Theology

A Bíblia é uma história, e não informação

Editor in Chief

Os algoritmos nos roubam o mistério. Os Evangelhos nos devolvem a capacidade de sermos surpreendidos pela verdade.

Christianity Today November 7, 2024

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Recomendei a leitura do Evangelho de Marcos a um descrente. Ele leu e achou “assustador”. Essa era exatamente a reação que eu queria.

Este jovem é provavelmente ateu ou agnóstico, mas viveu em um ambiente tão secular que não parece ter essa percepção de si mesmo, assim como você não se apresentaria como alguém “que é contra o canibalismo” ou “que é antirroubo”. Ele queria, no entanto, tentar entender — apenas a título de mero exercício intelectual — por que alguém defenderia visões ou práticas religiosas que ele considera estranhas.

Então, ele me perguntou o que deveria ler para conseguir compreender isso. Evidentemente, há muitos conteúdos que eu recomendaria a uma pessoa com esse tipo de curiosidade, mas disse a ele: “Por que você não lê o Evangelho de Marcos? Não se preocupe em entender cada detalhe; apenas leia.”

Mais tarde, encontrei-o novamente, e ele disse que havia seguido meu conselho. “Então, o que você achou?”, perguntei.

Ele disse que estava em conflito. Ler o Evangelho, por um lado, fora envolvente do ponto de vista da narrativa, e de uma forma que ele não esperava, partindo do pressuposto que um texto religioso ancestral seria enfadonho e propagandístico. Por outro lado, ele disse: “Foi meio assustador.” E foi nessa hora que ele mencionou O problema dos três corpos, de Cixin Liu.

Ele sabia que eu tinha lido essa obra de ficção científica no ano anterior — com certa relutância. Um amigo de confiança me recomendou o livro, mas avisou: “Não desista da leitura. Você vai sentir como se não entendesse o que está acontecendo e vai querer parar de ler. Continue lendo e verá que tudo valerá a pena no final.” Meu parceiro de conversa descrente não tinha lido o livro, mas tinha assistido parte da adaptação da obra feita pela Netflix [para a série que traz o mesmo nome do livro].

Vou dar alguns spoilers aqui, de leve: tanto no livro quanto na série, uma civilização alienígena se comunica com cientistas humanos por meio de um headset de realidade virtual para jogos. Os cientistas são colocados em cenários nos quais devem resolver as flutuações de gravidade que estão submetendo um planeta distante a períodos totalmente imprevisíveis de caos e calmaria.

“Às vezes, [ler o Evangelho de Marcos] era como jogar nesses cenários”, disse o jovem. “Era quase como se alguém estivesse lá do outro lado, me observando.”

Com isso, ele quis dizer particularmente que, no texto de Marcos, o “personagem” (nas palavras dele) de Jesus às vezes aparentava ter sido escrito de uma forma que parecia ser inesperadamente imediata. “Às vezes eu tinha que lembrar a mim mesmo de que eu não estava lá, bem no meio daquilo tudo. Isso meio que me assustou um pouco.”

Embora eu não tivesse em mente nenhum alienígena de alguma realidade virtual, essa reação era exatamente o que eu esperava despertar, quando recomendei que ele lesse o Evangelho de Marcos.

Normalmente, se estou ajudando alguém a “entender” o que é o cristianismo, peço a essa pessoa que leia o Evangelho de João. No caso de pessoas como esse rapaz — pessoas que não sei se algum dia terei a oportunidade de acompanhar —, porém, eu sugiro Marcos, em parte porque é conciso e relativamente fácil de ler.

Também faço isso por causa de uma história que ouvi há alguns anos. Se bem me lembro, um homem que tinha sido um espécie de religioso oriental da Nova Era — do tipo que encontrávamos frequentemente nos movimentos contraculturais hippies das décadas de 1960 e 1970 — tornou-se cristão, porque um professor que lhe dava aula de religião comparada passou como tarefa a leitura do Evangelho de Marcos. Assim como o jovem agnóstico que conheci, esse homem foi atraído pela figura de Jesus e começou a sentir como se não estivesse apenas lendo o texto, mas como se estivessem lhe acenando do interior da história.

Leon Wieseltier argumenta que hoje em dia damos muita ênfase à “contação de histórias” — que isso leva a uma perda de argumentos, de persuasão. “A contação de histórias é concebida para despertar no ouvinte certas reações, certas posturas mentais. Isso gera passividade, credulidade, espanto”, escreve Wieseltier. “E todas elas são posturas de rendição.”

É evidente que essa afirmação nega que existam verdades importantes que só podemos ver a partir de posturas de passividade, credulidade, espanto e até mesmo rendição.

O filósofo Byung-Chul Han concorda que deveríamos nos preocupar com a ênfase que é dada à contação de histórias, mas porque — por mais que falemos muito sobre contação — perdemos a capacidade de contar e de ouvir uma história real.

Segundo argumenta Han, em seu novo livro The Crisis of Narration [A crise da narração], “contamos cada vez menos histórias em nossa vida cotidiana” porque “a comunicação assumiu a forma de troca de informações”. Em uma era da informação, escreve Han, uma história real é uma ruptura. Afinal, a informação é algo direto, controlável e consumível. Já uma história funciona de maneira diferente. Para ser vivenciada, uma história precisa que algumas informações sejam retidas e também reveladas.

“Informações retidas — ou seja, a ausência de explicação — aumentam a tensão narrativa”, escreve Han. “A informação empurra para as margens aqueles eventos que não podem ser explicados, mas tão somente narrados. Uma narrativa em geral tem algo de maravilhoso e misterioso em suas margens”. E esse tipo de mistério é surpreendentemente raro em uma era de algoritmos.

Parte do nosso problema é que enxergamos os enredos como algo inquietante em nossa era da informação, especialmente se começarmos a ver nossas vidas como parte desse enredo. É isso que Han acha nocivo nos algoritmos. Eles nos têm feito consumir apenas pedaços de dados desconectados — selecionados de acordo com nossas curiosidades e nossos apetites —, a ponto de não sermos mais surpreendidos. A própria realidade começa a parecer morta, assim como tantos dados abstratos. E morte gera mais morte.

“Pedaços de informação são como partículas de poeira, e não como grãos de semente”, ele escreve. “Eles não têm força germinativa. Uma vez registrados, eles imediatamente caem no esquecimento.” A metáfora de pronto me trouxe à mente as próprias palavras de Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (João 12.24, ESV).

O jornalista David Samuels lamenta o fato de que hoje nós vivamos na monotonia de uma época em que histórias e músicas são esvaziadas por Big Data e substituídas “pelo consumo de pornografia e ativismo ideológico”.

“O objetivo dos algoritmos que governam as informações não é criar beleza, nem qualquer coisa que seja humana; é sugar seus cérebros e, então, fatiá-los em pedaços que possam ser analisados ​​e vendidos para corporações e governos, os quais, inclusive, estão rapidamente se tornando a mesma coisa. É uma mutilação em massa do ser humano”, escreve Samuels. “Na prática, isso soa como um alarme de carro disparado, que toca cada vez mais alto — um som que por si só não significa nada, senão um aviso de que algo está acontecendo.”

Talvez o problema dos três corpos em tudo isso não seja a Bíblia, mas sim o restante da vida. Do lado de lá de nossas vidas digitais estão inteligências em busca de nos questionar — estão algoritmos, sem nome e sem rosto, projetados para nos testar com uma única pergunta: “O que você quer?”. E se, no entanto, o tédio e o mal-estar que sentimos hoje forem sinais de que não fomos criados para viver assim?

Jesus disse que esta é uma das principais razões pelas quais ele ensinava por parábolas, “porque vendo, eles não veem, e ouvindo, eles não ouvem, nem entendem” (Mateus 13.13). Uma história requer um certo tipo de participação, uma certa falta de controle. É preciso ser preparado pela história — e muitas vezes através da história — para ouvir o que ela está dizendo. É preciso ficar suficientemente perplexo para suspender o controle, para sentir a tensão, a fim de não apenas compartilhar informações, mas experimentar algo verdadeiro. Sem esse senso de perplexidade e mistério, uma história perde sua capacidade de surpreender e permanecer [viva].

Pense, por exemplo, no relato muito familiar do Evangelho de João sobre a multiplicação dos pães e peixes feita por Jesus — um sinal milagroso tão importante que todos os Evangelhos fazem referência a ele. Temos a tendência de lembrar que havia uma multidão de milhares, que não havia o suficiente para comer e que Jesus providenciou um banquete praticamente a partir do nada. No entanto, o que a maioria das pessoas não pensa, ao relembrar essa história, é simplesmente como Jesus arma, constrói o episódio.

“Levantando os olhos e vendo que uma grande multidão vinha em sua direção, Jesus disse a Filipe: ‘Onde compraremos pão para esse povo comer?’”, João registra. “Fez essa pergunta apenas para pô-lo à prova, pois já tinha em mente o que ia fazer” (6.5-6).

Ele já tinha em mente o que ia fazer. A pergunta em si — a perplexidade momentânea que foi criada em Filipe — era a intenção de Jesus. É o mesmo padrão que Deus seguiu com as tribos de Israel no deserto, após o Êxodo. Moisés disse a eles: “Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8.3).

Jesus não pretende apenas alimentar; ele pretende que primeiro tenhamos “fome e sede de justiça” (Mateus 5.6). Ele não pretendia simplesmente salvar Pedro do afogamento, mas também que Pedro sentisse como era ficar embaixo d’água, gritar por socorro e sentir uma mão puxando-o para cima (Mateus 14.30-31).

O encontro de Jesus com cada um de nós, nas Escrituras, deve funcionar da mesma maneira. Nós também devemos nos encontrar exclamando com a sinagoga de Cafarnaum: “O que é isto? Um novo ensino — e com autoridade!” (Marcos 1.27). Devemos começar a fazer a pergunta: “Por que esse homem fala assim?” (Marcos 2.7). Devemos ouvir as palavras de Jesus, como se fossem dirigidas diretamente a nós: “E vocês? […] Quem vocês dizem que eu sou?” (Marcos 8.29).

Quando alguém encontra autoridade em algoritmos e revelação em consumo, isso de fato pode parecer assustador — assim como, depois de um tempo passando fome, o cheiro de pão assando pode provocar náuseas. Quem não está “entendendo as coisas” não são aqueles que acham tudo isso estranho, mas sim aqueles que acham tudo familiar e chato. É isso que um enredo faz, especialmente o que um enredo inspirado pelo Espírito de Cristo faz, um enredo no qual devemos ouvir a voz do Pastor (João 10.4).

E se alguém que está do outro lado dessas palavras ancestrais souber que você está lá? E se, nessas palavras, você quase puder ouvir a voz com sotaque galileu, que um dia subverteu as linhas do enredo da vida de alguns pescadores, quando lhes disse: “Sigam-me”? E se [essa voz] estiver falando com você? Se for assim, achar isso perturbadoramente estranho não é o fim da história, mas sim um bom lugar para começar.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Public Theology Project [Projeto de Teologia Pública].

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