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O “doisladismo” em relação ao Hamas é uma falha moral

Israelenses e palestinos são igualmente amados por Deus. Mas não há ambiguidade moral sobre a maldade genocida do Hamas.

Família e amigos lamentam a perda de um ente querido que foi assassinado pelo Hamas em um festival de música.

Família e amigos lamentam a perda de um ente querido que foi assassinado pelo Hamas em um festival de música.

Christianity Today October 26, 2023
Amir Levy/Stringer/Getty

Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Às vezes, certos momentos da história revelam em minutos algo que esteve oculto durante décadas. E, às vezes, esses momentos de revelação surgem quando a pessoa ouve a si mesma dizendo palavras como: “Sim, mas…” ou “Mas e quanto a…”.

O resultado do ataque terrorista do Hamas a Israel não é um desses momentos. Neste caso, dizer quem é culpado — e quem não é — não é nada difícil, quer do ponto de vista fático, quer do ponto de vista moral.

O “doisladismo” é um rótulo impreciso, muito parecido com desconstrução ou evangelicalismo. Há vários sentidos em que é plenamente correto apelar para os “dois lados” da realidade. Pois um lado, os dois lados — na verdade, todos os lados — são compostos por seres humanos criados à imagem de Deus. Deveríamos nos preocupar com as vidas e as mortes de israelenses e de palestinos na Cisjordânia, em Gaza ou em qualquer outro lugar. Aos olhos de Deus, uma vida israelense não tem mais valor do que uma vida palestina e vice-versa.

O “doisladismo” também faz referência, e de forma correta, a quem é prejudicado por esta atrocidade e pela guerra inevitável que se seguirá. O Hamas está matando e destruindo o futuro tanto de israelenses quanto de palestinos, como escreveu sabiamente a inigualável Mona Charen. Essa é uma das razões pelas quais não deveríamos pensar em tudo isso como uma guerra entre Israel e “os palestinos”, mas, exatamente como Israel a definiu, uma guerra contra o Hamas, em resposta a um ataque cruel e sem precedentes.

O “doisladismo” também é perfeitamente apropriado quando se trata de trabalhar e esperar por um futuro melhor, tanto para os israelenses quanto para os palestinos. Isso descarta a aceitação impensada de toda e qualquer coisa que o atual Estado de Israel faça (Deus com toda certeza não aceitava tudo nem mesmo que o Israel bíblico fazia!). E elimina a possibilidade de bradar na Times Square “From the River to the Sea” [“Do rio ao mar”, slogan político palestino], assim como descarta qualquer ponto de vista ou programa que levasse à total erradicação de Israel. Queremos que “os dois lados” (e aqui nos referimos a israelenses e palestinos, não ao Hamas) prosperem e coexistam.

Tudo isso é muito diferente do tipo de discurso “doisladista” que tem sido usado em algumas discussões sobre a moralidade do ataque do Hamas. O Hamas teve como alvo civis inocentes. O Hamas trucidou jovens que dançavam num festival de música. O Hamas assassinou idosos, crianças pequenas e bebês, segundo relatos, das formas mais sádicas que se possa imaginar. Não há neste mundo qualquer necessidade de “contextualização” para condenar tudo isso, para reconhecer israelenses (e palestinos inocentes) como vítimas desses atos, e reconhecer o Hamas como o vilão da história. Como disse o presidente Biden, “e ponto final”.

Esta é uma das maneiras mais rápidas de reconhecer se você terceirizou ou não a sua consciência para alguma ideologia ou seita: ao ver imoralidades ou injustiças gritantes, se sua primeira reação for alguma versão de Bem, é claro que isso é ruim, que ninguém apoia isso;mas você sabe o que as vítimas fizeram? — é porque você assumiu uma postura moralmente perigosa. Esse é o caminho da carnificina.

E como você sabe se é isso que está fazendo?

Discordo em muitos pontos do filósofo John Rawls, mas uma das célebress apropriações do seu pensamento pode ser útil aqui.

O argumento do “véu da ignorância” pergunta que tipo de ordem política iríamos querer construir, se a estivéssemos planejando, mas fôssemos totalmente inconscientes de onde nos enquadraríamos no sistema social. Se você não soubesse se seria desesperadamente pobre ou incrivelmente rico, que tipo de sistema de segurança social você desejaria? Que tipo de política fiscal?

Evidentemente existem limites claros para isso. Na verdade, não existimos como seres desencarnados que planejam antecipadamente em que mundo viverão. E a nossa imaginação brota da nossa psique, de modo que ela é perfeitamente capaz de nos ludibriar.

É fácil para mim, por exemplo, dizer em 2023 que eu teria me recusado a lutar pela Confederação [movimento que lutou pela independência dos estados do Sul dos Estados Unidos], se tivesse vivido na época dos meus antepassados. Mas não posso saber como minha mente e minha consciência teriam sido moldadas, se eu tivesse vivido no Mississippi, em 1861. Eu sinceramente espero que, se eu tivesse vivido na Alemanha dos anos 1930, eu teria ficado ao lado de Karl Barth e de Dietrich Bonhoeffer e da Igreja Confessante contra o movimento “cristão alemão”, que era moral e teologicamente degradado. Mas como posso saber como meu coração poderia ter me enfeitiçado, se eu estivesse lá?

Esse exercício, por mais limitado que seja, pode nos ajudar a pensar se as nossas escolhas podem ser moldadas mais por pressupostos culturais ou ideologias políticas do que por convicções bíblicas e pela orientação do Espírito Santo. Em uma determinada situação, tente imaginar como você reagiria, se visse a mesma coisa sendo feita por (ou para) quem quer que você considere ser “o outro lado”. Pegue uma frase e troque os nomes dos envolvidos. Você responderia de forma diferente? Por quê?

Repito, mais uma vez, que podemos enganar a nós mesmos — mas isso ao menos nos ajuda a parar, nem que seja só por um momento, e questionar as nossas próprias motivações.

Vemos repetidamente nas Escrituras os “profetas da corte”, que testificavam apenas o que um governante queria ouvir (1Reis 22.1-28), sem considerar as implicações morais. E vemos o que acontecia com os profetas que não faziam isso, mas deixavam que o seu “sim” fosse “sim” e o seu “não”, “não”. É possível, porém, sermos um profeta da corte em relação ao nosso próprio coração. Podemos até nos pegar dizendo à nossa própria consciência para “nunca mais profetizar em Betel, pois este é o santuário do rei e o templo do reino” (Amós 7.13, ESV).

Mas não importa como olhemos para isso, não há justificativa para o assassinato de não-combatentes desarmados. Não há justificativa para incendiar corpos ou, segundo relatos, decapitar bebês e crianças pequenas. Justificar esses atos seria ignorar atrocidades morais óbvias e dar prioridade a uma versão distorcida do doisladismo. Seria uma falha moral.

Para os que são americanos como eu, por exemplo, não creio que muitos de nós teríamos respondido ao 11 de setembro sugerindo que ficaríamos do lado da Al-Qaeda, ou que “os dois lados” deveriam declarar um cessar-fogo. E poucos de nós teríamos respondido a Pearl Harbor dizendo que o Congresso dos Estados Unidos realmente não deveria ter provocado isso, ao aprovar a Lei do Lend-Lease [o programa através do qual os Estados Unidos forneceram, por empréstimo, a nações aliadas, armas e outros suprimentos, entre 1941 e 1945, para combaterem a Alemanha nazista].

Há muitas questões moralmente ambíguas — é por isso que eu passava para meus alunos de ética estudos de caso para os quais, às vezes, eu nem sabia a resposta “certa”. Mesmo cristãos que se baseiam na Bíblia e pertencem à mesma tradição teológica encontrarão situações em que genuinamente não saberão qual é a decisão moralmente correta. Nessas situações, temos “bens” que concorrem entre si e é difícil ver como fazer a coisa certa sem também fazer algo errado.

Mas o conflito Israel-Hamas não é uma dessas situações.

O Hamas é genocidamente mau. O Hamas e os que com ele conspiram são os únicos responsáveis pelas suas ações. Quaisquer que sejam as nossas opiniões sobre a política no Oriente Médio, sejam lá quais forem as nossas opiniões sobre estratégia militar, não tenhamos medo de dizer isso, ou seja, que o Hamas e os que com ele conspiram são os únicos responsáveis pelas suas ações. E não vamos esquecer que a justiça e a misericórdia do nosso Deus superam a maldade do homem.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública.

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