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No início da Reforma, a principal Bíblia disponível era a Vulgata Latina, a Bíblia que Jerônimo havia produzido originalmente em latim, em 380 d.C. — embora, até a época da Reforma, ela já tivesse sofrido corrupções textuais significativas. Ela incluía uma tradução do Antigo Testamento hebraico e do Novo Testamento grego, além de Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Siraque, Baruque, algumas adições ao Livro de Daniel e 1 e 2Macabeus.
A Bíblia não era um livro com o qual o público em geral estivesse familiarizado. Não era um livro que a maioria dos indivíduos ou das famílias pudesse ter. Havia Bíblias de púlpito, que geralmente ficavam acorrentadas ao púlpito; havia manuscritos de Bíblias em mosteiros; havia Bíblias de propriedade de reis e da elite social. Mas a Bíblia não era um livro que muitos possuíssem.
Além disso, era raro encontrar uma Bíblia traduzida na língua do povo. Na época de Lutero, havia uma série de versões para o alemão e uma versão em francês, publicada já em 1473. Mas a Bíblia Latina ainda era de longe a principal Bíblia disponível. A elite social bem-educada sabia ler latim, embora o cidadão comum de países como Inglaterra, França, Alemanha, Itália ou Espanha soubesse apenas trechos da missa em latim. E, de fato, eles com bastante frequência deturpavam os trechos que sabiam. Se você quiser ter uma boa ideia da miserabilidade da instrução bíblica do público em geral, nessa época, leia os Contos da Cantuária, escritos por Chaucer entre 1387 e 1400 em inglês médio. Confusões e mal-entendidos em torno da Bíblia são abundantes nas histórias de Chaucer.
A Vulgata Latina foi a Bíblia que Lutero estudou primeiro, mas ele logo percebeu suas deficiências, ao se aprofundar no texto grego e ter seus insights revolucionários. Isso levou Lutero a outra percepção: se as coisas realmente deveriam mudar, isso não aconteceria apenas debatendo teologia com outras almas eruditas. A Bíblia precisava ser disponibilizada no vernáculo (neste caso, em alemão) e precisava estar disponível em larga escala. Na minha opinião, a coisa mais perigosa que Lutero fez na vida não foi pregar as 95 Teses na porta daquela igreja. Foi traduzir a Bíblia para o alemão comum e encorajar sua ampla disseminação.
A “heresia” de Lutero
Em 1522, Lutero havia traduzido todo o Novo Testamento, tendo completado a tradução da Bíblia inteira em 1534 — a qual, naquela época, incluía o que veio a ser chamado de Apócrifos (aqueles livros extras do judaísmo intertestamentário). Lutero continuou revisando seu trabalho nos anos seguintes, pois percebeu quão grande agente de mudança era a Bíblia traduzida.
Ele não traduziu diretamente da Vulgata Latina, o que, para alguns, era equivalente à heresia. Lutero havia aprendido grego da maneira usual, na escola de latim em Magdeburg, para que pudesse traduzir obras gregas para o latim. Há histórias, provavelmente verdadeiras, de que Lutero fez incursões em cidades e vilas próximas apenas para ouvir as pessoas falarem, a fim de que sua tradução, particularmente a do Novo Testamento, ficasse o mais próxima possível do uso contemporâneo corrente. Esta não era para ser uma Bíblia feita pela elite e direcionada à elite.
Philip Schaff, o grande historiador da igreja, assim se pronunciou a respeito: “O fruto mais rico do lazer de Lutero em Wartburg [castelo], e a obra mais importante e útil de toda a sua vida, é a tradução do Novo Testamento, por meio da qual ele trouxe o ensino e o exemplo de Cristo e dos Apóstolos para a mente e os corações dos alemães em uma reprodução realista… Ele fez da Bíblia o livro do povo na igreja, na escola e em casa.”
Este ato de Lutero abriu a caixa de Pandora, no que diz respeito a traduções da Bíblia, e já não era mais possível fechar a caixa depois desse feito. Desnecessário dizer que isso preocupou oficiais da igreja de todos os escalões, pois eles não tinham mais um controle estrito da Palavra de Deus.
Precursores e seguidores
No entanto, pouco se fala dos precursores de Lutero na tradução da Bíblia para o vernáculo. Por exemplo, a equipe que trabalho com John Wycliffe precedeu Lutero em uns bons 140 anos na tradução da Bíblia para o inglês médio, entre 1382 e 1395. O próprio Wycliffe não foi o único responsável pela tradução; sabe-se que outros, como Nicholas de Hereford, são conhecidos por terem feito parte da tradução. A diferença entre o trabalho da equipe de Wycliffe e o de Lutero é que nenhuma crítica textual estava envolvida; a equipe de Wycliffe trabalhou diretamente com a Vulgata Latina.
Além disso, Wycliffe incluiu não apenas o que veio a ser conhecido como Apócrifos, mas também acrescentou como bônus 2Esdras e uma obra do século 2,Epístola de Paulo aos Laodicenses.
Assim como no caso dos esforços de Lutero, o trabalho de Wycliffe não foi autorizado por nenhuma autoridade eclesiástica ou da realeza, mas se tornou imensamente popular. E as consequências foram severas. Henrique IV e seu arcebispo, Thomas Arundel, trabalharam duro para reprimir esse trabalho, e a Convocação de Oxford de 1408 votou que nenhuma nova tradução da Bíblia deveria ser feita, por ninguém, sem aprovação oficial. Wycliffe, no entanto, havia riscado um fósforo, e não havia como apagar o fogo.
Talvez a história mais pungente dessa época seja a de William Tyndale. Tyndale viveu de 1494 a 1536 e foi martirizado por traduzir a Bíblia para o inglês. Tyndale, assim como Lutero, traduziu diretamente do hebraico e do grego, exceto, provavelmente, no que diz respeito a referências cruzadas e verificação. Na verdade, ele só terminou o Novo Testamento, e, até sua morte, completou cerca de metade de sua tradução do Antigo Testamento. Sua versão foi a primeira Bíblia em inglês produzida em massa.
Tyndale originalmente pediu permissão ao Bispo Tunstall, de Londres, para produzir sua tradução, mas foi informado de que era proibido — na verdade, que o ato seria considerado herético — e, então, Tyndale foi para o continente europeu para fazer o trabalho. Uma edição parcial foi impressa em 1525 (apenas três anos depois da de Lutero), em Colônia, mas espiões entregaram Tyndale às autoridades e, ironicamente, ele fugiu para Worms, a mesma cidade onde Lutero foi levado à corte e julgado. De lá, a edição completa do Novo Testamento de Tyndale foi publicada em 1526.
Como Alister McGrath mais tarde observaria, a Versão King James (KJV), ou Versão Autorizada, do início dos anos 1600 (sendo que várias edições incluem uma versão de de 1611) não foi uma tradução original da Bíblia para o inglês, mas sim uma apropriação em larga escala da tradução de Tyndale, com alguma ajuda da Bíblia de Genebra e de outras traduções. Muitas das frases memoráveis na King James — “com a pele dos meus dentes”, “acaso sou eu o guardião do meu irmão?”, “o espírito está pronto, mas a carne é fraca”, “tornam-se lei para si mesmos”, e assim por diante — são frases que Tyndale cunhou. Ele tinha um dom notável para transformar expressões bíblicas em algo que fosse memorável em inglês.
Mas, mesmo a Versão Autorizada não foi a primeira tradução autorizada da Bíblia para o inglês. Esse prêmio vai para a “Grande Bíblia” de 1539, autorizada por Henrique VIII. Henrique queria que essa Bíblia fosse lida em todas as igrejas anglicanas, e Miles Coverdale produziu a tradução. Coverdale simplesmente copiou a versão de Tyndale, eliminando algumas características questionáveis, e completou a tradução de Tyndale do Antigo Testamento e dos Apócrifos. Observe, no entanto, que Coverdale usou a Vulgata e a tradução de Lutero para fazer esta versão, e não os originais em hebraico ou grego.
Por esta e várias razões, muitos dos movimentos protestantes emergentes no continente europeu e na Grã-Bretanha não ficaram felizes com a Grande Bíblia. A Bíblia de Genebra tinha uma linguagem mais vívida e vigorosa e se tornou rapidamente mais popular do que a Grande Bíblia. Foi a Bíblia escolhida por William Shakespeare, Oliver Cromwell, John Bunyan, John Donne e os peregrinos, quando eles vieram para a Nova Inglaterra. Foi ela, e não a KJV, a Bíblia que os acompanhou no Mayflower.
A Bíblia de Genebra era popular não apenas por ter sido produzida em massa, para o público em geral, mas também porque tinha anotações, guias de estudo, referências cruzadas com versículos relevantes de outras partes da Bíblia e introduções para cada livro com um resumo do conteúdo, mapas, tabelas, ilustrações e até índices. Em suma, foi a primeira Bíblia de estudo em inglês e, como já sabemos, ela precedeu a KJV em meio século. Não é de surpreender que, por ser uma Bíblia produzida sob a égide da Genebra de João Calvino, as notas fossem calvinistas quanto ao conteúdo e dissidentes (pois discordavam da Igreja da Inglaterra) quanto ao caráter. Essa foi uma das razões pelas quais os reis da Inglaterra produziram “a Versão Autorizada”. Eles precisavam de uma Bíblia que não questionasse Dieu et mon droit (que significa “Deus e meu direito”, o lema do monarca que sugeria sua soberania).
E quanto aos apócrifos?
É digno de nota que a Bíblia de Genebra foi a primeira a fazer uma tradução do Antigo Testamento para o inglês inteiramente a partir do texto hebraico. Como suas predecessoras, ela incluiu os Apócrifos. De fato, a Bíblia King James de 1611 também incorporou os Apócrifos, inclusive a História de Susana, a História da Destruição de Bel e do Dragão (ambas adições a Daniel) e a Oração de Manassés.
Em suma, nenhuma das principais traduções da Bíblia que surgiram durante as Reformas alemã, suíça ou inglesa produziu uma Bíblia com apenas 66 livros. É verdade que, além dos 66 livros, os outros 7 (ou mais) eram vistos como deuterocanônicos, daí o termo apocrypha; mas, mesmo assim, eles ainda eram vistos como conteúdo que tinha alguma autoridade.
Então, quando e onde a Bíblia protestante de 66 livros apareceu? Essa prática não foi padronizada até 1825, quando a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, essencialmente lançou um desafio e disse: “Esses 66 livros e nenhum outro”. Mas esta não era a Bíblia de Lutero, de Calvino, de Knox ou mesmo dos Wesleys, que usaram a Versão Autorizada. Os protestantes há muito tratavam os livros extras como, na melhor das hipóteses, deuterocanônicos. Alguns até os chamavam de não canônicos, e havia alguns precedentes de impressão de uma Bíblia sem esses livros. Por exemplo, houve uma edição minoritária da Grande Bíblia, posterior a 1549, que não incluía os Apócrifos, e uma edição de 1575 da Bíblia do Bispo que também deixou de fora esses livros. As impressões de 1599 e 1640 da Bíblia de Genebra também os deixaram de fora. Mas, de qualquer forma, esses livros não eram tratados como canônicos por muitos protestantes.
O ato mais influente de Lutero
Lutero não poderia ter imaginado, em 1517, que seu ato mais influente durante a Reforma Alemã, o ato que tocaria mais vidas e mais afetaria o movimento protestante emergente não seriam seus comentários de Gálatas ou de Romanos, seus tratados teológicos como “A escravidão da vontade”, nem mesmo sua insistência na justificação pela graça somente pela fé. Não, a maior pedra que ele atirou no lago eclesiástico, que produziu não apenas as maiores ondulações, mas de fato verdadeiras ondas, foi a produção da Bíblia de Lutero. Mas ele não foi um pioneiro solitário. Ele e William Tyndale merecem igual reconhecimento como os verdadeiros pioneiros da produção de traduções da Bíblia das línguas originais para a língua do povo, para que as pessoas pudessem lê-la, estudá-la, aprendê-la, serem inspiradas e moldadas por ela. A Bíblia do povo, pelo povo e especialmente para o povo não existia realmente antes de Lutero e de Tyndale.
Hoje, se levarmos em conta apenas a língua inglesa, há mais de 900 traduções ou paráfrases do Novo Testamento, parciais ou de todo ele. Novecentas! Nenhum dos primeiros reformadores poderia ter imaginado isso, nem poderia ter imaginado que muitas pessoas teriam suas Bíblias, não apenas nos púlpitos e nos bancos, mas teriam suas próprias Bíblias em suas próprias casas. O gênio que saiu da lâmpada, no início da Reforma Alemã, acabou sendo o Espírito Santo, que faz novas todas as coisas. Isso inclui traduções sempre novas da Bíblia, à medida que nos aproximamos cada vez mais do texto original inspirado do Antigo e do Novo Testamentos, conforme encontramos mais manuscritos, fazemos o árduo trabalho de crítica textual e fazemos traduções baseadas em nossos primeiros e melhores testemunhos dos textos hebraico, aramaico e grego.
Quando a Bíblia de Lutero foi produzida, com base no trabalho de Erasmo no Novo Testamento grego, havia apenas um punhado de manuscritos gregos que Erasmo podia consultar, e eles nem eram tão antigos. Quando a KJV foi produzida, em 1611, havia o mesmo problema tanto em relação ao Antigo Testamento quanto ao Novo Testamento.
Hoje, temos mais de 5.000 manuscritos do Novo Testamento grego, a maioria dos quais foi descoberta nos últimos 150 anos, e alguns destes remontam ao segundo e ao terceiro séculos d.C. Temos as descobertas no Mar Morto e em outros lugares que nos forneceram manuscritos mais de 1.000 anos mais próximos dos textos originais do Antigo Testamento do que o texto massorético (a base tradicional para o texto do Antigo Testamento), e mais próximos do que estávamos em 1900. Deus, em sua providência, está nos atraindo para mais perto de si mesmo ao nos atrair, na era atual, para mais perto do texto original inspirado.
O apelo da sola Scriptura pode ecoar hoje com um som menos oco do que no passado, pois sabemos hoje que as decisões tomadas pelos líderes da igreja, no quarto século, para reconhecer os 27 livros do Novo Testamento e os 39 livros do Antigo (mais alguns), foram as decisões certas. O cânone foi fechado quando se reconheceu que o que precisávamos em nossas Bíblias eram os livros escritos pelas testemunhas oculares originais, ou seus colaboradores e colegas, no caso do Novo Testamento, e aqueles escritos dentro do contexto da transmissão das sagradas tradições judaicas da Lei, dos Profetas e dos Escritos, que remontavam a Moisés, aos Cronistas e aos grandes Profetas da antiguidade.
Embora devamos nossos textos de partida aos antigos dignitários que registraram coisas entre a época de Moisés e a de João de Patmos, devemos nossas Bíblias no vernáculo aos nossos antepassados protestantes — Lutero, Tyndale, Calvino e outros. Talvez hoje, ao celebrarmos mais um aniversário da Reforma Alemã, seja hora de dizer que, sem o protestantismo, é possível que não tivéssemos Bíblias nas mãos de tantos cristãos e em tantos idiomas. O trabalho de levar a Bíblia até o povo, que foi iniciado por Lutero, Tyndale e Wycliffe, não acabou. Ainda há lugares onde a Bíblia é ilegal ou onde nenhuma tradução no idioma local está disponível. Mas, graças a Deus, o trabalho pode continuar, porque o clamor semper reformanda ainda soa verdadeiro hoje.
Ben Witherington III é professor de interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico de Asbury. Ele é autor de muitos livros, mais recentemente, A Week in the Fall of Jerusalem (IVP Academic).