Quando chegou ao Oriente Médio, o “contrabandista de Deus” entrou pela porta da frente. Já conhecido por esconder Bíblias na traseira de seu Volkswagen, quando cruzava a Cortina de Ferro, o irmão André agora simplesmente as entregava a terroristas. Juntamente com sua devoção à igreja palestina, o fundador da missão Portas Abertas abalou o status quo cristão ocidental.
E os evangélicos árabes o amavam por isso.
“Ele tinha um coração que se comovia por aqueles que sofrem, pelos perseguidos e por aqueles geralmente considerados como os que são do outro lado, como o inimigo”, disse Jack Sara, coordenador geral da Aliança Evangélica para o Oriente Médio e o Norte da África. “Ele estava disposto a entrar em lugares difíceis e a conversar com pessoas difíceis, sem jamais comprometer a mensagem do evangelho.”
A notícia da morte de Anne van der Bijl, no dia 27 de setembro , aos 94 anos, abalou os participantes durante a segunda assembleia geral da Aliança Mundial Evangélica (WEA) na região árabe. David Rihani, presidente do Conselho Evangélico da Jordânia, relembrou as palavras de seu pai, que recebia com frequência o evangélico holandês.
“Este homem é um exemplo de um verdadeiro líder cristão”, dizia o primeiro pastor evangélico jordaniano ao filho. “Ele escreve livros, compartilha conhecimento e se preocupa com todos, sem discriminação.”
Rihani elogiou a cooperação ecumênica do irmão André. Desenvolvendo relacionamentos com líderes tradicionais católicos e ortodoxos da região, por décadas a Portas Abertas tem relatado a perseguição contra todas as denominações cristãs. E, à medida que a luta do grupo crescia em 60 países e passava a incluir a situação dos fieis de outras tradições religiosas, o contrabandista de Bíblias também ganhava o respeito da comunidade de direitos humanos em geral.
“Ele lutou incansavelmente pela liberdade religiosa, [foi] uma fonte de esperança para comunidades cristãs perseguidas em todo o mundo”, tuitou o embaixador-geral dos EUA, Rashad Hussain, um muçulmano. “Sou grato porque seu legado sobreviverá no trabalho de @OpenDoors [conta em inglês da missão Portas Abertas].”
Mas foram seus livros que a princípio construíram a fama mundial do irmão André. O contrabandista de Deus, escrito em 1967, vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzido para 35 idiomas, incluindo o árabe.
Maher Fouad, presidente da Sociedade Geral das Igrejas Evangélicas Nacionais do Iraque, foi mais tocado por E Deus mudou de ideia (1990). Chamando o irmão André de “santo abençoado”, ele se lembra de ter lido o livro em 1991, quando chefiava o ministério de oração da Igreja Evangélica Nacional de Bagdá.
“Esse livro me redirecionou completamente”, disse Maher. “Ele sabia como entrar pouco a pouco na presença de Deus, e só então encontrar respostas de oração.”
A publicação de Força da luz, em 2004, destacou para o mundo a crescente atenção que o irmão André dedicava ao mundo muçulmano. Aclamado por ser tão cativante quanto a obra O contrabandista de Deus, sua dependência da oração ficava evidente em sua preocupação prática com a igreja do Oriente Médio.
“Meu propósito é encorajar e fortalecer os crentes locais para serem uma Força da Luz” ou um exército da Luz, escreveu ele, “uma alternativa ao poderio militar”.
Ele próprio, porém, era o primeiro exemplo disto.
Em 1992, quando 415 militantes do Hamas foram expulsos por Israel, para a encosta de uma montanha em Marj al-Zohour, no sul do Líbano, irmão André viu ali uma oportunidade de colocar em prática Mateus 25. Ele doou tendas, alimentos e remédios.
“Não há terroristas — apenas pessoas que precisam de Jesus”, escreveu ele mais tarde em sua obra Força da Luz. “Enquanto enxergarmos qualquer pessoa — seja ela muçulmana, comunista, terrorista — como um inimigo, então, o amor de Deus não pode fluir através de nós para alcançá-la.”
O ativismo do irmão André desconcertava muitos cristãos — tanto crentes locais quanto apoiadores ocidentais. Ele frequentemente criticava o apoio dos evangélicos dos EUA às guerras no Afeganistão e no Iraque, vendo isso como falta de fé deles no poder das missões. Ele defendia os refugiados e orou por Osama bin Laden — cuja morte ele chamou de “assassinato”.
Ele também condenava os “assassinatos” de seus “amigos” em Gaza. Em 2004, os militares israelenses mataram o Sheikh Ahmad Yassin, fundador do Hamas, que sete anos antes havia recebido o fundador da missão Portas Abertas em sua casa. Apenas o evangelho do amor, como o irmão André consistentemente pregava, poderia ser a resposta para o impasse do conflito no Oriente Médio.
“A melhor maneira de ajudar Israel”, dizia ele, rebatendo seus críticos na obra Força da Luz, “é levando seus inimigos a Jesus Cristo”.
E fazendo isso com os crentes locais. Esforçando-se para que os cristãos locais escapassem de sua “mentalidade de vítima”, ele também ajudou no crescimento de pessoas e instituições que poderiam levar outros a Cristo.
“Agradecemos a Deus por colocar uma pessoa tão grandiosa à nossa frente, e nos convidar a imitá-lo”, disse Bassem Fekry, presidente da Comunidade de Evangélicos do Egito. “Ele está agora entre a grande nuvem de testemunhas.”
Fekry lembrou do irmão André contando suas histórias de contrabando de bíblias para uma multidão, na Igreja Salvação das Almas, que fica no denso bairro urbano de Shubra, no Cairo. Com seus 20 e poucos anos na época, o líder egípcio foi inspirado para uma vida de serviço.
“O irmão André estava sempre em busca de novos rebeldes e radicais dispostos a ir aos lugares mais sombrios da Terra, correndo risco de morrer, para mudar o mundo”, escreveu David Curry, CEO da missão Portas Abertas EUA, em uma homenagem esta semana. “E ele ficava grato por todos que se juntavam à sua causa.”
Jack Sara é um desses que se juntaram à causa. O irmão André visitava regularmente sua igreja em Jerusalém, quando Sara era um jovem crente, em 1992, e também mais tarde, quando passou a ser líder da mesma congregação. No meio tempo, porém, quando o fundador da missão Portas Abertas ouviu do pastor que crentes pobres haviam prometido enviar Jack Sara às Filipinas para estudar em um seminário, ele tirou todo o dinheiro que tinha no bolso — o que correspondia exatamente à quantia para completar o financiamento necessário.
Jack Sara só descobriu isso dois anos depois, quando perguntou de onde viera o dinheiro para seus estudos. Doações regulares continuaram a desenvolver o ministério do Bethlehem Bible College (BBC) — que dava continuidade ao controverso ministério palestino do holandês, por meio de conferências regulares chamadas “ Cristo no posto de fronteira ”.
“Cada cantinho do BBC tem o toque do irmão André”, disse Jack Sara, agora presidente da faculdade. “Ele se preocupava com o testemunho dos cristãos em nossa comunidade.”
Outro desses indivíduos é Salim Munayer, fundador do ministério Musalaha, com sede em Jerusalém. De volta do Seminário Fuller, em 1985, para ser o primeiro professor local contratado pelo BBC, sua visão de estimular a reconciliação centrada em Cristo entre judeus messiânicos e evangélicos palestinos — que mais tarde se expandiria para toda a sociedade na Terra Santa — recebeu seu primeiro financiamento da missão Portas Abertas.
Mais tarde, ele se juntou ao irmão André e ao presidente fundador do BBC, Bishara Awad, para uma tensa viagem de táxi por estradas secundárias até Hebrom. Sob o toque de recolher israelense na época, Munayer havia carregado uma caixa cheia de Bíblias e traduções para o árabe da obra O contrabandista de Deus, no segundo veículo locado. O primeiro, sabendo do destino, recusou-se a levá-los.
Ao chegarem à cidade da Cisjordânia, uma multidão de mais de 100 apoiadores do Hamas estava reunida no local. O líder local os acalmou, dizendo que o irmão André certa vez os socorreu em um momento de necessidade. Distribuindo livros e pregando sobre como o amor de Deus exige amar também o “irmão”, Munayer — que agora era o coordenador de rede da Rede de Paz e Reconciliação da Aliança Evangélica Mundial — lembrou como o holandês falava com clareza sobre a cruz.
“Ele foi uma das poucas pessoas que podia dizer aos líderes do Hamas: ‘Sou cristão e seguidor de Cristo, e ajudo pessoas que passam por aflição'”, disse ele. “Ele construiu um histórico de confiança entre eles.”
O irmão André conseguiu a permissão de Yasser Arafat para abrir uma livraria bíblica em Gaza, e para falar sobre o cristianismo na Universidade Islâmica do enclave costeiro.
Hanna Massad, que serviu 12 anos como pastor da Igreja Batista de Gaza, chamou o irmão André de “herói da fé”. Foi por seu cuidado genuíno que irmão André conquistou o direito de falar — e longe dele ser ingênuo sobre as realidades locais.
“Se não fôssemos até eles com o amor de Cristo”, lembra Massad da convicção do evangelista, “eles viriam até nós com suas armas”.
Mas o irmão André não estava interessado apenas em cultivar boas relações. A obra Cristãos secretos, publicada em 2007, tinha por subtítulo: O que acontece quando muçulmanos se convertem a Cristo.
Até o fim da vida, disse Curry, o irmão André manteve acesa essa paixão. Aos 90 anos, ele viajou para o Paquistão, à procura de conhecer líderes do Talibã. O homem que, antes da própria conversão, matou a tiros muçulmanos inocentes na Indonésia, quando serviu como soldado do exército holandês, estava determinado a demonstrar amor para essa geração de extremistas.
“O irmão André podia ver o que outros não podiam”, disse Munayer, “e com voz profética ele não apenas proclamou a verdade, mas a viveu, fielmente”.
Traduzido por Mariana Albuquerque
Editado por Marisa Lopes
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