Theology

Quando obedecer a Deus significa resistir aos governantes

O que podemos aprender com as parteiras hebreias em Êxodo, que desafiaram um tirano para proteger vulneráveis.

Pharaoh and the midwives
Christianity Today February 28, 2025
Illustration by Mallory Rentsch Tlapek / Source Images: WikiMedia Commons

Ensinamentos bíblicos geralmente incentivam cristãos a defenderem a submissão às autoridades, seja na política, seja na igreja. Quando se toca nesse assunto, as seguintes palavras de Paulo são citadas com frequência: “Todos devem sujeitar‑se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram estabelecidas por ele.” (Romanos 13.1)

Há ainda outras passagens que sugerem que nossa lealdade aos governantes que estão no poder deveria ser entendida à luz da nossa fidelidade última a Deus.

Entre os exemplos famosos do Antigo Testamento estão Sadraque, Mesaque e Abede-Nego — homens que foram sentenciados à morte por se recusarem a se curvar para a estátua de ouro do rei Nabucodonosor (Daniel 3.16-18) —, bem como Daniel, que foi condenado por não obedecer ao decreto do rei, que proibia a adoração a qualquer outro deus que não fosse ele mesmo. No Novo Testamento, quando Pedro e João foram jogados na prisão, por se recusarem a cumprir ordens das autoridades para que parassem de pregar o Evangelho, eles permaneceram firmes, afirmando: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” (Atos 5.29, veja João 19.11)

Contudo, um exemplo frequentemente negligenciado é o de uma história que se encontra em Êxodo, na qual duas personagens de menor expressão foram consideradas tão importantes para a história de Israel que seus nomes — diferentemente dos grandes reis do Egitos, cujos nomes são desconhecidos — foram preservados para a posteridade: Sifrá e Puá.

Quando confrontadas com a ameaça de um poder destrutivo, essas duas mulheres demonstraram coragem e liberdade interior, dois atributos que podem inspirar a maneira como nós, cristãos, trabalhamos e servimos hoje, em um mundo caído. A audácia delas em desafiar o faraó nos mostra o que significa servir e temer o Senhor diante do mal.

O livro de Êxodo dá continuidade a uma história que começou em Gênesis. De um pequeno clã familiar, Israel tornou-se um povo: “Os israelitas, porém, eram férteis, proliferaram, multiplicaram‑se e se tornaram extremamente numerosos, tanto que a terra se encheu deles.” (Êxodo 1.7). Essa população estrangeira em crescimento incomodou as potências egípcias.

Um novo faraó surgiu e colocou medo em seus compatriotas egípcios, convencendo-os de que o povo hebreu era uma ameaça iminente à segurança e ao bem-estar de sua nação. Em sua mente, a presença de um grupo populacional que não havia se assimilado à cultura dominante da sociedade criava uma dinâmica separatista de “nós e eles”: “Ele disse ao seu povo: ‘Vejam! O povo israelita agora é mais numeroso e mais forte que nós. Venham! Precisamos tratá‑los com astúcia’” (Êxodo 1.9-10).

O faraó começou a colocar os israelitas para trabalhar para o governo, oprimindo-os com trabalhos forçados. Mas as tarefas de construção que ele impôs ao povo hebreu não foram suficientes para impedir que se multiplicassem. Então, o desejo de controle do faraó se transformou em uma tática de crueldade terrível.

O faraó queria atacar a proliferação dos israelitas, mas não ousava agir de forma que criasse uma revolta de sua força de trabalho por agredir os adultos. Em vez disso, ele optou por um método covarde, porém infalível, de desestabilizar e desmoralizar a população. Ele convocou duas parteiras hebreias, Sifrá e Puá, e disse a elas que matassem todos os bebês do sexo masculino nascidos de mulheres do seu povo.

Imagine, por um momento, a terrível tarefa que o faraó estava impondo a essas duas mulheres: sufocar um bebê recém-nascido ou, talvez, quebrar-lhe pescoço, discretamente, bem ao lado da mãe do bebê, que acabara de dar à luz. Com a barbárie de seus pensamentos, o faraó queria transformar as parteiras em monstros e torná-las cúmplices diretas em crimes contra a humanidade.

Mas, então, a história mudou: “Contudo, as parteiras temeram a Deus e não obedeceram às ordens do rei do Egito; deixaram viver os meninos. ” (Êxodo 1.17).

Os atos das parteiras não foram uma mera questão de obediência a preceitos (afinal, isso aconteceu antes de Moisés e dos Dez Mandamentos, antes da Lei); pelo contrário, foram atos de fidelidade à visão que elas tinham do que é justo, correto e bom, com base em seu temor a Deus. Elas não se esconderam atrás de uma ordem de seu governante terreno; em vez disso, levaram em conta as consequências divinas de seus atos.

Quando o faraó convocou as parteiras para que explicassem o fracasso de seu plano, a resposta delas foi simples: “As mulheres hebreias não são como as egípcias. São cheias de vigor e dão à luz antes de chegarem as parteiras” (Êx 1.19).

O que devemos pensar dessa mentira, que as Escrituras — ao contrário de alguns comentaristas — dificilmente parecem condenar? Essa é outra questão que a história delas levanta.

Em primeiro lugar, é importante notar que a exceção não faz a regra. A preocupação clara e consistente da Bíblia com a verdade impede que usemos esse caso como uma permissão generalizada para enganar as pessoas. Este foi um caso de extrema necessidade, porém. Sifrá e Puá estavam tentando não apenas salvar as próprias cabeças, carreiras ou reputações, mas também proteger toda uma comunidade de um perigo bastante real e imediato.

Eticamente, a escolha delas de recorrer ao mal das mentiras verbais parece mil vezes preferível do que colocar em prática a mentira horrível de tratar a vida humana como algo insignificante.

O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer chegou a uma conclusão semelhante em seu ensaio inacabado “O que significa dizer a verdade?”. Bem conhecido por sua oposição ao regime nazista, o pastor adverte contra uma “noção formal e cínica de verdade” do tipo filosófico (kantiano), que não leva em conta a realidade de uma situação ou o relacionamento em questão.

Embora perceba os riscos da fórmula, Bonhoeffer clama por uma “verdade viva”.

“Mentir é a negação, a recusa e a destruição deliberada e intencional da realidade segundo foi criada por Deus e existe em Deus, na medida em que ocorre através de palavras e silêncio”, argumenta. Segundo essa definição, há muito mais falsidade nas exigências do faraó do que na resposta de Sifrá e Puá. Na verdade, a audácia conjunta das parteiras acaba nos contando a verdade sobre o fracasso inevitável dos planos do rei egípcio de desafiar a vontade do Deus de Israel para seu povo.

Sifrá e Puá recusaram-se a ser engrenagens de uma máquina política violenta. Em resposta, Deus entrou em cena, no final de sua história — não só para poupá-las da ira do rei egípcio, mas também para lhes mostrar bondade e abençoar suas famílias pelo seu ato de desafio (v. 20).

Mas este antigo rei do Egito certamente não foi o primeiro nem será o último a cogitar a prática de tais horrores. Em um paralelo bíblico significativo, a história do Advento começa com um massacre bebês do sexo masculino em toda a cidade, ordenado pelo rei Herodes — outro homem poderoso tomado por paranoia e insegurança, em meio a rumores de haver nascido uma criança que as pessoas diziam ser o “rei dos judeus” (Mateus 2.2).

Em ambos os casos, governantes tirânicos desumanizaram, direta ou indiretamente, uma população vulnerável, vendo cada grupo como nada mais do que um mero problema político ou demográfico a ser resolvido, a fim de preservar seu próprio poder e controle.

Em um ato de desobediência civil semelhante ao das parteiras hebraicas, os reis magos desafiaram a ordem de Herodes para que voltassem e relatassem sobre o paradeiro da criança, e optaram por proteger a vida de Jesus. E, assim como faraó acabou encontrando outros participantes dispostos a cumprir suas ordens malignas, Herodes também os encontrou.

Todo sistema político opressor depende de indivíduos que obedeçam de forma instintiva, sem levar em conta o impacto moral de suas ações sobre si mesmos e sobre os outros. Ao longo da história, os peixes grandes muitas vezes deixaram seu trabalho sujo para os peixes pequenos. Mas as hierarquias mundanas de nossos dias não permitem que as pessoas se livrem da carga das responsabilidades que têm perante Deus e o restante da humanidade.

Para obedecer a ordens malignas como as de faraó e Herodes, você tem que se tornar algo menos que humano — tem que agir como um robô e cumprir ordens, sem pensar de modo independente. Você tem que se concentrar em cumprir seu dever cívico, independentemente da brutalidade que isso exija. Você tem que priorizar o favor do homem acima dos valores de Deus e se dessensibilizar com relação ao impacto humano negativo de suas ações.

Sempre que rebaixamos ou descartamos a igualdade da humanidade de outras pessoas, prejudicamos e ameaçamos nossa própria humanidade no processo. Não apenas isso, mas, se certas pessoas — sejam elas quem forem — podem ser vistas e tratadas como apenas um número, uma estatística ou um problema sociopolítico a ser resolvido hoje, quem pode garantir que não seremos tratados da mesma forma por um motivo semelhante no dia de amanhã?

Muitos exemplos históricos, entre eles o do trágico destino do próprio Bonhoeffer, provam que resistir ao mal não é algo isento de riscos. No entanto, as parteiras e os reis magos nos lembram que Deus é o personagem principal da história, e que nossa responsabilidade e nossa lealdade, em última análise, são para com ele.

Em qualquer escala que seja, toda geração de crentes enfrentará líderes abusivos que desvalorizam o que Deus preza e danificam o que Deus criou. Contudo, em todas as épocas, somos chamados a nos alinhar com a verdade viva de Deus e a descartar as mentiras destrutivas dos poderes terrenos.

É por isso que acredito que os autores bíblicos preservaram os nomes de personagens de menor expressão, como Sifrá e Puá: para nos ajudar, como povo de Deus, a perseverar em temê-lo, quando o mundo nos chama para nos juntarmos à sua maldade.

Léo Lehmann é coordenador da CT em Francês, bem como diretor de publicações da Rede de Missiologia Evangélica para a Europa francófona (REMEEF). Ele mora na Bélgica.

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