O fato de crescer como um dos dez filhos de uma família de agricultores me fez entender, desde bem pequena, que o trabalho é uma parte inevitável da vida.
Antes do café da manhã, tínhamos de arrumar as camas, alimentar e dar água aos animais domésticos e aos da fazenda, bem como limpar os estábulos dos cavalos e das vacas. Havia cestos de roupa suja para lavar que pareciam nunca ter fim, o chão para varrer, banheiros para limpar. E louça na pia para lavar — uma montanha eterna de louça.
Mas só na idade adulta é que fui aprender que o trabalho também pode ser uma expressão de amor e adoração.
Essa busca por expressar de forma viva uma relação holística entre trabalho, fé e realidades práticas é antiga. Ela está no cerne da narrativa bíblica. E tem levado gerações de fiéis a buscar a resposta para esta pergunta: “Qual é a vida que Deus deseja para o seu povo?”
Uma forma de responder a essa pergunta vem da comunidade de Bruderhof, onde cresci.
Após a Primeira Guerra Mundial, um pequeno grupo de amigos, todos eles alemães, liderados pelo filósofo e teólogo Eberhard Arnold e sua esposa, Emmy, decidiu tentar viver uma vida de fé compartilhada, segundo a tradição anabatista. Inspirados pelos relatos do Livro de Atos sobre a igreja primitiva, cujos membros compartilhavam tudo entre si (4.32), a família Arnold e seus amigos fundaram uma comunidade voluntária na aldeia rural de Sannerz, que se tornou a primeira comunidade Bruderhof [um modelo de comunidade em que dinheiro e posses são compartilhados].
Os membros da comunidade recebiam calorosamente os visitantes, como ainda fazemos nos dias de hoje. Mas quem esperava encontrar lá um retiro espiritual tinha uma surpresa, quando Arnold lhe oferecia uma enxada e um lugar ao seu lado, enquanto ele preparava o adubo feito de compostagem. Como ele mesmo dizia:
Não se deve separar trabalho de oração, nem oração do trabalho. Portanto, nosso trabalho é uma forma de adoração, uma vez que nossa fé e nossa vida cotidiana são inseparáveis, e formam um todo único. Mesmo a tarefa mais trivial, se feita como quem a faz para Cristo, com espírito de amor e dedicação, pode ser consagrada a Deus como um ato de oração. Orar com palavras, mas não com obras, é hipocrisia.
Hoje, olhando para trás, vejo que minha infância e adolescência na comunidade Woodcrest Bruderhof, localizada no interior do estado de Nova York, uma das 23 comunidades desse tipo que existem atualmente em todo o mundo, já incorporavam essa crença no trabalho como oração e na oração como trabalho. Talvez seja por isso que, muito antes de começarmos a namorar, eu reparei em Chris, enquanto ele lavava os pratos.
Chris cresceu em outra comunidade Bruderhof e se mudou para Woodcrest para frequentar uma universidade local, onde eu também estudava. Ele sempre ficava lá, depois que o jantar da nossa comunidade terminava, mergulhado até os cotovelos em travessas e espuma, rindo, conversando, esfregando e lavando louça.
Ele estudava literatura inglesa e jornalismo e sabia escrever poemas profundos e ensaios bem persuasivos — mas também não tinha medo de esfregar panelas, e geralmente ficava [para enfrentar a louça] quando todo mundo ia embora. E ele fazia o que eu mais detestava: limpava aquela peneira que retinha todos os restos de comida no fundo da pia. Impressionante.
Tanto Chris quanto eu tínhamos feito recentemente nossos votos de membresia na igreja e estávamos entusiasmados por embarcar em uma vida inteira seguindo a Cristo, ao lado de outros crentes. Nós gostávamos especialmente do fato de que, numa comunidade Bruderhof, todos eram valorizados e celebrados por aquilo que eram, e não por sua carreira profissional.
Mas, à medida que começamos um relacionamento, em espírito de oração, eu me preocupava de vez em quando que nossas experiências profissionais pudessem representar um possível obstáculo. Minha família definitivamente pertencia à classe operária. A dele, não.
Antes do Natal daquele ano, meu pai me perguntou casualmente, certa noite: “Sei que seu namorado está focado nos estudos, mas ele sabe trabalhar com as mãos?”
Contei isso ao Chris durante uma de nossas caminhadas antes da aula, à beira do rio, onde adorávamos observar o “nosso pássaro”, uma elegante garça-azul-grande. “Uhum”, foi tudo o que ele disse em resposta.
Na manhã de Natal, debaixo da árvore, encontrei o presente que Chris havia me dado: um vaso de bordo e mogno, feito à mão, cujo gargalo tinha a forma de uma garça. Era repleto de flores douradas. “O trabalho é o amor que se torna visível”, afirmou o poeta Kahlil Gibran. E eu sabia que, com aquele vaso, Chris tinha provado que o poeta estava certo.
Até então, eu não fazia ideia de que Chris tinha esse tipo de habilidade manual. Mais tarde, ele me contou que cresceu aprendendo marcenaria com seu pai, que era pastor. Meu pai examinou cuidadosamente o vaso de Chris, em silenciosa aprovação. Éramos uma família de agricultores, todos bem versados em quatro pontos essenciais: mente, coração, mãos e saúde. Aparentemente, à maneira deles, a família de Chris também era assim.
Durante o restante de nosso namoro de dois anos, e ao longo dos primeiros anos do nosso casamento, Chris e eu achávamos bastante simples esse conceito de trabalho como uma forma de adoração. Ele escrevia e editava textos para a editora Bruderhof, enquanto eu lecionava em nossa escola primária. Amávamos nosso trabalho. Tivemos nosso primeiro filho, depois o segundo, e nos dedicamos à maternidade e à paternidade, enquanto continuávamos a encontrar oportunidades de servir em nossa comunidade e vizinhança.
Então, em novembro de 2002, Chris e eu aceitamos um convite de nossa igreja para nos mudarmos para a Austrália e nos juntarmos a uma nova comunidade Bruderhof chamada Danthonia. Chegamos à zona rural de New South Wales e conhecemos alguns irmãos e irmãs que viviam em galpões e cabanas rústicas, construídos em muitos hectares de terra árida. Lá não havia nada mais que não fosse trabalho — muito trabalho.
A princípio, achávamos que a agricultura proporcionaria a renda tão necessária e agregaria valor à região. Mas, quando chegamos lá, vimos que a terra estava exaurida por conta de dois anos de seca e mais de 80 anos de pastagem excessiva [quando os animais consomem a vegetação de uma área a uma taxa maior do que a sua capacidade de regeneração, resultando na degradação do solo e diminuição da produtividade da pastagem].
Enquanto trabalhávamos para regenerar a terra, nossa comunidade criou uma empresa de placas esculpidas à mão. Os primeiros anos foram cheios de contratempos e surpresas, e quase não tivemos vendas.
Chris, quando não estava trabalhando em tarefas administrativas, tornou-se habilidoso no uso do cinzel [ferramenta usada para esculpir] e ajudava a esculpir letras nas placas, e eu, quando não estava dando aulas, ajudava a pintar e a vender as placas. Pouco a pouco, o negócio foi crescendo.
Ao mesmo tempo, junto com outros membros da Danthonia, reformamos galpões para transformá-los em casas, cultivamos legumes e hortaliças, construímos um matadouro, plantamos pomares, criamos nossos filhos e nos adaptamos a secas escaldantes e a chuvas torrenciais.
Trabalho, adoração, serviço, amor. Nós nos dedicamos à terra, à comunidade e ao lar, com montanhas de trabalho árduo à nossa frente, a continentes de distância de tudo que conhecíamos. Nossa vida parecia não ter limites, o trabalho era ininterrupto. O trabalho como adoração perdeu seu brilho idealizado. Era isso que Deus queria para nós?
Foi nessa época que me deparei com uma palavra em hebraico, avodah — e a nossa vida desafiadora na Austrália começou a ganhar um novo significado.
A Torá hebraica usa a palavra avodah para descrever o trabalho brutal dos escravos israelitas (avadim) no Egito. É também a palavra usada para descrever o trabalho árduo dos sacerdotes levitas, que ofereciam sacrifícios a Deus no tabernáculo e, mais tarde, no templo: alimentavam grandes fogueiras, abatiam animais, carregavam sacos pesados de grãos. Hoje, os judeus ainda se referem às suas orações diárias como avodah shebalev: “o trabalho/adoração que está no coração”.
O rabino Jonathan Sacks explica que, enquanto as versões em inglês usam palavras como “cerimônia” ou “serviço” para traduzir avodah de modo que descreva as comemorações da Páscoa (veja Êxodo 12), “trabalho árduo” seria uma tradução mais precisa:
A mesma palavra é usada para descrever escravidão e liberdade, servidão e libertação, Egito e êxodo. […] Nada mudou. Lá, éramos avadim; aqui, somos avadim. Lá, tínhamos que trabalhar para um senhor; aqui, temos que trabalhar para um Senhor. Lá, era difícil; aqui, é difícil. Tudo o que mudou foi a identidade do senhor. Lá, era o Faraó. Aqui, é Deus. Mas nós continuamos sendo avadim.
No Novo Testamento, talvez o apóstolo Paulo tivesse algo semelhante em mente, quando se autodenominou “escravo de Cristo Jesus” (Rm 1.1, CEB) — não apenas como uma declaração de lealdade, mas também em reconhecimento ao trabalho rigoroso que o verdadeiro discipulado exige.
O exemplo supremo de avodah é o próprio Jesus, que nos desafia a negarmos a nós mesmos, tomarmos a nossa cruz e segui-lo (Mateus 16.24). Na noite em que soube que seria traído, Jesus ensinou a seus discípulos uma lição profunda, fazendo uma tarefa de escravo, ao lavar os pés de cada um deles. O Mestre lembrou a eles — e a nós — que, se o próprio Mestre está disposto a servir a seus servos, eles deveriam se preocupar ainda mais em cuidar uns dos outros (João 13.12-17).
Naqueles primeiros anos na Austrália, nosso trabalho era rigoroso, exigia muito de nós fisicamente, em um clima intenso e com infraestrutura mínima. No entanto, quando meditei sobre o significado de avodah, fui motivada pela emoção libertadora de estar envolvida no trabalho do reino: de usar meu coração, minha mente e meu corpo para construir algo belo para Deus, em uma terra estranha.
Quando Chris e eu voltávamos tarde para casa, caminhando após um dia de trabalho e uma noite de culto e adoração, observávamos como as estrelas do céu estavam próximas e percebíamos a mesma proximidade nos relacionamentos que estávamos construindo com nossos novos irmãos e irmãs, nossos inúmeros convidados, nossos vizinhos e um com o outro.
Hoje, fico feliz em dizer que aqueles anos de intensa construção ficaram para trás. Os ritmos de descanso, evidentemente, são a base para hábitos de trabalho sustentáveis. Nossa vida profissional agora tem limites, nossa terra está florescendo e nosso negócio está estabelecido. Trabalhamos duro e, agora, descansamos bem.
Não desejo voltar àqueles primeiros anos na Austrália, mas as lições lá aprendidas permanecem comigo. Tornamo-nos um povo que tinha o trabalho como uma forma adoração que se faz visível. Cada dia trazia oportunidades concretas para demonstrar amor e perdão aos outros, para nos envolvermos em um discipulado com o coração e as mãos. Cada dia ainda traz essas oportunidades.
Hoje, Chris e eu moramos em Danthonia há quase 25 anos. Nem todos os cristãos se sentem chamados a viver em comunidades como a nossa, mas o chamado para ter o trabalho como uma forma de adoração é universal, é para todos nós. Foi isso que inspirou as igrejas da nossa região a preparar e a servir uma refeição semanal para aqueles que precisam de comida e comunhão. Foi isso que motivou um amigo de 86 anos a arrecadar fundos para construir centenas de tanques d’água em aldeias de Mianmar.
Avodah é um conceito que se expressa de inúmeras maneiras e, sem dúvida, está incentivando o corpo de Cristo a realizar obras de misericórdia, tanto em lugares próximos quanto no mundo todo.
Naturalmente, em qualquer vida compartilhada, seja no trabalho, na família, em comunidade ou na igreja, temos potencial de machucarmos uns aos outros. Mas, ao realizar as tarefas indesejáveis desse servir, também temos o potencial de honrar a Cristo nas pessoas com quem convivemos e a quem amamos, mas às vezes magoamos, e que também nos magoam.
Dessa forma, uma tradição baseada no trabalho se torna a concretização do amor.
Algumas pessoas limpam banheiros, outras cuidam de dentes; umas afiam facas, outras afiam mentes; umas trabalham com madeira, outras, com palavras. Na vida de todos nós, onde quer que estejamos, podemos escolher transformar o trabalho mais humilde em atos de amor tão profundos quanto lavar os pés de outra pessoa: coar um café, varrer o chão, preparar refeições, dobrar roupas, lavar louça. Avodah.
Ainda me chama a atenção ver Chris na pia da comunidade. Percebo quando ele limpa o ralo do chuveiro com a mesma meticulosidade que aplica à arte da palavra. Reparo no vaso em forma de garça, que voou conosco, atravessando oceanos e vários continentes, e ainda hoje enfeita nossa mesa.
Tudo isso me lembra que, quando o coração e as mãos trabalham em harmonia, motivados pelo amor, há potencial para que algo belo nasça: um ato de adoração.
Norann Voll mora na comunidade Bruderhof de Danthonia, na zona rural da Austrália, com seu marido, Chris. Eles têm três filhos. Ela escreve sobre discipulado, maternidade e a obra de alimentar pessoas. Você pode encontrá-la no Instagram, X e Substack.