Grande parte do debate contemporâneo sobre ferramentas de inteligência artificial como os grandes modelos de linguagem (LLMs) questiona, em primeiro lugar, se tais ferramentas são realmente inteligentes e, em segundo lugar, o que isso significa para nós como seres humanos — o que significa para o nosso trabalho, para a arte e até mesmo para os nossos relacionamentos. No caso dos cristãos, essas duas perguntas anteriores costumam ser seguidas por questionamentos ou afirmações sobre a IA e a imago dei. É perfeitamente normal que tenhamos tais questionamentos.
Reconheço, porém, que não estamos fazendo as perguntas certas, pois elas partem de pressupostos equivocados sobre a inteligência. Consequentemente, carregam noções enganosas sobre quais as implicações para que tecnologias como os LLMs fossem genuinamente inteligentes.
Pior ainda, essas perguntas não compreendem como a inteligência se relaciona com a natureza humana. A inteligência não é uma coisa só, de modo algum. Os testes de QI nos enganam, pois sugerem que a inteligência é algo mensurável e que um único número a representa de forma significativa.
Sim, é verdade que esses testes captam algo que é real. Eles fazem uma estimativa precisa do desempenho que as pessoas terão na faculdade, por exemplo, e são uma boa indicação das nossas chances de sucesso em uma economia baseada no conhecimento.
Mas também há muita coisa que eles não captam. Para ilustrar isso, considere o seguinte: elefantes são mais inteligentes do que golfinhos? Depende do tipo de atividade que esperamos que eles executem. Um elefante não pode usar a ecolocalização para caçar e pescar, assim como um golfinho não pode usar a tromba [ou melhor, o seu nariz] para colher frutas de uma árvore. Essas duas atividades certamente envolvem tipos de inteligência e de sentidos que são característicos de cada um desse animais e totalmente anormais para a espécie humana.
Da mesma forma, alguns sistemas de software podem superar os seres humanos em certas tarefas que consideramos ligadas à inteligência porque fazem parte da nossa vida mental. Isso inclui cálculos matemáticos ou até mesmo jogos sofisticados como o xadrez.
Em contrapartida, nem mesmo o mais avançado dos robôs que temos hoje consegue (até o momento) vencer uma pessoa em uma partida de basquete, quando jogam um contra o outro, ou subir em uma árvore como um esquilo. A ação incorporada [ou seja, a capacidade de executar tarefas por meio de inteligência artificial integrada em sistemas físicos, como robôs e outras máquinas autônomas] ainda está muito além até mesmo da nossa melhor capacidade de programação, e nisso estão incluídos os famosos robôs da Boston Dynamics.
Isso coloca em evidência uma das maneiras como a visão de humanidade é distorcida na cultura ocidental: damos mais importância à inteligência do que deveríamos. Valorizamos pessoas que criam softwares, escrevem livros ou se dedicam ao desenvolvimento “da vida intelectual”. Olhamos com pena para aqueles que ficaram para trás na transição da sociedade para o trabalho intelectual; tratamos o trabalho físico como algo inferior, servil, em vez de valorizarmos a virtude inerente do trabalho executado através do corpo.
E mesmo isso é uma postura reducionista, pois trata a inteligência como uma questão de facilidade. Os seres vivos em geral, e os seres humanos em particular, não são meras máquinas projetadas para executar tarefas. Temos propósitos maiores. Para nós, jogar xadrez com amigos não é ”executar uma tarefa”. Amar alguém também não!
Portanto, não podemos dizer o que a inteligência em si exige de nós. A inteligência não apenas se aplica a muitos tipos de criaturas, em diferentes graus e em funções radicalmente distintas, como também é o ponto de partida errado para refletirmos sobre nossas obrigações éticas.
Na verdade, tratar a inteligência dos outros como base para nossos deveres éticos para com eles é algo perverso. Isso implicaria que quanto mais inteligente alguém fosse, maior o dever ético [que teríamos para com essa pessoa] — e vice-versa. Bebês em gestação, pessoas que sofrem de demência progressiva e pessoas com deficiência mental grave exigiriam de nós menos deveres éticos do que mentes brilhantes como a de um matemático, um cientista, um compositor ou um poeta. Mas nosso Senhor nos ensina o contrário: tudo o que fizermos ao menor de nossos irmãos e irmãs, fazemos a ele (Mateus 25.40). Os cristãos prezam e valorizam seres humanos com todos os tipos de capacidades, sem se fixarem em coisas como a dotação intelectual.
Talvez pudéssemos tentar resolver essa questão falando de capacidades em vez de habilidades. Há uma longa tradição de pensamento cristão, que remonta aos Pais da Igreja, a qual conecta a imagem de Deus à racionalidade — à habilidade de raciocinar e agir —, e não a algo que dependa ou esteja acorrentado ao instinto. Essa tradição distingue entre a capacidade que é natural em uma espécie de criatura e as maneiras como ela pode ser distorcida ou estar ausente em criaturas específicas dessa mesma espécie. Ou seja, devemos distinguir entre a capacidade geral de raciocínio dos seres humanos e sua habilidade individual de raciocínio.
Em sua forma mais simples, a racionalidade é a habilidade de raciocinar, e mesmo isso apresenta uma grande variação. Nesse sentido, tanto um recém-nascido quanto uma pessoa com demência em estágio avançado podem ser incapazes de raciocinar [no nível esperado para um ser humano médio]; ainda assim, ambos são portadores da imagem de Deus.
Mesmo se deixarmos de lado as deficiências, as pessoas ainda têm graus muito diferentes de inteligência distribuídos ao longo dos diversos eixos dessa categoria. Não temos nenhum motivo para pressupor que essas diferenças sejam resultantes da Queda ou, ainda, que serão eliminadas na ressurreição. Isso parece óbvio, quando consideramos aptidões físicas, como correr, ou a aptidão de fazer cálculos matemáticos complexos.
Portanto, inteligência não é o mesmo que racionalidade, e certamente não é sinônimo da imagem de Deus. Não devemos confundir a inteligência demonstrada por alguém com o valor inerente de cada criatura ou com a imagem de Deus.
Quais são, então, as perguntas certas? Uma delas é: “o que significa ser humano?”. Essa é uma pergunta bem antiga, mas as novas circunstâncias em que vivemos podem nos ajudar a refletir sobre ela com mais cuidado. Outra pergunta é: “como podemos valorizar corretamente os seres humanos (e talvez outros seres também), não em termos de inteligência, mas em termos de sua condição como criatura? As respostas que dermos a essas perguntas podem nos dar motivos para rejeitar tais caminhos ou para trilhá-los de uma maneira específica.
Chris Krycho é engenheiro de software e compositor. Ele é membro da Igreja Anglicana da Santíssima Trindade e possui um mestrado em divindade pelo Southeastern Baptist Theological Seminary.