Tiago Cavaco gosta de uma provocação.
Basta ver os títulos de alguns dos livros desse pastor evangélico português: Férias de fornicação e outras murmurações de um moralista e Seis sermões contra a preguiça, por exemplo.
Ou os nomes de seus maiores sucessos como músico de punk rock: “Ó Judas Aperta o Laço” e “A Isabel é Intelectual (Porque Perdeu a Virgindade na Feira do Livro)”.
“Tudo o que faço é clickbait,” diz Cavaco, que já trabalhou em televisão durante uma década, antes de se tornar pastor na Segunda Igreja Evangélica Batista de Lisboa, mais conhecida como Igreja da Lapa. Mas ele insiste que não está apenas tentando entreter ou divertir as pessoas. “A provocação tem de ser lida com senso de humor, algo que muitas vezes falta aos cristãos evangélicos. Falta espaço para a surpresa.”
Cavaco, na verdade, incute uma cosmovisão cristã em tudo o que cria — sejam sermões, obras, canções ou artigos de jornal. “Construo quase que uma teoria teológica em torno da provocação,” diz ele. Cristo muitas vezes tenta provocar sua audiência através de seus ensinamentos. Em algumas passagens, ele dá como exemplo coisas que as pessoas consideram más […], a fim de que os que se acham muito santos não contem com a própria benevolência e [em vez disso] abram os olhos para aquilo que, à primeira vista, parece errado, mas talvez possa nos ensinar alguma coisa.”
Cavaco conversou recentemente com Marisa Lopes, diretora editorial da revista Christianity Today em português, sobre as dificuldades de ser evangélico num país tradicionalmente católico, sobre como manter as convicções cristãs sem rejeitar a cultura e o porquê do fatalismo português.
Como é a igreja evangélica em Portugal?
Hoje, quando alguém se apresenta como evangélico, as pessoas pensam em algo mais latino-americano ou mesmo africano. O movimento evangélico é associado a algo típico dos países pobres e há certo preconceito social para com os evangélicos. O evangélico português luta para fazer parte da cultura que não o aceita muito bem. Também procura uma afirmação portuguesa, pois as pessoas, quando pensam em igrejas evangélicas, pensam no Brasil, o que traz algumas dificuldades na expressão do evangélico propriamente português.
À semelhança de outros evangélicos da Europa, ele é uma criatura de resistência. O evangélico europeu está habituado a sentir o mundo contra ele. Por serem uma minoria, eles se unem mais e há um bom relacionamento entre evangélicos de diferentes denominações.
O evangélico em Portugal também é um pouco fatalista. Ele quer ver coisas boas acontecerem, mas é um pouco cético quanto a virem mesmo a acontecer.
Senti um pouco desse fatalismo lendo a obra Férias de fornicação.
Acho muito natural a estranheza com que o brasileiro ainda reage ao ceticismo português.
Não me surpreende que os brasileiros achem estranho esse ceticismo, embora eu ache uma certa graça nisso.
Nunca conseguimos mudar o que faz parte da nossa cultura. Quando me relaciono com outros europeus, percebo que esse peso do destino é uma coisa muito latina. Pela grande influência do catolicismo e pelas poucas marcas do protestantismo em nossa história, achamos que a vida só acontece quando é trágica. Se tudo corre bem, o português pensa: “isto não vai durar muito”.
Se chega alguém com uma visão mais otimista, o português olha essa pessoa com desconfiança. Como pastor e crente, tenho de lutar sempre para tentar abandonar essa postura.
Como você concilia suas convicções cristãs — por exemplo, a certeza que um dia Deus há de enxugar todas as lágrimas e não haverá morte, nem dor — com o seu ceticismo?
Esta convicção é para um futuro eterno, que ainda está por vir. O ceticismo nos faz focar mais no “ainda não” do que no “já”.
Na segunda carta a Timóteo, Paulo diz que foi abandonado por muita gente. Por ser a última carta que o apóstolo escreveu, dá vontade de dizer: “Ó Paulo, não escrevas uma coisa tão desanimadora como a tua última mensagem.”
Mas também é preciso haver espaço para exprimirmos tristeza e desencanto. Às vezes a cultura evangélica parece não dar espaço para isso. Portanto, é verdade que o português tem de se desprender mais da tristeza, do fatalismo, mas também diria, para uma cultura como a do Brasil, que muitas vezes cultiva um fascínio pela alegria, que isso pode redundar igualmente em idolatria.
Esse é o lado bom da multiculturalidade do corpo de Cristo. Quando conhecemos outras culturas, percebemos que entenderam algumas coisas melhor do que nós, e vice-versa.
Em seu livro mais recente, você diz: “Quando acreditamos em causas que não ameaçam nada nem ninguém não acreditamos realmente em causas”. Como perceber que estamos vivendo um cristianismo confortável?
No episódio em que Jesus acalma a tempestade, primeiro, os discípulos estão com medo da tempestade; depois, ficam com mais medo do homem que a acalmou.
A presença de Jesus não garante necessariamente paz. Quando Deus age na vida das pessoas, muitas vezes a primeira emoção sentida é medo, pânico, dor, pois, da mesma maneira que os demônios reconheceram Jesus, nossos medos reconhecem a presença de um poder superior.
Tendemos a achar que a expressão da nossa fé tem de ser uma espécie de calmante, de ansiolítico, mas nem sempre é, pois a conquista do reino de Deus é um motim contra as trevas.
Há um poder abençoadamente agressivo na santidade. Não é uma agressão má, e quem bate em retirada não são os crentes. O crente perdeu essa dinâmica desestabilizadora na afirmação da sua fé. É óbvio que nós, cristãos, somos a favor da paz — afinal, seguimos o evangelho da paz. Mas afirmar a verdade desestabiliza, assusta.
Estamos tão ansiosos em trazer paz que esquecemos que a luz contrasta quando os cristãos sofrem, quando são sinceros diante das trevas. Para alcançar quem está nas trevas, o cristão não precisa de uma coisa bonita, mas sim verdadeira, que seja realmente combativa em relação ao poder do mal, do pecado e das trevas.
Muitos afirmam que a sociedade portuguesa é uma mescla entre a tradição católica conservadora e uma mentalidade secular. Como você a vê? Enxerga nela algumas pontes para o evangelho?
Sendo o Papa um jesuíta, associar conservadorismo ao catolicismo ainda se confirma, porém, já não é tão linear assim. Hoje o catolicismo procura estar em paz com o mundo. Na sociedade portuguesa há um certo catolicismo conservador, mas também há um processo de secularização em curso.
Toda essa confusão torna o lugar do evangélico muito único. Uma das vantagens que ele tem é a de não temer a própria estranheza.
No começo do meu ministério, eu tentava fugir disso. Depois, compreendi que eu tinha de assumir essa estranheza como uma oportunidade para testemunho. Essa própria resistência pode ajudar a criar pontes. Às vezes, estar do lado de fora pode ser o ministério que Deus nos deu.
Você acha que a estranheza pode funcionar como uma ponte para o evangelho para o público português mais jovem, mais rebelde, mais inclinado a gostar do diferente?
Espero que sim. É uma tentação querer ser um pastor intelectualmente respeitado pela mídia portuguesa. No passado, isso atraiu jovens para a igreja mais por uma ênfase intelectual do que pelo evangelho. Alguns acabaram voltando para o catolicismo.
O pastor que busca o reconhecimento público atrairá pessoas não pelo evangelho que prega, mas pela aprovação que suscita na cultura. No passado, eu me afastava dos evangélicos considerados menos respeitados; queria ser um evangélico intelectualmente esclarecido. Depois compreendi que isso era vaidade. Hoje olho para essa diversidade louca do movimento evangélico não como um problema a ser resolvido, mas como uma virtude.
Várias coisas contribuíram para minha mudança de perspetiva,em especial um período mais difícil do meu ministério, quando me senti esgotado.Hoje prefiro a liberdade de ser estranho e fiel à Palavra, do que a prisão do respeito e a escravidão de ser aceito.
Você diz ter observado que algumas pessoas, antes de se tornarem cristãs, usavam seus talentos na música e no teatro, adoravam ler e assim por diante. Mas depois que se converteram, elas só se interessam pelas atividades da igreja e criticam tudo o que faz parte da cultura em geral. É possível alguém ser evangélico e aberto à cultura?
Já tive uma perspetiva mais pessimista acerca dos evangélicos. Hoje, sou um pouco menos fatalista. e tenho conversado sobre isso com grandes amigos pastores aí no Brasil.
As pessoas são tão sérias, dizem sempre tudo tão certinho, são tão santas que parece que nem precisam de um Salvador. Parece que já nasceram salvas.
Tenho pena de ver tantos pregadores e escritores evangélicos tão formais no Brasil. Acho que lhes faz falta um pouco de loucura no sentido da sinceridade, um pouco de caos santo, uma dose de humanidade. Às vezes se estabelece uma mediocridade, uma espécie de santidade postiça, de coisa edificante por inércia.
Não estou incentivando imoralidade nem má conduta. Essa mediocridade é medo de existir, de ser sincero. Quando falhamos, o melhor a fazer é mostrar arrependimento, e não uma perfeição precoce. Há excesso de perfeição precoce e é por isso que há tanta mediocridade entre os evangélicos.
Com a presença cristã na internet, às vezes somos tentados a dizer coisas para ganhar seguidores ou fama. Como lidar com a tentação de agradar as pessoas?
Essa é uma grande luta para mim. A internet nos oferece a possibilidade de usá-la bem, para trazer pessoas para o cristianismo por meio de nossas postagens e conteúdos; mas há também a possibilidade de ficarmos presos ao meio, e não ao Criador. A internet tanto pode ser uma bênção quanto uma maldição, se o influenciador cristão se tornar mais escravo do impacto que tem do que servo da mensagem que traz.
Como você explica esta sua afirmação: “se no passado o santo tinha medo do profano, no presente o profano tomou o santo como blasfêmia”?
A verdadeira santidade está na contramão do mundo atual, e, por isso, assusta. Por exemplo, hoje, pedidos de perdão nas mídias sociais se tornaram obrigatórios, se alguma postagem desagrada certos grupos, mas esse pedido não é motivado por um arrependimento verdadeiro. Isso é apenas o diabo imitando Deus.
Há um arrependimento bom e fundamental para a salvação, dado pelo Espírito Santo. E há essa imitação feita por Satanás, que é este novo pedido de perdão que não está relacionado com verdade ou arrependimento, mas sim com a necessidade que a pessoa tem de se submeter à multidão para não ser cancelada.
A nova santidade criada espalha uma falsa ideia de “ou eu peço perdão ou sou cancelado”.
De fato, a verdadeira santidade pode parecer errada, segundo esses padrões, pois também pode significar que, às vezes, o cristão terá que resistir e não pedir perdão, se não fez nada de errado. Essa dinâmica estranha fez com que as coisas ficassem ao contrário. E é assim que hoje a nossa cultura profana pega o que é santo — isto é, pedir perdão — e transforma isso em blasfêmia.
Marisa Lopes é diretora editorial da Christianity Today em português.
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