Em um dia agradável de primavera, eu andava de um lado para o outro sobre o gramado do meu jardim, de novo verdinho após o longo inverno, enquanto falava ao telefone. As palavras de uma amiga me paralisaram. Ela falava de uma amiga que temos em comum: “Ela está tentando ter um bebê há dez anos. Você pelo menos consegue engravidar.”
Eu havia perdido três bebês em um ano, não tinha nenhum bebê em meus braços, e essas palavras, embora ditas com a intenção de me encorajar, provocaram uma onda de dor no meu coração. Eu estava cansada de ouvir palavras desse tipo de irmãos e irmãs na fé: “Pelo menos [o aborto] foi no início da gravidez” ou “Você terá outros bebês”. Para mulheres que já sofreram abortos espontâneos, comentários como esses soam como se alguém tivesse amassado a vida de nosso bebê, como se fosse um pedaço de papel, e o jogado fora, no lixo. Essas palavras diminuem o valor do bebê que não nasceu e invalidam a nossa dor.
Mas como chegamos a esse ponto? Como nós, cristãos evangélicos, com nossa postura predominantemente pró-vida, ignoramos a forma como nossas palavras menosprezam os bebês que morrem por aborto espontâneo? Podemos começar a responder a essas perguntas olhando para a história.
Muitas vezes nos esquecemos de que, por muitos séculos, as pessoas não tinham outro recurso a não ser adivinhar o que acontecia em secreto, lá dentro do útero materno. Já na época de Aristóteles (384–322 a.C.), em geral se acreditava que um bebê ganhava alma no momento da vivificação — o momento em que a mulher sente os primeiros movimentos do bebê (tipicamente entre a 16ª e 24ª semanas de gestação). Agostinho e Tomás de Aquino acreditavam que esse também era o momento da “infusão da alma”.
Um bebê que se perdia no início da gravidez era considerado uma falsa concepção ou um filho “em potencial”. Alguns ainda mantiveram essa crença até o século 19, como vemos na carta de uma mulher ao marido, após um aborto espontâneo: “O número imaginário 10, a quem eu já havia começado a amar, ainda não é uma entidade real”. Mas, naquela época, a cultura ocidental deu uma guinada brusca em direção a outra crença.
Por volta do final do século 17 até o final do século 18, muitas pessoas acreditavam no pré-formacionismo — a crença de que um ser humano em miniatura, pré-formado, já existe no óvulo da mulher ou no esperma do homem. Por acreditarem que uma pessoa totalmente desenvolvida já existia dentro de uma das células sexuais, como uma boneca russa Matrioska, muitos começaram a acreditar que a alma já existia na concepção. O biólogo alemão Oscar Hertwig refutou o pré-formacionismo, quando descobriu o processo de fertilização, por volta de 1875-1878. Essa nova descoberta restaurou entre os estudiosos a confusão sobre quando a vida realmente começa.
Os avanços científicos e tecnológicos atuais levaram quase todos os biólogos, incluindo aqueles que se consideram pró-escolha, a concordar que a vida começa na concepção. Monitores fetais Doppler detectam batimentos cardíacos já entre a 8ª e 10ª semanas de gestação, e o ultrassom nos permite captar os batimentos cardíacos de um feto já na 5ª semana de gestação: um batimento cardíaco que pulsa com a verdade da vida, e cujo ritmo é um hino de louvor ao Criador.
Hoje, muitos de nós já ouvimos os batimentos cardíacos do nosso bebê ou testemunhamos seus movimentos em telas de ultrassom. Mas o monitor fetal Doppler foi criado apenas em 1964. E o ultrassom não era usado rotineiramente em hospitais americanos até o final da década de 1970. Muitas mulheres, entre elas a minha própria mãe, não recebiam esse tipo de cuidado quase até o final da década de 1980.
Ainda assim, mesmo com todo o conhecimento que temos hoje, muitos optam por ignorar — e até mesmo atacar — a personalidade do nascituro [do bebê que está sendo gestado]. Seria um equívoco negar o impacto que isso teve no modo como nos referimos a crianças em gestação no útero, inclusive dentro da igreja.
Tremo ao lembrar dos meus próprios erros nessa área, quando uma amiga minha sofreu um aborto espontâneo. Os pensamentos que tive na ocasião revelavam uma visão equivocada das crianças em gestação no útero. Para mim, parecia que ela havia perdido um sonho. Mas minha amiga não perdeu um sonho; ela estava de luto por uma vida, um relacionamento, pela conexão cortada com seu bebê. Foi somente depois que sofri as minhas próprias perdas que reconheci a minha ignorância.
Quando uma mulher recebe de outros crentes palavras sobre seu aborto espontâneo, coisas como “você terá outro bebê”, “pelo menos você terá outros filhos” ou “isso é tão comum”, o que ela ouve, na verdade, é “seu bebê não tinha a menor importância”, “seu bebê não era real” e “não vale a pena chorar por seu bebê”.
Embora a maioria dos cristãos defenda a santidade da vida, muitos de nós ainda falamos dos bebês perdidos em abortos espontâneos como se fossem quase bebês. Essas mães estão sofrendo por filhos de verdade, reais, que carregaram em seu corpo, e nós as tratamos como se tivessem perdido apenas uma aspiração. Mas não é dessa forma que Deus vê os bebês que não chegaram a nascer.
Em termos científicos, a perda de um feto antes da 20ª semana de gestação é considerada um aborto espontâneo, enquanto o feto que morre após a 20ª semana de gestação é classificado como natimorto. Quando lemos sobre o natimorto nas Escrituras, no entanto, a palavra usada é nephel (termo em hebraico) e ela abrange tanto o natimorto quanto o aborto espontâneo. A palavra shakol, frequentemente traduzida por “aborto espontâneo”, significa “estar de luto, abortar, perder filhos”.
Parece que Deus não faz diferença entre os tipos de perda de um filho. Dizer a uma mulher que “pelo menos [o aborto] foi no início da gestação” é nos alinharmos mais com a compreensão que o mundo tem da pessoa humana do que com a compreensão que Deus tem.
As Escrituras afirmam tanto a humanidade quanto a personalidade de todo bebê que é concebido no ventre materno, independentemente de quanto tempo ele fique lá. O Salmo 139 declara que Deus cria, forma “o íntimo do […] ser” dos bebês e que, mesmo antes de serem óvulos, zigotos, embriões ou fetos, eles são conhecidos por nosso Criador — seus dias foram determinados por ele (v. 13-16). A infusão da alma, como Agostinho e Tomás de Aquino a consideravam, é um conceito falso; os bebês têm alma desde o momento em que são concebidos. E não apenas isso, mas também são criados à imagem de Deus (Gênesis 9.6). Eles têm um valor intrínseco o qual jamais lhes pode ser tirado.
Certas visões — da cultura e dos séculos passados — sobre a vida no útero e a personalidade influenciaram a maneira como muitos cristãos falam sobre os bebês em gestação ainda hoje. Mas nós, cristãos, mais do que ninguém, devemos refinar nosso discurso sobre o aborto espontâneo, para nos alinharmos à visão que encontramos nas Escrituras.
Quando nossa reação instintiva for dizer “você terá outro bebê”, em vez disso, podemos dizer “sinto muito pela perda do seu bebê”. Em vez de menosprezar a dor dessa grande perda dizendo “pelo menos foi no início da gestação”, podemos dizer “toda vida perdida — não importa quão cedo isso aconteça — é valiosa e digna de luto”.
No meu primeiro dia das Mães, após meu aborto espontâneo, eu já havia perdido dois bebês. Uma amiga veio até mim, na igreja, carregando flores e disse: “Você é mãe. Feliz Dia das Mães”. Ela é um exemplo de como podemos reconhecer a dor da perda de um bebê.
Em vez de tratar as mulheres como se tivessem apenas perdido uma gestação, podemos confortá-las pela dor de quem realmente perderam: seu bebê. Afinal, essas mulheres não estão apenas de luto por seus bebês; elas também estão de luto porque nunca poderão beijá-los; porque nunca poderão olhar em seus olhinhos vivos. Essas mulheres carregam a dor de nunca verem quem seus filhos teriam se tornado. Elas estão de luto por um futuro inteiro que já haviam planejado para eles.
Nos séculos passados, mesmo antes que a tecnologia pudesse comprovar isso, alguns cristãos entendiam que toda vida concebida era uma pessoa com alma. Há um poema de Mary Carey, escrito em 1657, no qual ela compartilha sobre seu próprio aborto espontâneo precoce.
Ela começa dizendo: “Que nascimento é este; pobre criatura desprezada? / Um pequeno embrião; sem vida e sem feições”. Carey havia perdido seu bebê tão cedo que as feições dele nem eram discerníveis ainda. No entanto, ela também diz:
Eu também me alegro porque Deus ganhou mais um,
Para louvá-lo nos céus; [um a mais] do que tinha antes:
E por este bebê (assim como todos os outros),
ter uma alma, ele será para sempre abençoado.
Carey sabia que seu bebê, embora fosse “um pequeno embrião; sem vida e sem feições”, tinha uma alma eterna e era uma criança. Ela lamentou a perda do filho. E não foi a única a agir assim. Sir William Masham escreveu à sua sogra, em 1631, contando que a esposa estava “grávida e abortou hoje”. Ele continuou: “É uma dor ainda maior para nós, por estarmos tanto tempo sem filhos; rogo a Deus que nos santifique nesta aflição.”
Que nós também possamos aprender a honrar, por meio de nossas palavras e ações, essas jovens vidas que se perderam tragicamente, como portadoras da imagem de Deus que são. E, ao fazermos isso, que possamos permitir que essas mães, nos bancos de nossa igreja, lamentem a perda de seus bebês.
Brittany Lee Allen é autora de Lost Gifts: Miscarriage, Grief, and the God of All Comfort [Dádivas perdidas: o aborto espontâneo, o luto e o Deus de toda a consolação].