Algumas semanas atrás, várias famílias missionárias brasileiras estavam se preparando para uma festa de véspera de Natal na cidade moçambicana de Beira. Charles Santos, sua esposa, Maria, e sua filha de 17 anos, Melissa, deveriam levar uma sobremesa, e Charles planejou sair na manhã de 24 de dezembro para comprar as frutas que a receita exigia.
Ele teve de mudar os planos.
“Foi a véspera de Natal mais estressante que poderíamos ter”, disse Santos.
Por volta da 1h da manhã do dia 24 de dezembro, preparando-se para um confronto, moradores começaram a montar barricadas na Avenida Samora Machel, onde a família Santos reside. A movimentada via dá acesso tanto ao segundo maior porto do país, que fica de frente para o Oceano Índico, quanto a muitos bairros da classe trabalhadora na cidade de 500 mil habitantes.
Nas 32 horas seguintes, começando na véspera de Natal, Samora Machel se tornou o marco zero de uma luta amarga sobre o resultado das eleições gerais do país que aconteceram no dia 9 de outubro. Quando a polícia moçambicana tentou reprimir o protesto atirando na multidão, os manifestantes responderam atirando pedras, garrafas e pedaços de madeira. Em outras partes da cidade, as pessoas saquearam e assaltaram residências e empresas, incendiando carros e casas.
Cenas semelhantes ocorreram em outras partes do país, e 56 pessoas teriam morrido durante a repressão contra manifestantes na semana do Natal, informou o The New York Times. Conflitos violentos ocorreram intermitentemente desde outubro, com pelo menos 300 pessoas mortas, incluindo 10 crianças, em confrontos com a polícia.
Apenas um partido, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), governou o país desde que Moçambique conquistou sua independência de Portugal, em 1975. No dia 23 de dezembro, mais de dois meses após a eleição, o Conselho Constitucional proclamou o candidato da FRELIMO, Daniel Chapo, como presidente eleito, com 65% dos votos. Mas Venâncio Mondlane, que o tribunal disse ter ficado em segundo lugar, com 24% dos votos, se recusou a ceder, alegando fraude eleitoral. Declarando-se o vencedor legítimo, Mondlane convocou os cidadãos a irem às ruas, apelo que ele já tinha feito após exigir uma recontagem [dos votos], em outubro.
O que começou como marchas pacíficas rapidamente se transformou em confrontos violentos com a polícia, particularmente na capital, Maputo. A violência dos confrontos alimentou temores de uma nova guerra civil, como a que durou de 1977 a 1992.
Uma guerra civil colocaria em risco décadas de trabalho estrangeiro, em grande parte feito por missionários brasileiros. Para Santos, um conflito ameaçaria o Instituto Bíblico de Sofala (IBS), onde ele leciona – uma escola interdenominacional plantada na década de 1980 pela Missão para o Interior da África. Futuros alunos e alunos atuais que moram fora de Beira teriam dificuldade em se mudar para a cidade para assistir às aulas.
Fora do IBS, Charles e Maria Santos também oferecem aulas de costura, cursos de alfabetização (a taxa de analfabetismo do país é de 28%) e classes de português, programas que dependem do acesso a doações estrangeiras e de uma moeda estável.
Todos os missionários brasileiros em Moçambique, que tem a terceira maior população entre os países que têm o português como língua oficial, dependem dessa estabilidade.
O Brasil é atualmente o segundo país que mais envia missionários no mundo, e Moçambique um dos principais destinos para missionários brasileiros no exterior, de acordo com a Associação Brasileira de Missões Transculturais (AMTB).
Dos 3.240 cidadãos brasileiros que o Ministério das Relações Exteriores estima viverem em Moçambique, a AMTB avalia que até 450 deles sejam missionários evangélicos. Missionários católicos, principalmente freiras e leigos que também trabalham na educação e na saúde, também são um grupo significativo. (Sozinhas, as dioceses do Rio Grande do Sul enviaram 70 pessoas.)
Apesar dos dias tensos após a eleição, muitos missionários permaneceram no país. Mas após a agitação do Natal, a conselho de suas agências missionárias, a maioria foi embora, ainda que temporariamente.
Em Nampula, a capital de 740.000 pessoas da província homônima no norte de Moçambique, os manifestantes bloquearam umas das principais estradas de acesso e exigiram dinheiro dos transeuntes. Aqueles que se recusavam corriam o risco de ter seus carros apedrejados. Inúmeras lojas foram saqueadas, e os preços dos produtos dispararam. Um saco de farinha que custava 1.200 meticais (aproximadamente R$ 112) no dia 22 de dezembro, custava 2.000 meticais (aproximadamente R$ 187) no dia 24 de dezembro.
Apesar de comparar a situação ao thriller apocalíptico Mad Max, Ricardo Borges — que, junto com sua esposa, Carla, lidera a Comunidade Cristã de Chocas Mar, uma igreja nos arredores de Nampula — não pretendia deixar o país. Somente mudaram de opinião depois que manifestantes incendiaram um posto policial próximo à sua casa.
Quando informaram à igreja que iriam embora, seus fiéis locais ficaram aliviados.
“Eles disseram: ‘Sabemos como escapar pelo mato e onde podemos nos esconder. Vocês não conseguiriam fazer isso'”, disse Ricardo.
Os Borges voaram para Joanesburgo no dia 4 de janeiro, mas retornaram na terça-feira. Ricardo celebrará um casamento na hoje (quinta-feira).
Há mais em jogo para os Borges do que seu compromisso com os noivos. Os missionários dão aulas de criação de filhos e nutrição, oferecem cuidados médicos básicos para bebês a 300 famílias e administram uma pré-escola com 56 alunos. Este ano, eles planejam lançar aulas de alfabetização para adultos e programas de tutoria para crianças.
Esse tipo de ajuda se tornou ainda mais vital depois que dois ciclones, Chido em dezembro e Dikeledi no dia 13 de janeiro, atingiram o país, deixando pelo menos 120 mortos, com 250 escolas e 52 unidades de saúde danificadas.
Chido foi especialmente destrutivo na província de Cabo Delgado, onde Moçambique faz fronteira com a Tanzânia. Outrora um destino turístico por causa do Arquipélago das Quirimbas, a província tornou-se a sede do Al-Shabab (não afiliado à organização somali de mesmo nome), um grupo ligado ao Estado Islâmico cujos ataques mataram 6.000 pessoas e deslocaram mais de meio milhão.
Esses eventos fizeram de Moçambique um dos países mais violentos do mundo para os cristãos. Vídeos de insurgentes decapitando cristãos foram compartilhados nas redes sociais nos últimos anos.
Os muçulmanos representam 19% dos 34 milhões de habitantes de Moçambique, superados pelos cristãos, que somam 62% da população. Cerca de metade desses cristãos são evangélicos e pentecostais.
Entre eles estavam os candidatos presidenciais de 2024. Mondlane, que alegou que as eleições foram fraudadas, era pastor assistente no Ministério Divina Esperança, uma megaigreja pentecostal africana sediada em Maputo. Durante a campanha, Chapo, agora o novo presidente, postou nas redes sociais uma foto sua em posição de oração, com um pedido para que Deus abençoasse o país e uma canção de louvor da cantora brasileira Gabriela Rocha.
A maioria das igrejas moçambicanas e líderes cristãos evitaram tomar posições sobre a controvérsia eleitoral, mesmo quando tiveram membros que participaram das manifestações em massa a favor de Mondlane.Mesmo assim, a missionária brasileira Noemia Cessitofoi convidada pela nova primeira-dama, Gueta Chapo, para a posse do novo governo. A primeira-dama foi batizada pelo marido de Noemia, o pastor Jeronimo Cessito.
Nos seus 40 anos em Moçambique, Noemia viveu a guerra civil e testemunhou os esforços de paz do país. Ela tem empatia com as frustrações diárias dos moçambicanos.
“As pessoas não aceitam as altas taxas de desemprego. Os jovens querem estudar e perceberam que podem protestar”, disse ela.
Durante a manhã da véspera de Natal, Noemia foi à sua igreja em Dondo, cidade vizinha a Beira, para um ensaio com os adolescentes que participariam do culto noturno. As manifestações começaram logo após o término do ensaio e, quando ela saiu, os manifestantes já tinham fechado a estrada que leva à sua casa. Noemia só chegou em casa depois de dirigir por fora da estrada e caminhar pela floresta.
Casada com um moçambicano, Noemia não cogitou ir embora, ainda que sua equipe de apoio brasileira pudesse ajudá-la a deixar o país. “O problema não é ir embora, é voltar”, disse ela. “Como é possível encarar as pessoas novamente depois de abandoná-las?”
Esse dilema também estava na mente de Charles Santos. Embora ele não tenha deixado Moçambique imediatamente após o incidente do Natal, ele voou para uma conferência no Brasil no início de janeiro e, em sua ausência, sua esposa e filha se mudaram temporariamente para a África do Sul. A família planeja retornar no dia 30 de janeiro.
De seu apartamento no andar superior com vista para uma cena caótica de barricadas, manifestantes e policiais, os Santos atravessaram o Natal mais incomum de suas vidas. Enquanto sons de tiros ecoavam em sua casa, a família era confortada por mensagens telefônicas de irmãos e irmãs no Brasil, que afirmavam estar orando em prol da sua causa; e de colegas missionários que pediam para que permanecessem fortes.
As palavras mais reconfortantes vieram de seus vizinhos muçulmanos, que jogam futebol com Charles toda terça e quinta-feira. “Eles me disseram para não sair de casa”, ele disse. “Eles estavam muito preocupados com nossa segurança.”