Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.
Como indicam sucessivos vazamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos, a decisão Roe v. Wade, que legalizou o aborto por quase 50 anos nos Estados Unidos, provavelmente será derrubada em breve.
A questão de qual rumo tomará a ética pró-vida a partir desse ponto não será decidida por tribunais nem mesmo por casas legislativas, mas sim pelo estado da igreja nos Estados Unidos — e esse é um domínio bem mais complexo. De fato, para cristãos pró-vida como eu, a advertência deveria ser que é possível “ganhar” e “perder”, ao mesmo tempo, uma cultura que defenda a vida.
Ambos os lados do debate sobre o aborto têm vozes que estão alertando seus compatriotas sobre os exageros. Alguns governadores pró-vida parecem despreparados para falar em entrevistas sobre exceções para os casos de estupro e incesto ou sobre a legalidade de DIUs e outros dispositivos contraceptivos.
E muitos estão alertando os ativistas pró-escolha que eles correm o risco de perder o apoio da opinião pública por protestarem na frente das casas de juízes ou por tentarem aprovar projetos de lei extremamente abrangentes em nível estadual, que garantam o aborto legal durante os nove meses de gestação e por qualquer motivo.
Há décadas alguns de nós vêm argumentando que uma estratégia “emocional e intelectual” por si só não é suficiente para lidar com essa questão. Não se pode afirmar que bebês ainda não nascidos são nossos próximos sem procurar proteger seus direitos mais básicos por lei. E aqueles de nós que são chamados de defensores da “vida inteira” argumentaram que uma estratégia emocional e intelectual só para mulheres em crise não é suficiente.
Devemos ter um ativismo de verdade, que vá desde a luta por uma rede de proteção por parte do governo até o apoio às congregações de igrejas que estejam dispostas a cuidar dos pobres e de seus filhos. Ao fazê-lo, nos opomos à ideia que vemos frequentemente associada a questões de injustiça racial: “Basta salvar as pessoas e as questões raciais se resolverão por si mesmas”.
Mas, embora precisemos de mais do que apenas uma estratégia emocional e intelectual, também não precisamos de nada menos que isso. Se a sociedade não se importar com a humanidade de seu próximo que está em perigo — seja esse próximo uma mulher grávida ou um bebê que ainda está dentro do ventre materno — nenhum conjunto de leis se sustentará por muito tempo.
Talvez o maior perigo aqui não seja o que grupos focais ou dados de pesquisas dizem sobre o aborto, mas algo que não tem nada a ver com aborto — a credibilidade moral da igreja.
Para ver um exemplo de como é possível “ganhar” e “perder” um debate cultural ao mesmo tempo, basta olhar para um país do outro lado do Atlântico, a Irlanda.
Um livro recente do historiador Fintan O’Toole examina o colapso aparentemente repentino da influência cultural católica na terra de São Patrício, de maneiras que poderiam ser uma premonição do que poderia acontecer com a América do Norte evangélica.
O’Toole escreve, por exemplo, sobre a influência incontestada do arcebispo de Dublin, John Charles McQuaid. Sua influência era tamanha que o arcebispo poderia chamar uma rede de rádio para prestar contas por tocar uma música de Cole Porter — cuja letra (“Sempre sou fiel a você, querida, ao meu estilo”), na opinião do clérigo, representava uma “moralidade circunscrita”.
Um resenhista aborda o assunto sem rodeios, escrevendo: “A única moralidade circunscrita que McQuaid estava preparado para tolerar era o abuso de meninos e meninas por padres, e de mulheres das mais variadas origens por freiras, nas infames lavanderias Magdalene”.
A influência da igreja era inquestionável — a Irlanda divergia do restante da Europa Ocidental em questões morais relacionadas a aborto, contracepção, divórcio e assim por diante.
E, no entanto, como argumenta O’Toole, a influência da igreja teve longo alcance também em outros aspectos. Ele escreve que, quando vários casos de abuso sexual por parte do clero foram descobertos, os pais das crianças prejudicadas pareciam inclinados a pedir desculpas à igreja pelas “dificuldades” que esses padres abusivos enfrentavam.
“Esta foi a grande conquista da igreja na Irlanda”, escreve O’Toole. “A igreja mutilou com tanto sucesso a capacidade da sociedade de pensar por si mesma sobre o certo e o errado que eram os pais das crianças abusadas, e não o bispo que permitiu esse abuso, que ficavam ‘pedindo mil desculpas’.
“A igreja conseguiu criar um rebanho que, diante de uma quebra de confiança ultrajante, se preocuparia mais com o agressor do que com aqueles de quem ele abusou e poderia continuar abusando no futuro”, continua ele. “A igreja incutiu seu sistema de controle e poder tão profundamente nas mentes dos fiéis que estes mal conseguiam sentir raiva pela perpetração de crimes repugnantes contra seus próprios filhos”.
Embora alguns líderes evangélicos nos digam que termos como “gaslighting” e “abuso espiritual” sejam apenas vagos slogans terapêuticos para desconstrução, esses termos descrevem com perfeição o que O’Toole viu nos sistemas abusivos da igreja na Irlanda — e descrevem com a mesma facilidade o que muitos têm experimentado em contextos evangélicos.
O resultado final — talvez tanto para a América do Norte do novo nascimento quanto para a Irlanda católica — é uma igreja com uma força de influência cultural, se não uma autoridade moral, descomunalmente poderosa, mas que de súbito se vê sem credibilidade para impor sua ortodoxia.
E qual é o motivo disso? As pessoas não conseguiram suportar o que O’Toole chama de “a descoberta mais chocante de todas”, que foi “o reconhecimento, por parte da maioria dos fiéis, de que eles eram de fato muito mais santos do que seus pregadores, que tinham um senso mais claro de certo e errado, um senso mais honesto e leal de amor, compaixão e decência.”
A igreja na Irlanda é agora uma presença culturalmente vazia em comparação com o que já foi um dia. Hoje o aborto é legal na Irlanda, depois que um referendo popular, em 2018, revogou as leis que o impediam. Os abortos são, de fato, gratuitos e feitos através do serviço de saúde pública do país. O divórcio, a partir de 2019, também foi liberado.
Será que essas mudanças maciças e imprevisivelmente repentinas aconteceram por causa de táticas de mobilização ou mensagens que foram drasticamente aprimoradas pela “esquerda cultural” (para usar um rótulo mais comum)? Não.
Muitos pesquisadores acreditam que as mudanças culturais na Irlanda se devem, em grande parte, a uma reação contra a própria igreja. Essa reação foi motivada pelas forças culturais da secularização em guerra contra a igreja? Não. Ela aconteceu porque pessoas que antes reverenciavam a igreja perceberam que a própria igreja não acreditava no que ensinava.
O’Toole aponta para uma necessidade cultural que havia no passado, a de se obter uma anulação por um conselho eclesiástico para terminar um casamento. Ele observa que um dos membros desse conselho era um padre acusado, em bases críveis, de ser um predador sexual de menores — e que estava sob a autoridade de líderes também acusados, em bases críveis, de encobrir esse abuso.
A corrupção de qualquer instituição não decide, evidentemente, a moralidade ou imoralidade de quaisquer ações, nem a correção ou não correção de quaisquer crenças. Martinho Lutero acreditava que a igreja romana medieval estava errada sobre as indulgências e o purgatório, mas estava certa sobre a eficácia dos sacramentos e a existência de um céu e um inferno. E, no entanto, como Jesus disse: “Ai daquele por quem vier a pedra de tropeço” (Lucas 17.1, NASB).
Eu escrevi acima que o colapso cultural da igreja irlandesa foi o “resultado final” de suas hipocrisias e seus escândalos tremendamente públicos, mas isso não está bem certo. Como cristão, não acredito que o “resultado final” seja a Irlanda ter virado as costas para a igreja, ou qualquer outra mudança sociológica ou histórica.
Em vez disso, o verdadeiro resultado final é o juízo de Deus. E embora esse juízo seja algo bem menos quantificável, deveria ser muito mais aterrorizante.
O que o movimento pró-vida mais precisa não é de mais influência cultural ou política do evangelicalismo. De fato, muito do que precisa ser feito para alcançar esse tipo de influência é, em si mesmo, parte da nossa crise de credibilidade.
A influência cultural de curto prazo sem autoridade moral pode levar a alguns ganhos. Mas, a longo prazo, esses ganhos não podem ser sustentados. E o mais importante é que o que podemos perder por causa de uma igreja influente, mas carnal, é muito mais do que o que podemos ganhar — e o que perdemos pode ser muito difícil de recuperar.
O que o mundo mais precisa dos evangélicos é que sejamos um povo que realmente acredita no que diz. Quer o mundo concorde ou discorde de nós sobre o aborto, ou sobre qualquer outro assunto, eles precisam nos ver amando crianças em situação de vulnerabilidade — estejam elas dentro do útero, em lares abusivos, em lares adotivos ou nos bancos das nossas igrejas.
Eles precisam que lutemos por justiça não apenas na arena pública, mas, o que é mais importante, que mantenhamos um alto padrão de integridade e responsabilidade.
Eles precisam nos ver dando demonstrações daquilo em que dizemos crer — ou seja, que toda a vida é vivida diante da face de Deus e que nada pode ser encoberto diante do tribunal de Cristo. Eles precisam ver o testemunho de que o novo nascimento que reivindicamos é mais do que apenas uma marca.
A influência pode ser importante, se for usada da maneira certa. Mas a credibilidade é ainda mais importante. E a próxima geração, dos que já nasceram e dos que ainda não nasceram, conta conosco para recuperar essa credibilidade.
Russell Moore lidera o Public Theology Project da Christianity Today.
Traduzido por Mariana Albuquerque.
Editado por Marisa Lopes.
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