Culture

Ainda estamos em um mundo caído, mas não podemos nos desesperar

A história da família Paiva não termina com uma tragédia. A nossa também não.

Fernanda Torres as Eunice Paiva in I'm Still Here.

Em "Ainda estpu aqui", Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva.

Christianity Today February 5, 2025
Alile Onawale. Courtesy of Sony Pictures Classics

Fui assistir ao filme Ainda Estou Aqui nos primeiros dias de exibição. Entrei na sala entusiasmada, afinal, eu estava prestes a ver um filme feito por um diretor premiado, estrelado por atores brasileiros consagrados e com uma história que realmente merecia estar nas grandes telas. O filme conta a história da família Paiva, que teve seu patriarca, Rubens Paiva — interpretado por Selton Mello —, levado para depor e, depois, morto pelo regime ditatorial militar brasileiro, em 1971. O seu corpo nunca foi encontrado.

Ainda Estou Aqui conta com performances marcantes; tem um ritmo calmo e cadenciado que carrega o espectador de cena em cena. No entanto, o filme vai além da excelência técnica. Realmente fiquei profundamente comovida com o que vi e deixei a sala de cinema com os olhos vermelhos. Quando meus amigos me perguntaram o porquê do meu choro, só consegui dizer: “Não sei, é muito triste”.

No centro da tragédia está Eunice Paiva, esposa de Rubens e mãe de cinco filhos, interpretada por Fernanda Torres (que é forte candidata ao Oscar, depois de ter vencido o prêmio de Melhor Atriz do Globo de Ouro este ano). O filme mostra o seu luto e a sua tristeza de uma forma poderosa e impactante.

Toda a narrativa construída em torno dessa história real torna o luto ainda mais devastador, ao mostrar o antes e o depois dessa família. O início do filme mostra uma vida perfeita para a maioria dos brasileiros: uma família de classe média alta vivendo em uma casa de frente para o mar, no Rio de Janeiro. As crianças atravessam a avenida para brincar na praia; a casa sempre cheia de amigos, muitas festas, boa música e boa comida são constantes. A vida que a família Paiva vive por um período é um oásis, em meio ao caos da ditadura militar que ocorreu no Brasil, entre 1964 e 1985.

Em um dia comum, Rubens é levado por homens armados que educadamente batem à sua porta, insistindo para que ele os acompanhasse a pretexto de responder a algumas perguntas. Ele nunca voltou para casa. Os filhos começam a questionar: “Onde está o papai?” e “Quando o papai vai voltar?”. Eunice nunca responde às perguntas diretamente. Eventualmente, os questionamentos cessam. Todos, com ou sem respostas, entendem que o paraíso onde viviam não existe mais.

O drama mostrado em Ainda Estou Aqui não tem uma resolução. Rubens Paiva não volta para casa. O filme me fez chorar porque me lembrou do estado ainda deplorável do mundo em que nós ainda vivemos. E isso deveria, sim, nos causar desespero absoluto.

Ou não?

Em entrevista ao UOL Prime, Fernanda Torres afirmou que “Eunice é a compreensão trágica de algo trágico que não permite a autopiedade”. Suas palavras me fizeram lembrar da seguinte passagem de Jeremias:

“Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam dos seus frutos. Casem‑se e tenham filhos e filhas; escolham mulheres para casar‑se com os seus filhos e deem as suas filhas em casamento, para que também tenham filhos e filhas. Multipliquem‑se, não diminuam. Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela”. (Jeremias 29.5-7)

Quando Jeremias começou a pregar para o povo de Deus, Judá era uma cidade próspera, livre e protegida. Tudo mudou quando Nabucodonosor II passou a impor o seu poder na região. De uma hora para a outra, um povo livre se viu prisioneiro de uma nação completamente corrompida e maléfica. 

No entanto, não havia tempo para autopiedade. Os israelitas, conforme insistiu Jeremias, não poderiam se comportar como vítimas, aceitando que toda a história do povo fosse definida por uma tragédia. Os planos de Deus são dinâmicos; ele estava agindo, mesmo em meio ao exílio, e o seu povo deveria fazer o mesmo: deveria construir, plantar, casar e se multiplicar.

Ainda Estou Aqui é um exemplo dessa resiliência. “Não precisa sorrir”, diz o fotógrafo de um jornal que vai tirar uma foto da família para um artigo sobre o desaparecimento de Rubens. Eunice imediatamente responde: “Por que não?”. O pedido do fotógrafo parecia óbvio: como uma família que acabou de perder alguém tão importante poderia sorrir? “O editor pediu uma foto ‘menos feliz’”, explica o fotógrafo. Eunice insiste: “Nós vamos sorrir. Sorriam!”

Para Eunice e para o povo de Deus na Babilônia, continuar a caminhar, apesar do mal, foi o sinal de que eles não seriam vencidos. Recusar-se a viver uma vida de amargura e raiva é a verdadeira resistência.

Quando Deus manda Israel para o exílio da Babilônia e pede que eles sigam com suas vidas, ele deixa claro que aquela situação não seria eterna.

Assim diz o Senhor: “Quando se completarem os setenta anos da Babilônia, eu os visitarei e cumprirei a minha promessa em favor de vocês, de trazê-los de volta para este lugar. Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês” — declara o Senhor — “planos de fazê‑los prosperar, não de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro. […] Eu me deixarei ser encontrado por vocês”, declara o Senhor, “e os trarei de volta do cativeiro. Eu os reunirei de todas as nações e de todos os lugares para onde os dispersei e os trarei de volta para o lugar de onde os deportei”, declara o Senhor. (Jeremias 29.10, 11 e 14)

No fim do filme, vemos a família Paiva vivendo em outra cidade. Eunice se formou em direito e se tornou uma das principais figuras na luta pelos direitos dos povos indígenas, assim como foi essencial para as investigações a fim de apurar os responsáveis pela morte do seu marido. Seus filhos estudaram e construíram famílias. A última cena do filme mostra uma Eunice mais velha ainda com a memória da dor, ainda com fé. Enquanto seus filhos, genros, nora e netos estão ao redor da mesa, rindo e compartilhando, Eunice observa.

A história de Israel não acabou no exílio Babilônico. A história de Eunice e da família Paiva não acabou na morte trágica do pai. A nossa história não acaba aqui. Ainda estamos em um mundo caído, triste e doente. Em breve, não estaremos mais.

Mariana Albuquerque é a gerente de projetos globais da Christianity Today.

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