permanecem obscuras e contestadas.
Entre os historiadores, a relação do teólogo com uma tentativa de assassinato é uma questão muito debatida — e é menos uma questão do que disse o próprio Bonhoeffer e mais uma conjectura baseada no que ele sabia das atividades de seu cunhado. Contudo, para o filme A redenção, não existe esse debate: Dietrich Bonhoeffer não só sabia de uma conspiração para matar Hitler, como também estava intimamente envolvido [nela], sendo que suas convicções iniciais sobre como entender os ensinamentos de Cristo tornaram-se irrelevantes com a ascensão dos nazistas.
As palavras de Bonhoeffer na vida real complicam essa narrativa. “Confessar e testemunhar a verdade como ela é em Jesus, e, ao mesmo tempo, amar os inimigos dessa verdade, que são inimigos dele [de Cristo] e nossos, e amá-los com o amor infinito de Jesus Cristo, é de fato um caminho estreito”, ele escreveu em Discipulado. Anos depois, enquanto aguardava sua execução, ele aumentou a aposta: “Hoje eu consigo enxergar os perigos daquele livro [Discipulado], embora eu ainda defenda o que escrevi.”
É provável que Bonhoeffer soubesse de uma conspiração para matar Hitler. Mas, com base em seus escritos, também parece que suas formas pessoais de resistência cristã — isto é, passar informações para contatos internacionais, auxiliar no envio de judeus para a Suíça — eram congruentes com suas convicções de longa data.
Enfraquecer os nazistas com papeladas burocráticas e diplomacia é muito menos cinematográfico do que enfraquecê-los com explosivos, e os criadores do filme podem ter trocado a visão de mundo do personagem principal por mera questão de efeito dramático. Mas a motivação ideológica do filme parece muito exagerada para ser justificada apenas como drama. Que tipo de conexão o filme está fazendo, ao sugerir que Bonhoeffer mudou de ideia quanto ao que seria o “caminho estreito”?
Talvez o filme esteja sugerindo que o público também devesse abandonar sua ingenuidade política e pegar em armas. Talvez esteja sugerindo que o caminho de Jesus é muito suave para as duras realidades do conflito moderno, e deve ser substituído por uma abordagem mais “realista”. Ironicamente, essa é a abordagem adotada pelos próprios nazistas: substituir cruzes por suásticas e Bíblias por cópias de Mein Kampf [Minha Luta, manifesto escrito por Hitler], recorrendo a uma versão mais parruda de igreja, na qual os velhos costumes, governados pelas Escrituras e pelos sacramentos, não mais atendem aos requisitos.
As primeiras reações ao filme, particularmente por parte da família Bonhoeffer, identificaram um legado distorcido. A fonte de algumas dessas distorções parece fácil de identificar. O título em inglês do filme — Bonhoeffer: Pastor. Spy. Assassin [Bonhoeffer: Pastor. Espião. Assassino] — brinca com o título de uma biografia de Bonhoeffer lançada em 2011, escrita por Eric Metaxas, apresentador de rádio conservador dos EUA. (O site do Metaxas faz referência ao filme no contexto de planos futuros para uma série de streaming sobre o teólogo alemão, os quais são promovidos por ele no X).
A semelhança entre esta representação da vida de Bonhoeffer e a própria trajetória de Metaxas é reveladora. Embora a Angel Studios tenha minimizado qualquer conexão entre Metaxas e este projeto, preste atenção nas semelhanças (além do título do filme em inglês, que é bem semelhante ao título da obra de Metaxas: Bonhoeffer: Pastor, Martyr, Prophet, Spy [Bonhoeffer: Pastor, Mártir, Profeta, Espião]). Tanto o Bonhoeffer [do filme] quanto o Bonhoeffer de Metaxas começam como um pensador religioso, passam a se preocupar primordialmente com a vida política e, por fim, envolvem-se com o uso da força a serviço de seus ideais.
No início do filme, um amigo de Bonhoeffer que é do Harlem diz que, às vezes, um soco é necessário; em 2020, Eric Metaxas virou notícia quando deu um soco em um manifestante na capital estadunidense. O paralelo é preciso demais para ser mera coincidência. Em seu livro mais recente, Metaxas continua a conduzir a obra de Bonhoeffer na direção de seu projeto, que vê a política como o fim último da teologia. Sua retórica inflamada consistentemente iguala a esquerda americana aos nazistas.
O retrato oferecido no filme não condiz com o homem que — mesmo em meio ao colapso da Igreja Confessante — falava do batismo como a maneira de Deus criar um novo reino, que desejava que “as tarefas de resistência da igreja fossem palavra e discipulado”. Em A redenção, vemos um Bonhoeffer preso que recorre à pregação sobre o sacrifício de Cristo e toma a Comunhão somente depois de suas próprias tentativas [de salvar a alma da Alemanha] terem falhado.
Talvez o julgamento da mensagem do filme deva vir da boca do próprio Bonhoeffer. Da sua obra Ética:
O radicalismo sempre surge de um ódio consciente ou inconsciente por aquilo que está posto. O radicalismo cristão, não importa se ele consiste em se retirar do mundo ou em aprimorar o mundo, surge do ódio à criação… Em ambos os casos é uma recusa da fé na criação. Mas é por Belzebu que os demônios devem ser expulsos.
Em outras palavras, não se pode expulsar o mal com o mal. Qualquer tentativa de subjugar o mundo por meios malignos é, na verdade, recusar-se a crer que Deus é, em última análise, Deus, mesmo na era de Hitler.
O fracasso final do filme não está apenas na questão de que ele contém equívocos históricos. Ele também não consegue entender como a vida de Bonhoeffer em si já era um exemplo extraordinário de coragem cristã.
Especialmente após duas tentativas de assassinato de um ex-presidente, não precisamos de argumentos teológicos para derrubar governos; não precisamos de mais justificativas para a violência política. O que precisávamos era de um filme que mostrasse um homem preocupado em como Deus possa estar chamando a igreja para que se mantenha firme diante da tentação de moldarmos nossa fé segundo nossa ideologia política.
Myles Werntz é autor de From Isolation to Community: A Renewed Vision for Christian Life Together [Do isolamento à comunidade: uma visão renovada para vivermos uma vida cristã juntos]. Ele escreve em Christian Ethics in the Wild [Ética Cristã na Selva] e leciona na Abilene Christian University [Universidade Cristã Abilene].