De seu leito de hospital em Roma, o papa Francisco desafiou os cristãos a “transformarem o mal em bem e a construírem um mundo fraterno”. O papa, que lutava contra uma infecção pulmonar, disse: “Não tenham medo de correr riscos por amor!”
Um dos riscos que o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio sempre esteve disposto a correr foi o da amizade com os evangélicos.
“Ele era uma pessoa relacional”, disse Alejandro Rodríguez, presidente dos Jovens Com Uma Missão (JOCUM) na Argentina, à Christianity Today. “Ele respeitava as instituições, mas construía pontes alicerçadas em relacionamentos.”
Francisco faleceu na segunda-feira (21), aos 88 anos, após 12 anos à frente da Igreja Católica Romana. Ele faleceu na Casa Santa Marta, edifício localizado ao lado da Basílica de São Pedro, onde morava, depois de ter passado cinco semanas internado no Hospital Universitário Agostino Gemelli, em Roma.
Católicos do mundo inteiro estão chorando sua perda. E, na Argentina, mesmo líderes cristãos que não seguiam Francisco e não reconhecem a autoridade papal também estão de luto.
“Não sou ecumênico; nós, cristãos, não somos todos parte do mesmo grupo”, disse Rodríguez. E, no entanto, comentou: “Quando estávamos juntos, não éramos o papa e o pastor. Éramos apenas Jorge e Alejandro.”
O diretor da JOCUM conheceu Francisco há mais de 20 anos, quando ele ainda era o cardeal Bergoglio e servia à igreja como arcebispo de Buenos Aires. Na época, Rodríguez trabalhava com o Centro Nacional de Oração, localizado em frente à Casa Rosada, o palácio presidencial, em Buenos Aires.
O cardeal pediu para tomar um café com ele, e Rodríguez aproveitou a oportunidade para criticar a Igreja Católica.
“Você está sempre chamando a atenção para o mau desempenho dos governantes”, disse ele a Bergoglio. “Mas todos os líderes deste país sempre foram educados e influenciados pela Igreja Católica.”
Por que Bergoglio achava que isso acontecia?
Rodríguez prosseguiu e deu ao cardeal a sua explicação: “A Igreja Católica tem sido a instituição mais corrupta da história da América Latina.”
A resposta do cardeal surpreendeu Rodríguez. Bergoglio disse: “Você tem razão”, e minutos depois pediu ao evangélico, crítico da Igreja Católica, que orasse por ele.
Foi o início de uma longa amizade que continuou mesmo depois que Bergoglio foi para Roma, em 2013, e se tornou o papa Francisco. Em seus 12 anos como líder da Igreja Católica, ele nunca mais voltou à Argentina. O pontífice ligava para o diretor da JOCUM e pedia seu conselho sobre questões que envolviam a América Latina, a guerra na Ucrânia ou os protestantes em geral. Francisco também lhe confidenciava algumas questões, disse Rodríguez, e discutia suas dificuldades em lidar com a política interna do Vaticano.
Francisco parecia gostar de seus amigos evangélicos argentinos. Marcelo Figueroa, presbiteriano que chefiou a Sociedade Bíblica da Argentina, disse à CT que às vezes o papa lhe perguntava sua opinião sobre algo, mas grande parte do relacionamento deles era mais pessoal.
“Nós ríamos muito”, disse Figueroa. “Ele era um bom portenho” — comentou, fazendo referência às suas raízes na cidade de Buenos Aires.
Os dois homens se conectaram inicialmente quando apresentavam, junto com o rabino Abraham Skorka, um programa de TV semanal chamado Biblia: Diálogo Vigente. O programa foi ao ar de 2010 a 2013, tendo sido retirado do ar quando Bergoglio foi eleito papa. Era um relacionamento profissional, mas eles se tornaram amigos por meio das conversas enquanto tomavam um cafezinho ou se deslocavam pela cidade de transporte público. Mantiveram-se em contato e, de certa forma, o relacionamento até se aprofundou.
Em março de 2015, Francisco ligou para Figueroa para lhe desejar feliz aniversário e perguntou sobre sua saúde. “Eu disse: ‘Bem, farei uma biópsia’”, lembrou Figueroa, “mas acho que não será nada grave.”
Figueroa estava errado. Foi diagnosticado com um tipo raro e agressivo de câncer de pele. Figueroa escreveu ao papa para lhe contar a notícia e pedir orações.
“Ele me ligou assim que abriu a carta”, disse Figueroa. “Ele também ligou para minha esposa, quando eu estava em cirurgia. Certo dia, ele estava saindo para um evento na Semana Santa e disse: “Não quero sair sem antes saber como você está.’”
Figueroa se recuperou, para surpresa dos médicos, e Francisco o nomeou editor do jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano, na Argentina. Ele é o primeiro protestante a ocupar essa posição.
Pode ter sido a teologia ecumênica de Francisco que o levou a cultivar esses relacionamentos. Embora ele certamente abraçasse o ensinamento católico tradicional de que existe apenas uma Igreja — a igreja católica, isto é, a igreja universal —, ele também olhava para cristãos que não estavam em comunhão com Roma e, de alguma forma misteriosa, via neles Deus em ação.
“O Espírito Santo cria diversidade na Igreja”, disse Francisco em um discurso feito em 2014. “Mas, então, o mesmo Espírito Santo cria unidade, e assim a Igreja é una na diversidade. E, usando as belas palavras de um evangelista a quem amo muito, é uma diversidade reconciliada pelo Espírito Santo.”
Ou talvez, dito de forma mais simples, tenha sido a humildade de Francisco que lhe permitiu, como líder da Igreja Católica, ser tão amigo de evangélicos que não reconheciam a sua autoridade.
A humildade foi uma das marcas registradas de seu papado. Em suas primeiras palavras em pronunciamento público, quando se tornou papa, Francisco brincou sobre como era improvável ter um papa argentino. “Vocês sabem que o dever do conclave era dar um bispo a Roma”, disse ele. “E parece que meus irmãos cardeais foram quase até os confins do mundo para buscar um.”
Em seguida, pediu que as pessoas rezassem por ele. Normalmente, é o papa quem reza pela multidão, e não ele quem pede orações para as pessoas comuns. Observadores do Vaticano disseram que a mudança foi algo “sem precedentes e chocante”.
Francisco também valorizava a amizade. Em sua exortação apostólica Christus Vivit, ele argumentou que a amizade é um dom de Deus e serve para nos santificar.
“Por meio dos nossos amigos”, escreveu ele, “o Senhor nos aprimora e nos conduz à maturidade”.
Em outra exortação, Querida Amazonia, ele conclamou os católicos a estarem “abertos à multiplicidade de dons que o Espírito Santo concede a cada um”.
As interações amigáveis de Francisco com os evangélicos de vez em quando causavam certa consternação entre seus pares católicos. Em 2014, por exemplo, apenas um ano após a sua consagração, Francisco disse que queria ir à Chiesa Evangelica Della Riconciliazione (Igreja Evangélica da Reconciliação), em Caserta, na Itália. Ele conhecera o pastor, Giovanni Traettino, através de um diálogo religioso ocorrido doze anos antes, na Argentina. Eles eram amigos — e, além disso, seria a primeira vez na história que um papa visitaria uma igreja pentecostal.
O bispo local se opôs. O dia planejado para a visita, segundo Francisco, era o dia da festa dos santos padroeiros de Caserta, Joaquim e Ana. Seria um escândalo se o papa fizesse uma visita naquele dia especial apenas para ver os protestantes.
Francisco entendeu a questão: visitou os católicos em Caserta e só foi visitar os pentecostais alguns dias depois. Quando se encontrou com pastor Traettino e 350 evangélicos, porém, também lhes pediu perdão pelos católicos que os haviam criticado ao longo dos anos.
Sua humildade foi elogiada pelo evangelista internacional Luis Palau, que se referiu a ele como amigo e “um homem muito centrado em Jesus Cristo”.
Desde a morte do Papa, milhões de pessoas ao redor do mundo replicaram esse sentimento, lembrando-se de Francisco como um cristão exemplar e um pastor para seu rebanho. Isso lembrou Rodríguez, o diretor da JOCUM, de uma conversa que eles tiveram há alguns anos. Ele disse ao então futuro papa que os verdadeiros pastores vivem com suas ovelhas, e ficam tão próximos delas que têm o mesmo cheiro de seu rebanho.
“Um pastor”, Rodríguez lembra-se de ter dito ao papa, “deve cheirar como uma ovelha”.
Francisco ficou tão tocado com a metáfora que a repetiria anos depois, em uma homilia em sua primeira Missa Crismal como papa.
“Isso diz muito sobre a sua humildade”, disse Rodríguez.
Francisco se considerava um pastor entre suas ovelhas, não alguém que fora colocado acima delas. E acreditava em correr riscos para alcançar as pessoas — até mesmo as que são evangélicas.