Theology

A Páscoa nos ensina que não somos o centro do coração de Deus

Nossa salvação individual é um mero apêndice na redenção de toda a Criação em Cristo.

An illustration featuring Jesus in the center of a field of bubbles, each depicting a different story from the Bible.
Christianity Today March 11, 2025
Illustration by Maggie Chiang

Um dos versículos bíblicos mais citados de todos os tempos é João 3.16: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.”

No entanto, a interpretação desse versículo é frequentemente moldada mais pela perspectiva da nossa própria vida do que por seu contexto teológico. Quando João 3.16 é lido de acordo com as tendências modernas, esse pequeno texto pode levar o leitor a acreditar que a principal motivação de Deus para criar o mundo e enviar Jesus foi seu amor pela humanidade — e, por extensão, que a história de Deus, em última análise, gira em torno de nós e da nossa salvação.

Isso sutilmente nos coloca na posição de sujeitos centrais na história da redenção, o que nos transforma em autores e árbitros do seu significado, e relega Deus ao papel de mero personagem em nossa história — uma figura que podemos definir [segundo nossos conceitos] de maneira que possa caber em nossa narrativa e ser usada para nossos próprios fins.

Quando levamos esse discurso para a igreja, ele pode se traduzir em cultos feitos para consumidores, cânticos de adoração egocêntricos, missões baseadas em números, uma visão transacional da salvação e uma ênfase exagerada no crescimento espiritual individual.

Mas o evangelho não é primariamente sobre a nossa redenção. Não é centrado em nós e naquilo que podemos ganhar de Deus. O evangelho é, em última análise, centrado na pessoa de Deus e em Jesus Cristo. Quando tiramos seu foco de nós mesmos, descobrimos uma história bem maior — na qual o amor, a glória e os propósitos eternos de Deus ocupam o centro do palco, e nos convidam a encontrar nosso verdadeiro significado e alegria em Cristo.

Toda coisa criada existe por causa de Deus, por meio de Deus e para Deus (Romanos 11.36). O Novo Testamento traz esses pontos voltados especificamente para Cristo. Toda a criação existe em Cristo, por meio dele e para ele (Colossenses 1.16), aquele que é “o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (Apocalipse 22.13). No final, Cristo reinará sobre a totalidade da criação “a fim de que Deus seja tudo em todos” (1Coríntios 15.25-28). Nas palavras do teólogo David Fergusson: “O mundo foi feito para que Cristo pudesse nascer”.

Então, embora possa parecer que nossa história seja central, qualquer experiência pessoal de salvação é um mero apêndice para o enredo central.

Os abrangentes propósitos de reconciliação de Deus vão muito além da salvação individual, para a restauração da criação sob o senhorio de Cristo. Longe de diluir os imperativos do evangelho ou de menosprezar seu apelo ao arrependimento e ao discipulado, esta leitura da história cósmica de Deus aprofunda nossa compreensão do nosso lugar na criação de Deus. Ela nos convida a viver nossa fé à luz da realidade de que não há nada mais verdadeiro nem nada maior do que seguir a Cristo.

Para mostrar a diferença que isso faz, consideraremos duas maneiras de contar a história do evangelho: uma maneira centrada em nós mesmos e outra centrada em Deus. Como veremos, o significado da Páscoa muda profundamente, dependendo da história que adotamos.

Quando é centrada em nós, a história começa com a visão da criação principalmente como um lar para a humanidade. No início, toda a criação foi declarada por Deus como algo que é “muito bom” (Gênesis 1.31). Podemos chamar a isso de “Plano A” de Deus. Nessa visão, o Jardim do Éden representa um ambiente paradisíaco no qual fomos criados para viver em harmonia com Deus, desde que fizéssemos as escolhas certas. No entanto, escolhemos a desobediência, interrompendo essa harmonia e forçando Deus a mudar de planos.

Quando é centrada em Deus, a história começa com a decisão de Deus de trazer o mundo à existência — não como um fim em si mesmo, mas para que encontre seu fim em Deus. A criação não diz respeito a nós em primeiro lugar, mas diz respeito ao reflexo (ou à imagem) da glória, da bondade e do amor transbordante de Deus.

A humanidade, então, é criada à imagem de Deus — não para encontrar em si valor e dignidade inerentes, mas para refletir Deus no mundo. Esse chamado é um prenúncio da vinda do Filho, que é “a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação” (Colossenses 1.15). Dessa forma, Deus abençoa a humanidade e declara que ela é boa.

No entanto, Deus também avisa que, se os seres humanos buscarem se tornar como Deus, por seus próprios termos, ao comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, eles serão separados de Deus e a vida deles será marcada pela morte. Quando Adão e Eva desobedecem, é isso que acontece.

Assim começa a história da reconciliação — na qual Deus desperta suas criaturas de suas ficções ilusórias, a fim de restaurar a harmonia entre essas criaturas e a história divina.

Quando é centrada em nós, a história de Israel fala sobre Deus fazendo um acordo com um povo em particular — um acordo que depende da participação e da resposta desse povo. Meu avô, o teólogo James Torrance, chamou esse tipo de resposta condicional de “contrato”, em vez de uma verdadeira “aliança”.

Segundo essa visão, lemos o texto como se houvesse um acordo contratual entre Deus e Abraão: “Se vocês forem meu povo, então, eu serei seu Deus”; “Se vocês guardarem a lei, então, eu serei fiel a vocês”. Isso enquadra o relacionamento de Deus com Israel como algo que é legal e moralmente condicionado à fidelidade do povo. E quando Israel falha em manter sua parte do acordo, o relacionamento se deteriora, resultando em exílio e em separação de Deus.

Quando é centrado em Deus, esse seu relacionamento com Israel, que acontece por meio de Abraão (Gênesis 17.7) é uma aliança divina, pois está enraizada na promessa incondicional de Deus: “Eu serei seu Deus, e vocês serão meu povo” (Levítico 26.2, NLT). Então, 430 anos depois (Gálatas 3.17), Deus esclarece suas expectativas para esse povo escolhido — que são, em suma: “Eu sou o Senhor, seu Deus”, portanto, “guardem meus mandamentos” (Êxodo 20.2-17; Levítico 22.31). A identidade religiosa de Israel não é algo escolhido por eles mesmos, mas algo que lhes é dado, como personagens que eles são nessa narrativa de Deus.

Mesmo em tempos difíceis, desafiadores, a identidade de Israel permanece intacta. Sua rebelião só pode refletir uma resistência à sua verdadeira natureza, uma pretensão de ser diferente de quem eles realmente são.

Isso ocorre porque, como escreve o erudito bíblico Jon Levenson, enquanto “a capacidade de Israel de pecar pode ter se mostrado mais poderosa do que seu amor por Deus […] o amor de Deus por Israel se mostra mais poderoso do que o pecado”. O apóstolo Paulo explica à igreja romana que “no que diz respeito à eleição, eles são amados por causa dos patriarcas, pois os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11.28-29).

No entanto, o desafio de Israel reflete uma tendência humana mais ampla: o impulso de “brincar de Deus”, quando nos definimos segundo as nossas próprias ficções, em oposição à história da criação contada por Deus.

Quando essa história é centrada em nós, Jesus é visto como um “Plano B”, como uma resposta ao fracasso da humanidade em manter sua parte naquilo que foi acordado em seu relacionamento com Deus. Nessa estrutura, Deus Pai faz um acordo com o Filho para que cumpra a lei em nome da humanidade pecadora. Ao se encarnar, sofrer e morrer na cruz, o Filho assume a nossa punição, satisfazendo a justiça de Deus e possibilitando o perdão. Esse ato faz a ponte [ entre Deus e o homem] sobre essa separação causada pelo pecado, abrindo caminho para um relacionamento restaurado entre Deus e a humanidade.

Nesta narrativa, Jesus não é o propósito final da criação, mas sim um meio para o fim último da humanidade: a vida eterna em um estado aperfeiçoado. Alcançar isso, no entanto, requer que aceitemos a redenção pela fé. A história da criação, portanto, não depende apenas das ações de Deus, mas também das escolhas humanas. Para alcançar a vida eterna, Deus exige que o ser humano se arrependa e se comprometa com a fé em Cristo, colocando parte do ponto alto da história em mãos humanas.

Essa perspectiva, em última análise, enquadra a história da criação como uma negociação divina com a autonomia humana. Deus cria um mundo com capacidade de encontrar valor em si mesmo — independentemente dos propósitos de Deus. Deus, então, sustenta este mundo, guiando a humanidade em sua busca por propósito, e, ao mesmo tempo, respeitando cuidadosamente nossa autodeterminação. Feitos à imagem de Deus, todos os seres humanos possuem capacidade de julgar, de criar e uma capacidade de autodireção que nos permite buscar nossos fins próprios e independentes.

Segundo esta visão, a história da criação permanece inacabada até que a humanidade abrace Cristo, pela fé, para alcançar a vida eterna e a realização final. Aqui, a questão central da Páscoa se torna: “Como vamos integrar Cristo em nossa jornada pessoal de salvação?”.

Quando é centrada em Deus, a criação não é um fim em si mesma, mas uma parte do propósito eterno de Deus, que culmina em Jesus Cristo. Cristo não é um “Plano B” criado em resposta ao fracasso da humanidade; em vez disso, ele revela o verdadeiro fim da criação. Na Encarnação, o Verbo vivo de Deus entra na história da criação como um ser humano que revela a verdade da história de Deus e é submetido às falsas narrativas que a humanidade constrói.

Por um lado, Deus não deixa a história da criação nas mãos humanas, mas a conduz à conclusão pretendida por meio do Filho encarnado. Pelo Espírito Santo, somos unidos a Cristo, que encarna a verdadeira humanidade e define nossos verdadeiros papéis, identidade e pertencimento na história de Deus. Cristo não é um mero caminho para a sabedoria, a justiça e a redenção — ele personifica essas qualidades e nos convida a andar como ele andou (1Coríntios 1.30; 1João 2.6).

Por outro lado, Cristo entra nas histórias da humanidade, histórias pecaminosas de morte e desordem. E abraça completamente a condição humana, assumindo suas consequências fatais como “o Juiz [que foi]  julgado em nosso lugar”, tomando emprestado a frase de Karl Barth. Por meio da Ressurreição, nossas falsas narrativas são expostas como a ficção que elas são e varridas para longe, pelo poder redentor de Deus.

A história da Páscoa, portanto, não é uma história sobre equilibrar ou neutralizar o pecado, mas sobre o colapso da falsa narrativa do pecado sob o peso da graça e da verdade de Deus. Em Cristo, a criação é levada à conclusão eterna que Deus sempre ordenou para ela.

Agora que sabemos que a melodia da Páscoa não é, em última análise, algo sobre nós, restam-nos algumas questões importantes a serem respondidas: Onde nos encaixamos? Como, então, Deus é por nós? A resposta está na verdade profunda, embora intrigante, de que Deus é por nós porque Deus é por Deus. Quando visto através de uma lente trinitária, isso começa a fazer sentido.

A razão para a criação está enraizada no amor eterno entre o Pai e o Filho, no Espírito Santo. A criação flui naturalmente desse amor — começando no amor do Pai pelo Filho e encontrando realização no amor recíproco do Filho pelo Pai, tudo por meio do Espírito. Dessa forma, tanto o início quanto o fim da criação estão enraizados na vida eterna e no amor eterno da Trindade. Isto significa, como Agostinho observa, que embora “cada [ser humano] deva ser amado como tal [ou seja, como ser humano] por amor a Deus”, “Deus deve ser amado por si mesmo [por quem ele é]”.

A criação só existe porque Deus determinou que o seu amor deveria transbordar em algo novo — algo que fosse diferente de Deus. O mundo não foi feito para se fundir novamente a Deus, mas para existir como uma dádiva — que o Pai dá ao Filho e que o Filho retorna ao Pai, tudo no Espírito.

Esta troca divina gira em torno da Encarnação. O Pai envia o Filho para se identificar com a criação, a fim de que, nele e por meio dele, ela possa retornar ao Pai. Desta forma, Deus é por nós em Cristo quando nos capacita a ser para Deus em Cristo. De acordo com Agostinho, é “por meio de Cristo [que os seres humanos] vêm, para [Cristo] que eles vão, e em [Cristo] que eles descansam”.

É assim que a criação encontra sua perfeição — sendo atraída em Cristo para essa troca triúna de vida e amor.

Quando compreendemos essa verdade, vemos que a criação é parte de algo muito maior do que ela jamais poderia ser em si mesma. Não podemos, portanto, encontrar a perfeição somente em nossa natureza intrínseca. Se reduzirmos os propósitos de Deus no evangelho à nossa salvação ou à nossa renovação pessoal, perdemos a história maior. Nosso propósito final não se encontra em nós mesmos, mas sim em Deus, pois somos convidados a participar desse movimento eterno de dar e receber amor que define o Deus triúno. Somente participando dessa comunhão divina descobrimos nossa verdadeira identidade e o propósito perfeito para o qual fomos criados.

O que isso significa para a forma como entendemos a reconciliação hoje? Muitas vezes, os cristãos reduzem o significado do evangelho à maneira como garantimos um lugar no céu para nós após a morte. Mas isso deixa de fora o cerne de sua mensagem. A vida cristã não é meramente uma preparação para uma esperança distante; é um convite para participar do reino de Cristo aqui e agora. Por meio da revelação de Jesus, somos chamados a abraçar a beleza e a virtude da nova criação de Deus nos dias atuais.

Ainda assim, muitos de nós resistem a esse chamado. Podemos servir a Deus com relutância, por obrigação, esperando ganhar uma recompensa futura. No entanto, em nosso coração, não gostamos do modo que os mandamentos de Jesus — como o que nos encarrega de cuidar dos enfermos, dos famintos e dos estrangeiros entre nós (Mt 25.35-36) — irão virar de cabeça para baixo nossa vidinha confortável. Mas essa mentalidade revela uma questão preocupante: se não temos o menor desejo de viver no reino de Deus hoje, o que nos faz pensar que desejaríamos isso amanhã? Sem perceber, podemos nos tornar impostores, professando nossa fé em Cristo, mas desafiando seu poder transformador.

Então, onde está nossa esperança? Ela não está em ações imperfeitas nem em crenças sem entusiasmo, mas repousa inteiramente em Deus. A Ressurreição não é apenas um evento histórico, mas é também a fonte de toda esperança verdadeira e duradoura. O poder de Deus nos traz uma nova vida, que está muito além daquilo que podemos alcançar por nós mesmos.

O evangelho de Jesus nos convida a despertar de nosso faz de conta finito e a abrir os olhos para a realidade da história de Deus — e respirar a vida da ressurreição que já começou e se estende até a eternidade. Portanto, esse evangelho nos questiona: queremos de fato acordar?

Andrew Torrance é professor de teologia na Universidade de St. Andrews. Seus livros mais recentes incluem Accountability to God [Responsabilidade perante Deus] e o livro em coautoria , Beyond Immanence: The Theological Vision of Kierkegaard and Barth [Além da imanência: A visão teológica de Kierkegaard e Barth].

Para ser notificado de novas traduções em Português, assine nossa newsletter e siga-nos no Facebook, Twitter, Instagram ou Whatsapp.

Our Latest

Pequenas fazendas, grande missão

Eles secam sementes com ventoinhas de computador e transformam barris em filtros de água: veja como um ministério global combate a pobreza com improvisação.

Em Uganda, crimes sexuais dificilmente são punidos pela justiça

Pais assertivos e um ministério cristão determinado enfrentam o sistema precário e corrupto de justiça criminal do país.

News

Com Bolsonaro condenado, evangélicos precisam decidir o que fazer

Pastores e líderes discutem como superar a polarização em um grupo cujo apoio foi essencial para eleger o ex-presidente. 

Quem tem medo de monstros e demônios?

Labubu, ‘KPop Demon Hunters’, ‘Demon Slayer’: nós humanizamos essas criaturas sobrenaturais porque somos espiritualmente ambivalentes.

Public Theology Project

Esta talvez seja a maior ameaça ao cristianismo evangélico atual

É preciso discernimento para perceber e agir diante dessa mudança de uma cultura literária e escrita para uma cultura de oralidade digital

Ser dona de casa redefiniu minha ideia de sucesso

Deixar meu emprego para cuidar de dois filhos pequenos me fez ver que eu estava errada sobre o que é de fato uma vida bem-sucedida.

Confissões de uma cristã ambiciosa

Minha ambição e meu desejo por reconhecimento eram evidentes, desde a infância. Isso é pecado?

Apple PodcastsDown ArrowDown ArrowDown Arrowarrow_left_altLeft ArrowLeft ArrowRight ArrowRight ArrowRight Arrowarrow_up_altUp ArrowUp ArrowAvailable at Amazoncaret-downCloseCloseEmailEmailExpandExpandExternalExternalFacebookfacebook-squareGiftGiftGooglegoogleGoogle KeephamburgerInstagraminstagram-squareLinkLinklinkedin-squareListenListenListenChristianity TodayCT Creative Studio Logologo_orgMegaphoneMenuMenupausePinterestPlayPlayPocketPodcastRSSRSSSaveSaveSaveSearchSearchsearchSpotifyStitcherTelegramTable of ContentsTable of Contentstwitter-squareWhatsAppXYouTubeYouTube