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A rebeldia punk rock de Bono foi um grito de esperançoso lamento

A dor e Deus sempre foram parte da história do U2, desde o início.

Christianity Today December 2, 2022
Photograph by Ross Stewart

“Recebemos esse convite uma vez”, Bono me conta. E a próxima frase dele tem um tom de reverência: “O reverendo Billy Graham adoraria conhecer a banda e oferecer uma bênção”.

Estamos em uma videochamada, e o vocalista do U2 está sentado no chão, em frente a um sofá verde, com o computador sobre a mesa de centro à sua frente. É fim de tarde em Dublin, e o sol que acaba de se pôr dá à sala um certo brilho. É quase teatral. Os olhos de Bono têm um certo brilho também. Ele sabe que tem uma boa história.

“Ele é o fundador da Christianity Today”, ele me lembra, sorrindo. “Eu não sabia disso na época, mas ainda queria a bênção. E eu estava tentando convencer a banda a vir comigo, mas, por vários motivos, eles não puderam. Foi difícil por causa da agenda, mas acabei encontrando um jeito.”

Isso foi em março de 2002, apenas algumas semanas depois que o U2 fez seu lendário show no intervalo do Super Bowl, e dias depois que seu single “Walk On” ganhou o Grammy de Música do Ano.

“Franklin, filho de Billy Graham, me pegou no aeroporto”, diz Bono. “Ele estava fazendo um trabalho muito eficaz com a ONG Samaritan’s Purse. Mas não tinha certeza sobre como agir comigo.” Ele ri. “No caminho para encontrarmos seu pai, ele continuou me fazendo perguntas.”

Bono reencena a conversa para mim:

“Você… você realmente ama o Senhor?”
“Sim.”
“Ok, você o ama. Você é salvo?”
“Sim, e econômico (um trocadilho que ele fez com a palavra “saving”, que significa “poupar”, “economizar”).
Ele não ri. Nenhuma risadinha.
“Você entregou a sua vida [a Jesus]? Você reconhece Jesus Cristo como seu Salvador pessoal?”
“Ah, eu conheço Jesus Cristo e tento não usá-lo apenas como meu Salvador pessoal. Mas, sim.”
“Por que suas músicas não são, hum, músicas cristãs?”
“Elas são!”
“Bem, algumas delas são.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Bem, por que elas não… Por que não sabemos que são músicas cristãs?”
Eu disse: “Elas vêm todas de um lugar, Franklin. Olhe a sua volta. Olhe para a criação, olhe para as árvores, olhe para o céu, olhe para essa diversidade de colinas verdejantes. Nenhum deles traz uma placa que diz: ‘Louvado seja o Senhor’ ou ‘Eu pertenço a Jesus’. Eles apenas dão glória a Jesus.”

Por quatro décadas, Bono se envolveu em conversas como esta, respondendo a cristãos que não tinham muita certeza do que fazer com ele ou com o U2.

A ascensão da banda à fama coincidiu com o surgimento da música cristã contemporânea (MCC) que, em 1980 — quando o U2 lançou seu primeiro álbum, Boy — tornou-se popular. Jovens artistas, de fé sincera e rostos novos (e, em geral, bonitos) estavam sendo divulgados para pais e filhos que procuravam música que fosse “segura para toda a família”.

O sucesso da nova indústria foi uma faca de dois gumes. As gravadoras precisavam de bandas que pudessem tocar em um culto e vender álbuns em livrarias cristãs; por isso, além de ter talento e carisma, esperava-se que os artistas da MCC preservassem uma imagem completamente limpa e fizessem canções carregadas de letras abertamente cristãs. Alguns músicos se referem a isso, brincando, como o quociente “JPM” — isto é, um quociente para medir o quanto de “Jesus por minuto” (JPM) tem uma música cristã contemporânea.

O U2 se desenvolveu fora desse ecossistema e, na década de 1990, tinha se tornado uma das maiores bandas do mundo. Suas letras eram em geral saturadas de imagens cristãs, linguagem bíblica e um anseio espiritual, mas, com a mesma frequência, também falam sobre sexo, poder e política.

“A banda se formou cinco anos antes da estreia da MTV e era fiel às suas tendências pós-punk”, conta o músico Steve Taylor. “Eles evitaram deixar sua música ser ofuscada por qualquer imagem da banda que fosse excessivamente sofisticada ou por truques de marketing.”

Taylor foi um “insider intruso” na MCC, durante os anos 1980 e 1990, beirando os limites da aceitabilidade com um pós-punk satírico e ousado e música alternativa. Não foram poucas as vezes que ele cutucou as hipocrisias de companheiros de jornada evangélicos.

“A MCC optou por imagem e marketing em vez de conteúdo, tornando-se com o passar do tempo uma camisa de força, que recompensava o pensamento e a arte do menor denominador comum. Portanto, se o complexo industrial da MCC olhava o U2 com suspeita, tenho certeza de que o sentimento era mútuo”, diz Taylor. “Essa não era a verdade sobre os artistas que eu conhecia”, acrescentou. “O U2 eram os nossos Beatles.”

Bono apresentando-se com o U2 em 2011.AP
Bono apresentando-se com o U2 em 2011.

“Sua narrativa de origem,” eu digo a Bono, “dá uma sensação de que você é assombrado por fantasmas.”

Ele ri. “Foi T. S. Eliot… Quatro Quartetos?” ele pergunta: “‘O fim é onde começamos?’”

Estávamos falando sobre Surrender : 40 Songs , One Story (Rendição: 40 canções, uma história), o livro de memórias de quase 600 páginas do Bono, que estava a apenas algumas semanas de seu lançamento em novembro.

“O ano de 1974 tirou minha mãe de mim, mas me deu muito em troca”, Bono me diz.

“Minha mãe desmaiou, enquanto o pai dela estava sendo enterrado; nunca mais falei com ela”, acrescenta. “Eu a vi uns dias depois, num leito de hospital, enquanto ela dava seus últimos suspiros. Foi… quero dizer, as pessoas passaram por coisas muito piores”, disse ele, descrevendo alguns dos horrores que testemunhou em seu trabalho com algumas das pessoas mais pobres e vulneráveis ​​do mundo.

“Mas sim,” Bono continua, “a morte é um banho de água fria para um garoto que está entrando na puberdade. T. S. Eliot está certo, o fim é onde começamos. Você começa sua reflexão sobre a vida frequentemente em momentos como esse. Quero dizer, todos nós vivemos de fato em negação a maior parte de nossas vidas.”

A obra Surrender é um extenso confronto com a negação da morte, a começar por um susto relacionado a problemas no coração, em 2016, que quase o matou. Mas a morte de sua mãe se destaca na história — a ausência dela na casa e sua presença no coração e na imaginação do filho por cinco décadas, desde então.

Antes de ser Bono, ele era Paul Hewson, filho de Bob e Iris Hewson. Bob era católico, fanático por ópera e um homem cujo rosto anguloso dava indícios das arestas afiadas de seu comportamento. Iris era protestante, travessa, calorosa e propensa a dar gargalhadas incontroláveis ​​nos momentos mais inapropriados — como durante uma apresentação de ópera ou quando Bob enfiou uma broca de furadeira na virilha e pensou que havia feito um dano irreparável. (Ele ficou bem.)

Os pais de Bono, Bob e Iris Hewson.Cortesia do arquivo da família Hewson
Os pais de Bono, Bob e Iris Hewson.

Bono tinha 14 anos quando ela morreu. A ausência da mãe tomava conta da casa dos Hewson, intensificando a distância que já sentia entre ele e o pai.

“Existem apenas umas poucas maneiras de transformar uma criança pequena em um grande cantor que lota estádios. Você pode lhe dizer que ela é incrível… ou simplesmente ignorá-la. Isso pode ser mais eficaz”, ele escreve em Surrender.

“As feridas que a perda (da minha mãe) abriu em minha vida se tornaram esse tipo de vazio que preenchi com música e amizade”, Bono me disse. “E realmente, com uma ‘fé cada vez maior'”, acrescenta ele com um sorriso enorme, “como diria o evangelista galês Smith Wigglesworth”.

O amigo que o rebatizou de “Bono” foi quem lhe apresentou o tipo de cristianismo que moldou sua vida. Derek Rowen, também conhecido como “Guggi”, era um criador de apelidos, e a maioria das crianças que passaram pela gangue de amigos deles ganhou um novo nome em algum momento. (Um deles, David Evans, ganhou o apelido de “the Edge” por causa de suas características galesas marcantes. Esse também pegou.)

Bono escreve: “Guggi me apresentou a ideia de que Deus pode estar interessado nos detalhes de nossas vidas, um conceito que me ajudaria durante minha infância. E também em minha vida adulta.”

Nas igrejas e nas reuniões de oração que frequentavam, Bono encontrou uma direção e um nome para dar ao que chamava de um senso do divino que era inato, mas “incipiente e sem forma”. Isso o impactou profundamente, e ainda o impacta. Ele escreve,

A Bíblia me fascinou. As palavras saltavam das páginas e me seguiam até em casa. Encontrei mais do que poesia naquela escrita gótica da King James [uma das versões da Bíblia em inglês]. […] Eu era sempre o primeiro a levantar, quando ouvia um apelo, aquele momento do “venha para Jesus”. E ainda sou. Se eu estivesse em um café agora, e alguém dissesse: “Levante-se, se você está pronto para entregar sua vida a Jesus”, eu seria o primeiro a me levantar. Eu levava Jesus comigo para todos os cantos, e ainda levo.

A morte de Iris Hewson não foi o único evento devastador em 1974. Quatro meses antes de seu ataque, três carros-bomba explodiram em Dublin, e um quarto carro explodiu em Monaghan, matando 33 pessoas e ferindo mais de 300.

Um deles explodiu perto da Dolphin Discs, a loja de discos que Bono costumava frequentar depois da escola; mas ele não estava lá. Uma greve de ônibus, que aconteceu naquele mesmo dia, fez com que ele fizesse de bicicleta seu trajeto de ida e volta para a escola; Bono estava em casa quando as bombas explodiram. Ele escreve: “Naquele dia eu não escapei de uma bala; eu escapei de uma carnificina.”

Explosão de bomba em Dublin, 1974.Getty
Explosão de bomba em Dublin, 1974.

Dois anos se passaram. Para Bono, foram dois anos de internalização de trauma, terror e dor. Então, em 1976, Larry Mullen Jr. fixou um cartaz na parede de sua escola: “Baterista procura músicos para formar uma banda”. Entre os que responderam ao chamado estavam Bono, The Edge e Adam Clayton.

O U2 faz parte da era musical pós-punk e surgiu ao lado de bandas como The Clash, Stiff Little Fingers e Sex Pistols. O pós-punk evoluiu da força bruta de predecessores como os Ramones, mas o som era mais dinâmico, as músicas mais compostas. Foi uma época em que o espírito rebelde do rock-and-roll se tornou mais político, mais revoltado com a hipocrisia das elites e os abusos dos poderosos.

Mas enquanto seus contemporâneos se entregavam ao cinismo, cantando sobre “nada fazer sentido” ou “nada ter futuro”, o U2 cantava lamentos, clamava: “Por quanto tempo?” e um triste “Nós poderíamos ser um”. A banda era mais profética do que dissidente, consciente de que havia uma esperança de restauração por baixo daquele sentimento de injustiça.

Perguntei a Bono sobre esse contraste. “Mesmo nos trechos mais sombrios de suas letras”, eu digo, “elas [as letras] não transmitem desespero. São lidas como um lamento. E, por baixo do lamento, sempre há uma espécie de esperança. A música punk é o som da rebeldia. Você traz todo esse trauma de seu passado, essa sensação de perda. Parece que a própria esperança era um ato de rebeldia em seu mundo, naquela época.”

Ele pensa por um momento, repetindo uma frase. “Por trás do lamento esconde-se a esperança. Sim, o luto se torna uma espécie de invocação, não é? Uma oração a ser atendida?” Ele ri. “Sim. Orações punk rock. Isso é provavelmente o que elas eram.”

“Foi uma época incrível, o punk rock”, diz ele. “Eles realmente me inspiraram. Suponho que no U2 nos rebelamos contra algo um pouco mais elíptico, talvez mais difícil de seguir para alguns, mas estávamos nos rebelando contra nós mesmos.”

“Eu tinha uma Bíblia e me lembro de grifar Efésios 6: Porque a nossa batalha não é contra a carne e o sangue, mas contra as potestades e principados espirituais, portanto, tomai toda a armadura de Deus, a couraça da justiça, o escudo da fé, o capacete da salvação, as sandálias do evangelho da paz… Isso me impactou imensamente. E eu, com 18, 19 anos, pensei: essa é a verdadeira luta que está acontecendo. Todo o resto é uma expressão disso. E, aliás, eu não achava que as pessoas religiosas entendiam suas próprias Escrituras, pois muitas vezes usavam sua religião — na Irlanda, com toda certeza — como um porrete para acertar os outros. Quer dizer, católicos e protestantes… é meio ridículo, se você pensar bem. Sim, escolhemos uma luta mais interessante.”

Ele se senta e ri. “Se você suportar esse cantor de rock irlandês ferveroso citando suas próprias letras, há uma música em No Line on the Horizon chamada 'Cedars of Lebanon' [Cedros do Líbano], e acho que diz assim: ‘Escolha seus inimigos com cuidado, porque eles definirão você. Faça deles algo interessante, porque, de certa forma, eles vão observar você.' E continua: ‘Eles não estão lá no começo, mas quando sua história termina. Eles estarão com você por mais tempo do que seus amigos.’ Acho que aquilo que o U2 provavelmente acertou foi que nós apenas… escolhemos lutar com um inimigo muito mais interessante do que um mais óbvio para o punk rock.”

Isso me lembrou de algo que Bono disse, certa vez, em uma entrevista com David Fricke, para a revista Rolling Stone. Fricke estava cobrindo a turnê do U2 em 1992, para o álbum Achtung Baby, no qual a banda se entregava a um glamour selvagem, absurdo e autoparodiante. Comentando sobre a contradição entre criticar os excessos do rock-and-roll e, ao mesmo tempo, condescender com eles, Bono disse: “Zombe do diabo e ele fugirá de você.”

À direita, Bono com membros da banda e amigos, em 1979Fotografia de Patrick Brocklebank
À direita, Bono com membros da banda e amigos, em 1979

Após o lançamento de seu primeiro disco, o U2 chegou a uma encruzilhada. “Eles estavam seriamente convencidos de que estávamos no caminho errado”, diz Bono, descrevendo os líderes da comunidade cristã bastante unida de que faziam parte, em Dublin. Eles colocaram muita pressão sobre a banda, convencidos de que seguir o chamado de Deus significava deixar a estrada e se concentrar no evangelismo e na vida da igreja em Dublin.

The Edge desistiu. Bono não conseguia imaginar o U2 sem ele, então, desistiu também. Larry entendeu. O Adam não, mas não queria arrumar uma briga. Eles dirigiram até a casa de seu empresário, Paul McGuinness, e disseram a ele que o U2 chegara no fim da estrada. Bono descreve a cena em Surrender:

“Devo deduzir disso que vocês têm falado com Deus?”, perguntou McGuinness.
“Achamos que é a vontade de Deus”, respondemos com sinceridade.
“Então, vocês conseguem simplesmente falar com Deus?”
“Sim”, entoamos.
“Bem, talvez da próxima vez vocês possam perguntar a Deus se está certo que o representante de vocês na terra rompa um contrato legal?”
“Como assim?”
“Você acha que Deus quer que vocês rompam um contrato legal? … Como é possível que esse seu Deus queira que vocês infrinjam a lei e não cumpram com suas responsabilidades para fazer essa turnê? Que tipo de Deus é esse?”

Era um bom argumento. É improvável que Deus nos faça infringir a lei.

Essa conversa foi fundamental. Sem perceber, McGuinness lhes dera a permissão de que precisavam para viver na tensão de estar no mundo, mas não ser do mundo. Bono escreve: “Como artistas, estávamos lentamente descobrindo o paradoxo e a ideia de que não somos compelidos a resolver todo impulso contraditório”.

“Seu trabalho é sempre ‘sim, e’”, diz Sandra McCracken. Ela própria uma artista, McCracken leva a música para santuários de igrejas e bares fétidos — algo que teria sido inimaginável para muitos músicos cristãos da geração anterior à dela. Bono demonstrou aos artistas cristãos como poderia ser viver nesses espaços liminares, permitindo que o amor e a imaginação os levem a fazer música em que acreditam, antes de mais nada.

“É como se o artista sangrasse os jornais e as Escrituras igualmente. Não há distinção, ele vive com os dois à sua frente”, diz McCracken. “E isso me pareceu tão atraente. Isso me lembra das conversas dos melhores tipos que alguém tenta ter com seus filhos. Você percebe o que chamou a atenção deles e pergunta: ‘O que você gosta nisso?‘ Há uma espécie de generosidade nessa visão.”

É fevereiro de 2002. O primeiro Super Bowl após o 11 de setembro foi uma exibição ininterrupta de bandeiras americanas, hinos e ex-presidentes. Mas quem sobe ao palco no intervalo são os quatro irlandeses do U2.

É difícil imaginar outra banda ou outro artista capaz de falar às ansiedades que fervilhavam na psiquê americana, após o 11 de setembro. Nas duas décadas desde o lançamento de seu primeiro disco, suas orações punk rock deram a eles credibilidade como testemunhas da presença de Deus e da esperança de justiça em um mundo sombrio.

Quando a música começou, the Edge estava tocando a guitarra Gibson Explorer que ele comprou na cidade de Nova York, quando criança. Bono apareceu no meio da multidão, cantando,

O coração é uma flor,
Que brota de solo pedregoso.

Makoto Fujimura, pintor e autor de Art and Faith: A Theology of Making, descreveu a “guerra cultural” como uma mentalidade polarizada, que vê a cultura como um território a dominar, e não como um espaço comum que os cristãos compartilham com seus próximos. Em vez de um jogo em que um jogador só pode ganhar se o outro perder, ele nos convida a uma postura de “cuidado cultural” e “criatividade generativa” — por meio da qual as pessoas criam e colaboram para trazer beleza e cura a um mundo fragmentado.

“É preciso um certo tipo de coragem para permanecer no meio da devastação e não se tornar cínico”, ele me diz. “Considerando a história de Bono, faz sentido que ele queira falar de ‘Shalom’ para o sofrimento no mundo.”

Durante o show do intervalo, “Shalom” soou muito como “It’s a beautiful day” [um dos hits da banda].

: Bono se apresentando com o U2, durante o intervalo do Super Bowl XXXVI, em 2002.Getty / Michael Caulfield
: Bono se apresentando com o U2, durante o intervalo do Super Bowl XXXVI, em 2002.

Parece fácil esquecer o choque do 11 de setembro e a ansiedade que ele deixou em todo o mundo ocidental. Mas, quando experimentamos esse tipo de violência, precisamos de testemunhas proféticas que possam não apenas reacender nossa coragem e nossa esperança, mas também nos ensinar a lamentar.

Quando o U2 começou sua segunda música, uma tela preta surgiu bem no alto, atrás deles, com os nomes projetados das vítimas do 11 de setembro rolando em direção ao céu. The Edge começou a tocar a conhecida melodia percussiva de “Where the Streets Have No Name”, e Bono orou o Salmo 51.15: “Ó Senhor, dá palavras aos meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor.” A banda entrou na música, e Bono gritava “América!”, oferecendo um clamor atônito que se situava entre um grito primitivo e um aleluia.

“Os artistas precisam aprender a ficar em pé sobre as cinzas do marco zero e acreditar que terão uma nova missão e uma nova música”, disse Fujimura. “Isso significa prestar atenção a tudo — ao bom e ao ruim […] Para alguém como Bono e o U2, suas experiências de trauma permitiram que ouvissem um chamado. Prestar atenção às sarças ardentes — a esses lugares onde Deus está falando — e compartilhar o que eles veem e ouvem com o mundo.”

“Where the Streets Have No Name” é um lamento, uma oração por uma unidade que transcende as divisões de raça, classe e nação. Quando a música terminou, Bono abriu sua jaqueta e revelou as estrelas e listras costuradas no forro — mais um símbolo de solidariedade.

Bono mais tarde descreveu esse momento como uma noite de “alegria desafiadora”. É uma descrição que se aplica não apenas àquela noite, mas a todo o seu testemunho sem igual.

Com bastante frequência, os artistas cristãos são confrontados com códigos não escritos — assuntos que devem ser evitados, autoimagens que devem ser projetadas, mensagens a serem enfiadas em seus projetos, pessoas que não se deve ofender e políticas a ser endossadas ou evitadas. Poucas coisas são mais venenosas para a criatividade do que esse tipo de dogmatismo.

A resposta do U2 a esses confrontos tem sido a de aceitar o paradoxo e a contradição de viver em um espaço entre esses extremos. Isso levou alguns a sugerir que eles são cristãos demais para o mainstream e muito mainstream para os cristãos. O que me admira é que esta estrutura está precisamente errada. Viver nesse espaço limiar os tornou mais capazes de falar com ambas as comunidades. Isso lhes deu a oportunidade, naquela noite de 2002, de conceder a dádiva do lamento e da esperança a um mundo que os observava.

Bono também se viu confrontando essas divisões de uma nova maneira. Perto da virada do século, ele se envolveu em uma campanha para acabar com a dívida do mundo em desenvolvimento, que se chamava Jubileu 2000. O sucesso dessa campanha e a exposição que ela deu à epidemia de HIV/AIDS na África inspiraram um nível muito mais profundo de compromisso com o trabalho ativista, que mais tarde levou à criação da campanha ONE — que incluiu um esforço maciço para fornecer medicamentos antivirais ao continente africano.

Para que a campanha fosse bem-sucedida, ele precisava da adesão de políticos conservadores e de líderes evangélicos, mas dados de pesquisas da época sugeriam que os cristãos evangélicos tinham muito pouco interesse em ajudar as vítimas da AIDS, incluindo órfãos. Bono tomou a iniciativa de construir pontes com políticos com quem jamais imaginou sentar à mesa. Ele escreve: “Eu estava começando a ver que a Bíblia era uma porta pela qual eu poderia passar com pessoas que, de outra forma, ficariam estagnadas”.

“Essas não são questões partidárias”, Michael Gerson me diz. Ele foi redator de discursos e assessor de políticas no governo de George W. Bush e trabalhou com a campanha ONE nos anos seguintes. “Bono encontrou um terreno comum com outras pessoas, por causa de seu senso próprio de dignidade humana, que está enraizado na Bíblia.”

Foi assim que Bono se viu recebendo uma oração no escritório do senador Jesse Helms (que foi uma das inspirações — e não no bom sentido — para a música antiguerra do U2 “Bullet the Blue Sky”). É difícil imaginar um político que tenha opiniões mais diametralmente opostas às de Bono. Helms chamou a AIDS de “a doença gay” e se opôs à legislação de direitos civis por décadas. “E aqui está ele”, escreve Bono, “impondo as mãos sobre a minha cabeça”.

Helms estava orando por Bono.

“Helms tinha lágrimas nos olhos e mais tarde vai se arrepender publicamente da maneira como se referiu a AIDS no passado. Foi um choque grande tanto para a esquerda quanto para a direita. O que comoveu Helms foi a analogia com a lepra, nas Escrituras. Lá, ele teve que seguir seu Jesus”.

Durante o governo Bush, Bono e outros participantes da campanha ONE construíram uma ponte atrás da outra, alcançando mais de US$ 100 bilhões do dinheiro dos contribuintes, que foram alocados para esforços que visavam prevenir a transmissão do HIV e fornecer tratamento.

“O que mudou a América”, Bono me diz, “o que ajudou a inspirar um presidente conservador dos Estados Unidos a lutar contra o HIV/AIDS e a liderar o mundo naquela que foi a melhor, a maior intervenção na história da medicina, foram os cristãos conservadores.”

Digo a ele que sou fascinado por essas histórias, especialmente nesses nossos tempos tão polarizados.

“Vou me definir como centro radical”, diz ele. “Ter sua fé sequestrada pela política é algo com que todos nós precisamos ter muito cuidado.”

Se o lamento esperançoso foi um ato de rebeldia em 1981, quando Boy foi lançado, talvez ser centro radical seja punk rock em 2022.

“Acho que não devemos nos permitir essa visão binária do mundo, entre progressistas e conservadores. Eu acho que isso é muito divisivo”, diz ele. “Encontraremos um terreno comum se buscarmos por um terreno mais elevado.”

“Precisamos chegar a um lugar de sabedoria”, continua Bono. “E eu antevejo avivamento.” Na verdade, ele prevê que as igrejas, de várias denominações, “poderiam ficar cheias, em vez de se esvaziarem. Mas depende de como são usadas. Temos de esperar que as pessoas vivam sua fé, e não apenas a preguem. Temos de pregar isso. Se você é um pregador, pregue isso. Mas se você não consegue vivê-la, pare.”

Quando pensei em entrevistar Bono pela primeira vez, achei a escala e o escopo de sua vida meio avassaladores. Ele não é apenas um dos maiores astros do rock mundial — ele é um de seus ativistas mais visíveis e eficazes. E, claro, ao ler Surrender, fiquei impressionado com a forma como sua vida extraordinária também é cheia da ordinária complexidade da nossa experiência humana — de amor, perdas, tristeza, graça, feridas, redenção.

“Eu queria explicar o que tenho feito com a minha vida para minha família, meus amigos e meus fãs”, diz Bono sobre a obra Surrender. “Também queria explicar à minha família o que fiz com a vida deles. Foram eles que me permitiram ficar longe, fosse no circo itinerante que era o U2 ou no meu ativismo. Eu só queria que eles…” Ele faz uma longa pausa. “Eu queria que eles entendessem o que eu estava fazendo com a minha vida.”

Como alguém que passou a maior parte da vida se identificando com o caráter espiritual das letras de Bono, acho que faz todo o sentido que Bono escreva um livro espiritual de memórias. É um gênero que Agostinho provavelmente não inventou, mas cujo padrão certamente modelou em Confissões. As expressões de anseio, arrependimento e esperança de Agostinho ressoam até os dias de hoje, pois refletem a experiência de toda alma que se permite sentir esse anseio por Deus. A oração mais famosa de Agostinho, “Nosso coração está inquieto até que descanse em ti”, soa muito como uma letra do U2: “I still haven’t found what I’m looking for” [Ainda não encontrei o que estou procurando].

Mesmo nas páginas finais de Surrender, Bono se identifica como um peregrino, não como um sábio — e sim como alguém que ainda está em busca. Ele conta uma história sobre como viu o filho tocar com sua banda, Inhaler, e a conversa que tiveram depois. Bono disse a ele: “Ser você mesmo é a coisa mais difícil, e isso é fácil para você. Nunca fui eu mesmo.”

Digo a Bono que ler essa frase realmente me surpreendeu.

“A palavra rendição [surrender] ainda parece fora de alcance para mim. A integração que se espera de uma pessoa que foi restaurada por sua fé provavelmente ainda me falta. Eu tenho a alegria, tenho alguns insights, tenho muito. Mas o que eu estava falando é de me sentir confortável na minha pele”, diz ele.

“Sabe como é, essa questão do U2 nos palcos… muita coisa acontece,” ele diz. “Nós realmente temos de nos preparar antes de entrar no palco. Temos de orar uns pelos outros. É algo como: ‘Vamos lá, rapazes. É apenas um show de rock-and-roll. Parem de se achar tão importantes’. Mas não podemos fazer isso sem aquilo [sem orar]. Ontem mesmo eu estava falando na escola em que fiz o colegial, para os alunos do sexto ano. Eu estava lendo o livro para eles; e fiquei tão nervoso.”

Ele respira devagar. “Mas vou te dizer, lá no fundo, existe uma âncora”, diz ele. “Estou preso a uma rocha, e essa rocha é Jesus.”

Mike Cosper é diretor da CT Media.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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